Bento XVI Homilias 20311


Domingo, 17 de Abril de 2011: CELEBRAÇÃO DO DOMINGO DE RAMOS E DA PAIXÃO DO SENHOR

17411
Praça de São Pedro

XXVI Jornada Mundial da Juventude




Amados irmãos e irmãs,

Queridos jovens!

A mesma emoção se apodera de nós em cada ano, no Domingo de Ramos, quando subimos na companhia de Jesus o monte para o santuário, quando O acompanhamos pelo caminho que leva para o alto. Neste dia, ao longo dos séculos por toda a face da terra, jovens e pessoas de todas a idades aclamam-n’O gritando: «Hossana ao Filho de David! Bendito o que vem em nome do Senhor!».

Mas, quando nos integramos em tal procissão – na multidão daqueles que subiam com Jesus a Jerusalém e O aclamavam como rei de Israel –, verdadeiramente o que é que fazemos? É algo mais do que uma cerimónia, do que um louvável costume? Porventura terá a ver com a verdadeira realidade da nossa vida, do nosso mundo? Para encontrar a resposta, temos antes de mais nada de esclarecer o que é que o próprio Jesus realmente quis e fez. Depois da profissão de fé que Pedro fizera em Cesareia de Filipe, no extremo norte da Terra Santa, Jesus encaminhara-Se como peregrino na direcção de Jerusalém para as festividades da Páscoa. Caminha para o templo na Cidade Santa, para aquele lugar que, de modo particular, garantia a Israel que Deus estava próximo do seu povo. Caminha para a festa comunitária da Páscoa, memorial da libertação do Egipto e sinal da esperança na libertação definitiva. Jesus sabe que O espera uma Páscoa nova, e que Ele mesmo tomará o lugar dos cordeiros imolados, oferecendo-Se a Si mesmo na Cruz. Sabe que, nos dons misteriosos do pão e do vinho, dar-Se-á para sempre aos seus, abrir-lhes-á a porta para um novo caminho de libertação, para a comunhão com o Deus vivo. Ele caminha para a altura da Cruz, para o momento do amor que se dá. O termo último da sua peregrinação é a altura do próprio Deus, até à qual Ele quer elevar o ser humano.

Assim, a nossa procissão de hoje quer ser imagem de algo mais profundo, imagem do facto que nos encaminhamos em peregrinação, juntamente com Jesus, pelo caminho alto que leva ao Deus vivo. É desta subida que se trata: tal é o caminho, a que Jesus nos convida. Mas, nesta subida, como podemos andar no mesmo passo que Ele? Porventura não ultrapassa as nossas forças? Sim, está acima das nossas próprias possibilidades. Desde sempre – e hoje ainda mais – os homens nutriram o desejo de «ser como Deus»; de alcançar, eles mesmos, a altura de Deus. Em todas as invenções do espírito humano, em última análise, procura-se conseguir asas para poder elevar-se à altura do Ser divino, para se tornar independentes, totalmente livres, como o é Deus. A humanidade pôde realizar tantas coisas: somos capazes de voar; podemos ver-nos uns aos outros, ouvir e falar entre nós dum extremo do mundo para o outro. E todavia a força de gravidade que nos puxa para baixo é poderosa. A par das nossas capacidades, não cresceu apenas o bem; cresceram também as possibilidades do mal, que se levantam como tempestades ameaçadoras sobre a história. E perduram também os nossos limites: basta pensar nas catástrofes que, nestes meses, afligiram e continuam a afligir a humanidade.

Os Padres disseram que o homem está colocado no ponto de intersecção de dois campos de gravidade. Temos, por um lado, a força de gravidade que puxa para baixo: para o egoísmo, para a mentira e para o mal; a gravidade que nos rebaixa e afasta da altura de Deus. Por outro lado, há a força de gravidade do amor de Deus: sabermo-nos amados por Deus e a resposta do nosso amor puxam-nos para o alto. O homem encontra-se no meio desta dupla força de gravidade, e tudo depende de conseguir livrar-se do campo de gravidade do mal e ficar livre para se deixar atrair totalmente pela força de gravidade de Deus, que nos torna verdadeiros, nos eleva, nos dá a verdadeira liberdade.

Depois da Liturgia da Palavra e logo no início da Oração Eucarística, durante a qual o Senhor entra no meio de nós, a Igreja dirige-nos este convite: «Sursum corda – corações ao alto!». O coração, segundo a concepção bíblica e na visão dos Padres, é aquele centro do homem onde se unem o intelecto, a vontade e o sentimento, o corpo e a alma; é aquele centro, onde o espírito se torna corpo e o corpo se torna espírito, onde vontade, sentimento e intelecto se unem no conhecimento de Deus e no amor a Ele. Este «coração» deve ser elevado. Mas, também aqui, sozinhos somos demasiado frágeis para elevar o nosso coração até à altura de Deus; não somos capazes disso. É precisamente a soberba de o podermos fazer sozinhos que nos puxa para baixo e afasta de Deus. O próprio Deus tem de puxar-nos para o alto; e foi isto que Cristo começou a fazer na Cruz. Desceu até à humilhação extrema da existência humana, a fim de nos puxar para o alto rumo a Ele, rumo ao Deus vivo. Jesus humilhou-Se: diz hoje a segunda leitura. Só assim podia ser superada a nossa soberba: a humildade de Deus é a forma extrema do seu amor, e este amor humilde atrai para o alto.

O salmo processional 24, que a Igreja nos propõe como «cântico de subida» para a liturgia de hoje, indica alguns elementos concretos, que pertencem à nossa subida e sem os quais não podemos ser elevados para o alto: as mãos inocentes, o coração puro, a rejeição da mentira, a procura do rosto de Deus. As grandes conquistas da técnica só nos tornam livres e são elementos de progresso da humanidade, se forem acompanhadas por estas atitudes: se as nossas mãos se tornarem inocentes e o coração puro, se permanecermos à procura da verdade, à procura do próprio Deus e nos deixarmos tocar e interpelar pelo seu amor. Mas todos estes elementos da subida só serão úteis, se reconhecermos com humildade que devemos ser puxados para o alto, se abandonarmos a soberba de querermos, nós mesmos, fazer-nos Deus. Temos necessidade d’Ele: Deus puxa-nos para o alto; permanecer apoiados pelas suas mãos – isto é, na fé – dá-nos a orientação justa e a força interior que nos eleva para o alto. Temos necessidade da humildade da fé, que procura o rosto de Deus e se entrega à verdade do seu amor.

A questão de saber como pode o homem chegar ao alto, tornar-se plenamente ele próprio e verdadeiramente semelhante a Deus, desde sempre ocupou a humanidade. Foi objecto de apaixonada discussão pelos filósofos platónicos dos séculos terceiro e quarto. A sua pergunta central era esta: como encontrar meios de purificação, pelos quais o homem pudesse libertar-se do gravoso peso que o puxa para baixo e elevar-se à altura do seu verdadeiro ser, à altura da divindade. Santo Agostinho, na sua busca do recto caminho, durante um certo período procurou apoio em tais filosofias. Mas, no fim, teve de reconhecer que a sua resposta não era suficiente, que ele, com tais métodos, não chegaria verdadeiramente a Deus. Disse aos seus representantes: Reconhecei, pois, que não basta a força do homem e de todas as suas purificações para o levar verdadeiramente à altura do divino, à altura que lhe é condigna. E disse que teria desesperado de si mesmo e da existência humana, se não tivesse encontrado Aquele que faz o que nós mesmos não podemos fazer, Aquele que nos eleva à altura de Deus, apesar da nossa miséria: Jesus Cristo, que desceu de junto de Deus até nós e, no seu amor crucificado, nos toma pela mão e nos conduz ao alto.

Com o Senhor, caminhamos, peregrinos, para o alto. Andamos à procura do coração puro e das mãos inocentes, andamos à procura da verdade, procuramos o rosto de Deus. Manifestamos ao Senhor o desejo de nos tornar justos e pedimos-Lhe: Atraí-nos, Vós, para o alto! Tornai-nos puros! Fazei que se cumpra em nós a palavra do salmo processional que cantamos, ou seja, que possamos pertencer à geração dos que procuram Deus, «que procuram a face do Deus de Jacob» (
Ps 24,6 /23, 6). Amen.



Quinta-feira Santa, 21 de Abril de 2011: SANTA MISSA CRISMAL

41411
Basílica Vaticana




Amados irmãos e irmãs!

No centro da liturgia desta manhã, está a bênção dos santos óleos: o óleo para a unção dos catecúmenos, o óleo para a unção dos enfermos e o óleo do crisma para os grandes sacramentos que conferem o Espírito Santo, ou seja, a Confirmação, a Ordenação Sacerdotal e a Ordenação Episcopal. Nos sacramentos, o Senhor toca-nos por meio dos elementos da criação. Aqui, torna-se visível a unidade entre criação e redenção. Os sacramentos são expressão da corporeidade da nossa fé, que abraça corpo e alma, isto é, o homem inteiro. Pão e vinho são frutos da terra e do trabalho humano. O Senhor escolheu-os como portadores da sua presença. O óleo é símbolo do Espírito Santo e, ao mesmo tempo, alude a Cristo: a palavra «Cristo» (Messias) significa «Ungido». A humanidade de Jesus, graças à unidade do Filho com o Pai, fica inserida na comunhão com o Espírito Santo e assim é «ungida» de um modo único, é permeada pelo Espírito Santo. Aquilo que acontecera apenas simbolicamente nos reis e sacerdotes da Antiga Aliança, quando eram instituídos no seu ministério com a unção do óleo, verifica-se em toda a sua realidade em Jesus: a sua humanidade é permeada pela força do Espírito Santo. Jesus abre a nossa humanidade ao dom do Espírito Santo. Quanto mais estivermos unidos a Cristo, tanto mais ficamos cheios do seu Espírito, do Espírito Santo. Chamamo-nos «cristãos», ou seja, «ungidos»: pessoas que pertencem a Cristo e por isso participam na sua unção, são tocadas pelo seu Espírito. Não quero somente chamar-me cristão, mas sê-lo também: disse Santo Inácio de Antioquia. Deixemos que estes santos óleos, que vão ser consagrados daqui a pouco, lembrem este dever contido na palavra «cristão», e peçamos ao Senhor que não nos limitemos a chamar-nos cristãos, mas o sejamos cada vez mais.

Como já disse, na liturgia deste dia, são benzidos três óleos. Nesta tríade, exprimem-se três dimensões essenciais da vida cristã, sobre as quais queremos agora reflectir. Em primeiro lugar, temos o óleo dos catecúmenos. Este óleo indica como que um primeiro modo de ser tocados por Cristo e pelo seu Espírito: um toque interior, pelo qual o Senhor atrai e aproxima de Si as pessoas. Por meio desta primeira unção, que tem lugar ainda antes do Baptismo, o nosso olhar detém-se nas pessoas que se põem a caminho de Cristo, nas pessoas que andam à procura da fé, à procura de Deus. O óleo dos catecúmenos diz-nos: não só os homens procuram a Deus, mas o próprio Deus anda à nossa procura. O facto de Ele mesmo Se ter feito homem descendo até aos abismos da existência humana, até à noite da morte, mostra-nos quanto Deus ama o homem, sua criatura. Movido pelo amor, Deus caminhou ao nosso encontro. «A buscar-me Vos cansaste, pela Cruz me resgatastes: tanta dor não seja em vão!»: rezamos no Dies irae. Deus anda à minha procura. Tenho eu vontade de O reconhecer? Quero ser conhecido por Ele, ser encontrado por Ele? Deus ama os homens. Ele sai ao encontro da inquietude do nosso coração, da inquietude que nos faz questionar e procurar, com a inquietude do seu próprio coração, que O induz a realizar o acto extremo por nós. A inquietude por Deus, o caminhar para Ele, para melhor O conhecer e amar não deve apagar-se em nós. Neste sentido, nunca devemos deixar de ser catecúmenos. «Procurai sempre a sua face»: diz um Salmo (
Ps 105,4). A este respeito, comentava Agostinho: Deus é tão grande que sempre supera infinitamente todo o nosso conhecimento e todo o nosso ser. O conhecimento de Deus nunca se esgota. Por toda a eternidade, poderemos, com uma alegria crescente, continuar a procurá-Lo, para O conhecer e amar cada vez mais. «O nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Vós»: escreveu Agostinho no início das suas Confissões. Sim, o homem vive inquieto, porque tudo o que é temporal é demasiado pouco. Mas, verdadeiramente, sentimo-nos inquietos por Ele? Não acabamos, talvez, por nos resignar com a sua ausência, procurando bastar-nos a nós mesmos? Não consintamos uma tal redução do nosso ser humano! Continuemos incessantemente a caminhar para Ele, com saudades d’Ele, num acolhimento sempre novo feito de conhecimento e amor!

Temos, depois, o óleo para a Unção dos Enfermos. Pensamos agora na multidão das pessoas que sofrem: os famintos e os sedentos, as vítimas da violência em todos os continentes, os doentes com todos os seus sofrimentos, as suas esperanças e desânimos, os perseguidos e os humilhados, as pessoas com o coração dilacerado. Ao narrar o primeiro envio dos discípulos por Jesus, São Lucas diz-nos: «Ele enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar os enfermos» (Lc 9,2). Curar é um mandato primordial confiado por Jesus à Igreja, a exemplo d’Ele mesmo que, curando, percorreu os caminhos do país. É certo que o dever primordial da Igreja é o anúncio do Reino de Deus. Mas este mesmo anúncio deve revelar-se um processo de cura: «...tratar os corações torturados», diz hoje a primeira leitura do profeta Isaías (Is 61,1). O primeiro fruto que o anúncio do Reino de Deus, da bondade sem limites de Deus, deve suscitar é curar o coração ferido dos homens. O homem é essencialmente um ser em relação. Mas, se a sua relação fundamental - a relação com Deus – é transtornada, então tudo o resto fica transtornado também. Se o nosso relacionamento com Deus se transtorna, se a orientação fundamental do nosso ser está errada, também não podemos ficar verdadeiramente curados no corpo e na alma. Por isso, a primeira e fundamental cura tem lugar no encontro com Cristo, que nos reconcilia com Deus e sara o nosso coração despedaçado. Mas, além deste dever central, faz parte da missão essencial da Igreja também a cura concreta da doença e do sofrimento. O óleo para a Unção dos Enfermos é expressão sacramental visível desta missão. Desde o início, amadureceu na Igreja a vocação de curar, amadureceu o amor solícito pelas pessoas atribuladas no corpo e na alma. Esta é também a ocasião boa para, uma vez por outra, agradecer às irmãs e aos irmãos que, em todo o mundo, proporcionam um amor restaurador aos homens, sem olhar à sua posição ou confissão religiosa. Desde Isabel da Hungria, Vicente de Paulo, Luísa de Marillac, Camilo de Lellis, até Madre Teresa – para lembrar somente alguns nomes – o mundo é atravessado por um rastro luminoso de pessoas, que tem a sua origem no amor de Jesus pelos atribulados e doentes. Por tudo isso damos graças ao Senhor neste momento. E agradecemos a todos aqueles que, em virtude da fé e do amor, se põem ao lado dos doentes, dando assim, no fim das contas, testemunho da bondade própria de Deus. O óleo para a Unção dos Enfermos é sinal deste óleo da bondade do coração, que estas pessoas – juntamente com a sua competência profissional – proporcionam aos doentes. Sem falar de Cristo, manifestam-n’O.

Em terceiro lugar, temos o mais nobre dos óleos eclesiais: o crisma, uma mistura de azeite de oliveira e com perfumes vegetais. É o óleo da unção sacerdotal e da unção real, unções estas que estão ligadas com as grandes tradições de unção da Antiga Aliança. Na Igreja, este óleo serve sobretudo para a unção na Confirmação e nas Ordens sacras. A liturgia de hoje relaciona com este óleo as palavras de promessa do profeta Isaías: «Vós sereis chamados “sacerdotes do Senhor”e tereis o nome de “ministros do nosso Deus”» (Is 61,6). Deste modo, o profeta retoma a grande palavra de mandato e promessa que Deus dirigira a Israel no Sinai: «Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa» (Ex 19,6). No meio do mundo imenso e em favor do mesmo, que em grande parte não conhecia Deus, Israel devia ser como que um santuário de Deus para a todos, devia exercer uma função sacerdotal em favor do mundo. Devia conduzir o mundo para Deus, abri-lo a Ele. São Pedro, na sua grande catequese baptismal, aplicou tal privilégio e mandato de Israel a toda a comunidade dos baptizados, proclamando: «Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciardes os louvores d’Aquele que vos chamou das trevas à sua luz admirável. Vós que outrora não éreis seu povo, agora sois povo de Deus» (1P 2,9-10). O Baptismo e a Confirmação constituem o ingresso neste povo de Deus, que abraça todo o mundo; a unção no Baptismo e na Confirmação introduz neste ministério sacerdotal em favor da humanidade. Os cristãos são um povo sacerdotal em favor do mundo. Os cristãos deveriam fazer visível ao mundo o Deus vivo, testemunhá-Lo e conduzir a Ele. Ao falarmos desta nossa missão comum enquanto baptizados, não temos motivo para nos vangloriar. De facto, trata-se de uma exigência que suscita em nós alegria e ao mesmo tempo preocupação: somos nós verdadeiramente o santuário de Deus no mundo e para o mundo? Abrimos aos homens o acesso a Deus ou, pelo contrário, escondemo-lo? Porventura nós, povo de Deus, não nos tornamos em grande parte um povo marcado pela incredulidade e pelo afastamento de Deus? Porventura não é verdade que o Ocidente, os países centrais do cristianismo se mostram cansados da sua fé e, enfastiados da sua própria história e cultura, já não querem conhecer a fé em Jesus Cristo? Neste momento, temos motivos para bradar a Deus: «Não permitais que nos tornemos um “não povo”! Fazei que Vos reconheçamos de novo! De facto, ungistes-nos com o vosso amor, colocastes o vosso Espírito Santo sobre nós. Fazei que a força do vosso Espírito se torne novamente eficaz em nós, para darmos com alegria testemunho da vossa mensagem!».

Mas, apesar de toda a vergonha pelos nossos erros, não devemos esquecer que hoje existem também exemplos luminosos de fé; pessoas que, pela sua fé e o seu amor, dão esperança ao mundo. Quando for beatificado o Papa João Paulo II no próximo dia 1 de Maio, cheios de gratidão pensaremos nele como grande testemunha de Deus e de Jesus Cristo no nosso tempo, como homem cheio do Espírito Santo. E juntamente com João Paulo II, pensamos no grande número daqueles que ele beatificou e canonizou, e que nos dão a certeza de que também hoje a promessa de Deus e o seu mandato não ficam sem efeito.

Finalmente, dirijo uma palavra especial a vós, caros irmãos no ministério sacerdotal. A Quinta-feira Santa é de modo particular o nosso dia. Na hora da Última Ceia, o Senhor instituiu o sacerdócio neotestamentário. «Consagra-os na verdade» (Jn 17,17): pediu Ele ao Pai para os Apóstolos e para os sacerdotes de todos os tempos. Com imensa gratidão pela nossa vocação e com grande humildade por todas as nossas insuficiências, renovemos neste momento o nosso «sim» ao chamamento do Senhor: Sim, quero unir-me intimamente ao Senhor Jesus, renunciando a mim mesmo .... impelido pelo amor de Cristo. Amen.



Quinta-feira Santa, 21 de Abril de 2011: SANTA MISSA NA CEIA DO SENHOR

21411
Basílica de São João de Latrão




Amados irmãos e irmãs!

«Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de padecer» (
Lc 22,15): com estas palavras Jesus inaugurou a celebração do seu último banquete e da instituição da sagrada Eucaristia. Jesus foi ao encontro daquela hora, desejando-a. No seu íntimo, esperou aquele momento em que haveria de dar-Se aos seus sob as espécies do pão e do vinho. Esperou aquele momento que deveria ser, de algum modo, as verdadeiras núpcias messiânicas: a transformação dos dons desta terra e o fazer-Se um só com os seus, para os transformar e inaugurar assim a transformação do mundo. No desejo de Jesus, podemos reconhecer o desejo do próprio Deus: o seu amor pelos homens, pela sua criação, um amor em expectativa. O amor que espera o momento da união, o amor que quer atrair os homens a si, para assim realizar também o desejo da própria criação: esta, de facto, aguarda a manifestação dos filhos de Deus (cf. Rm 8,19). Jesus deseja-nos, aguarda-nos. E nós, temos verdadeiramente desejo d’Ele? Sentimos, no nosso interior, o impulso para O encontrar? Ansiamos pela sua proximidade, por nos tornarmos um só com Ele, dom este que Ele nos concede na sagrada Eucaristia? Ou, pelo contrário, sentimo-nos indiferentes, distraídos, inundados por outras coisas? Sabemos pelas parábolas de Jesus sobre banquetes, que Ele conhece a realidade dos lugares que ficam vazios, a resposta negativa, o desinteresse por Ele e pela sua proximidade. Os lugares vazios no banquete nupcial do Senhor, com ou sem desculpa, há já algum tempo que deixaram de ser para nós uma parábola, tornando-se uma realidade, justamente naqueles países aos quais Ele tinha manifestado a sua proximidade particular. Jesus sabia também de convidados que viriam sim, mas sem estar vestidos de modo nupcial: sem alegria pela sua proximidade, fazendo-o somente por costume e com uma orientação bem diversa na sua vida. São Gregório Magno, numa das suas homilias, perguntava-se: Que género de pessoas são aquelas que vêm sem hábito nupcial? Em que consiste este hábito e como se pode adquiri-lo? Eis a sua resposta: Aqueles que foram chamados e vêm, de alguma maneira têm fé. É a fé que lhes abre a porta; mas falta-lhes o hábito nupcial do amor. Quem não vive a fé como amor, não está preparado para as núpcias e é expulso. A comunhão eucarística exige a fé, mas a fé exige o amor; caso contrário, está morta, inclusive como fé.

Sabemos pelos quatro Evangelhos, que o último banquete de Jesus, antes da Paixão, foi também um lugar de anúncio. Jesus propôs, uma vez mais e com insistência, os elementos estruturais da sua mensagem. Palavra e Sacramento, mensagem e dom estão inseparavelmente unidos. Mas, durante o último banquete, Jesus sobretudo rezou. Mateus, Marcos e Lucas usam duas palavras para descrever a oração de Jesus no momento central da Ceia: eucharistesas e eulogesas – agradecer e abençoar. O movimento ascendente do agradecimento e o movimento descendente da bênção aparecem juntos. As palavras da transubstanciação são uma parte desta oração de Jesus. São palavras de oração. Jesus transforma a sua Paixão em oração, em oferta ao Pai pelos homens. Esta transformação do seu sofrimento em amor possui uma força transformadora dos dons, nos quais agora Jesus Se dá a Si mesmo. Ele no-los dá, para nós e o mundo sermos transformados. O objectivo próprio e último da transformação eucarística é a nossa transformação na comunhão com Cristo. A Eucaristia tem em vista o homem novo, com uma novidade tal que assim só pode nascer a partir de Deus e por meio da obra do Servo de Deus.

A partir de Lucas e sobretudo de João, sabemos que Jesus, na sua oração durante a Última Ceia, dirigiu também súplicas ao Pai – súplicas que, ao mesmo tempo, contêm apelos aos seus discípulos de então e de todos os tempos. Nesta hora, queria escolher somente uma súplica que, segundo João, Jesus repetiu quatro vezes na sua Oração Sacerdotal. Como O deve ter angustiado no seu íntimo! Tal súplica continua sem cessar sendo a sua oração ao Pai por nós: trata-se da oração pela unidade. Jesus diz explicitamente que tal súplica vale não somente para os discípulos então presentes, mas tem em vista todos aqueles que hão-de acreditar n’Ele (cf. Jn 17,20). Pede que todos se tornem um só, «como Tu, ó Pai, estás em Mim, e Eu em Ti, que eles também estejam em nós, para que o mundo acredite» (Jn 17,21). Só pode haver a unidade dos cristãos se estes estiverem intimamente unidos com Ele, com Jesus. Fé e amor por Jesus: fé no seu ser um só com o Pai e abertura à unidade com Ele são essenciais. Portanto, esta unidade não é algo somente interior, místico. Deve tornar-se visível; tão visível que constitua para o mundo a prova do envio de Jesus pelo Pai. Por isso, tal súplica tem escondido um sentido eucarístico que Paulo pôs claramente em evidência na Primeira Carta aos Coríntios: «Não é o pão que nós partimos uma comunhão com o Corpo de Cristo? Uma vez que existe um só pão, nós, que somos muitos, formamos um só corpo, visto participarmos todos desse único pão» (1Co 10,16-17). Com a Eucaristia, nasce a Igreja. Todos nós comemos o mesmo pão, recebemos o mesmo corpo do Senhor, e isto significa: Ele abre cada um de nós para além de si mesmo. Torna-nos todos um só. A Eucaristia é o mistério da proximidade e comunhão íntima de cada indivíduo com o Senhor. E, ao mesmo tempo, é a união visível entre todos. A Eucaristia é sacramento da unidade. Ela chega até ao mistério trinitário, e assim cria, ao mesmo tempo, a unidade visível. Digamo-lo uma vez mais: a Eucaristia é o encontro pessoalíssimo com o Senhor, e no entanto não é jamais apenas um acto de devoção individual; celebramo-la necessariamente juntos. Em cada comunidade, o Senhor está presente de modo total; mas Ele é um só em todas as comunidades. Por isso, fazem necessariamente parte da Oração Eucarística da Igreja as palavras: «una cum Papa nostro et cum Episcopo nostro». Isto não é um mero acréscimo exterior àquilo que acontece interiormente, mas expressão necessária da própria realidade eucarística. E mencionamos o Papa e o Bispo pelo nome: a unidade é totalmente concreta, tem nome. Assim, a unidade torna-se visível, torna-se sinal para o mundo, e estabelece para nós mesmos um critério concreto.

São Lucas conservou-nos um elemento concreto da oração de Jesus pela unidade: «Simão, Simão, Satanás reclamou o poder de vos joeirar como ao trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos» (Lc 22,31-32). Com pesar, constatamos novamente, hoje, que foi permitido a Satanás joeirar os discípulos visivelmente diante de todo o mundo. E sabemos que Jesus reza pela fé de Pedro e dos seus sucessores. Sabemos que Pedro, que através das águas agitadas da história vai ao encontro do Senhor e corre perigo de afundar, é sempre novamente sustentado pela mão do Senhor e guiado sobre as águas. Mas vem depois um anúncio e uma missão. «Tu, uma vez convertido...». Todos os seres humanos, à excepção de Maria, têm continuamente necessidade de conversão. Jesus prediz a Pedro a sua queda e a sua conversão. De que é que Pedro teve de converter-se? No início do seu chamamento, assombrado com o poder divino do Senhor e com a sua própria miséria, Pedro dissera: «Senhor, afasta-Te de mim, que eu sou um homem pecador» (Lc 5,8). Na luz do Senhor, reconhece a sua insuficiência. Precisamente deste modo, com a humildade de quem sabe que é pecador, é que Pedro é chamado. Ele deve reencontrar sem cessar esta humildade. Perto de Cesareia de Filipe, Pedro não quisera aceitar que Jesus tivesse de sofrer e ser crucificado: não era conciliável com a sua imagem de Deus e do Messias. No Cenáculo, não quis aceitar que Jesus lhe lavasse os pés: não se adequava à sua imagem da dignidade do Mestre. No horto das oliveiras, feriu com a espada; queria demonstrar a sua coragem. Mas, diante de uma serva, afirmou que não conhecia Jesus. Naquele momento, isto parecia-lhe uma pequena mentira, para poder permanecer perto de Jesus. O seu heroísmo ruiu num jogo mesquinho por um lugar no centro dos acontecimentos. Todos nós devemos aprender sempre de novo a aceitar Deus e Jesus Cristo como Ele é, e não como queríamos que fosse. A nós também nos custa aceitar que Ele esteja à mercê dos limites da sua Igreja e dos seus ministros. Também não queremos aceitar que Ele esteja sem poder neste mundo. Também nos escondemos por detrás de pretextos, quando a pertença a Ele se nos torna demasiado custosa e perigosa. Todos nós temos necessidade da conversão que acolhe Jesus no seu ser Deus e ser-Homem. Temos necessidade da humildade do discípulo que segue a vontade do Mestre. Nesta hora, queremos pedir-Lhe que nos fixe como fixou Pedro, no momento oportuno, com os seus olhos benévolos, e nos converta.

Pedro, o convertido, é chamado a confirmar os seus irmãos. Não é um facto extrínseco que lhe seja confiado este dever no Cenáculo. O serviço da unidade tem o seu lugar visível na celebração da sagrada Eucaristia. Queridos amigos, é um grande conforto para o Papa saber que, em cada Celebração Eucarística, todos rezam por ele; que a nossa oração se une à oração do Senhor por Pedro. É somente graças à oração do Senhor e da Igreja que o Papa pode corresponder ao seu dever de confirmar os irmãos: apascentar o rebanho de Cristo e fazer-se garante daquela unidade que se torna testemunho visível do envio de Jesus pelo Pai.

«Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa». Senhor, Vós tendes desejo de nós, de mim. Tendes desejo de nos fazer participantes de Vós mesmo na Sagrada Eucaristia, de Vos unir a nós. Senhor, suscitai também em nós o desejo de Vós. Reforçai-nos na unidade convosco e entre nós. Dai à vossa Igreja a unidade, para que o mundo creia. Amen.



Sábado Santo, 23 de Abril de 2011: VIGÍLIA PASCAL NA NOITE SANTA

23411
Basílica Vaticana





Amados irmãos e irmãs,

Dois grandes sinais caracterizam a celebração litúrgica da Vigília Pascal. Temos antes de mais nada o fogo que se torna luz. A luz do círio pascal que, na procissão através da igreja encoberta na escuridão da noite, se torna uma onda de luzes, fala-nos de Cristo como verdadeira estrela da manhã eternamente sem ocaso, fala-nos do Ressuscitado em quem a luz venceu as trevas. O segundo sinal é a água. Esta recorda, por um lado, as águas do Mar Vermelho, o afundamento e a morte, o mistério da Cruz; mas, por outro, aparece-nos como água nascente, como elemento que dá vida na aridez. Torna-se assim imagem do sacramento do Baptismo, que nos faz participantes da morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Mas não são apenas estes grandes sinais da criação, a luz e a água, que fazem parte da liturgia da Vigília Pascal; outra característica verdadeiramente essencial da Vigília é o facto de nos proporcionar um vasto encontro com a palavra da Sagrada Escritura. Antes da reforma litúrgica, havia doze leituras do Antigo Testamento e duas do Novo. As do Novo Testamento permaneceram; entretanto o número das leituras do Antigo Testamento acabou fixado em sete, que, atendendo às situações locais, se podem reduzir a três leituras. A Igreja quer, através de uma ampla visão panorâmica, conduzir-nos ao longo do caminho da história da salvação, desde a criação passando pela eleição e a libertação de Israel até aos testemunhos proféticos, pelos quais toda esta história se orienta cada vez mais claramente para Jesus Cristo. Na tradição litúrgica, todas estas leituras se chamavam profecias: mesmo quando não são directamente vaticínios de acontecimentos futuros, elas têm um carácter profético, mostram-nos o fundamento íntimo e a direcção da história; fazem com que a criação e a história se tornem transparentes no essencial. Deste modo tomam-nos pela mão e conduzem-nos para Cristo, mostram-nos a verdadeira luz.

Na Vigília Pascal, o percurso ao longo dos caminhos da Sagrada Escritura começa pelo relato da criação. Desta forma, a liturgia quer-nos dizer que também o relato da criação é uma profecia. Não se trata de uma informação sobre a realização exterior da transformação do universo e do homem. Bem cientes disto estavam os Padres da Igreja, que entenderam este relato não como narração real das origens das coisas, mas como apelo ao essencial, ao verdadeiro princípio e ao fim do nosso ser. Ora, podemo-nos interrogar: mas, na Vigília Pascal, é verdadeiramente importante falar também da criação? Não se poderia começar pelos acontecimentos em que Deus chama o homem, forma para Si um povo e cria a sua história com os homens na terra? A resposta deve ser: não! Omitir a criação significaria equivocar-se sobre a história de Deus com os homens, diminuí-la, deixar de ver a sua verdadeira ordem de grandeza. O arco da história que Deus fundou chega até às origens, até à criação. A nossa profissão de fé inicia com as palavras: «Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra». Se omitimos este início do Credo, a história global da salvação torna-se demasiado restrita, demasiado pequena. A Igreja não é uma associação qualquer que se ocupa das necessidades religiosas dos homens e cujo objectivo se limitaria precisamente ao de uma tal associação. Não, a Igreja leva o homem ao contacto com Deus e, consequentemente, com o princípio de tudo. Por isso, Deus tem a ver connosco como Criador, e por isso possuímos uma responsabilidade pela criação. A nossa responsabilidade inclui a criação, porque esta provém do Criador. Deus pode dar-nos vida e guiar a nossa vida, só porque Ele criou o todo. A vida na fé da Igreja não abrange somente o âmbito de sensações e sentimentos e porventura de obrigações morais; mas abrange o homem na sua integralidade, desde as suas origens e na perspectiva da eternidade. Só porque a criação pertence a Deus, podemos depositar n’Ele completamente a nossa confiança. E só porque Ele é Criador, é que nos pode dar a vida por toda a eternidade. A alegria e gratidão pela criação e a responsabilidade por ela andam juntas uma com a outra.

Podemos determinar ainda mais concretamente a mensagem central do relato da criação. Nas primeiras palavras do seu Evangelho, São João resumiu o significado essencial do referido relato com uma única frase: «No princípio, era o Verbo». Com efeito, o relato da criação, que ouvimos anteriormente, caracteriza-se pela frase que aparece com regularidade: «Disse Deus…». O mundo é uma produção da Palavra, do Logos, como se exprime João com um termo central da língua grega. «Logos» significa «razão», «sentido», «palavra». Não é apenas razão, mas Razão criadora que fala e comunica a Si mesma. Trata-se de Razão que é sentido, e que cria, Ela mesma, sentido. Por isso, o relato da criação diz-nos que o mundo é uma produção da Razão criadora. E deste modo diz-nos que, na origem de todas as coisas, não está o que é sem razão, sem liberdade; pelo contrário, o princípio de todas as coisas é a Razão criadora, é o amor, é a liberdade. Encontramo-nos aqui perante a alternativa última que está em jogo na disputa entre fé e incredulidade: o princípio de tudo é a irracionalidade, a ausência de liberdade e o acaso, ou então o princípio do ser é razão, liberdade, amor? O primado pertence à irracionalidade ou à razão? Tal é a questão de que, em última análise, se trata. Como crentes, respondemos com o relato da criação e com São João: na origem, está a razão. Na origem, está a liberdade. Por isso, é bom ser uma pessoa humana. Assim o que sucedera no universo em expansão não foi que por fim, num angulozinho qualquer do cosmos, ter-se-ia formado por acaso também uma espécie como qualquer outra de ser vivente, capaz de raciocinar e de tentar encontrar na criação uma razão ou de lha conferir. Se o homem fosse apenas um tal produto casual da evolução num lugar marginal qualquer do universo, então a sua vida seria sem sentido ou mesmo um azar da natureza. Mas não! No início, está a Razão, a Razão criadora, divina. E, dado que é Razão, ela criou também a liberdade; e, uma vez que se pode fazer uso indevido da liberdade, existe também o que é contrário à criação. Por isso se estende, por assim dizer, uma densa linha escura através da estrutura do universo e através da natureza do homem. Mas, apesar desta contradição, a criação como tal permanece boa, a vida permanece boa, porque na sua origem está a Razão boa, o amor criador de Deus. Por isso, o mundo pode ser salvo. Por isso podemos e devemos colocar-nos da parte da razão, da liberdade e do amor, da parte de Deus que nos ama de tal maneira que Ele sofreu por nós, para que, da sua morte, pudesse surgir uma vida nova, definitiva, restaurada.

O relato veterotestamentário da criação, que escutámos, indica claramente esta ordem das coisas. Mas faz-nos dar um passo mais em frente. O processo da criação aparece estruturado no quadro de uma semana que se orienta para o Sábado, encontrando neste a sua perfeição. Para Israel, o Sábado era o dia em que todos podiam participar no repouso de Deus, em que homem e animal, senhor e escravo, grandes e pequenos estavam unidos na liberdade de Deus. Assim o Sábado era expressão da aliança entre Deus, o homem e a criação. Deste modo, a comunhão entre Deus e o homem não aparece como um acréscimo, algo instaurado posteriormente num mundo cuja criação estava já concluída. A aliança, a comunhão entre Deus e o homem, está prevista no mais íntimo da criação. Sim, a aliança é a razão intrínseca da criação, tal como esta é o pressuposto exterior da aliança. Deus fez o mundo, para haver um lugar no qual Ele pudesse comunicar o seu amor e a partir do qual a resposta de amor retornasse a Ele. Diante de Deus, o coração do homem que Lhe responde é maior e mais importante do que todo o imenso universo material que, certamente, já nos deixa vislumbrar algo da grandeza de Deus.

Entretanto, na Páscoa e a partir da experiência pascal dos cristãos, devemos ainda dar mais um passo. O Sábado é o sétimo dia da semana. Depois de seis dias em que o homem, de certa forma, participa no trabalho criador de Deus, o Sábado é o dia do repouso. Mas, na Igreja nascente, sucedeu algo de inaudito: no lugar do Sábado, do sétimo dia, entra o primeiro dia. Este, enquanto dia da assembleia litúrgica, é o dia do encontro com Deus por meio de Jesus Cristo, que no primeiro dia, o Domingo, encontrou como Ressuscitado os seus, depois que estes encontraram vazio o sepulcro. Agora inverte-se a estrutura da semana: já não está orientada para o sétimo dia, em que se participa no repouso de Deus; a semana inicia com o primeiro dia como dia do encontro com o Ressuscitado. Este encontro não cessa jamais de verificar-se na celebração da Eucaristia, durante a qual o Senhor entra de novo no meio dos seus e dá-Se a eles, deixa-Se por assim dizer tocar por eles, põe-Se à mesa com eles. Esta mudança é um facto extraordinário, quando se considera que o Sábado – o sétimo dia – está profundamente radicado no Antigo Testamento como o dia do encontro com Deus. Quando se pensa como a passagem do trabalho ao dia do repouso corresponde também a uma lógica natural, torna-se ainda mais evidente o alcance impressionante de tal alteração. Este processo inovador, que se deu logo ao início do desenvolvimento da Igreja, só se pode explicar com o facto de ter sucedido algo de inaudito em tal dia. O primeiro dia da semana era o terceiro depois da morte de Jesus; era o dia em que Ele Se manifestou aos seus como o Ressuscitado. De facto, este encontro continha nele algo de impressionante. O mundo tinha mudado. Aquele que estivera morto goza agora de um vida que já não está ameaçada por morte alguma. Fora inaugurada uma nova forma de vida, uma nova dimensão da criação. O primeiro dia, segundo o relato do Génesis, é aquele em que teve início a criação. Agora tornara-se, de uma forma nova, o dia da criação, tornara-se o dia da nova criação. Nós celebramos o primeiro dia. Deste modo celebramos Deus, o Criador, e a sua criação. Sim, creio em Deus, Criador do Céu e da Terra. E celebramos o Deus que Se fez homem, padeceu, morreu, foi sepultado e ressuscitou. Celebramos a vitória definitiva do Criador e da sua criação. Celebramos este dia como origem e simultaneamente como meta da nossa vida. Celebramo-lo porque agora, graças ao Ressuscitado, vale de modo definitivo que a razão é mais forte do que a irracionalidade, a verdade mais forte do que a mentira, o amor mais forte do que a morte. Celebramos o primeiro dia, porque sabemos que a linha escura que atravessa a criação não permanece para sempre. Celebramo-lo, porque sabemos que agora vale definitivamente o que se diz no fim do relato da criação: «Deus viu que tudo o que tinha feito; era tudo muito bom» (
Gn 1,31). Amen.



Bento XVI Homilias 20311