Bento XVI Homilias 12611


Domingo, 19 de Junho de 2011: VISITA PASTORAL À DIOCESE DE SAN MARINO-MONTEFELTRO

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CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
Estádio Serravalle - República de San Marino





Prezados irmãos e irmãs

É grande a minha alegria de poder partir convosco o pão da Palavra de Deus e da Eucaristia e poder dirigir-vos, amados habitantes de São Marino, a minha saudação mais cordial. Dirijo um pensamento especial aos Capitães-Regentes e às demais Autoridades políticas e civis, presentes nesta celebração eucarística; saúdo com afecto o vosso Bispo, D. Luigi Negri, a quem agradeço as amáveis palavras que me dirigiu e, juntamente com ele, todos os sacerdotes e fiéis da diocese de São Marino-Montefeltro; saúdo cada um de vós e exprimo-vos o meu profundo reconhecimento pela cordialidade e pelo carinho com que me recebestes. Vim para compartilhar convosco alegrias e esperanças, dificuldades e compromissos, ideais e aspirações desta Comunidade diocesana. Sei que nem aqui faltam dificuldades, problemas e preocupações. Desejo assegurar a todos vós a minha proximidade e a minha lembrança na oração, às quais uno o encorajamento a perseverar no testemunho dos valores humanos e cristãos, tão profundamente arraigados na fé e na história deste território e da sua população, com a sua fé granítica da qual Sua Excelência falou.

Hoje celebramos a festividade da Santíssima Trindade: Deus Pai e Filho e Espírito Santo, festa de Deus, do centro da nossa fé. Quando pensamos na Trindade, vem à mente sobretudo o aspecto do mistério: são Três e são Um, um só Deus em três Pessoas. Na realidade, Deus só pode ser um mistério para nós na sua grandeza, e todavia Ele revelou-se: podemos conhecê-lo no seu Filho, e assim conhecer também o Pai e o Espírito Santo. No entanto, a liturgia hodierna chama a nossa atenção não tanto para o mistério, mas para a realidade de amor que está contida neste primeiro e supremo mistério da nossa fé. O Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só, porque são amor, e o amor é a força vivificadora absoluta, a unidade criada pelo amor é mais unidade do que uma unidade puramente física. O Pai doa tudo ao Filho; o Filho recebe tudo do Pai, com reconhecimento; e o Espírito Santo é como que o fruto deste amor recíproco do Pai e do Filho. Os textos da Santa Missa de hoje falam de Deus, e por isso falam de amor; não se detêm tanto no mistério das três Pessoas, mas no amor que constitui a sua substância e, ao mesmo tempo, a sua unidade e trindade.

O primeiro trecho que ouvimos foi tirado do Livro do Êxodo — sobre ele meditei numa recente Catequese de quarta-feira — e é surpreendente que a revelação do amor de Deus tenha lugar depois de um gravíssimo pecado da parte do povo. O pacto de aliança é recém-estipulado no monte Sinai, e o povo já comete a falta de fidelidade. A ausência de Moisés prolonga-se e o povo diz: «Mas onde ficou este Moisés, onde está o seu Deus?», e pede a Araão que lhe construa um deus que seja visível, acessível, manobrável, ao alcance do homem, em vez deste misterioso Deus invisível, distante. Araão concorda e prepara um bezerro de ouro. Descendo do Sinai, Moisés vê o que tinha acontecido e rompe as tábuas da aliança, que já está quebrada, fragmentada, duas pedras sobre as quais estavam escritas as «Dez Palavras», o conteúdo concreto do pacto com Deus. Tudo parece perdido, a amizade imediatamente, desde o princípio, já interrompida. E no entanto, não obstante e pecado gravíssimo da parte do povo, Deus, por intercessão de Moisés, decide perdoar e convida Moisés a subir de novo ao monte para receber de novo a sua lei, os dez Mandamentos, e renovar o pacto. Então, Moisés pede a Deus que se revele, que lhe mostre a sua face. Deus não mostra o rosto, mas revela sobretudo o seu ser cheio de bondade, com as seguintes palavras: «Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade» (
Ex 34,6). E este é o Rosto de Deus. Esta autodefinição de Deus manifesta o seu amor misericordioso: um amor que vence o pecado, que o cobre e elimina. E podemos estar sempre seguros desta bondade que não nos deixa. Não pode haver revelação mais clara. Nós temos um Deus que renuncia a destruir o pecador e que quer manifestar o seu amor de maneira ainda mais profunda e surpreendente, precisamente diante do pecador para oferecer sempre a possibilidade da conversão e do perdão.

O Evangelho completa esta revelação, que ouvimos na primeira leitura, porque indica até que ponto Deus manifestou a sua misericórdia. O evangelista João refere esta expressão de Jesus: «Deus amou o mundo de tal modo, que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jn 3,16). No mundo existe o mal, o egoísmo, a maldade, e Deus poderia vir para julgar este mundo, para destruir o mal, para castigar aqueles que agem nas trevas. No entanto, Ele demonstra que ama o mundo, que ama o homem, não obstante o seu pecado, e envia aquilo que tem de mais precioso: o seu Filho unigénito. E não só O envia, mas doa-O ao mundo. Jesus é o Filho de Deus que nasceu para nós, que viveu para nós, que curou os doentes, perdoou os pecados e acolheu todos. Respondendo ao amor que vem do Pai, o Filho entregou a sua própria vida por nós: na cruz, o amor misericordioso de Deus chega ao seu ápice. E é na cruz que o Filho de Deus nos obtém a participação na vida eterna, que nos é comunicada mediante o dom do Espírito Santo. Assim, no mistério da cruz, estão presentes as três Pessoas divinas: o Pai, que doa o seu Filho unigénito para a salvação do mundo; o Filho, que cumpre até ao fundo o desígnio do Pai; e o Espírito Santo — infundido por Jesus no momento da morte — que vem tornar-nos partícipes da vida divina e a transformar a nossa existência, para que seja animada pelo amor divino.

Caros irmãos e irmãs! A fé no Deus trinitário caracterizou também esta Igreja de São Marino-Montefeltro, ao longo da sua história antiga e gloriosa. A evangelização desta terra é atribuída aos santos artesãos Marinho e Leão, que nos meados do século III depois de Cristo teriam chegado a Rímini, provenientes da Dalmácia. Em virtude da sua santidade, teriam sido consagrados, um sacerdote e o outro diácono, pelo Bispo Gaudêncio e por ele enviados para o interior, um para o monte Feretro, que depois recebeu o nome de São Leão, e o outro para o monte Titã, que em seguida recebe o nome de São Marino. Para além destas questões históricas — que não é nossa tarefa aprofundar — interessa afirmar como Marinho e Leão trouxeram ao contexto desta realidade local, com a fé no Deus que se revelou em Jesus Cristo, perspectivas e valores renovados, determinando assim o nascimento de uma cultura e de uma civilização centradas na pessoa humana, imagem de Deus e por isso portador de direitos precedentes a qualquer legislação humana. A variedade das diversas etnias — romanos, godos e depois longobardos — que entravam em contacto entre si, às vezes também de modo muito conflituoso, encontraram na referência comum à fé um poderoso elemento de edificação ética, cultural, social e, de certa forma, política. Era evidente aos seus olhos que não podia considerar-se completo um projecto de civilização até que todos os componentes do povo não se tornassem uma comunidade cristã viva e bem estruturada e edificada sobre a fé no Deus trinitário. Portanto, pode-se dizer com razão que a riqueza deste povo, a vossa riqueza queridos habitantes de São Marino, foi e é a fé, e que esta fé criou uma civilização verdadeiramente única. Além disso, ao lado da fé é necessário recordar a fidelidade absoluta ao Bispo de Roma, para o qual esta Igreja sempre olhou com devoção e carinho; assim como a atenção demonstrada pela grande tradição da Igreja oriental e a profunda devoção à Virgem Maria.

Sentis-vos, justamente, orgulhosos e reconhecidos por aquilo que o Espírito Santo realizou ao longo dos séculos na vossa Igreja. Mas vós sabeis também que o melhor modo de apreciar uma herança consiste em cultivá-la e em enriquecê-la. Na realidade, vós sois chamados a desenvolver este depósito precioso num momento entre os mais decisivos da história. Hoje, a vossa missão deve confrontar-se com profundas e rápidas transformações culturais, sociais, económicas e políticas, que determinaram novas orientações e modificaram mentalidades, costumes e sensibilidades. Com efeito, também aqui — como alhures — não faltam dificuldades e obstáculos, devidos sobretudo a modelos hedonistas que ofuscam a mente e correm o risco de cancelar qualquer moralidade. Insinuou-se a tentação de considerar que a riqueza do homem não é a fé, mas sim o seu poder pessoal e social, a sua inteligência, a sua cultura e a sua capacidade de manipulação científica, tecnológica e social da realidade. Deste modo, também nestas terras começou a substituir-se a fé e os valores cristãos com presumíveis riquezas, que no final se revelam inconsistentes e incapazes de manter a grande promessa da verdade, do bem, da beleza e da justiça, que durante séculos os vossos antepassados identificaram com a experiência da fé. Além disso, não se devem esquecer a crise de não poucas famílias, agravada pela difundida fragilidade psicológica e espiritual dos cônjuges, assim como a dificuldade experimentada por muitos educadores para oferecer uma continuidade formativa aos jovens, condicionados por múltiplas precariedades, primeira de todas a da função social e da possibilidade de trabalho.

Estimados amigos! Conheço bem o empenhamento de cada componente desta Igreja particular, na promoção da vida cristã nos seus vários aspectos. Exorto todos os fiéis a serem como que fermento no mundo, mostrando-vos quer em Montefeltro quer em São Marino como cristãos presentes, empreendedores e coerentes. Os Sacerdotes, os Religiosos e as Religiosas vivam sempre na comunhão eclesial mais cordial e concreta, ajudando e ouvindo o Pastor diocesano. Também entre vós se sente a urgência de uma retomada das vocações presbiterais e de consagração especial: faço apelo às famílias e aos jovens, para que abram a alma a uma resposta imediata à chamada do Senhor. Nunca nos arrependemos de ser generosos com Deus! A vós, leigos, recomendo que vos comprometais concretamente na Comunidade de maneira que, além dos vossos peculiares deveres cívicos, políticos, sociais e culturais, possais encontrar tempo e disponibilidade para a vida da fé, a vida pastoral. Amados habitantes de São Marino! Permanecei solidamente fiéis ao património construído ao longo dos séculos, sob o impulso dos vossos grandiosos Padroeiros Marinho e Leão. Invoco a Bênção de Deus sobre o vosso caminho de hoje e de amanhã, enquanto recomendo todos vós «à graça do Senhor Jesus Cristo, ao amor de Deus e à comunhão do Espírito Santo» (cf. 2Co 13,13). Amém!



Quinta-feira, 23 de Junho de 2011: SANTA MISSA NA SOLENIDADE DO CORPO E SANGUE DE CRISTO

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Basílica de São João de Latrão





Queridos irmãos e irmãs!

A festa do Corpus Christi é inseparável da Quinta-Feira Santa, da Missa in Caena Domini, na qual se celebra solenemente a instituição da Eucaristia. Enquanto na tarde de Quinta-Feira Santa se revive o mistério de Cristo que se oferece a nós no pão partido e no vinho derramado, hoje, na celebração do Corpus Christi, este mesmo mistério é proposto à adoração e à meditação do Povo de Deus, e o Santíssimo Sacramento é levado em procissão pelas estradas das cidades e das aldeias, para manifestar que Cristo ressuscitado caminha no meio de nós e nos guia para o Reino do céu. O que Jesus nos doou na intimidade do Cenáculo, hoje manifestamo-lo abertamente, porque o amor de Cristo não está destinado a alguns, mas a todos. Na Missa in Caena Domini da passada Quinta-Feira Santa ressaltei que na Eucaristia se realiza a transformação dos dons desta terra — o pão e o vinho — finalizada a transformar a nossa vida e a inaugurar assim a transformação do mundo. Esta tarde gostaria de retomar esta perspectiva.

Poder-se-ia dizer que tudo parte do coração de Cristo, que na Útima Ceia, na vigília da sua paixão, agradeceu e louvou a Deus e, deste modo, com o poder do seu amor, transformou o sentido da morte que se estava a aproximar. O facto que o Sacramento do altar tenha assumido o nome «Eucaristia» — «acção de graças» — expressa precisamente isto: que a transformação da substância do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo é fruto do dom que Cristo fez de si mesmo, dom de um amor mais forte do que a morte, Amor divino que o fez ressuscitar dos mortos. Eis por que a Eucaristia é alimento de vida eterna, Pão da vida. Do coração de Cristo, da sua «oração eucarística» na vigília da paixão, brota aquele dinamismo que transforma a realidade nas suas dimensões cósmica, humana e histórica. Tudo procede de Deus, da omnipotência do seu Amor Uno e Trino, encarnado em Jesus. Neste amor está imerso o coração de Cristo; por isso Ele sabe agradecer e louvar a Deus também perante a traição e a violência, e desta forma muda as coisas, as pessoas e o mundo.

Esta transformação é possível graças a uma comunhão mais forte que a divisão, a comunhão do próprio Deus. A palavra «comunhão», que usamos também para designar a Eucaristia, resume em si a dimensão vertical e a horizontal do dom de Cristo. É bonita e muito eloquente a expressão «receber a comunhão» referida ao gesto de comer o Pão eucarístico. Com efeito, quando realizamos este gesto, entramos em comunhão com a própria vida de Jesus, no dinamismo desta vida que se doa a nós e por nós. De Deus, através de Jesus, até nós: é uma única comunhão que se transmite na sagrada Eucaristia. Ouvimo-lo há pouco, na segunda Leitura, das palavras do apóstolo Paulo, dirigidas aos cristãos de Corinto: «O cálice da bênção que benzemos não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão» (
1Co 10,16-17).

Santo Agostinho ajuda-nos a compreender a dinâmica da comunhão eucarística, quando faz referência a uma espécie de visão que teve, na qual Jesus lhe disse: «Eu sou o alimento dos fortes. Cresce e receber-me-ás. Tu não me transformarás em ti, como o alimento do corpo, mas és tu que serás transformado em mim» (Confissões VII, 10, 18). Portanto, enquanto o alimento corporal é assimilado pelo nosso organismo e contribui para o seu sustento, no caso da Eucaristia trata-se de um Pão diferente: não somos nós que o assimilamos, mas é ele que nos assimila a si, de tal modo que nos tornamos conformes com Jesus Cristo, membros do seu corpo, um só com Ele. Esta passagem é decisiva. Com efeito, precisamente porque é Cristo que, na comunhão eucarística, nos transforma em si, neste encontro a nossa individualidade é aberta, libertada do seu egocentrismo e inserida na Pessoa de Jesus, que por sua vez está imersa na comunhão trinitária. Assim a Eucaristia, enquanto nos une a Cristo, abre-nos também aos outros, tornando-nos membros uns dos outros: já não estamos divididos, mas somos um só nele. A comunhão eucarística une-me à pessoa que está ao meu lado e com a qual, talvez, eu nem sequer tenho um bom relacionamento, mas também aos irmãos distantes, em todas as regiões do mundo. Portanto daqui, da Eucaristia, deriva o profundo sentido da presença social da Igreja, como testemunham os grandes santos sociais, que foram sempre grandes almas eucarísticas. Quem reconhece Jesus na Hóstia sagrada, reconhece-O no irmão que sofre, que tem fome e sede, que é estrangeiro, está nu, doente, prisioneiro; e está atento a cada pessoa, empenha-se de modo concreto por todos aqueles que se encontram em necessidade. Portanto, do dom de amor de Cristo provém a nossa especial responsabilidade de cristãos na construção de uma sociedade solidária, justa e fraterna. Especialmente no nosso tempo, em que a globalização nos torna cada vez mais dependentes uns dos outros, o Cristianismo pode e deve fazer com que esta unidade não se edifique sem Deus, ou seja, sem o verdadeiro Amor, o que daria espaço à confusão, ao individualismo e à prepotência de todos contra todos. O Evangelho visa desde sempre a unidade da família humana, uma unidade não imposta do alto, nem por interesses ideológicos ou económicos, mas sim a partir do sentido de responsabilidade recíproca, porque nos reconhecemos membros de um único corpo, do corpo de Cristo, porque aprendemos e continuamos a aprender constantemente do Sacramento do Altar, que a partilha, o amor é o caminho da verdadeira justiça.

Voltemos agora ao gesto de Jesus na Última Ceia. O que aconteceu naquele momento? Quando Ele disse: isto é o meu corpo, que é entregue por vós; isto é o meu sangue, derramado por vós e pela multidão, o que acontece? Neste gesto, Jesus antecipa o acontecimento do Calvário. Por amor, Ele aceita toda a paixão, com a sua dificuldade e a sua violência, até à morte de cruz; aceitando-a deste modo, transforma-a num gesto de doação. Esta é a transformação de que o mundo tem mais necessidade, porque o redime a partir de dentro, abrindo-o às dimensões do Reino dos céus. Mas esta renovação do mundo, Deus quer realizá-la sempre através do mesmo caminho percorrido por Cristo, aliás, o caminho que é Ele mesmo. Não há nada de mágico no Cristianismo. Não existem atalhos, mas tudo passa através da lógica humilde e paciente do grão de trigo que se abre para dar dar vida, a lógica da fé que move as montanhas com a força mansa de Deus. Por isso, Deus quer continuar a renovar a humanidade, a história e o cosmos através desta cadeia de transformações, cujo sacramento é a Eucaristia. Mediante o pão e o vinho consagrados, nos quais estão realmente presentes o seu Corpo e o seu Sangue, Cristo transforma-nos, assimilando-nos a Ele: compromete-nos na sua obra de redenção tornando-nos capazes, pela graça do Espírito Santo, de viver segundo a sua própria lógica de entrega, como grãos de trigo unidos a Ele e nele. É assim que se semeiam e amadurecem nos sulcos da história a unidade e a paz, que constituem o fim para o qual tendemos, segundo o desígnio de Deus.

Sem ilusões, sem utopias ideológicas, nós caminhos pelas veredas do mundo, trazendo dentro de nós o Corpo do Senhor, como a Virgem Maria no mistério da Visitação. Com a humildade de saber que somos simples grãos de trigo, conservemos a certeza firme de que o amor de Deus, encarnado em Cristo, é mais forte que o mal, a violência e a morte. Sabemos que Deus prepara para todos os homens céus novos e uma nova terra, onde reinam a paz e a justiça — e na fé entrevemos o mundo novo, que é a nossa verdadeira pátria. Também esta tarde, enquanto o sol se põe sobre esta nossa amada cidade de Roma, pomo-nos a caminho: connosco está Jesus-Eucaristia, o Ressuscitado, que disse: «Eis que Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (Mt 28,20). Obrigado, Senhor Jesus! Obrigado pela vossa fidelidade, que sustém a nossa esperança. Permanecei connosco, porque está a anoitecer. «Bom Pastor, Pão verdadeiro, ó Jesus, tende piedade de nós; alimentai-nos, defendei-nos e conduzi-nos para os bens eternos, na terra dos vivos!». Amém.



29 de Junho de 2011: CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA E IMPOSIÇÃO DOS PÁLIOS AOS NOVOS ARCEBISPOS METROPOLITANOS

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NA SOLENIDADE DOS SANTOS PEDRO E PAULO
Basílica Vaticana





Amados irmãos e irmãs!

«Non iam servos, sed amicos» - «Já não vos chamo servos, mas amigos» (cf.
Jn 15,15). Passados sessenta anos da minha Ordenação Sacerdotal, sinto ainda ressoar no meu íntimo estas palavras de Jesus, que o nosso grande Arcebispo, o Cardeal Faulhaber, com voz um pouco débil já mas firme, nos dirigiu, a nós novos sacerdotes, no final da cerimónia da Ordenação. Segundo o ordenamento litúrgico daquele tempo, esta proclamação significava então a explícita concessão aos novos sacerdotes do mandato de perdoar os pecados. «Já não sois servos, mas amigos»: eu sabia e sentia que esta não era, naquele momento, apenas uma frase «de cerimónia»; e que era mais do que uma mera citação da Sagrada Escritura. Estava certo disto: neste momento, Ele mesmo, o Senhor, di-la a mim de modo muito pessoal. No Baptismo e na Confirmação, Ele já nos atraíra a Si, acolhera-nos na família de Deus. Mas o que estava a acontecer naquele momento, ainda era algo mais. Ele chama-me amigo. Acolhe-me no círculo daqueles que receberam a sua palavra no Cenáculo; no círculo daqueles que Ele conhece de um modo muito particular e que chegam assim a conhecê-Lo de modo particular. Concede-me a faculdade, que quase amedronta, de fazer aquilo que só Ele, o Filho de Deus, pode legitimamente dizer e fazer: Eu te perdoo os teus pecados. Ele quer que eu – por seu mandato – possa pronunciar com o seu «Eu» uma palavra que não é meramente palavra mas acção que produz uma mudança no mais íntimo do ser. Sei que, por detrás de tais palavras, está a sua Paixão por nossa causa e em nosso favor. Sei que o perdão tem o seu preço: na sua Paixão, Ele desceu até ao fundo tenebroso e sórdido do nosso pecado. Desceu até à noite da nossa culpa, e só assim esta pode ser transformada. E, através do mandato de perdoar, Ele permite-me lançar um olhar ao abismo do homem e à grandeza do seu padecer por nós, homens, que me deixa intuir a grandeza do seu amor. Diz-me Ele em confidência: «Já não és servo, mas amigo». Ele confia-me as palavras da Consagração na Eucaristia. Ele considera-me capaz de anunciar a sua Palavra, de explicá-la rectamente e de a levar aos homens de hoje. Ele entrega-Se a mim. «Já não sois servos, mas amigos»: trata-se de uma afirmação que gera uma grande alegria interior mas ao mesmo tempo, na sua grandeza, pode fazer-nos sentir ao longo dos decénios calafrios com todas as experiências da própria fraqueza e da sua bondade inexaurível.

«Já não sois servos, mas amigos»: nesta frase está encerrado o programa inteiro duma vida sacerdotal. O que é verdadeiramente a amizade? Idem velle, idem nolle – querer as mesmas coisas e não querer as mesmas coisas: diziam os antigos. A amizade é uma comunhão do pensar e do querer. O Senhor não se cansa de nos dizer a mesma coisa: «Conheço os meus e os meus conhecem-Me» (cf. Jn 10,14). O Pastor chama os seus pelo nome (cf. Jn 10,3). Ele conhece-me por nome. Não sou um ser anónimo qualquer, na infinidade do universo. Conhece-me de modo muito pessoal. E eu? Conheço-O a Ele? A amizade que Ele me dedica pode apenas traduzir-se em que também eu O procure conhecer cada vez melhor; que eu, na Escritura, nos Sacramentos, no encontro da oração, na comunhão dos Santos, nas pessoas que se aproximam de mim mandadas por Ele, procure conhecer sempre mais a Ele próprio. A amizade não é apenas conhecimento; é sobretudo comunhão do querer. Significa que a minha vontade cresce rumo ao «sim» da adesão à d’Ele. De facto, a sua vontade não é uma vontade externa e alheia a mim mesmo, à qual mais ou menos voluntariamente me submeto ou então nem sequer me submeto. Não! Na amizade, a minha vontade, crescendo, une-se à d’Ele: a sua vontade torna-se a minha, e é precisamente assim que me torno de verdade eu mesmo. Além da comunhão de pensamento e de vontade, o Senhor menciona um terceiro e novo elemento: Ele dá a sua vida por nós (cf. Jn 15,13 Jn 10,15). Senhor, ajudai-me a conhecer-Vos cada vez melhor! Ajudai-me a identificar-me cada vez mais com a vossa vontade! Ajudai-me a viver a minha existência, não para mim mesmo, mas a vivê-la juntamente convoco para os outros! Ajudai-me a tornar-me sempre mais vosso amigo!

Esta palavra de Jesus sobre a amizade situa-se no contexto do discurso sobre a videira. O Senhor relaciona a imagem da videira com uma tarefa dada aos discípulos: «Eu vos destinei, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça» (Jn 15,16). A primeira tarefa dada aos discípulos, aos amigos, é pôr-se a caminho – destinei, para que vades –, sair de si mesmos e ir ao encontro dos outros. A par desta, podemos ouvir também a frase que o Ressuscitado dirige aos seus e que aparece na conclusão do Evangelho de Mateus: «Ide fazer discípulos de todas as nações…» (cf. Mt 28,19). O Senhor exorta-nos a superar as fronteiras do ambiente onde vivemos e levar ao mundo dos outros o Evangelho, para que permeie tudo e, assim, o mundo se abra ao Reino de Deus. Isto pode trazer-nos à memória que o próprio Deus saiu de Si, abandonou a sua glória, para vir à nossa procura e trazer-nos a sua luz e o seu amor. Queremos seguir Deus que Se põe a caminho, vencendo a preguiça de permanecer cómodos em nós mesmos, para que Ele mesmo possa entrar no mundo.

Depois da palavra sobre o pôr-se a caminho, Jesus continua: dai fruto, um fruto que permaneça! Que fruto espera Ele de nós? Qual é o fruto que permanece? Sabemos que o fruto da videira são as uvas, com as quais depois se prepara o vinho. Por agora detenhamo-nos sobre esta imagem. Para que as uvas possam amadurecer e tornar-se boas, é preciso o sol mas também a chuva, o dia e a noite. Para que dêem um vinho de qualidade, precisam de ser pisadas, há que aguardar com paciência a fermentação, tem-se de seguir com cuidadosa atenção os processos de maturação. Características do vinho de qualidade são não só a suavidade, mas também a riqueza das tonalidades, o variegado aroma que se desenvolveu nos processos da maturação e da fermentação. E por acaso não constitui já tudo isto uma imagem da vida humana e, de modo muito particular, da nossa vida de sacerdotes? Precisamos do sol e da chuva, da serenidade e da dificuldade, das fases de purificação e de prova mas também dos tempos de caminho radioso com o Evangelho. Num olhar de retrospectiva, podemos agradecer a Deus por ambas as coisas: pelas dificuldades e pelas alegrias, pela horas escuras e pelas horas felizes. Em ambas reconhecemos a presença contínua do seu amor, que incessantemente nos conduz e sustenta.

Agora, porém, devemos interrogar-nos: de que género é o fruto que o Senhor espera de nós? O vinho é imagem do amor: este é o verdadeiro fruto que permanece, aquele que Deus quer de nós. Mas não esqueçamos que, no Antigo Testamento, o vinho que se espera das uvas boas é sobretudo imagem da justiça, que se desenvolve numa vida segundo a lei de Deus. E não digamos que esta é uma visão veterotestamentária, já superada. Não! Isto permanece sempre verdadeiro. O autêntico conteúdo da Lei, a sua summa, é o amor a Deus e ao próximo. Este duplo amor, porém, não é qualquer coisa simplesmente doce; traz consigo o peso da paciência, da humildade, da maturação na educação e assimilação da nossa vontade à vontade de Deus, à vontade de Jesus Cristo, o Amigo. Só deste modo, tornando verdadeiro e recto todo o nosso ser, é que o amor se torna também verdadeiro, só assim é um fruto maduro. A sua exigência intrínseca, ou seja, a fidelidade a Cristo e à sua Igreja, requer sempre que se realize também no sofrimento. É precisamente assim que cresce a verdadeira alegria. No fundo, a essência do amor, do verdadeiro fruto, corresponde à palavra relativa ao pôr-se a caminho, ao ir: amor significa abandonar-se, dar-se; leva consigo o sinal da cruz. Neste contexto, disse uma vez Gregório Magno: Se tendeis para Deus, tende cuidado que não O alcanceis sozinhos (cf. Hom. EV 1, 6, 6: PL 76, 1097s). Trata-se de uma advertência que nós, sacerdotes, devemos ter intimamente presente cada dia.

Queridos amigos, talvez me tenha demorado demasiado com a recordação interior dos sessenta anos do meu ministério sacerdotal. Agora é tempo de pensar àquilo que é próprio deste momento.

Na solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, antes de mais nada dirijo a minha mais cordial saudação ao Patriarca Ecuménico Bartolomeu I e à Delegação por ele enviada, cuja aprazível visita na ocasião feliz da festa dos Santos Apóstolos Padroeiros de Roma, vivamente agradeço. Saúdo também os Senhores Cardeais, os Irmãos no Episcopado, os Senhores Embaixadores e as autoridades civis, como também os sacerdotes, os colegas da minha Missa Nova, os religiosos e os fiéis leigos. A todos agradeço a presença e a oração.

Aos Arcebispos Metropolitanos nomeados depois da última festa dos grandes Apóstolos, será agora imposto o pálio. Este, que significa? Pode recordar-nos em primeiro lugar o jugo suave de Cristo que nos é colocado aos ombros (cf. Mt 11,29-30). O jugo de Cristo coincide com a sua amizade. É um jugo de amizade e, consequentemente, um «jugo suave», mas por isso mesmo também um jugo que exige e plasma. É o jugo da sua vontade, que é uma vontade de verdade e de amor. Assim, para nós, é sobretudo o jugo de introduzir outros na amizade com Cristo e de estar à disposição dos outros, de cuidarmos deles como Pastores. E assim chegamos a um novo significado do pálio: este é tecido com a lã de cordeiros, que são benzidos na festa de Santa Inês. Deste modo recorda-nos o Pastor que Se tornou, Ele mesmo, Cordeiro por nosso amor. Recorda-nos Cristo que Se pôs a caminho pelos montes e descampados, aonde o seu cordeiro – a humanidade – se extraviara. Recorda-nos como Ele pôs o cordeiro, ou seja, a humanidade – a mim – aos seus ombros, para me trazer de regresso a casa. E assim nos recorda que, como Pastores ao seu serviço, devemos também nós carregar os outros, pô-los por assim dizer aos nossos ombros e levá-los a Cristo. Recorda-nos que podemos ser Pastores do seu rebanho, que continua sempre a ser d’Ele e não se torna nosso. Por fim, o pálio significa também, de modo muito concreto, a comunhão dos Pastores da Igreja com Pedro e com os seus sucessores: significa que devemos ser Pastores para a unidade e na unidade, e que só na unidade, de que Pedro é símbolo, guiamos verdadeiramente para Cristo.

Sessenta anos de ministério sacerdotal! Queridos amigos, talvez me tenha demorado demais nos pormenores. Mas, nesta hora, senti-me impelido a olhar para aquilo que caracterizou estes decénios. Senti-me impelido a dizer-vos – a todos os presbíteros e Bispos, mas também aos fiéis da Igreja – uma palavra de esperança e encorajamento; uma palavra, amadurecida na experiência, sobre o facto que o Senhor é bom. Mas esta é sobretudo uma hora de gratidão: gratidão ao Senhor pela amizade que me concedeu e que deseja conceder a todos nós. Gratidão às pessoas que me formaram e acompanharam. E, subjacente a tudo isto, a oração para que um dia o Senhor na sua bondade nos acolha e faça contemplar a sua glória. Amen.



Segunda-feira, 15 de Agosto de 2011: SANTA MISSA DA SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO

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DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA
Paróquia de São Tomás de Vilanova, Castel Gandolfo





Estimados irmãos e irmãs

Encontramo-nos reunidos, mais uma vez, para celebrar uma das mais antigas e amadas festividades dedicadas a Maria Santíssima: a solenidade da sua Assunção na glória do Céu de corpo e alma, ou seja, com todo o seu ser humano, na integridade da sua pessoa. Deste modo, recebemos a graça de renovar o nosso amor a Maria, de a admirar e de a louvar pelas «maravilhas» que o Todo-Poderoso realizou por Ela, e que nela levou a cabo.

Ao contemplarmos a Virgem Maria, recebemos mais uma graça: a de poder ver em profundidade também a nossa vida. Sim, porque inclusive a nossa existência quotidiana, com os seus problemas e as suas esperanças, recebe luz da Mãe de Deus, do seu percurso espiritual, do seu destino de glória: um caminho e uma meta que podem e devem tornar-se, de certo modo, o nosso próprio caminho e a nossa própria meta. Deixemo-nos orientar pelos trechos da Sagrada Escritura que a liturgia hodierna nos propõe. Gostaria de meditar, em particular, sobre uma imagem que encontramos na primeira leitura, tirada do Apocalipse, e à qual faz eco o Evangelho de Lucas: ou seja, o da arca.

Na primeira leitura, ouvimos: «Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca da sua aliança» (
Ap 11,19). Qual é o significado da arca? O que aparece? Para o Antigo Testamento, ela é o símbolo da presença de Deus no meio do seu povo. Mas o símbolo já cedeu o lugar à realidade. Assim, o Novo Testamento diz-nos que a verdadeira arca da aliança é uma pessoa viva e concreta: é a Virgem Maria. Deus não habita num móvel, mas sim numa pessoa, num coração: Maria, Aquela que trouxe no seu ventre o Filho eterno de Deus que se fez homem, Jesus, nosso Senhor e Salvador. Na arca — como sabemos — estavam conservadas as duas tábuas da lei de Moisés, que manifestavam a vontade de Deus, de conservar a aliança com o seu povo, indicando as suas condições para ser fiel ao pacto de Deus, para se conformar com a vontade de Deus e assim também com a nossa profunda verdade. Maria é a arca da aliança, porque acolheu em si mesma Jesus; recebeu em si a Palavra viva, todo o conteúdo da vontade de Deus, da verdade de Deus; acolheu em si Aquele que constitui a nova e eterna aliança, culminada com a oferenda do seu corpo e do seu sangue: corpo e sangue recebidos de Maria. Portanto, justamente, a piedade cristã, nas ladainhas em honra de Nossa Senhora, dirige-se a Ela, invocando-a como Foederis Arca, ou seja, «arca da aliança», arca da presença de Deus, arca da aliança do amor que Deus quis estreitar de maneira definitiva com a humanidade inteira em Cristo.

O trecho do Apocalipse deseja indicar outro aspecto importante da realidade em Maria. Ela, arca viva da aliança, tem um destino de glória extraordinária, porque está tão intimamente unida ao Filho, que acolheu na fé e gerou na carne, a ponto de compartilhar plenamente a sua glória celestial. É quanto nos sugerem as palavras que ouvimos: «Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida… Ela deu à luz um Filho, um Menino, Aquele que deve reger todas as nações…» (Ap 12,1-2 Ap 12,5). A grandeza de Maria, Mãe de Deus, cheia de graça, plenamente dócil à acção do Espírito Santo, já vive no Céu de Deus com toda si mesma, alma e corpo. São João Damasceno, referindo-se a este mistério numa sua famosa Homilia, afirma: «Hoje, a santa e única Virgem é conduzida para o templo celeste… Hoje, a arca sagrada e animada do Deus Vivo, [a arca] que trouxe no seu seio o próprio Artífice, descansa no templo do Senhor, não construído por mãos humanas» (Homilia ii sobre a Dormição, 2, PG 96, 723), e continua: «Era necessário que Aquela que tinha hospedado no seu ventro o Logos divino, se transferisse para os tabernáculos do seu Filho... Era preciso que a Esposa escolhida pelo Pai, habitasse no quarto nupcial do Céu» (Ibid., 14, PG 96,742). Hoje, a Igreja canta o amor imenso de Deus por esta sua criatura: escolheu-a como verdadeira «arca da aliança», como Aquela que continua a gerar e a oferecer Cristo Salvador à humanidade, como Aquela que no Céu compartilha a plenitude da glória e goza da mesma felicidade de Deus e, ao mesmo tempo, convida-nos a tornar-nos, também a nós do nosso modo modesto, «arca» em que está presente a Palavra de Deus, que é transformada e vivificada pela sua presença, lugar da presença de Deus, a fim de que os homens possam encontrar nos outros homens a proximidade de Deus e, desta forma, viver em comunhão com Deus e conhecer a realidade do Céu.

O Evangelho de Lucas que acabamos de ouvir (cf. Lc 1,39-56), mostra-nos esta arca viva, que é Maria, em movimento: deixando a sua casa de Nazaré, Maria põe-se em viagem rumo à montanha, para ir às pressas a uma cidade de Judá e chegar à casa de Zacarias e Isabel. Parece-me importante ressaltar a expressão «às pressas»: as coisas de Deus merecem pressa, aliás, as únicas coisas do mundo que merecem pressa são precisamente aquelas de Deus, que têm a mesma urgência para a nossa vida. Então Maria entra nesta casa de Zacarias e Isabel, mas não entra sozinha. Entra, levando no seu ventre o Filho, que é Deus feito homem. Sem dúvida, estavam à espera dela e da sua ajuda naquela casa, mas o evangelista orienta-nos a compreender que esta expectativa remete para outra, mais profunda. Zacarias, Isabel e o pequeno João Baptista são, efectivamente, o símbolo de todos os justos de Israel, cujo coração, rico de esperança, espera a vinda do Messias Salvador. E é o Espírito Santo que abre os olhos de Isabel e que a leva a reconhecer em Maria a verdadeira arca da aliança, a Mãe de Deus, que vem para a visitar. E assim, a idosa parente recebe-a, dizendo «em voz alta»: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor?» (Lc 1,42-43). E é o próprio Espírito Santo que, diante daquela que traz em si Deus que se fez homem, abre o coração de João Baptista no seio de Isabel. Isabel exclama: « Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio» (v. Lc 1,44). Aqui, o evangelista Lucas recorre ao termo «skirtan», ou seja, «saltitar», o mesmo vocábulo que encontramos numa das antigas traduções gregas do Antigo Testamento para descrever a dança do rei David diante da arca sagrada, que finalmente voltou para a pátria (cf. 2S 6,16). João Baptista, no ventre da mãe, dança diante da arca da Aliança, como David; e reconhece deste modo: Maria é a nova arca da aliança, perante a qual o coração exulta de alegria, a Mãe de Deus presente no mundo, que não conserva para si esta presença divina, mas oferece-a compartilhando a graça de Deus. E assim — como recita a oração — Maria realmente é «causa nostrae laetitiae», a «arca» em que realmente o Salvador está presente entre nós.

Caros irmãos! Estamos a falar de Maria, mas num certo sentido estamos a falar também de nós, de cada um de nós: também nós somos destinatários daquele amor imenso que Deus nos reservou — sem dúvida, de uma maneira absolutamente singular e irrepetível — a Maria. Nesta solenidade da Assunção, olhemos para Maria: Ela abre-nos à esperança, a um futuro cheio de alegria e ensina-nos o caminho para o alcançar: acolher o seu Filho na fé; nunca perder a amizade com Ele, mas deixar-nos iluminar e orientar pela sua palavra; segui-lo todos os dias, mesmo nos momentos em que sentimos que as nossas cruzes se tornam pesadas. Maria, a arca da aliança que se encontra no santuário do Céu, indica-nos com clareza resplandecente que estamos a caminho rumo à nossa verdadeira Casa, a comunhão de alegria e de paz com Deus. Amém!



Bento XVI Homilias 12611