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37 Igualmente preocupante, ao lado do problema do consumismo e com ele estritamente ligada, é a questão ecológica. O homem, tomado mais pelo desejo do ter e do prazer, do que pelo de ser e de crescer, consome de maneira excessiva e desordenada os recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata do ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo. O homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus. Pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele 76.

Nota-se aqui, antes de mais, uma pobreza ou mesquinhez da visão humana, mais animada pelo desejo de possuir as coisas do que relacioná-las com a verdade, privado do comportamento desinteressado, gratuito, estético que brota do assombro diante do ser e da beleza, que leva a ler, nas coisas visíveis, a mensagem do Deus invisível que as criou. A respeito disso, a humanidade de hoje deve estar consciente dos seus deveres e tarefas, em vista das gerações futuras.

(76) Cf. Litt. Enc. Sollicitudo rei socialis,
SRS 34: l. mem., 559 s.; Nuntius pro Mundiali Die Paci fovendae dicato 1990: AAS 82 (1990), 147-156.


38 Além da destruição irracional do ambiente natural, é de recordar aqui outra ainda mais grave, qual é a do ambiente humano, a que se está ainda longe de prestar a necessária atenção. Enquanto justamente nos preocupamos, apesar de bem menos do que o necessário, em preservar o «habitat» natural das diversas espécies animais ameaçadas de extinção, porque nos damos conta da particular contribuição que cada uma delas dá ao equilíbrio geral da terra, empenhamo-nos demasiado pouco em salvaguardar as condições morais de uma autêntica «ecologia humana». Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado. Neste contexto, são de mencionar os graves problemas da moderna urbanização, a necessidade de um urbanismo preocupado com a vida das pessoas, bem como a devida atenção a uma «ecologia social» do trabalho.

O homem recebe de Deus a sua dignidade essencial e com ela a capacidade de transcender todo o regime da sociedade, rumo à verdade e ao bem. Contudo está fortemente condicionado também pela estrutura social em que vive, pela educação recebida e pelo ambiente. Estes elementos tanto podem facilitar como dificultar o seu viver conforme à verdade. As decisões, graças às quais se constitui um ambiente humano, podem criar estruturas específicas de pecado, impedindo a plena realização daqueles que vivem de diversos modos oprimidos por elas. Destruir tais estruturas, substituindo-as por formas de convivência mais autênticas é uma tarefa que exige coragem e paciência 77.

(77) Cf. Adhort. Apost. post-synodalis Reconciliatio et Paenitentia (2 Decembris 1984),
RP 16: AAS 77 (1985), 213-217; PIUS PP. XI, Litt. Enc. Quadragesimo anno, III: l. mem., 219.


39 A primeira e fundamental estrutura a favor da «ecologia humana» é a família, no seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, consequentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa. Pensa-se aqui na família fundada sobre o matrimónio, onde a doação recíproca de si mesmo, por parte do homem e da mulher, cria um ambiente vital onde a criança pode nascer e desenvolver as suas potencialidades, tornar-se consciente da sua dignidade e preparar-se para enfrentar o seu único e irrepetível destino. Muitas vezes dá- -se o inverso; o homem é desencorajado de realizar as autênticas condições da geração humana, e aliciado a considerar-se a si próprio e à sua vida mais como um conjunto de sensações a ser experimentadas do que como uma obra a realizar. Daqui nasce uma carência de liberdade que o leva a renunciar ao compromisso de se ligar estavelmente com outra pessoa e de gerar filhos, ou que o induz a considerar estes últimos como uma de tantas «coisas» que é possível ter ou não ter, segundo os próprios gostos, e que entram em concorrência com outras possibilidades.

É necessário voltar a considerar a família como o santuário da vida. De facto, ela é sagrada: é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico. Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da cultura da vida.

O engenho humano parece orientar-se, nesse campo, mais para limitar, suprimir ou anular as fontes da vida, chegando até ao recurso do aborto, infelizmente tão espalhado pelo mundo, do que para defender e criar possibilidades à mesma vida. Na Encíclica Sollicitudo rei socialis, foram denunciadas as campanhas sistemáticas contra a natalidade, que, baseadas numa concepção distorcida do problema demográfico e num clima de «absoluta falta de respeito pela liberdade de decisão das pessoas interessadas», as submetem muitas vezes «a pressões intoleráveis (...) a fim de cederem a esta nova forma de opressão» 78. Trata-se de políticas que, com novas técnicas, estendem o seu raio de acção até ao ponto de chegarem, como numa «guerra química», a envenenar a vida de milhões de seres humanos indefesos.

Estas críticas, são dirigidas não tanto contra um sistema económico, quanto contra um sistema ético-cultural. De facto, a economia é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa actividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema económico, quanto no facto de que todo o sistema socio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços 79.

Tudo isto se pode resumir afirmando mais uma vez que a liberdade económica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autónoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir 80.

(78) Litt. Enc. Sollicitudo rei socialis,
SRS 25: l. mem., 544.
(79) Cf. Ibid., SRS 34: l. mem., 559 s.
(80) Cf. Litt. Enc. Redemptor hominis (4 Martii 1979), RH 15: AAS 71 (1979), 286-289.


40 É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens colectivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida pos simples mecanismos de mercado. Como nos tempos do antigo capitalismo, o Estado tinha o dever de defender os direitos fundamentais do trabalho, assim diante do novo capitalismo, ele e toda sociedade têm a obrigação de defender os bens colectivos que, entre outras coisas, constituem o enquadramento dentro do qual cada um poderá conseguir legitimamente os seus fins individuais.

Acha-se aqui um novo limite do mercado: há necessidades colectivas e qualitativas, que não podem ser satisfeitas através dos seus mecanismos; existem exigências humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar. Certamente os mecanismos de mercado oferecem seguras vantagens: ajudam, entre outras coisas, a utilizar melhor os recursos, favorecem o intercâmbio dos produtos e, sobretudo, põem no centro a vontade e as preferências da pessoa que, no contrato, se encontram com as de outrem. Todavia eles comportam o risco de uma «idolatria» do mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria.



41 O marxismo criticou as sociedades burguesas capitalistas, censurando-as pela «coisificação» e alienação da existência humana. Certamente esta censura baseia-se numa concepção errada e inadequada da alienação, porque restringe a sua causa apenas à esfera das relações de produção e propriedade, isto é, atribuindo-lhe um fundamento materialista e, além disso, negando a legitimidade e a positividade das relações de mercado, inclusive no âmbito que lhes é próprio. Acaba assim por afirmar que a alienação só poderia ser eliminada numa sociedade de tipo colectivista. Ora a experiência história dos Países socialistas demonstrou tristemente que o colectivismo não suprime a alienação, antes a aumenta, enquanto a ela junta ainda a carência das coisas necessárias e a ineficácia económica.

A experiência histórica do Ocidente, por sua vez, demonstra que, embora sejam falsas a análise e a fundamentação marxista da alienação, todavia esta, com a perda do sentido autêntico da existência, é também uma experiência real nas sociedades ocidentais. Ela verifica-se no consumo, quando o homem se vê implicado numa rede de falsas e superficiais satisfações, em vez de ser ajudado a fazer a autêntica e concreta experiência da sua personalidade. A alienação verifica-se também no trabalho, quando é organizado de modo a «maximizar» apenas os seus frutos e rendimentos, não se preocupando de que o trabalhador, por meio de seu trabalho, se realize mais ou menos como homem, conforme cresça a sua participação numa autêntica comunidade humana solidária, ou então cresça o seu isolamento num complexo de relações de exacerbada competição e de recíproco alheamento, no qual ele aparece considerado apenas como um meio, e não como um fim.

É necessário reconduzir o conceito de alienação à perspectiva cristã, reconhecendo-a como a inversão dos meios pelos fins: quando o homem não reconhece o valor e a grandeza da pessoa em si próprio e no outro, de facto priva-se da possibilidade de usufruir da própria humanidade e de entrar na relação de solidariedade e de comunhão com os outros homens para a qual Deus o criou. Com efeito, é mediante o livre dom de si que o homem se torna autenticamente ele próprio 81, e este dom é possível graças à essencial «capacidade de transcendência» da pessoa humana. O homem não se pode doar a um projecto somente humano da realidade, nem a um ideal abstracto ou a falsas utopias. Ele, enquanto pessoa, consegue doar-se a uma outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o único que pode acolher plenamente o seu dom 82. Alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana.

Na sociedade ocidental foi superada a exploração, pelo menos nas formas analisadas e descritas por Karl Marx. Pelo contrário, não foi superada a alienação nas várias formas de exploração quando os homens se instrumentalizam mutuamente e, na satisfação cada vez mais refinada das suas necessidades particulares e secundárias, se tornam surdos às suas carências verdadeiras e autênticas, que devem regular as modalidades de satisfação das outras necessidades 83. O homem que se preocupa só ou prevalentemente do ter e do prazer, incapaz já de dominar os seus instintos e paixões e de subordiná-los pela obediência à verdade, não pode ser livre: a obediência à verdade sobre Deus e o homem é a primeira condição da liberdade, permitindo-lhe ordenar as próprias necessidades, os próprios desejos e as modalidades da sua satisfação, segundo uma justa hierarquia, de modo que a posse das coisas seja para ele um meio de crescimento. Um obstáculo a tal crescimento pode vir da manipulação realizada por alguns meios de comunicação social que impõem, pela força de uma bem orquestrada insistência, modos e movimentos de opinião, sem ser possível submeter a um exame crítico as premissas sobre as quais se fundamentam.

(81) Cf. CONC. OEC. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis,
GS 24.
(82) Cf. Ibid., GS 41.
(83) Cf. Ibid., GS 26.


42 Voltando agora à questão inicial, pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos Países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso económico e civil?

A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por «capitalismo» se indica um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de «economia de empresa», ou de «economia de mercado», ou simplesmente de «economia livre». Mas se por «capitalismo» se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa.

A solução marxista faliu, mas permanecem no mundo fenómenos de marginalização e de exploração, especialmente no Terceiro Mundo, e fenómenos de alienação humana, especialmente nos Países mais avançados, contra os quais se levanta com firmeza a voz da Igreja. Tantas multidões vivem ainda agora em condições de grande miséria material e moral. A queda do sistema comunista, em tantos países, elimina certamente um obstáculo para enfrentar de modo adequado e realístico estes problemas, mas não basta para resolvê-los. Existe até o risco de se difundir uma ideologia radical de tipo capitalista, que se recusa mesmo a tomá-los em conta, considerando a priori condenada ao fracasso toda a tentativa de os encarar e confia fideisticamente a sua solução ao livre desenvolvimento das forças de mercado.



43 A Igreja não tem modelos a propor. Os modelos reais e eficazes poderão nascer apenas no quadro das diversas situações históricas, graças ao esforço dos responsáveis que enfrentam os problemas concretos em todos os seus aspectos sociais, económicos, políticos e culturais que se entrelaçam mutuamente 84. A esse empenhamento, a Igreja oferece, como orientação ideal indispensável, a própria doutrina social que — como se disse — reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, mas indica ao mesmo tempo a necessidade de que estes sejam orientados para o bem comum. Ela reconhece também a legitimidade dos esforços dos trabalhadores para conseguirem o pleno respeito da sua dignidade e espaços maiores de participação na vida da empresa, de modo que eles, embora trabalhando em conjunto com outros e sob a direcção de outros, possam em certo sentido «trabalhar por conta própria» 85 exercitando a sua inteligência e liberdade.

O desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho, embora isso possa enfraquecer estruturas consolidadas de poder. A empresa não pode ser considerada apenas como uma «sociedade de capitais»; é simultaneamente uma «sociedade de pessoas», da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua actividade, quer aqueles que à colaboram com o seu trabalho. Para conseguir este fim, é ainda necessário um grande movimento associado dos trabalhadores, cujo objectivo é a libertação e a promoção integral da pessoa.

À luz das «coisas novas» de hoje, foi relida a relação entre a propriedade individual, ou privada, e o destino universal dos bens. O homem realiza-se através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazê-lo, assume como objecto e instrumento as coisas do mundo e delas se apropria. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem empenha-se não só para proveito próprio, mas também para os outros e com os outros: cada um colabora para o trabalho e o bem dos outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua família, da comunidade de que faz parte, da Nação e, em definitivo, da humanidade inteira 86. Além disso, colabora para o trabalho dos outros, que operam na mesma empresa, como também para o trabalho dos fornecedores ou para o consumo dos clientes, numa cadeia de solidariedade que se alarga progressivamente. A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como no agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho 87. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e constitui um abuso diante de Deus e dos homens.

A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social 88. Tal como a pessoa se realiza plenamente na livre doação de si própria, assim a propriedade se justifica moralmente na criação, em moldes e tempos devidos, de ocasiões de trabalho e crescimento humano para todos.

(84) Cf. CONC. OEC. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis,
GS 36; PAULUS PP. VI, Ep. Apost. Octogesima adveniens, 2-5: l. mem., 402-405.
(85) CL Litt. Enc. Laborem exercens, LE 15: l. mem., 616-618.
(86) Cf. Ibid., LE 10: l. mem., 600-602.
(87) Cf. Ibid., LE 14: l. mem., 612-616.


V. ESTADO E CULTURA

44 Leão XIII não ignorava que uma sã teoria do Estado é necessária para assegurar o desenvolvimento normal das actividades humanas: tanto as espirituais, como as materiais, sendo ambas indispensáveis 89. Por isso, numa passagem da Rerum novarum, ele apresenta a organização da sociedade segundo três poderes — legislativo, executivo e judicial — o que constituía, naquele tempo, uma novidade no ensinamento da Igreja 90. Tal ordenamento reflecte uma visão realista da natureza social do homem a qual exige uma legislação adequada para proteger a liberdade de todos. Para tal fim é preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do «Estado de direito», no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens.

A esta concepção se opôs, nos tempos modernos, o totalitarismo, o qual, na forma marxista-leninista, defende que alguns homens, em virtude de um conhecimento mais profundo das leis do desenvolvimento da sociedade, ou de uma particular consciência de classe ou por um contacto com as fontes mais profundas da consciência colectiva, estão isentos de erro e podem, por conseguinte, arrogar-se o exercício de um poder absoluto. Acrescente-se que o totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não exis- te uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de Nação, contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. Então o homem é respeitado apenas na medida em que for possível instrumentalizá-lo no sentido de uma afirmação egoísta. A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível e, precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, Nação ou Estado. Nem tão-pouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria, marginalizando, oprimindo, explorando ou tentando destruí-la 91.

(88) Cf. Ibid.,
LE 18: l. mem., 622-625.
(89) Cf. Litt. Enc. Rerum novarum: l. mem., 126-128.
(90) Cf. Ibid.: 1. mem., 121 s.
(91) Cf. LEO PP. XIII, Litt. Enc. Libertas praestantissimum: l. mem., 224-226.


45 A cultura e a práxis do totalitarismo comportam também a negação da Igreja. O Estado, ou então o partido, que pretende poder realizar na história o bem absoluto e se arvora por cima de todos os valores, não pode tolerar que seja afirmado um critério objectivo do bem e do mal, para além da vontade dos governantes, o qual, em determinadas circunstâncias, pode servir para julgar o seu comportamento. Isto explica porquê o totalitarismo procura destruir a Igreja ou, pelo menos, subjugá-la, fazendo-a instrumento do próprio aparelho ideológico 92.

O Estado totalitário tende, ainda, a absorver em si próprio a Nação, a sociedade, a família, as comunidades religiosas e as próprias pessoas. Defendendo a própria liberdade, a Igreja defende a pessoa, que deve obedecer antes a Deus que aos homens (cf.
Ac 5,29), a família, as diversas organizações sociais e as Nações, realidades essas que gozam de uma específica esfera de autonomia e soberania.

(92) Cf. CONC. OEC. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 76.


46 A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; 83 ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objectivos ideológicos.

Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da «subjectividade» da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e cor-responsabilidade. Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra.

A Igreja também não fecha os olhos diante do perigo do fanatismo, ou fundamentalismo, daqueles que, em nome de uma ideologia que se pretende científica ou religiosa, defendem poder impor aos outros homens a sua concepção da verdade e do bem. Não é deste tipo a verdade cristã. Não sendo ideológica, a fé cristã não presume encarcerar num esquema rígido a variável realidade sócio-política e reconhece que a vida do homem se realiza na história, em condições diversas e não perfeitas. A Igreja, portanto, reafirmando constantemente a dignidade transcendente da pessoa, tem, por método, o respeito da liberdade 94.

Mas a liberdade só é plenamente valorizada pela aceitação da verdade: num mundo sem verdade, a liberdade perde a sua consistência, e o homem acaba exposto à violência das paixões e a condicionalismos visíveis ou ocultos. O cristão vive a liberdade (cf. Jo
Jn 8,31-32), e serve-a propondo continuamente, segundo a natureza missionária da sua vocação, a verdade que conheceu. No diálogo com os outros homens, ele, atento a toda a parcela de verdade que encontre na experiência de vida e na cultura dos indivíduos e das Nações, não renunciará a afirmar tudo o que a sua fé e o recto uso da razão lhe deram a conhecer 95.

(93) Cf. Ibid., GS 29; Pius PP. XII, Nuntius radiophonicus natalicius die 24 Decembris 1944 datus: AAS 37 (1945), 10-20.
(94) Cf. CONC. OEC. VAT. II, Declaratio Dignitatis humanae de Libertate religiosa.
(95) Cf. Litt. Enc. Redemptoris missio, RH 11: diurnarium « L'Osservatore Romano », 23 Ianuarii 1991.


47 Após a queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de «segurança nacional», assistimos hoje à prevalência, não sem con- trastes, do ideal democrático, em conjunto com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. Mas, exactamente por isso, é necessário que os povos, que estão reformando os seus regimes, dêem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos 96. Entre os principais, recordem-se: o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa 97.

Também nos Países onde vigoram formas de governo democrático, nem sempre estes direitos são totalmente respeitados. Não se trata apenas do escândalo do aborto, mas de diversos aspectos de uma crise dos sistemas democráticos, que às vezes parecem ter perdido a capacidade de decidir segundo o bem comum. As questões levantadas pela sociedade não são examinadas à luz dos critérios de justiça e moralidade, mas antes na base da força eleitoral ou financiária dos grupos que as apoiam. Semelhantes desvios da prática política geram, com o tempo, desconfiança e apatia e consequentemente diminuição da participação política e do espírito cívico, no seio da população, que se sente prejudicada e desiludida. Disso resulta a crescente incapacidade de enquadrar os interesses particulares numa coerente visão do bem comum. Este efectivamente não é a mera soma dos interesses particulares, mas implica a sua avaliação e composição feita com base numa equilibrada hierarquia de valores e, em última análise, numa correcta compreensão da dignidade e dos direitos da pessoa 98.

A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática, mas não é sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional. O contributo, por ela oferecido nesta ordem, é precisamente aquela visão da dignidade da pessoa, que se revela em toda a sua plenitude no mistério do Verbo encarnado 99.

(96) Cf. Litt. Enc. Redemptor hominis,
RH 17: l. mem., 270-272.
(97) Cf. Nuntius pro Mundiali Die Paci fovendae dicato 1988: l. mem., 1572-1580; Nuntius pro Mundiali Die Paci fovendae dicato 1991: diurnarium « L'Osservatore Romano », 19 Decembris 1990; CONC. OEC. VAT. II, Declaratio Dignitatis humanae de Libertate religiosa, DH 1-2.
(98) CONC. OEC. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 26.
(99) Cf. Ibid., GS 22.


48 Estas considerações gerais reflectem-se também no papel do Estado no sector da economia. A actividade económica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, a de garantir esta segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, consequentemente, se sinta estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em actividades ilegais ou puramente especulativas, é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem económica.

Outra tarefa do Estado é a de vigiar e orientar o exercício dos direitos humanos, no sector económico; neste campo, porém, a primeira responsabilidade não é do Estado, mas dos indivíduos e dos diversos grupos e associações em que se articula a sociedade. O Estado não poderia assegurar directamente o direito de todos os cidadãos ao trabalho, sem uma excessiva estruturação da vida económica e restrição da livre iniciativa dos indivíduos. Contudo isto não significa que ele não tenha qualquer competência neste âmbito, como afirmaram aqueles que defendiam uma ausência completa de regras na esfera económica. Pelo contrário, o Estado tem o dever de secundar a actividade das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise.

O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais, quando sectores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias de formação, se mostram inadequados à sua missão. Estas intervenções de suplência, justificadas por urgentes razões que se prendem com o bem comum, devem ser, quanto possível, limitadas no tempo, para não retirar permanentemente aos mencionados sectores e sistemas de empresas as competências que lhes são próprias e para não ampliar excessivamente o âmbito da intervenção estatal, tornando-se prejudicial tanto à liberdade económica como à civil.

Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o «Estado do bem-estar». Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como «Estado assistencial». As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum (100).

Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas. De facto, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao encontro do necessitado. Acrescente-se que, frequentemente, um certo tipo de necessidades requer uma resposta que não seja apenas material, mas que saiba compreender nelas a exigência humana mais profunda. Pense-se na condição dos refugiados, emigrantes, anciãos ou doentes e em todas as diversas formas que exigem assistência, como no caso dos toxicómanos: todas estas são pessoas que podem ser ajudadas eficazmente apenas por quem lhes ofereça, além dos cuidados necessários, um apoio sinceramente fraterno.

(100) Cf. PIUS PP. XI, Litt. Enc. Quadragesimo anno, I: l. mem., 184-186.


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