Divino afflante Spiritu PT




CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII


DIVINO AFFLANTE SPIRITU(*)



SOBRE OS ESTUDOS BÍBLICOS




Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Arcebispos, Bispos e demais
Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica,
como a todo o clero e fiéis de Cristo do orbe católico



INTRODUÇÃO




1. 50° aniversário da encíclica "Providentissimus Deus"


1 Inspirados pelo Espírito Divino, escreveram os sagrados autores aqueles livros que Deus, no seu paterno amor para com o gênero humano, se dignou dar-nos "para ensinar, para convencer, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e bem apetrechado para toda a obra boa." (1) Não admira, pois, se a santa Igreja, para quem este tesouro recebido do céu é fonte preciosíssima e regra divina do dogma e da moral, como o recebeu ilibado das mãos dos apóstolos, assim com todo o cuidado o conservou, e defendeu de toda e qualquer interpretação falsa e errônea, e com o maior esmero o utilizou para conseguir a salvação eterna das almas. Atestam-no eloqüentemente documentos quase inumeráveis de cada século. Mas nos tempos mais recentes, quando se viu mais particularmente ameaçada a origem divina dos Livros Sagrados e a sua reta interpretação, também a Igreja tratou de as defender e proteger com maior empenho e diligência. E assim já o sacrossanto concílio de Trento, com solene decreto, determinou que devem reconhecer-se "como sagrados e canônicos os livros inteiros com todas as suas partes conforme se costuma ler na Igreja católica e estão na antiga Vulgata latina." (2) E em nosso tempo o concílio Vaticano [I], para condenar algumas falsas doutrinas relativas a inspiração, declarou que a razão de os mesmos livros deverem ser considerados como sagrados e canônicos "não é porque, tendo sido compostos apenas por atividade humana, a Igreja depois os aprovou com a sua autoridade, nem unicamente porque contêm a revelação sem erro algum, mas porque, escritos sob a inspiração do Espírito Santo, tem a Deus por autor, e como tais foram confiados à mesma Igreja."(3) Todavia, mesmo depois desta solene definição da doutrina católica que reivindica "aos livros inteiros com todas as suas partes" tal autoridade divina, que os preserva de todo e qualquer erro, houve escritores católicos que ousaram coarctar a verdade da Sagrada Escritura unicamente às coisas relativas à fé e a moral, considerando as restantes, quer físicas quer históricas, como "ditas de passagem" e sem conexão, afirmavam eles, com as verdades da fé. Por isso o nosso predecessor de imortal memória Leão XIII com a encíclica Providentissimus Deus, de 18 de novembro de 1893, infligiu àqueles erros a merecida condenação, e ao mesmo tempo regulou o estudo dos Livros divinos com prescrições e normas sapientíssimas.

(1)
2Tm 3,16s.
(2) Sessão IV, decr. l; Ench. Bibl ., n. 45.
(3) Sessão III, cap. 2; Ench. Bibl., n. 62.

2. Modo de celebrar o cinqüentenário


2 Ora, devendo celebrar-se o qüinquagésimo aniversário da publicação daquela encíclica, justamente considerada como a Magna Carta dos estudos bíblicos, nós por aquela atenção que desde o princípio do nosso pontificado dedicamos aos estudos sagrados,(4); julgamos que o melhor modo de o fazer era, primeiro, confirmar e inculcar quanto aquele nosso predecessor sapientemente ordenou e quanto seus sucessores acrescentaram para consolidamento e aperfeiçoamento da sua obra; depois ordenar o que os tempos atuais parecem exigir, para estimular cada vez mais todos os filhos da Igreja que se dão a estes estudos, a uma tão necessária e louvável empresa.

(4) Sermo ad alumnos Seminariorum... in Urbe (24 de junho de 1939); AAS 31(1939), pp. 245-251.


PRIMEIRA PARTE


SOLICITUDE DE LEÃO XIII E SEUS SUCESSORES PELOS ESTUDOS BÍBLICOS


1. Leão XIII

Doutrina sobre a inerrância bíblica


3 O primeiro e maior cuidado de Leão XIII foi expor a doutrina relativa à verdade dos Livros Sagrados e defendê-la dos ataques contrários. Por isso em graves termos declarou que não há erro absolutamente nenhum quando o hagiógrafo falando de coisas físicas "se atém ao que aparece aos sentidos" como escreveu o Angélico,(5) exprimindo-se "ou de modo metafórico, ou segundo o modo comum de falar usado naqueles tempos e usado ainda hoje em muitos casos na conversação ordinária mesmo pelos maiores sábios." De fato "não era intenção dos escritores sagrados, ou melhor - são palavras de santo Agostinho(6) do Espírito Santo que por eles falava, ensinar aos homens essas coisas - isto é, a íntima constituição do mundo visível - que nada importam para a salvação".(7) Esse princípio "deverá aplicar-se às ciências afins, especialmente à história", isto é, refutando "de modo semelhante os sofismas dos adversários" e defendendo das suas objeções a verdade histórica da Sagrada Escritura.(8) Nem pode ser taxado de erro o escritor sagrado, "se aos copistas escaparam algumas inexatidões na transcrição dos códices" ou "se é incerto o verdadeiro sentido de algum passo". Enfim é absolutamente vedado "coarctar a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura ou conceder que o próprio escritor sagrado errou", pois que a divina inspiração "de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum erro. Esta é a fé antiga e constante da Igreja".(9)

(5) Cf.
I 70,1 a 3.
(6) De Gen. ad litt. 2, 9, 20; PL 34, col. 270s.; CSEL, 28(II, 2), p. 46.
(7) Leão XIII, Acta 13, p. 357s; Ench. Bibl. n.106.
(8) Cf. Bento XV, enc. Spiritus Paraclitus; AAS 12(1920), p. 396; Ench. Bibl. n. 471.
(9) Leão XIII, Acta 13, p. 357s; Ench. Bibl.n.109s.

4 Esta doutrina, pois, que nosso predecessor Leão XIII com tanta gravidade expôs, propo-mo-la nós também com nossa autoridade e a inculcamos, para que seja de todos escrupulosamente professada. E ademais ordenamos que, com não menor empenho, se sigam também hoje os conselhos e incitamentos que ele, como pedia o seu tempo, sabiamente acrescentou. Com efeito, vendo surgir novas e não leves dificuldades e problemas, quer dos preconceitos do racionalismo então em voga, quer principalmente dos numerosos monumentos da antiguidade descobertos e estudados no Oriente, o mesmo nosso predecessor; movido do zelo do seu múnus apostólico e ansioso não só de tornar uma tão importante fonte da revelação católica mais segura e largamente acessível para utilidade da grei do Senhor, mas também de a preservar de todo e qualquer inquinamento, manifestou vivo desejo de que "muitos compreendessem e constantemente sustentassem a defesa das divinas Escrituras, e que especialmente aqueles que a divina graça chamou às sagradas ordens, com diligência cada vez maior se aplicassem, como é de razão, a lê-las, meditá-las e explicá-las".(10)

(10) Cf. Leão XIII, Acta 13, p. 328; Ench. Bibl. n. 83.

Impulso dado aos estudos bíblicos: Escola bíblica de Jerusalém, Comissão bíblica


5 Por isso o mesmo pontífice, assim como já antes louvara e aprovara a Escola bíblica fundada em Jerusalém, junto da basílica de santo Estêvão, por iniciativa do mestre geral da sagrada Ordem dos Pregadores, porque, segundo ele próprio se exprime, "tinha dado grande impulso aos estudos bíblicos e esperava-se que o desse ainda maior";(11) assim no último ano de sua vida acrescentou um novo meio de aperfeiçoar cada dia mais e promover com toda a segurança estes estudos tão recomendados na encíclica Providentissimus Deus. De fato com a carta apostólica Vigilantiae de 30 de outubro de 1902 instituía um Conselho ou Comissão de homens competentes, "cuja incumbência própria fosse procurar por todos os meios que as divinas Escrituras sejam entre nós largamente cultivadas com aquela maestria que os tempos requerem, e preservadas não só de qualquer hálito de erro, mas até de toda a temeridade de opinar."(12) Essa Comissão também nós, seguindo o exemplo dos nossos predecessores, a confirmamos e autorizamos com os fatos, valendo-nos dela várias vezes, e em particular para chamar os expositores dos Livros Sagrados à observância dos sãos princípios de exegese católica que os santos Padres e doutores da Igreja e os mesmos sumos pontífices nos deixaram. (13)

(11) Carta Apost. Hierosolymae in coenobio, de 17 de set. de 1892; Leão XIII, Acta 12, pp. 239-241, v, p. 240.
(12) Cf. Leão XIII, Acta 22; p. 232ss; Ench. Bibl. n.130-141; v nn.130,132.
(13) Carta da Pontifícia Comissão Bíblica aos Exmos. Arcebispos e Bispos da Itália, de 20 de agosto de 1941; Acta Ap. Sedis 33(1941) pp. 465-472.

2. Pio X

Graus acadêmicos. Programa de estudos bíblicos, Instituto bíblico em Roma


6 Não é fora de propósito recordar aqui, com gratidão, os atos principais e de maior alcance com que nossos predecessores contribuíram para o mesmo fim, e que podemos chamar complementos ou frutos da feliz iniciativa de Leão XIII. Em primeiro lugar Pio X, querendo fornecer a Igreja "de um meio seguro para formar bom número de professores, recomendáveis por solidez e pureza de doutrina, que explicassem nas escolas católicas os livros santos...", instituiu "os graus acadêmicos de Licenciado e Doutor na Sagrada Escritura conferidos pela Comissão Bíblica";(14) depois prescreveu "o programa de estudos da Sagrada Escritura nos seminários" com o fim de que os sacerdotes "não só adquirissem um profundo conhecimento da excelência, composição e doutrina da Bíblia, mas também soubessem e pudessem exercer convenientemente o ministério da divina palavra, e defender das objeções os Livros escritos sob a inspiração de Deus";(15) enfim "para que houvesse em Roma um centro de estudos superiores bíblicos que do modo mais eficaz possível fizesse progredir a ciência da Sagrada Escritura e das matérias com ela relacionadas, segundo o espírito da Igreja católica", fundou, confiando-o à ínclita Companhia de Jesus, o Pontifício Instituto Bíblico, e quis que fosse "provido de escolas superiores e de todos os meios de instrução bíblica" e prescreveu as normas por que devia reger-se e funcionar, declarando que assim realizava "o salutar e frutuoso desígnio" de Leão XIII. (16)

(14) Carta Apost. Scripturae Sanctae, de 23 de fev. de 1904; Pio X, Acta I, pp. 176-179; Ench. Bibl. nn.142-150; v 143-144.
(15) Cf carta Apost. Quoniam in re biblica, de 27 de março de 1906; Pio X Acta 3, pp. 72-76; Ench. Bibl.nn.155-173, v.155.
(16) Carta Apost. Vinea electa, de 7 de maio de 1909; Acta Ap. Sedis 1(1909), pp. 447-449; Ench. Bibl.nn. 293-306; v. 294 e 296.


3. Pio Xl

Graus acadêmicos obrigatórios


7 Coroou todas essas medidas o nosso predecessor de feliz memória Pio XI ordenando, entre outras coisas, que "ninguém pudesse ser professor de Sagrada Escritura nos seminários senão depois de feito um curso especial desta ciência e conseguidos regularmente os graus acadêmicos na Comissão bíblica ou no Instituto bíblico"; graus que ele declarou equiparados quanto aos direitos e efeitos aos graus devidamente conferidos na sagrada Teologia e no Direito Canônico; determinou também que a ninguém seja conferido "um benefício ao qual esteja canonicamente anexo o ônus de explicar ao povo a Sagrada Escritura, se, além do mais, não tiver conseguido a licenciatura ou a láurea em Sagrada Escritura." Ao mesmo tempo exortava os gerais das ordens regulares e das congregaçães religiosas, bem como os bispos de todo o orbe católico, a que mandassem os mais capazes dos seus alunos a freqüentar as escolas do Instituto Bíblico para aí conseguirem os graus acadêmicos; e a fim de confirmar com seu exemplo essas exortações, constituiu para esse fim rendimentos anuais fruto da sua munificência.(17)

(17) Cf. Motu próprio Bibliorum scientiam, de 27 de abril de 1924; Acta Ap. Sedis 16(1924), pp.180-182.

Mosteiro de S. Jerônimo para a revisão da Vulgata


8 O mesmo pontífice, visto que em 1907 com o favor e aprovação de Pio X de feliz memória "fora confiado aos padres beneditinos o encargo de fazer investigações e estudos preparatórios para a edição da versão da Sagrada Escritura comumente chamada Vulgata", (18) querendo dar mais sólida base e maior segurança a esta "fadigosa e árdua empresa", que exige muito tempo e grandes despesas, mas cuja grandíssima utilidade mostram os magníficos volumes já publicados, levantou o Cenóbio Romano de S. Jerônimo, inteiramente dedicado àquela obra, e dotou-o generosamente de rica biblioteca e de todos os meios de investigação.(19)

(18) Carta ao Revmo. D. Aidano Gasquet, de 3 de dez. de 1907. Pio X, Acta 4, pp.117-119; Ench. Bibl. n. 285s.
(19) Const. Apost. Inter praecipuas, de 15 de junho de 1933; Acta Ap. Sedis 26(1934), pp. 85-87.

4. A difusão dos Livros Santos


9 Nem se deve aqui passar em silêncio quanto os mesmos nossos predecessores, sempre que se lhes ofereceu ocasião, recomendaram o estudo, a pregação, a leitura e meditação das Sagradas Escrituras. Com efeito Pio X aprovou calorosamente a Sociedade de S. Jerônimo que tem por fim propagar entre os fiéis o louvável costume de ler e meditar os santos Evangelhos e facilitar quanto possível este pio exercício. Exortou-a a perseverar constantemente na empresa, afirmando que "era a coisa mais útil e adaptada aos tempos", pois contribui não pouco "a desfazer o preconceito que a Igreja se opõe à leitura da Sagrada Escritura em língua vulgar e procura impedi-la".(20) Bento XV no XV centenário da morte do doutor máximo, na exposição das Sagradas Escrituras, depois de inculcar escrupulosamente os ensinamentos e exemplos do mesmo santo doutor e os princípios e normas ditados por Leão XIII e por ele próprio, e depois de outras oportuníssimas recomendações deste gênero que é preciso não esquecer nunca, exortou "todos os filhos da Igreja e especialmente o clero à veneração da Sagrada Escritura juntamente com a devota leitura e meditação assídua", fazendo notar "que nestas páginas se deve procurar o alimento que sustenta e aperfeiçoa a vida do espírito" e que "o principal uso da Escritura é o que tem por fim exercer santa e frutuosamente o ministério da divina palavra". Depois louvou novamente a atividade da Sociedade que tomou o nome do mesmo S. Jerônimo, que em larga escala difunde os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, "de tal forma que já não há família cristã que os não possua e todos se vão habituando a lê-los e meditá-los todos os dias".(21)

(20) Carta ao Exmo. Card. Cassetta Qui piam, de 21 de jan, de 1907; Pio X, Acta 4, pp. 23-25.
(21) Encícl. Spiritus Paraclitus, de 15 de set. de 1920; Acta Ap. Sedis 12(1920), pp. 385-422; Ench. Bibl. nn. 457-508; v 457, 491, 495, 497.

10 É, porém, justo e grato reconhecer que os notáveis progressos feitos pela ciência e uso das Sagradas Escrituras entre os católicos se devem não somente a essas disposições, prescrições e exortações de nossos predecessores, mas também ao concurso e colaboração de todos os que, com pronto acatamento, consagraram as suas fadigas tanto a meditar, investigar e escrever, como a ensinar, pregar, traduzir e propagar os Livros Santos. Com efeito, das escolas superiores de Teologia e Sagrada Escritura e, principalmente, de nosso Pontifício Instituto Bíblico têm saído já e saem muitos cultores das divinas Escrituras, que animados de ardente amor dos Livros santos infundem o mesmo amor na juventude eclesiástica e lhe comunicam diligentemente a doutrina que aprenderam. Não poucos têm feito e fazem progredir as ciências bíblicas, nomeadamente com seus escritos, quer publicando edições críticas do sagrado texto, explicando-o, ilustrando-o, traduzindo-o, em vulgar, quer propondo-o à devota leitura e meditação dos fiéis, quer finalmente aprendendo e cultivando as ciências profanas que servem à inteligência da Escritura. Essas e outras obras que cada dia mais se vão propagando e desenvolvendo, quais são, por exemplo, as reuniões; congressos, semanas de estudos bíblicos, bibliotecas, associações para a meditação dos evangelhos, fazem-nos conceber certas esperanças de que para o futuro a veneração, uso e ciência das sagradas Escrituras progredirão cada vez mais para o bem das almas; contanto que todos com firmeza, entusiasmo e confiança se atenham ao método de estudos bíblicos traçados por Leão XIII, por seus sucessores declarado e aperfeiçoado, e por nós confirmado e acrescido; método que é o único seguro e comprovado pela experiência; nem se deixem desanimar pelas dificuldades, que, como sucede nas coisas humanas, nunca hão de faltar nesta tão grande obra.



SEGUNDA PARTE


CRITÉRIOS HERMENÊUTICOS PARA O ESTUDO DA


SAGRADA ESCRITURA HOJE


1. Estado atual dos estudos bíblicos


11 Nesses cinqüenta anos as condições dos estudos bíblicos e ciências auxiliares; não há quem o não veja, mudaram consideravelmente. Assim, para não falar de outras coisas, quando nosso predecessor publicou a Encíclica Providentissimus Deus, apenas um ou outro lugar da Palestina se tinha começado a explorar com escavações orientadas nesse sentido. Agora tais explorações têm-se multiplicado enormemente e fazem-se com métodos mais rigorosos e arte aperfeiçoada pela experiência, de modo que os resultados são muito mais abundantes e certos. Quanta luz se tire de tais investigações para compreender melhor e mais perfeitamente os Livros santos, sabem-nos os doutos, sabem-no todos os que se dão a este gênero de estudos. Aumentam o valor destas explorações os monumentos escritos por vezes encontrados, que ajudam muito a conhecer as línguas, a literatura, a história, os costumes, os cultos daqueles antiquíssimos povos. Nem é menor a importância da investigação e descoberta dos papiros, tão freqüente em nossos dias, e que tanto tem contribuído para melhor conhecimento das letras e instituições públicas e particulares, especialmente do tempo de nosso divino Salvador. Encontraram-se ainda e publicaram-se, conforme as exigências da crítica, antigos manuscritos dos Livros santos; a exegese dos Padres da Igreja foi mais larga e profundamente estudada; inúmeros exemplos vieram a ilustrar o modo de falar, de narrar e de escrever dos antigos. Tudo isso que, não sem providência especial de Deus, conseguiu a nossa época, convida e aconselha aos intérpretes das sagradas Escrituras a aproveitar diligentemente tanta luz para perscrutar mais a fundo os divinos Oráculos, ilustrá-los com maior clareza, expô-los com maior precisão. Vemos, com suma complacência da nossa alma, que os intérpretes têm correspondido e continuam a corresponder com louvável zelo a este convite; é este um fruto, e não dos últimos nem dos menores, da encíclica Providentissimus Deus, com a qual o nosso predecessor, como presságio desta nova primavera de estudos bíblicos, chamou os exegetas católicos ao trabalho e lhes traçou o caminho e métodos de trabalhar. Ora, que o trabalho não só continue constantemente, mas frutifique e se aperfeiçoe cada vez mais é o que nós também desejamos conseguir com esta encíclica; na qual nos propomos sobretudo mostrar a todos o que falta ainda por fazer e qual o espírito com que o exegeta católico de hoje deve aplicar-se a um múnus tão grande e tão excelso, e infundir novo animo e novos estímulos aos operários que estrenuamente trabalham na vinha do Senhor.

2. Uso dos textos originais

Estudo das línguas bíblicas


12 Ao intérprete católico que se aplica a entender e expor as Sagradas Escrituras, já os Padres da Igreja - e sobretudo Agostinho - recomendaram vivamente o estudo das línguas antigas e o recurso aos textos originais.(22) Todavia as condições dos estudos naqueles tempos eram tais que só poucos, e ainda assim imperfeitamente, conheciam a língua. Na Idade Média, quando mais florescia a teologia escolástica, tinha decaído tanto também o conhecimento do grego entre os ocidentais, que até os maiores doutores daquele tempo, ao explicarem os Livros santos, deviam basear-se unicamente na tradução latina da Vulgata. Ao contrário em nossos dias não só a língua grega, que com a Renascença ressurgiu por assim dizer à nova vida, é familiar a quase todos os literatos e cultores da antiguidade, mas também a hebraica e as outras línguas orientais são largamente conhecidas dos eruditos. Além disso são hoje tantos os meios para aprender aquelas linguas que o intérprete da Escritura, que, descurando-as, fecha a si mesmo o acesso aos textos originais, não podendo evitar a imputação de inconsideração e indolência. Dever do exegeta é aproveitar com a máxima atenção e veneração ainda as mais pequenas minudências provenientes da pena do hagiógrafo sob a inspiração do Divino Espírito, a fim de penetrar a fundo e plenamente o seu pensamento. Por isso trabalhe por adquirir uma perícia cada vez maior das línguas bíblicas e também dos outros idiomas orientais e apóie a sua interpretação com todos os recursos subministrados por toda espécie de filologia. Foi o que s. Jerônimo se esforçou por conseguir, quanto o consentiam os conhecimentos daquela época, e o mesmo procuraram, com indefesso estudo e fruto mais que ordinários, os grandes exegetas dos séculos XVI e XVII, se bem que fosse então, menor do que hoje, a ciência lingüística. Deve, pois, com o mesmo método explicar-se o texto original, o qual pelo fato mesmo de ter sido escrito pelo Autor sagrado, tem maior autoridade e peso que qualquer tradução antiga ou moderna por ótima que seja; e isso poderá obter-se mais fácil e proveitosamente, se ao conhecimento das línguas se unir uma sólida perícia da arte crítica aplicada ao mesmo texto.

(22) Cf. s. Jerônimo, Praef. in IV Evang. ad Damasum, PL 29, 526-527; s. Agostinho, De doctr. christ. II 16, PL 34, 42-43.

Importância da crítica textual


13 Quanta seja a importância desta crítica, bem o dá a entender santo Agostinho, quando entre as normas que inculca ao estudioso dos Livros Santos, põe em primeiro lugar o cuidado de procurar um texto correto. "A emendar os códices, diz aquele preclaríssimo doutor da Igreja, deve antes de mais nada atender a sagacidade pelos que desejam conhecer as divinas Escrituras, para que os não emendados cedam o lugar aos emendados",(23) Hoje em dia esta arte que sói chamar-se crítica textual e nas edições de autores profanos se emprega com grande louvor e fruto, com toda a razão se aplica também aos Livros Santos, precisamente pela reverência devida à palavra de Deus. De fato o seu fim é reconstruir com toda a possível perfeição o texto sagrado, expurgá-lo das alterações nele introduzidas por culpa dos copistas, mundando-o das glossas e lacunas, transposições e repetições de palavras, e de toda espécie de erros que costumam infiltrar-se na transmissão plurissecular de obras manuscritas. Nem quase é preciso advertir que essa crítica, que alguns decênios atrás muitos empregaram de modo completamente arbitrário, tanto que muitas vezes parecia não pretenderem outra coisa senão introduzir no texto sagrado as suas opiniões preconcebidas, hoje chegou a tal consistência e segurança de regras, que se tornou um magnífico instrumento para a edição da divina palavra em forma mais exata e mais pura, e é fácil descobrir qualquer abuso que dela se faça. Nem é necessário lembrar aqui - pois é coisa conhecida e manifesta a quantos estudam a Sagrada Escritura - quanta apreço fez sempre a Igreja, desde os primeiros séculos até aos nossos tempos, dos estudos críticos. Portanto hoje que esta arte atingiu tão grande perfeição, é um dever de honra, bem que não sempre fácil, para os especialistas em Sagrada Escritura, procurar por todos os meios que quanto antes se preparem edições católicas dos Livros santos e das antigas traduções, feitas segundo estas normas, de modo que com uma reverência suma para com o texto sagrado unam uma exata observância de todas as leis da crítica. E saibam bem todos que este longo trabalho não só é necessário para bem compreender os escritos divinamente inspirados, mas é imperiosamente exigido pela piedade com que nos devemos mostrar sumamente agradecidos a amorosíssima Providência de Deus que do trono da sua majestade nos mandou esses livros como cartas do Pai celeste aos próprios filhos.

(23) De doct. christ., II. 21, PL 34, 46.

Texto original e autenticidade da vulgata


14 Nem vá alguém pensar que o sobredito uso dos textos originais, feito segundo as regras da crítica, é contrário a quanto o concílio de Trento sabiamente decretou a respeito da Vulgata latina.(24) É um fato, atestado pelos documentos, que os presidentes do concílio receberam o encargo, por eles fielmente cumprido, de pedir ao sumo pontífice em nome do mesmo Concílio que mandasse corrigir o melhor possível, primeiro a edição latina, depois também a grega e a hebraica, e as publicasse para proveito da santa Igreja de Deus.(25) A esse desejo, se então pelas dificuldades dos tempos e outros obstáculos não se pode dar plena satisfação, atualmente com a colaboração de doutos católicos pode dar-se, e confiamos que se dará execução mais vasta e perfeita. Quanto à Vulgata, se o concílio Tridentino ordenou que ela fosse a tradução latina que todos usassem como autêntica, primeiro, este decreto, como todos sabem, é só para a Igreja latina, e para o uso público da Escritura; depois, em nada diminui a autoridade e valor dos textos originais. De fato não se tratava então dos textos originais, mas das traduções latinas que naquele tempo corriam, entre as quais o concílio justamente decretou se preferisse a que "pelo longo uso de tantos séculos na mesma Igreja estava já de fato aprovada". Portanto esta autoridade preeminente ou autenticidade da Vulgata decretou-a o concílio não principalmente por motivos de crítica, mas antes pelo uso legítimo que dela se fez na Igreja durante tantos séculos; uso que prova estar ela, no sentido em que a entendeu e entende a Igreja, completamente isenta de erros no que toca a fé e aos costumes; de modo que, como a mesma Igreja atesta e confirma, se pode nas disputas, preleções e pregação alegar seguramente e sem perigo de errar; por isso esta autenticidade propriamente não se chama "crítica" mas "jurídica". Nem a autoridade da Vulgata em matéria de doutrina impede, - antes nos nossos dias quase exige - que a mesma doutrina se prove e confirme também com os textos originais, e que se recorra aos mesmos textos para encontrar e explicar cada vez melhor o verdadeiro sentido das Sagradas Escrituras. Antes, o decreto Tridentino nem sequer proíbe que, para uso e proveito dos fiéis e para facilitar a inteligência da divina palavra, se façam traduções em linguas vulgares, e precisamente dos textos originais, como sabemos terem-se já feito, e muito bem, em várias partes, com aprovação da autoridade eclesiástica.

(24) Decr. de editione et usu Sacrorum Librorum; Conc.Trid. ed. Soc. Goerres, t. V p. 91s.
(25) Ibid. t. X, p. 471; cf. t. V pp. 29, 59, 65, t. X, p. 446s.

3. Interpretação dos Livros santos

Antes de tudo o sentido literal e a doutrina teológica


15 Bem preparado com o conhecimento das línguas antigas e com os recursos da crítica, aplique-se o exegeta católico àquele que é o principal de todos os seus deveres: indagar e expor o sentido genuíno dos Livros Sagrados. Neste trabalho tenham os intérpretes bem presente que o seu maior cuidado deve ser distinguir claramente e precisar qual seja o sentido literal das palavras bíblicas. Procurem-no pois com toda a diligência, valendo-se da ciência das línguas, do exame do contexto, da comparação com passos semelhantes; coisas todas de que se costuma tirar partido na interpretação dos escritores profanos, para tirar a limpo o pensamento do autor. Mas os comentadores da Sagrada Escritura, tendo presente que se trata de um texto divinamente inspirado, cuja conservação e interpretação foram pelo mesmo Deus confiadas à Igreja, com não menor diligência, atenderão às explicações e declarações do magistério eclesiástico, bem como à exposição dos santos Padres e "à analogia da fé", como nota sapientissimamente Leão XIII na Encíclica Providentissimus Deus.(26) Guardem-se com particular cuidado de expor somente o que toca à história, à arqueologia, à filologia e outras matérias semelhantes - como com mágoa vemos que se faz em alguns comentários -; mas, dadas oportunamente tais notícias enquanto podem servir à exegese, ponham em evidência sobretudo a doutrina teológica, dogmática ou moral, de cada livro ou texto. Desse modo a sua exposição não só aproveitará aos professores de teologia ao exporem e provarem os dogmas da fé, mas servirá também aos sacerdotes para a explicação da doutrina cristã ao povo, e será útil a todos os fiéis para viverem uma vida santa, digna de um verdadeiro cristão.

(26) Leão XIII, Acta 13, pp. 345-346; Ench. Bibl. n.109.

O sentido espiritual, querido e ordenado por Deus


16 Tal interpretação prevalentemente teológica, como dissemos, será meio eficaz para fazer calar os que se queixam de não encontrar nos comentários bíblicos nada que eleve a mente a Deus, alimente a alma, fomente a vida interior, e por isso dizem que é preciso recorrer a uma interpretação que chamam espiritual e mística. Quão pouco justa seja essa acusação, prova-o a experiência de muitos que com freqüente consideração e meditação da palavra de Deus têm santificado as suas almas e se têm inflamado no amor de Deus; provam-no claramente a constante prática da Igreja e os ensinamentos dos maiores doutores. Certamente que nem todo o sentido espiritual se pode excluir da Sagrada Escritura; pois que tudo o que foi dito e feito no Antigo Testamento, foi por Deus sapientissimamente ordenado e disposto de modo que as coisas passadas prefigurassem espiritualmente as futuras que deviam realizar-se no Novo Testamento da graça. Por isso o exegeta do mesmo modo como deve encontrar e expor o sentido literal das palavras que o hagiógrafo pretendia exprimir, assim também deve indagar o espiritual nos passos onde realmente conste que Deus o quis expressar. De fato este sentido espiritual só Deus o pode conhecer e revelar. Ora, indica-o e ensina-o o próprio Salvador nos evangelhos; e, seguindo o exemplo do divino Mestre, usam-no os apóstolos falando e escrevendo; aponta-o a constante tradição da Igreja; e, finalmente, o conhecido princípio: "A lei de orar é a lei de crer". Esse sentido espiritual por Deus pretendido e ordenado, descubram-no e exponham-no os exegetas católicos com a diligência que requer a dignidade da divina palavra; guardem-se, porém, escrupulosamente de apresentar como sentido genuíno da Sagrada Escritura outros valores figurativos das coisas. Pode sim ser útil, especialmente na pregação, ilustrar e persuadir as coisas da fé e da moral cristã com uso mais largo do sagrado texto em sentido figurado, contanto que se faça com moderação e sobriedade; mas é preciso não esquecer que tal uso da Sagrada Escritura lhe é como que extrínseco e adicional, e não deixa de ser perigoso; sobretudo em nossos dias, porque os fiéis, e nomeadamente as pessoas cultas nas ciências sagradas ou profanas, querem saber o que Deus disse nas Sagradas Escrituras, e não tanto o que um fecundo orador ou escritor usando com destreza as palavras da Bíblia, é capaz de nos dizer. "A palavra de Deus viva e eficaz, mais cortante que uma espada de dois gumes, penetrante até dividir alma e espírito, articulações e medulas, capaz de destrinçar pensamentos e sentimentos do coração"(27) não precisa de artifícios e adaptações humanas para mover e abalar os corações; as Sagradas Páginas escritas sob a inspiração do Espírito de Deus são de per si ricas de sentido próprio; dotadas de força divina, são poderosas por si mesmas; ornadas de supremo esplendor por si mesmas brilham e resplandecem, se o intérprete com uma explicação fiel e completa sabe desentranhar todos os tesouros de sabedoria e prudência que nelas estão encerrados.

(27)
He 4,12.

Incitamento ao estudo dos santos Padres e dos doutores da Igreja


17 Para isso conseguir poderá o exegeta católico auxiliar-se egregiamente do estudo inteligente dos escritos em que os santos Padres e doutores da Igreja e os ilustres intérpretes das épocas passadas comentaram os Livros Santos. Pois que eles, bem que talvez menos fornecidos de instrução profana e de ciência lingüística do que os intérpretes dos nossos dias, contudo pelo lugar que Deus lhes deu na Igreja, distinguem-se por uma suave intuição das coisas celestes e por uma admirável perspicácia com que penetram até às mais íntimas profundidades da divina palavra e tiram à luz quanto pode servir para ilustrar a doutrina de Cristo e promover a santidade da vida. Verdadeiramente é pena que tão preciosos tesouros da antiguidade cristã sejam pouco conhecidos de muitos escritores do nosso tempo e que os cultores da história da exegese não tenham ainda feito tudo para aprofundar bem e apreciar devidamente uma coisa de tanta importância. Preza a Deus que muitos se dêem diligentemente a explorar os autores e obras de interpretação católica da Escritura, e, extraindo as riquezas quase imensas nelas acumuladas, concorram eficazmente para que se veja melhor quão intimamente penetravam e quão bem explicaram os antigos a divina doutrina dos Livros Santos; e os intérpretes atuais tomem daí exemplo e aproveitem os preciosos materiais postos à sua disposição. Assim efetuar-se-á, finalmente, a feliz e fecunda combinação da doutrina e suave unção dos antigos com a mais vasta erudição e arte mais progredida dos modernos, a qual decerto produzirá novos frutos no campo nunca assaz cultivado das divinas Escrituras.


Divino afflante Spiritu PT