Divino afflante Spiritu PT 17

4. Tarefa especial dos exegetas em nossos dias

Estado atual das ciências bíblicas


18 Com fundada razão podemos esperar que os nossos tempos contribuam também com a sua quota nova para uma interpretação mais completa e exata das Sagradas Escrituras. De fato há não poucas coisas, especialmente no terreno histórico que não foram explicadas, ou foram só imperfeitamente, pelos expositores dos séculos passados, porque lhes faltavam os conhecimentos necessários para obter melhores resultados. Quão árduos e quase inacessíveis acharam os mesmos Padres alguns passos, mostram-no, por exemplo, os repetidos esforços que muitos deles fizeram para interpretar os primeiros capítulos do Gênesis; ou também as várias tentativas de são Jerônimo para traduzir os salmos de modo que o sentido literal do texto aparecesse claramente. Em outros livros ou textos sagrados só a Idade Moderna descobriu dificuldades, antes não suspeitadas, depois que um melhor conhecimento dos antigos tempos fez surgir problemas que fazem penetrar mais adentro no assunto. Por isso erradamente vão dizendo alguns, mal informados do estado da ciência bíblica, que ao exegeta católico dos nossos dias nada resta a acrescentar a quanto produziu a antiguidade cristã; pelo contrário, a verdade é que o nosso tempo tem chamado a atenção para muitas coisas que requerem nova investigação e novo exame e estimulam fortemente a atividade do exegeta.

Natureza e efeitos da inspiração divina


19 E realmente a nossa época, se por um lado acumula novos problemas e dificuldades, por outro, graças a Deus, oferece à exegese novos recursos e subsídios. Entre esses merece especial referência o fato de os teólogos católicos, seguindo a doutrina dos santos Padres e, principalmente, do doutor angélico e comum, terem indagado e exposto com mais precisão e fineza do que nos séculos passados, a natureza e efeito da inspiração bíblica. Partindo nas suas investigações do princípio que o hagiógrafo ao escrever o livro sagrado é órgão ou instrumento do Espírito Santo, mas instrumento vivo e racional, observam justamente que ele sob a moção divina usa das suas faculdades e energias de tal modo, que todos podem facilmente reconhecer do livro por ele composto "qual a sua índole própria, e como que as feições e traços característicos da sua fisionomia".(28) Procure por conseguinte o intérprete distinguir com todo o cuidado, sem descurar nenhuma luz fornecida pelas recentes investigações, qual a índole própria e condição social do autor sagrado, em que tempo viveu, de que fontes, escritas ou orais, se serviu, que formas de dizer empregou. Assim poderá conhecer melhor quem foi o hagiógrafo e o que quis dizer no seu escrito. Porque, enfim, ninguém ignora que a norma suprema da interpretação é indagar e definir que coisa se propôs dizer o escritor, como egregiamente adverte santo Atanásio: "Aqui, como em todos os outros passos da Escritura divina, deve-se notar diligente e fielmente em que ocasião falou o Apóstolo, qual o destinatário e qual o motivo de escrever; não seja que, ignorando essas coisas ou tomando umas por outras, nos desviemos do pensamento do autor".(29)

(28) Cf. Bento XV, Enc. Spiritus Paraclitus: Acta Ap. Sedis 12(1920), p. 390; Ench. Bibl. n. 461.
(29) Contra Arianos, I, 54, PG 26,123.

Importância do gênero literário, especialmente na história


20 Ora, qual o sentido literal de um escrito, muitas vezes não é tão claro nas palavras dos antigos orientais como nos escritores do nosso tempo. O que eles queriam significar com as palavras não se pode determinar só pelas regras da gramática e da filologia, nem só pelo contexto; o intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do Oriente, e com o auxílio da história, da arqueologia; etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas. De fato os antigos orientais, para exprimir os seus conceitos, nem sempre usaram das formas ou gêneros de dizer de que nós hoje usamos; mas sim daqueles que estavam em uso entre os seus contemporâneos e conterrâneos. Quais eles fossem não o pode o exegeta determinar a priori, mas só por meio de um diligente exame das antigas literaturas orientais. Esse estudo, feito com maior cuidado e diligência nos últimos decênios, mostrou mais claramente quais as formas de dizer empregadas naqueles antigos tempos quer nas composições poéticas, quer na legislação ou na história. A mesma investigação demonstrou já luminosamente que o povo de Israel, entre todas as antigas nações do Oriente, ocupa um lugar eminente e singular no escrever da história, quer pela antiguidade quer pela fiel narração dos fatos, prerrogativas essas que em verdade se podem deduzir do carisma da divina inspiração e do particular fim religioso da história bíblica. Contudo ninguém que tenha um conceito justo da inspiração bïblica poderá estranhar que também nos autores sagrados, como nos outros antigos, se encontrem certos modos de expor e contar, certos idiotismos próprios, especialmente das línguas semíticas, certas expressões aproximativas ou hiperbólicas e talvez paradoxais, que servem para gravar as coisas mais firmemente na memória. Nenhum dos modos de falar de que entre os antigos e especialmente entre os orientais se servia a linguagem para exprimir o pensamento, pode dizer-se incompatível com os Livros Santos, uma vez que o gênero adotado não repugne à santidade e verdade de Deus. Advertiu-o já o doutor angélico com a sua costumeira perspicácia por estas palavras: "Na Escritura as coisas divinas nos são apresentadas ao modo usual, humano".(30) Como o Verbo substancial de Deus se fez semelhante aos homens em tudo "exceto o pecado",(31) assim também a palavra de Deus expressa em línguas humanas assemelhou-se em tudo à linguagem humana, exceto o erro. Nisto consiste aquela providencial "condescendência" (sinkatábasis)de Deus, que já são João Crisóstomo exaltou eloqüentemente e que tantas vezes assegurou encontrar-se nos Livros Santos.(32)

(30) Comment. ad. Hebr. cap. I, lectio 4.
(31)
He 4,15.
(32) Cf. v, gr. In Gen. I, 4: PG 53, 34-35; In Gen, II, 21: PG 53, 121; In Gen., III, 8: PG 53, 135; Hom. 15 in Ioan., ad I,18: PG 59, 95s.

A determinação do gênero literário


21 Portanto o exegeta católico, para corresponder às hodiernas exigências dos estudos bíblicos, ao expor a Sagrada Escritura, e ao mostrá-la e demonstrá-la imune de qualquer erro, use com a devida prudência também deste meio, examinando quanto possa ajudar a verdadeira e genuína interpretação a forma ou gênero literário empregado pelo hagiógrafo; e persuada-se que não pode descurar esta parte do seu ofício sem grande prejuízo da exegese católica. Assim, para citar um só exemplo, quando alguns presumem acusar os autores sagrados de erro histórico ou de inexatidão em referir certos fatos, examinando bem vê-se que se trata simplesmente de modos de falar ou narrar próprios dos antigos, correntemente usados para trocar idéias e que realmente se aceitavam como lícitos no trato ordinário. Quando, por conseguinte, tais modos de falar se encontram na divina palavra, que se exprime em linguagem humana para os homens, pede a justiça que não sejam tachados de erro mais do que quando empregados no uso cotidiano. Conhecendo, pois, e avaliando devidamente os modos e arte de falar e escrever dos antigos poderão resolver-se muitas objeções que se fazem contra a verdade e valor histórico das divinas Escrituras; além de que esse estudo ajudará muito a uma mais completa e luminosa compreensão do pensamento do Autor sagrado.

Estudo das antiguidades bíblicas e conveniência de o promover


22 Portanto os nossos especialistas de estudos bíblicos atendam também com a devida diligência a este ponto, nem desprezem nenhuma descoberta da arqueologia ou da história antiga ou da ciência das antigas literaturas, que possa servir ao melhor conhecimento da mentalidade dos antigos escritores, do seu modo e arte de raciocinar, narrar e escrever. E neste campo saibam também os seculares católicos que não só contribuirão para o progresso das ciências profanas, senão que, também, prestarão um assinalado serviço à causa cristã, se com a devida diligência e aplicação se derem à exploração e estudo da antiguidade, e concorrerem assim para a boa solução de problemas até agora ainda mal solucionados e obscuros. Pois todo o conhecimento humano; embora não sagrado, por isso mesmo que é uma participação finita da infinita ciência de Deus, tem já de per si uma sua dignidade e excelência própria; mas eleva-se a uma nova e mais alta dignidade e quase consagração, quando se ocupa em fazer brilhar com clara luz as coisas divinas.

5. Como tratar as questões mais difíceis

Valor histórico da Bíblia


23 Os progressos da investigação da antiguidade oriental, de que falamos, o estudo mais minucioso do texto original, o conhecimento mais vasto e perfeito das línguas bíblicas e das orientais em geral, deram em resultado, com o divino auxílio, que muitas das questões, que ao tempo de nosso predecessor Leão XIII, os críticos estranhos ou mesmo adversos à Igreja levantavam contra a autenticidade, antiguidade, integridade, e valor histórico dos Livros Santos, estão hoje completamente resolvidas e liquidadas. É que os exegetas católicos manejando retamente as mesmas armas da ciência de que os adversários não raro abusavam, encontraram interpretações conformes a doutrina católica e a genuína tradição, e que, ao mesmo tempo, parecem resolver perfeitamente as dificuldades, tanto as que os antigos nos deixaram sem solução, como as que de novo criaram as descobertas das modernas investigações. Em conseqüência vemos que o crédito da Bíblia e do seu valor histórico, um tanto abalado na opinião de alguns por tantos ataques, hoje está plenamente restabelecida entre os católicos; antes não faltam escritores acatólicos que, em conseqüência de estudos feitos com seriedade e ânimo desapaixonado, chegaram a abandonar as opiniões dos modernos, para tornar, ao menos em alguns pontos, às antigas sentenças. Essa mudança deve-se, em grande parte, ao trabalho indefesso dos comentadores católicos, que sem se deixarem descoroçoar das dificuldades e obstáculos de toda a espécie, procuraram com todo o afinco aproveitar quanto as modernas investigações dos sábios nos vários campos da arqueologia, da história, da filologia, forneciam para resolver as novas questões.

Dificuldades ainda não resolvidas ou insolúveis


24 Não é, contudo, para admirar se não se venceram nem resolveram já todas as dificuldades, mas há ainda hoje graves questões que não pouco agitam os espíritos dos católicos. Não é caso para desanimar; basta refletir que nos estudos humanos sucede como nas coisas naturais: que crescem pouco a pouco e não se colhe fruto senão depois de muito trabalho. Assim precisamente sucedeu que a muitas questões controversas, não resolvidas e indecisas nos tempos passados, só nos nossos dias com o progresso dos estudos se encontrou felizmente solução. Pode-se, pois, esperar que também as que hoje nos parecem sumamente complicadas e dificílimas, com uma constante aplicação virão a ser um dia plenamente dilucidadas. E se a desejada solução tardar muito, de modo que não possamos nós ver, mas esteja reservado aos vindouros o feliz resultado, não é isso razão para ninguém se lamentar, porque deve valer também para nós o que ao seu tempo advertiam os Padres e nomeadamente santo Agostinho:(33) ter Deus semeado de dificuldades os Livros Santos por ele inspirados, para nos estimular a lêlos e perscrutá-los com maior aplicação e para que, conhecendo por experiência o limitado da nossa inteligência, tivéssemos um salutar exercício de humildade. Não haveria, portanto, razão de nos admirarmos, se a uma ou outra questão não se chegasse nunca a achar resposta plenamente satisfatória, porque se trata de matérias obscuras e demasiado remotas do nosso tempo e da nossa experiência; e porque também a exegese, como as outras disciplinas mais importantes, pode ter os seus segredos inacessíveis à nossa mente e que nenhum esforço conseguirá penetrar.

(33) Cf. s. Agostinho, Epist . 149 ad Paulinum, n. 34: PL 33, 644; De diversis quaestionibus, q. 53, n. 2: PL 40; 36; Enarr. in Ps.146, n.12: PL 37,1907.

A interpretação da Igreja e o progresso da exegese


25 Este estado de coisas não é motivo para que o intérprete católico, animado de amor efetivo e forte para com a sua ciência, e sinceramente dedicado à santa madre Igreja, deixe de arcar uma e outra vez com as questões difíceis até hoje insolúveis, não só para rebater as objeções dos adversários, mas também para ver se encontra uma solução positiva e sólida, em harmonia com a doutrina tradicional da Igreja, especialmente com a da inerrância da Sagrada Escritura, e que satisfaça convenientemente às conclusões certas das ciências profanas. E todos os demais filhos da Igreja lembrem-se que devem julgar não só com justiça, mas, com a maior caridade as fadigas desses valorosos operários da vinha do Senhor; guardando-se daquele zelo pouco prudente, que crê dever atacar ou declarar suspeita qualquer novidade unicamente pelo fato de o ser. Tenham presente, sobretudo, que nas diretrizes e leis dadas pela Igreja se trata da doutrina relativa à fé e aos costumes; e que entre as muitas coisas que se lêem nos Livros Santos legais, históricos, sapienciais e proféticos, poucas são aquelas cujo sentido tenha sido declarado pela autoridade da Igreja, nem são mais numerosas aquelas das quais tenhamos a sentença unânime dos Padres. Restam pois muitas e muito importantes em cuja discussão e explicação se pode e deve exercitar livremente o engenho e perspicácia dos intérpretes católicos, para que cada um pela sua parte contribua para a comum utilidade, para o progresso das ciências sagradas, e para a defesa e honra da Igreja. Essa verdadeira liberdade dos filhos de Deus, que se atém fielmente à doutrina da Igrej a e acolhe e aproveita com gratidão, como dom de Deus, as conquistas da ciência profana, quando favorecida e confortada pela boa vontade de todos, é a condição e a fonte de todo o fruto verdadeiro e de todo o sólido progresso na ciência católica, como egregiamente adverte nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII, onde diz: "Se não se salva a concórdia dos espíritos, e não se mantêm firmemente os princípios, não se podem esperar grandes progressos dos vários estudos que muitos façam nesta disciplina".(34)

(34) Cart. Apost. Vigilantiae; Leão XIII, Acta 22, p. 237; Ench. Bibl. n.136.

6. Uso da Sagrada Escritura na instrução dos fiéis

Vários modos de usar da Escritura no sagrado ministério


26 Considerando as imensas fadigas abraçadas pela exegese católica durante quase dois mil anos, para que a palavra de Deus, comunicada aos homens nas Sagradas Letras, se compreenda cada dia mais perfeitamente e mais ardentemente se ame, surge espontânea a convicção de que os fiéis e particularmente os sacerdotes têm o grave dever de aproveitar larga e santamente aquele tesouro acumulado durante tantos séculos pelos maiores talentos. Deus não deu aos homens os Livros Santos para satisfazer a sua curiosidade, ou para lhes fornecer matéria de estudo e investigação, mas, como adverte o Apóstolo, para que estes divinos oráculos nos pudessem "instruir para a salvação pela fé em Jesus Cristo" e para que "seja perfeito o homem de Deus, bem armado para toda a obra boa".(35) Portanto os sacerdotes que por oficio devem procurar a eterna salvação dos fiéis, depois de terem estudado diligentemente as sagradas páginas, e de as terem assimilado com a oração e meditação, distribuam com o devido zelo nos sermões, homilias e práticas as celestes riquezas da divina palavra; confirmem a doutrina cristã com sentenças dos Livros Santos, ilustrem-na com os preclaros exemplos da história sagrada, nomeadamente do evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo; e tudo isto, evitando diligente e escrupulosamente as acomodações arbitrárias e estiradas, verdadeiro abuso e não uso da divina Palavra, - exponham-no com tal facúndia e clareza, que os fiéis não só se movam e afervorem a melhorar a própria vida, mas concebam suma veneração para com a Sagrada Escritura. A mesma veneração procurem os sagrados pastores instilar e aperfeiçoar cada vez mais nos fiéis comados ao seu zêlo pastoral, fomentando todas as empresas de homens apostólicos que louvavelmente se esforçam por excitar e fomentar entre os católicos o conhecimento e amor dos Livros Santos. Favoreçam pois e auxiliem as associações que têm por fim difundir entre os fiéis exemplares da Sagrada Escritura, particularmente dos Evangelhos, e procurar que nas famílias cristãs se leiam regularmente todos os dias com piedade e devoção; recomendem eficazmente com palavra e exemplo, onde o consente a Liturgia, a Sagrada Escritura traduzida nas línguas modernas com a aprovação da autoridade eclesiástica; façam eles próprios conferências ou lições públicas de assuntos bíblicos, ou encarreguem de as fazer a outros oradores bem versados na matéria. As revistas que com tanto louvor e fruto se publicam nas várias partes do mundo para versar cientificamente as questões bíblicas, para adaptar os resultados daquelas investigações ao sagrado ministério e ao espiritual aproveitamento dos fiéis, procurem todos os ordinários, quanto lhes for possível, ampará-las e difundi-las nas diversas classes dos seus rebanhos. E persuadam-se que tudo isto e o mais que um zelo apostólico e um sincero amor da divina Palavra saberá encontrar para obter tão sublime fim, será para eles um auxílio eficaz na cura das almas.

(35) Cf.
2Tm 3,15 2Tm 3,17.

Ensino da Sagrada Escritura nos seminários


27 Mas quem não vê que tudo isto não podem os sacerdotes realizá-lo devidamente, se eles próprios não beberam, durante a vida dos seminários, um prático e perene amor à Sagrada Escritura. Por isso os bispos, pelo cuidado paterno dos seminários que lhes incumbe, velem atentamente porque também neste ponto nada se omita de quanto pode concorrer para a consecução do mesmo fim. Os professores de Sagrada Escritura, nos seminários, dêem todo o curso bíblico de tal modo que infundam nos jovens destinados ao sacerdócio e ao sagrado ministério da divina palavra aquele conhecimento e amor das Sagradas Escrituras sem o qual vão é esperar copiosos frutos de apostolado. Portanto, na exegese façam sobressair principalmente o conteúdo teológico, evitando as discussões supérfluas, e omitindo tudo o que serve mais a apascentar a curiosidade do que a fomentar a verdadeira ciência e a sólida piedade; exponham tão solidamente o sentido literal e especialmente o teológico, declarem-no com tal maestria, inculquem-no com tal calor, que de algum modo se verifique nos seus alunos o que sucedeu aos discípulos de Emaús, os quais ouvindo as palavras do divino Mestre exclamaram: "Não sentíamos nós o coração o arder, enquanto ele nos explicava as Escrituras?"(36) Sejam assim as divinas Escrituras para os futuros sacerdotes da Igreja fonte pura e perene da própria vida espiritual, alimento e alma do ofício da pregação que os espera. Se os professores desta importantíssima matéria, nos seminários, conseguirem esse resultado, alegrem-se e convençam-se de que contribuíram muito para a salvação das almas, para o progresso da religião católica, para a honra e glória de Deus e realizaram uma obra eminentemente apostólica.

(36)
Lc 24,32.

Jesus Cristo, salvador da humanidade, centro da Escritura


28 Tudo o que temos dito, veneráveis irmãos e amados filhos, se vale para todos os tempos, muito mais necessário é nos lastimosos tempos que atravessamos, quando quase todos os povos e nações se vêem submergidos num mar de calamidades, quando uma guerra horrível acumula ruínas sobre ruínas, carnificinas sobre carnificinas, quando com o atear de ódios implacáveis entre os povos vemos com imensa dor extinto em muitos todo o sentimento não só de moderação e caridade cristã, mas de simples humanidade. A essas feridas mortais do consórcio humano quem pode dar remédio senão Aquele a quem o príncipe dos apóstolos, cheio de amor e confiança, dirigia aquelas palavras: "Senhor, a quem havemos de ir? Tu tens palavras de vida eterna".(37) A esse misericordiosíssimo Redentor nosso devemos, pois, com todas as forças, reconduzir todos os homens. Ele é o divino consolador dos aflitos; ele que ensina a todos, tanto às autoridades como aos súditos, a verdadeira honradez, a incorrupta justiça, e a generosa caridade. Ele enfim, e somente ele, que pode ser sólido fundamento e esteio seguro de paz e tranqüilidade, pois que "ninguém pode lançar outro fundamento além daquele que está já lançado, e que é Cristo Jesus". (38) Deste autor da salvação, Cristo, tanto será nos homens mais perfeito o conhecimento, tanto mais intenso o amor, tanto mais fiél a imitação, quanto maior for o entusiasmo com que se dêem ao conhecimento e à meditação das Sagradas Escrituras, especialmente do Novo Testamento. Pois como diz o Estridonense: "a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo";(39)e "se há coisa neste mundo que sustenha o sábio e o convença a permanecer de ânimo sereno em meio das tribulações e tempestades do mundo, penso que é em primeiro lugar a meditação e ciência das Escrituras".(40) Delas os cansados e acabrunhados haurirão verdadeiras consolações e força divina para sofrer e suportar corn paciência as adversidades e desventuras; delas, dos santos Evangelhos, a todos se mostra Cristo sumo e perfeito exemplar de justiça, de caridade e de misericórdia; e para todo o gênero humano jorram as fontes da divina graça, sem a qual, quando desprezada e descurada, nem os povos nem os regedores dos povos poderão jamais obter ou consolidar a tranqüilidade do estado nem a concórdia dos espíritos; delas, enfim, aprenderão todos a Cristo, "que é cabeça de todo o principado e potestade"(41) e que "por Deus foi feito nossa sapiência, justiça, santificação e redenção".(42)

(37)
Jn 6,69.
(38) 1Co 3,11.
(39) S. Jerônimo in Isaiam, prologus: PL 24,17.
(40) Id., in Ephesios, prologus, PL 26, 439.
(41) Col 2,10.
(42) 1Co 1,30.


CONCLUSÃO


EXORTAÇÃO A QUANTOS CULTIVAM OS ESTUDOS BÍBLICOS



29 Expostas estas considerações e recomendações relativas à adaptação dos estudos da Sagrada Escritura às necessidades atuais, só resta, veneráveis irmãos e amados filhos, que a quantos cultivam os estudos bíblicos e, como filhos devotos da Igreja, seguem fielmente os seus ensinamentos e diretrizes, com paterno afeto façamos as nossas congratulações por terem sido chamados a múnus tão sublime, e os exortemos e animemos a prosseguir com toda a diligência e esmero e cada dia com novas energias a obra felizmente começada. Sublime múnus dizemos: pois que coisa mais sublime do que investigar, explicar, expor aos fiéis, defender dos infiéis a própria palavra de Deus, por inspiração do Espírito Santo, dada aos homens? Sustenta-se com este alimento espiritual e nutre-se a alma do mesmo intérprete "avivando a fé, consolando a esperança, acendendo a caridade".(43) "Viver em meio dessas coisas, meditá-las, não saber mais nada, nem mais nada procurar, não vos parece que é já, estando ainda na terra, morar no céu?"(44) Apascentem-se também com esse mesmo alimento as almas dos féis, para dele haurirem conhecimento e amor de Deus, aproveitamento e felicidade espiritual. Deêm-se, pois, com todo o empenho a esta santa ocupação os expositores da divina palavra. "Orem para entender".(45) Trabalhem para penetrar cada vez mais profundamente nos segredos das Sagradas Escrituras; depois ensinando e pregando franqueiem também aos demais os tesouros da divina palavra. O que nos séculos passados realizaram com grande fruto aqueles ilustres intérpretes da Sagrada Escritura, procurem emulá-lo os de hoje segundo a própria capacidade; de modo que, como no passado, assim também no presente tenha a Igreja doutores exímios na exposição das divinas Escrituras; e os fiéis, graças a sua ação e trabalho, recebam delas toda a luz, conforto e alegria. Nesse ofício, de certo árduo e grave, tenham também eles como sua "consolação os Livros santos"(46) e lembrem-se do prêmio que os espera, pois que "os doutos brilharão como o esplendor do firmamento e os que ensinam a muitos a justiça como estrelas por toda a eternidade".(47)


30 Entretanto - enquanto a todos os filhos da Igreja, nomeadamente aos professores de Sagrada Escritura, ao clero em formação, e aos oradores sagrados ardentemente desejamos que meditando de contínuo a palavra de Deus provem quão bom e suave é o Espírito do Senhor, (48) - a todos e cada um de vós, veneráveis irmãos e amados filhos, como penhor das graças celestes e atestado da nossa paterna benevolência, concedemos, com todo o afeto no Senhor, a bênção apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 30 dias do mês de setembro, festa de são Jerônimo, Doutor Máximo na exposição das Sagradas Escrituras, do ano de 1943, V do nosso Pontificado.



PIO PP. XII




Notas

(*) Em 30 de setembro de 1943, por motivo do cinqüentenário da encíclica "Providentissimus Deus"; o Santo Padre Pio XII publicou a seguinte encíclica sobre os estudos bíblicos. Por sua extensão, e pela admirável clareza com que expõe as normas que devem ser observadas no uso da Sagrada Escritura, o importante documento adquire o alcance de uma verdadeira Carta Magna em matéria de estudos e apostolado bíblicos.

(43) Cf. s. Agostinho, Contra Faustum XIII,18: PL 42, 294; CSEL, 25, p. 400.
(44) S. Jerônimo, Ep. 53,10: PL 22, 549; CSEL.54, p. 463.
(45) S. Agostinho, De doctr. christ. III, 56: PL 34, 89.
(46)
1M 12,9.
(47) Da 12,3.
(48) Cf. Sg 12,1.






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