Dominum et vivificantem PT 42

5. «O sangue que purifica a consciência»

42 Dissémos que, no ponto culminante do mistério pascal, o Espírito Santo é definitivamente revelado e tornado presente de uma maneira nova. Cristo ressuscitado diz aos Apóstolos: «Recebei o Espírito Santo». Deste modo, é revelado o Espírito Santo, porque as palavras de Cristo constituem a confirmação das promessas e dos anúncios do discurso do Cenáculo. E por isso mesmo o Paráclito é tornado presente de uma maneira nova. Ele, na realidade, actuava já desde o início no mistério da criação e ao longo de toda a história da Antiga Aliança de Deus com o homem. A sua acção foi plenamente confirmada pela missão do Filho do homem como Messias, que veio pelo poder do Espírito Santo. No ápice da missão messiânica de Jesus, o Espírito Santo torna-Se presente no mistério pascal em toda a sua subjectividade divina: como Aquele que deve continuar agora a obra salvífica radicada no sacrifício da Cruz. Esta obra, sem dúvida, foi confiada por Jesus a homens: aos Apóstolos e à Igreja. No entanto, nestes homens e por meio deles, o Espírito Santo permanece o transcendente sujeito protagonista da realização desta obra, no espírito do homem e na história do mundo: Ele, o Paráclito invisível e, simultaneamente, omnipresente! O Espírito que «sopra onde quer». 159

As palavras pronunciadas por Cristo ressuscitado, no «primeiro dia depois do sábado», dão particular relevo à presença do Paráclito-Consolador, como Aquele que «convence o mundo quanto ao pecado, quanto à justiça e quanto ao juízo». Só com esta referência se explicam, efectivamente, as palavras que Jesus põe em relação directa com o «dom» do Espírito Santo aos Apóstolos. Ele diz: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos». 160 Jesus assim confere aos Apóstolos o poder de perdoar os pecados, para que eles o transmitam aos seus sucessores na Igreja. Todavia, este poder, concedido aos homens, pressupõe e inclui a acção salvífica do Espírito Santo. Tornando-Se «luz dos corações» 161 — isto é, das consciências — o Espírito Santo «convence quanto ao pecado», ou seja, leva o homem a conhecer o seu mal e, ao mesmo tempo, orienta-o para o bem. Graças à multiplicidade dos seus dons — pelo que Ele é invocado como o «septiforme» — o poder salvífico de Deus pode atingir toda a espécie de pecados do homem. Na realidade, como diz São Boaventura, «todos os males são destruídos, ao mesmo tempo que são proporcionados todos os bens». 162

Sob o influxo do Consolador, realiza-se, portanto, a conversão do coração humano, que é a condição indispensável para o perdão dos pecados. Sem uma verdadeira conversão, que implica uma contrição interior, e sem um sincero e firme propósito de mudança, os pecados permanecem «não-perdoados» (retidos), como diz Jesus e, com Ele, toda a Tradição da Antiga e da Nova Aliança. Com efeito, as primeiras palavras pronunciadas por Jesus no início do Seu ministério, segundo o Evangelho de São Marcos, são as seguintes: «Convertei-vos e acreditai no Evangelho». 163 Temos uma confirmação desta exortação no «convencer quanto ao pecado» que o Espírito Santo empreende, de uma maneira nova, em virtude da Redenção operada pelo Sangue do Filho do homem. Por esta razão a Epístola aos Hebreus afirma que este «sangue purifica a consciência». 164 Portanto, este sangue abre ao Espírito Santo, em certo sentido, o caminho para o íntimo do homem, isto é, para o santuário das consciências humanas.

159 Cf
Jn 3,8
160 Jn 20,22 5.
161 Cf. Sequêcia Veni, Sancte Spiritus.
162 S. BOAVENTURA, De septem donis Spiritus Sancti, Collatio II, 3: Ad Claras Aquas, V, 463.
163 Mc 1,15.
164 Cf. He 9,14.



43 O Concílio Vaticano II recordou a doutrina católica sobre a consciência, ao falar da vocação do homem e, em particular, da dignidade da pessoa humana. É a consciência, precisamente, que determina de modo específico essa dignidade. Ela, efectivamente, é «o centro mais secreto do homem, o santuário onde ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa no seu íntimo». Voz que, claramente ... «ressoa aos ouvidos do coração: faz isto, evita aquilo». Tal capacidade de ordenar o bem e proibir o mal, inserida pelo Criador no homem é a propriedade principal do sujeito pessoal. Mas, ao mesmo tempo, «no fundo da sua consciência o homem descobre a presença de uma lei, que ele não impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer». 165 A consciência, portanto, não é uma fonte autónoma e exclusiva para decidir o que é bom e o que é mau; pelo contrário, nela está inscrito profundamente um princípio de obediência relacionado com a norma objectiva, que fundamenta e condiciona a conformidade das suas decisões com os mandamentos e as proibições que estão na base do comportamento humano, como já transparece naquela página do Livro do Génesis, a que fizemos referência. 166 Precisamente neste sentido, a consciência é o «santuário íntimo» onde «a voz de Deus se faz ouvir». E é a «voz de Deus» sempre, mesmo quando o homem reconhece exclusivamente nela o princípio da ordem moral de que humanamente não se pode duvidar, eventualmente sem referência directa ao Criador: a consciência encontra sempre o seu fundamento e a sua justificação nesta referência.

O «convencer quanto ao pecado», sob o influxo do Espírito da verdade, de que fala o Evangelho, não pode realizar-se no homem por outro meio que não seja o da consciência. Se a consciência for recta, ela servirá «para resolver segundo a verdade os problemas morais, que se apresentam tanto na vida individual, como na vida social». Então, «as pessoas e os grupos sociais estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objectivas da moralidade». 167

O fruto da consciência recta é, primeiro que tudo, o chamar pelo seu nome o bem e a mal, como faz, por exemplo, a mesma Constituição pastoral a que acabámos de aludir: «Tudo aquilo que se opõe à própria vida, como sejam os homicídios de qualquer espécie, os genocídios, os abortos, a eutanásia e mesmo o suicídio voluntário; tudo aquilo que constitui uma violação da integridade da pessoa humana, como sejam as mutilações, as torturas morais ou físicas, as pressões psicológicas; tudo aquilo que ofende a dignidade do homem, como sejam as condições infra-humanas de vida, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravatura, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens, ou ainda as condições de trabalho degradantes, que reduzem os operários a meros instrumentos de lucro, sem ter em conta a sua personalidade livre e responsável». E, depois de ter chamado pelo seu nome os múltiplos pecados tão frequentes e difundidos no nosso tempo, acrescenta: «Todas estas coisas e outras semelhantes são, na verdade, uma infâmia; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais os que a elas se entregam do que aqueles que sofrem a injúria; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador». 168

Ao chamar pelo nome os pecados que mais desonram o homem, e demonstrando que eles são um mal moral que influi negativamente sobre qualquer balanço do progresso da humanidade, o Concílio apresenta tudo isso como uma etapa «de uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas», que caracteriza «toda a vida humana, quer individual quer colectiva». 169 A Assembleia do Sínodo dos Bispos de 1983, sobre a reconciliação e a penitência, apresentou ainda em termos mais precisos o significado pessoal e social do pecado do homem. 170

165 Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
GS 16.
166 Cf. Gn 2,9 Gn 2,17.
167 CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 16.
168 Ibid., GS 27.
169 Cf. Ibid., GS 13.
170 Cf. JOÃO PAULO II, Exort. Apost. pós-sinodal Reconciliatio et Paenitentia (2 de Dezembro de 1984), RP 16: AAS 77 (1985), PP. 213-217.



44 No Cenáculo, na véspera da sua Paixão, e depois na tarde da Páscoa, Jesus Cristo apelou para o Espírito Santo como para Aquele que testemunha que na história da humanidade o pecado continua a existir. Todavia, o pecado está submetido ao poder salvífico da Redenção. O «convencer o mundo quanto ao pecado» é algo que não pára pelo facto de ele ser chamado com o seu nome e identificado por aquilo que é, em toda extensão da sua natureza. Ao convencer o mundo quanto ao pecado, o Espírito da verdade encontra-se com a voz das consciências humanas.

Dessa maneira se chega a por à mostra as raízes do pecado, que se encontram no íntimo do homem, como também evidencia a Constituição pastoral já citada: «Na verdade, os desequilíbrios de que sofre o mundo contemporâneo estão ligados com un desequilíbrio mais fundamental, que se enraíza no coração do homem. São muitos os elementos que se combatem no próprio homem. Por um lado, como criatura, ele experimenta as suas múltiplas limitações; por outro lado, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, ele vê-se a todo o momento constrangido a escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes o que não quer e não faz o que desejaria fazer». 171 O texto conciliar faz aqui referência às palavras de São Paulo que são bem conhecidas. 172

O «convencer quanto ao pecado», que acompanha a consciência humana todas as vezes que ela reflecte em profundidade sobre si mesma , leva, pois, à descoberta das raízes do mesmo pecado no homem, como também dos condicionamentos da própria consciência no curso da história. Reencontramos assim a realidade originária do pecado, da qual já falamos. O Espírito Santo «convence quanto ao pecado» em relação ao mistério do princípio, indicando o facto de que o homem é um ser-criado e que, portanto, está em total dependência ontológica e ética do Criador, e recordando, ao mesmo tempo, a condição pecadora hereditária da natureza humana. Mas o Espírito Santo-Consolador «convence quanto ao pecado» sempre em relação com a Cruz de Cristo. Nesta relação, o cristianismo rejeita toda a «fatalidade» do pecado. «Um duro combate contra os poderes das trevas atravessa, com efeito, toda a história humana; começado nas origens do mundo, durará, como diz o Senhor, até ao último dia», conforme ensina o Concílio. 173 «Mas o Senhor em pessoa veio para libertar o homem e dar-lhe a força». 174 O homem, portanto, longe de se deixar «enredar» na sua condição de pecador, apoiando-se na voz da própria consciência, «deve combater sem tréguas para aderir ao bem; nem pode conseguir a sua unidade interior se não a preço de grandes esforços e com a ajuda da graça de Deus». 175 O Concílio justamente encara o pecado como factor da ruptura, que pesa tanto sobre a vida pessoal como sobre a vida social do homem; mas, ao mesmo tempo, recorda vigorosamente a possibilidade da vitória.

171 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
GS 10.
172 Cf. Rm 7,14-15 Rm 7,19.
173 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 37.
174 Ibid., GS 13.
175 Ibid., GS 37.



45 O Espírito da verdade, que «convence o mundo quanto ao pecado», encontra-se com os esforços da consciência humana, de que falam os textos conciliares de maneira muito sugestiva. Estes esforços da consciência determinam também os caminhos das conversões humanas: voltar as costas ao pecado, para reconstruir a verdade e o amor no próprio coração do homem. Sabe-se que a consciência não só manda ou proíbe, mas julga à luz das ordens e proibições interiores. Ela é também a fonte dos remorsos: o homem sofre interiormente por causa do mal cometido. Não será este sofrimento como que um eco longínquo daquele «arrependimento por ter criado o homem», que o Livro Sagrado, com uma linguagem antropomórfica, atribui a Deus? Um eco daquela «reprovação» que, inscrevendo-se no «coração» da Santíssima Trindade, se traduz na dor da Cruz, na obediência de Cristo até à morte, em virtude do amor eterno? Quando o Espírito da verdade, que «convence o mundo quanto ao pecado», permite à consciência humana participar naquela dor, então a dor da consciência torna-se particularmente profunda, mas também particularmente salvífica. E assim, mediante um acto de contrição perfeita, opera-se a conversão autêntica do coração: é a «metánoia» evangélica.

Os esforços do coração humano, os esforços da consciência, graças aos quais se opera esta «metánoia» ou conversão, são o reflexo do processo pelo qual a reprovação é transformada em amor salvífico, que sabe sofrer. O dispensador escondido desta força de salvação é o Espírito Santo: Ele, que é chamado pela Igreja «luz das consciências», penetra e enche as «profundezas dos corações» humanos. 176 Mediante esta conversão no Espírito Santo, o homem abre-se ao perdão e à remissão dos pecados, como testemunham as palavras pronunciadas por Jesus na tarde da Páscoa. E em todo este admirável dinamismo da conversão-remissão, é comSrmada a verdade daquilo que escreve Santo Agostinho sobre o mistério do homem, ao comentar as palavras do Salmo: «Um abismo chama outro abismo». 177 É exactamente em relação a esta «profundidade abissal» do homem, da consciência humana, que se cumpre a missão do Filho e do Espírito Santo. O Espírito Santo «vem» em virtude da «partida» de Cristo no mistério pascal; vem em cada caso concreto de conversão-remissão, em virtude do sacrifício da Cruz: nele, realmente, «o sangue de Cristo... purifica a nossa consciência das obras mortas, para servir o Deus vivo». 178 Cumprem-se assim, continuamente, as palavras sobre o Espírito Santo apresentado como «um outro Consolador», as palavras dirigidas no Cenáculo aos Apóstolos e indirectamente a todos: «Vós o conheceis porque Ele habita entre vós e em vós estará». 179


176 Cf. Sequência do Pentecostes: « Reple cordis intima ».
177 Cf. S. AGOSTINHO, Enarr. in Ps. XLI, 13: CCL 38, 470: « Que espécie de abismo é este e qual é o abismo que invoca? Se abismo quer dizer profundidade, não pensamos nós, porventura, que o coração do homem é um abismo? O que há, efectivamente, que seja mais profundo do que este abismo? Os homens podem falar, podem ser vistos através das acções que fazem com os seus membros, podem ser ouvidos quando falam; e, no entanto, de quem poderemos nós penetrar o pensamento, ou de quem poderemos nós sondar o coração? ».
178 Cf.
He 9,14.
179 Jn 14,17.


6. O pecado contra o Espírito Santo

46 Tendo em conta tudo o que temos vindo a dizer até agora, tornam-se mais compreensíveis algumas outras palavras impressionantes e surpreendentes de Jesus. Poderemos designá-las como as palavras do «não-perdão». São-nos referidas pelos Sinópticos, a propósito de um pecado particular, que é chamado «blasfêmia contra o Espírito Santo». Elas foram expressas na tríplice redacção dos Evangelistas do seguinte modo:

São Mateus: «Todo o pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. E àquele que falar contra o Filho do homem, ser-lhe-á perdoado; mas, a quem falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo nem no futuro». 180

São Marcos: «Aos filhos dos homens serão perdoados todos os pecados e todas as blasfêmias que proferirem; todavia, quem blasfemar contra o Espírito Santo, jamais terá perdão, mas será réu de pecado eterno». 181

São Lucas: «E a todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do homem, perdoar-se-á; mas a quem tiver blasfemado contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado». 182

Porquê a «blasfêmia» contra o Espírito Santo é imperdoável? Em que sentido entender esta «blasfemia»? Santo Tomás de Aquino responde que se trata da um pecado «imperdoável por sua própria natureza, porque exclui aqueles elementos graças aos quais é concedida a remissão dos pecados». 183

Segundo uma tal exegese, a «blasfêmia» não consiste propriamente em ofender o Espírito Santo com palavras; consiste, antes, na recusa de aceitar a salvação que Deus oferece ao homem, mediante o mesmo Espírito Santo agindo em virtude do sacrifício da Cruz. Se o homem rejeita o deixar-se «convencer quanto ao pecado», que provém do Espírito Santo e tem carácter salvífico, ele rejeita contemporaneamente a «vinda» do Consolador: aquela «vinda» que se efectuou no mistério da Páscoa, em união com o poder redentor do Sangue de Cristo: o Sangue que «purifica a consciência das obras mortas».

Sabemos que o fruto desta purificação é a remissão dos pecados. Por conseguinte, quem rejeita o Espírito e o Sangue permanece nas «obras mortas», no pecado. E a «blasfêmia contra o Espírito Santo» consiste exactamente na recusa radical de aceitar esta remissão, de que Ele é o dispensador íntimo e que pressupõe a conversão verdadeira, por Ele operada na consciência. Se Jesus diz que o pecado contra o Espírito Santo não pode ser perdoado nem nesta vida nem na futura, é porque esta «não-remissão» está ligada, como à sua causa, à «não-penitência», isto é, à recusa radical a converter-se. Isto equivale a uma recusa radical de ir até às fontes da Redenção; estas, porém, permanecem «sempre» abertas na economia da salvação, na qual se realiza a missão do Espírito Santo. Este tem o poder infinito de haurir destas fontes: «receberá do que é meu», disse Jesus. Deste modo, Ele completa nas almas humanas a obra da Redenção, operada por Cristo, distribuindo os seus frutos. Ora a blasfêmia contra o Espírito Santo é o pecado cometido pelo homem, que reivindica o seu pretenso «direito» de perseverar no mal — em qualquer pecado — e recusa por isso mesmo a Redenção. O homem fica fechado no pecado, tornando impossível da sua parte a própria conversão e também, consequentemente, a remissão dos pecados, que considera não essencial ou não importante para a sua vida. É uma situação de ruína espiritual, porque a blasfêmia contra o Espírito Santo não permite ao homem sair da prisão em que ele próprio se fechou e abrir-se às fontes divinas da purificação das consciências e da remissão dos pecados.

180
Mt 12,31 s.
181 Mc 3,28 s.
182 Lc 12,10.
183 S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol. II-II 14,3; cf. S. AGOSTINHO, Epist. 185, 11, 48-49: PL 33, 814-815; S. BOAVENTURA, Comment. in Evan. S. Luc: cap. XIV, 15-16: Ad Claras Aquas, VII, 314 s.



47 A acção do Espírito da verdade, que tende ao salvífico «convencer quanto ao pecado», encontra no homem que esteja em tal situação uma resistência interior, uma espécie de impermeabilidade da consciência. um estado de alma que se diria endurecido em razão de uma escolha livre: é aquilo que a Sagrada Escritura repetidamente designa como «dureza de coração». 184 Na nossa época, a esta atitude da mente e do coração corresponde talvez a perda do sentido do pecado, à qual dedica muitas páginas a Exortação Apostólica Reconciliatio et Paenitentia. 185 Já o Papa Pio XII tinha afirmado que «o pecado do século é a perda do sentido do pecado». 186 E esta perda vai de par com a «perda do sentido de Deus». Na Exortação acima citada, lemos: «Na realidade, Deus é a origem e o fim supremo do homem, e este leva consigo um gérmen divino. Por isso, é a realidade de Deus que desvenda e ilumina o mistério do homem. É inútil, pois, esperar que ganhe consistência um sentido do pecado no que respeita ao homem e aos valores humanos, quando falta o sentido da ofensa cometida contra Deus, isto é, o verdadeiro sentido do pecado». 187

É por isso que a Igreja não cessa de implorar de Deus a graça de que não venha a faltar nunca a rectidão nas consciências humanas, que não se embote a sua sensibilidade sã diante do bem e do mal. Esta rectidão e esta sensibilidade estão profundamente ligadas à acção íntima do Espírito da verdade. Sob esta luz, adquirem particular eloquência as exortações do Apóstolo: «Não extingais o Espírito!». «Não contristeis o Espírito Santo!». 188 Mas sobretudo, a Igreja não cessa de implorar, com todo o fervor, que não aumente no mundo o pecado designado no Evangelho por «blasfêmia contra o Espírito Santo»; e, mais ainda, que ele se desvie da alma dos homens — e como repercussão, dos próprios meios e das diversas expressões da sociedade — deixando espaço para a abertura das consciências, necessária para a acção salvífica do Espírito Santo. A Igreja implora que o perigoso pecado contra o Espírito Santo ceda o lugar a uma santa di sponibilidade para aceitar a missão do Consolador, quando Ele vier para «convencer o mundo quanto ao pecado, quanto à justiça e quanto ao juízo».

184 Cf.
Ps 81,13 [80], 13; Jr 7,24 Mc 3,5.
185 JOÃO PAULO II, Exort. Apost. pós-sinodal Reconciliatio et Paenitentia (2 de Dezembro de 1984), n. RP 18 AAS (1985), PP. 224-228.
186 PIO XII, Radiomensagem ao Congresso Catequístico Nacional dos Estados Unidos da América, em Boston (26 de Outubro de 1946): Discorsi e Radiomessaggi, VIII (1946), 288.
187 JOÃO PAULO II, Exort. Apost. pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro de 1984), n. RP 18 AAS 77 (1985), PP. 225 s.
188 1Th 5,19 Ep 4,30.



48 Jesus, no seu discurso de despedida, uniu estes três domínios do «convencer», como componentes da missão do Paráclito: o pecado, a justiça e o juízo. Eles indicam o âmbito do «mistério da piedade», que na história do homem se opõe ao pecado, ao mistério da iniquidade. 189 Por um lado, como se exprime Santo Agostinho, está o «amor de si mesmo levado até ao desprezo de Deus»; por outro, «o amor de Deus até ao desprezo de si mesmo». 190 A Igreja continuamente eleva a sua oração e presta o seu serviço, para que a história das consciências e a história das sociedades, na grande família humana, não se rebaixem voltando-se para o pólo do pecado, com a rejeição dos mandamentos de Deus «até ao desprezo do mesmo Deus»; mas, pelo contrário, se elevem no sentido do amor em que se revela o Espírito que dá a vida.

Aqueles que se deixam «convencer quanto ao pecado» pelo Espírito Santo, deixam-se também convencer quanto «à justiça e quanto ao juízo». O Espírito da verdade que vem em auxílio dos homens e das consciências humanas, para conhecerem a verdade do pecado, ao mesmo tempo faz com que conheçam a verdade da justiça que entrou na história do homem com a vinda de Jesus Cristo. Deste modo, aqueles que, «convencidos quanto ao pecado», se convertem sob a acção do Consolador, são, em certo sentido, conduzidos para fora da órbita do «juízo»: daquele «juízo» com o qual «o Príncipe deste mundo já está julgado». 191 A conversão, na profundidade do seu mistério divino-humano, significa a ruptura de todos os vínculos com os quais o pecado prende o homem, no conjunto do «mistério da iniquidade». Aqueles que se convertem, portanto, são conduzidos para fora da órbita do «juízo» pelo Espírito Santo», e introduzidos na justiça, que se encontra em Cristo Jesus, e está n'Ele porque a «recebe do Pai», 192 como um reflexo da santidade trinitária. Esta justiça é a do Evangelho e da Redenção, a justiça do Sermão da Montanha e da Cruz, que opera a «purificação da consciência» mediante o Sangue do Cordeiro. É a justiça que o Pai faz ao Filho e a todos aqueles que Lhe estão unidos na verdade e no amor.

Nesta justiça o Espírito Santo, Espírito do Pai e do Filho, que «convence o mundo quanto ao pecado», revela-se e torna-se presente no homem, como Espírito de vida eterna.

189 Cf. JOÃO PAULO II, Exort. Apost. pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro de 1984), nn.
RP 14-22: AAS 77 (1985), pp. 211-233.
190 Cf. S. AGOSTINHO, De Civitate Dei, XIV, 28: CCL 48, 451.
191 Cf. Jn 16,11.
192 Cf. Jn 16,15.



TERCEIRA PARTE - O ESPÍRITO QUE DÁ A VIDA


1. Motivo do Jubileu do ano 2000: Cristo, «que foi concebido do Espírito Santo»

49 O pensamento e o coração da Igreja voltam-se para o Espírito Santo, neste final do século XX e na perspectiva do terceiro Milénio depois da vinda de Jesus Cristo ao mundo, ao mesmo tempo que começamos a olhar para o grande Jubileu, com o qual a mesma Igreja irá celebrar o acontecimento. Essa vinda, de facto, coloca-se na escala do tempo humano, como um acontecimento que pertence à história do homem sobre a terra. A medida do tempo, usada comummente, determina os anos, os séculos e os milénios, segundo decorrem antes ou depois do nascimento de Cristo. Mas é necessário ter presente também que este acontecimento significa, para nós cristãos, segundo o Apóstolo, a «plenitude dos tempos», 193 porque, nele, a história do homem foi completamente penetrada pela «medida» do próprio Deus: uma presença transcendente no «nunc», no Hoje eterno. «Aquele que é, que era e que há-de-vir»; Aquele que é «o Alfa e o Ómega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim». 194 «Com efeito, Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que n'Ele crer não pereça mas tenha a vida eterna». 195 «Ao chegar a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher... para que nós recebêssemos a adopção de filhos». 196 E esta Incarnação do Filho-Verbo deu-se «por obra do Espírito Santo».

Os dois Evangelistas, aos quais ficámos a dever a narração do nascimento e da infância de Jesus de Nazaré, exprimem-se da mesma maneira sobre este ponto. Segundo São Lucas, perante a anunciação do nascimento de Jesus, Maria pergunta: «Como se realizará isso se eu não conheço homem?» E recebe esta resposta: «O Espírito Santo descerá sobre ti e a potência do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer será santo e chamar-se-á Filho de Deus». 197

São Mateus narra directamente: «Ora o nascimento de Jesus foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de habitarem juntos, achou-se que tinha concebido por virtude do Espírito Santo». 198 José, perturbado por este estado de coisas, recebeu num sonho a seguinte explicação: «Não temas receber contigo Maria, tua esposa, pois o que nela se gerou é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados». 199

Assim, a Igreja professa desde as suas origens o mistério da Incarnação, mistério-chave da sua fé, referindo-se ao Espírito Santo. O Símbolo dos Apóstolos exprime-se deste modo: «O qual foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu de Maria Virgem». Não diversamente atesta o Símbolo Niceno-Costantinopolitano: «Incarnou por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem».

«Por obra do Espírito Santo» fez-se homem Aquele que a Igreja, com as palavras do mesmo Símbolo, proclama ser consubstancial ao Pai: «Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado». Fez-se homem «incarnando no seio da Virgem Maria». Eis o que se cumpriu «ao chegar a plenitude dos tempos».

193 Cf.
Ga 4,4.
194 Ap 1,8 Ap 22,13.
195 Jn 3,16.
196 Ga 4,4 s.
197 Lc 1,34 s.
198 Mt 1,18.
199 Mt 1,20 s.



50 O grande Jubileu, com que se concluirá o segundo Milénio, para o qual a Igreja se está a preparar já, tem directamente um perfil cristológico: trata-se, efectivamente, de celebrar o nascimento de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, porém, ele tem um perfil pneumatológico, dado que o mistério da Incarnação se realizou «por obra do Espírito Santo». «Operou-o» aquele Espírito que — consubstancial ao Pai e ao Filho — é, no mistério absoluto de Deus uno e trino, a Pessoa-Amor, o Dom incriado, que é fonte eterna de toda a dádiva que provém de Deus na ordem da criação, o princípio directo e, em certo sentido, o sujeito da autocomunicação de Deus na ordem da graça. O mistério da Incarnação constitui o ápice da dádiva suprema, dessa autocomunicação de Deus.

Com efeito, a concepção e o nascimento de Jesus Cristo são a obra maior realizada pelo Espírito Santo na história da criação e da salvação: a graça suprema — «a graça da união» — fonte de todas as outras graças, como explica Santo Tomás. 200 O grande Jubileu relaciona-se com esta graça e também, se penetrarmos na sua profundidade, com o artífice desta obra, a Pessoa do Espírito Santo.

À «plenitude dos tempos» corresponde, efectivamente, uma particular plenitude da autocomunicação de Deus uno e trino no Esptrito Santo. Foi «por obra do Espírito Santo» que se realizou o mistério da união hipostática, ou seja, da união da natureza divina com a natureza humana, da divindade e da humanidade, na única Pessoa do Verbo-Filho. Quando Maria, no momento da anunciação, pronuncia o seu «fiat»: «Faça-se em mim segundo a tua palavra», 201 ela concebe de modo virginal um homem, o Filho do homem, que é o Filho de Deus. Graças a esta «humanização» do Verbo-Filho, a autocomunicação de Deus atinge a sua plenitude definitiva na história da criação e da salvação. Esta plenitude adquire uma densidade particular e uma eloquência muito expressiva no texto do Evangelho de São João: «O Verbo fez-se carne». 202 A Incarnação de Deus-Filho significa que foi assumida à unidade com Deus não apenas a natureza humana, mas também, nesta, em certo sentido, tudo o que é «carne»: toda a humanidade, todo o mundo visível e material. A Incarnação, por conseguinte, tem também um significado cósmico, uma dimensão cósmica. O «gerado antes de toda criatura», 203 ao incarnar-se na humanidade individual de Cristo, une-se, de algum modo, com toda a realidade do homem, que também é «carne» 204 e, nela, com toda a «carne», com toda a criação.

200 Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol.
III 2,10 III 2,12 III 9,6 III 7,13.
201 Lc 1,38.
202 Jn 1,14.
203 Col 1,15.
204 Cf. por exemplo, Gn 9,11 Dt 5,26 Jb 34,15; Is 40,6 Is 52,10 Ps 145,21 [144], 21; Lc 3,6 1P 1,24.



51 Tudo isto se realiza «por obra» do Espírito Santo; e, por conseguinte, faz parte do conteúdo do grande Jubileu futuro. A Igreja não pode preparar-se para esse Jubileu de outro modo que não seja no Espírito Santo. Aquilo que «na plenitude dos tempos» se realizou por obra do Espírito Santo, só por sua obra pode emergir agora da memória da Igreja. É por sua obra, que isso pode tornar-se presente na nova fase da história do homem sobre a terra: o ano 2000 depois do nascimento de Cristo.

O Espírito Santo, que com a sombra da sua potência cobriu o corpo virginal de Maria, dando assim início à maternidade divina nela, ao mesmo tempo tornou o seu coração perfeitamente obediente pelo que respeita àquela autocomunicação de Deus, que superava qualquer conceito e todas as faculdades do homem. «Bem-aventurada aquela que acreditou»: 205 assim foi saudada Maria, pela sua parente Isabel, também ela «cheia do Espírito Santo».206 Nas palavras de saudação àquela que «acreditou» parece delinear-se um contraste longínquo (mas, na realidade, muito próximo) com relação a todos aqueles de quem Cristo dirá que «não acreditaram». 207 Maria entrou na história da salvação do mundo mediante a obediência da fé. E a fé, na sua essência mais profunda, é a abertura do coração humano diante do Dom: diante da autocomunicação de Deus no Espírito Santo. São Paulo escreve: «O Senhor é espírito, e onde está o espírito do Senhor, aí há liberdade». 208 Quando Deus uno e trino se abre ao homem no Espírito Santo, esta sua «abertura» revela e, ao mesmo tempo, doa à criatura-homem a plenitude da liberdade. Esta plenitude manifesta-se de um modo sublime na fé de Maria, pela sua «obediência de fé»; 209 sim, verdadeiramente, «bem-aventurada aquela que acreditou»!

205
Lc 1,45.
206 Cf. Lc 1,41.
207 Cf. Jn 16,9.
208 2Co 3,17
209 Cf. Rm 1,5.






Dominum et vivificantem PT 42