Christifideles laici PT 44

Evangelizar a cultura e as culturas do homem

44 O serviço à pessoa e à sociedade humana exprime-se e realiza-se através da criação e transmissão da cultura, que, especialmente nos nossos dias, constitui uma das mais graves tarefas da convivência humana e da evolução social. A luz do Concílio, entendemos por « cultura » todos aqueles « meios com que o homem afina e usa os seus múltiplos dons de alma e de corpo; procura submeter ao seu poder, com o saber e o trabalho, o próprio cosmos; torna mais humana a vida social, tanto na família como em toda a sociedade civil, com o progresso do costume e das instituições; enfim, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e mesmo a humanidade inteira, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações ».(162)

Nesse sentido, a cultura deve ser considerada como o bem comum de cada povo, a expressão da sua dignidade, liberdade e criatividade; o testemunho do seu percurso histórico. Em particular, só dentro e através da cultura, é que a fé cristã se torna histórica e criadora de história.

Perante o progresso de uma cultura que aparece divorciada não só da fé cristã mas até dos próprios valores humanos,(163) bem como perante uma certa cultura científica e tecnológica incapaz de dar resposta à premente procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens, a Igreja tem plena consciência da urgência pastoral de se dar à cultura uma atenção toda especial.

Por isso, a Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã. O que o Concílio Vaticano II escreve sobre a relação entre o Evangelho e a cultura representa um facto histórico constante e, simultaneamente, um ideal de acção de singular actualidade e urgência; é um programa empenhativo que se impõe à responsabilidade pastoral da Igreja inteira e, nela, à responsabilidade específica dos fiés leigos: « A boa nova de Cristo renova continuamente a vida e a cultura do homem decaído, combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos ... Desse modo, a Igreja, só com realizar a própria missão, já com isso mesmo estimula e ajuda a civilização e, com a sua actividade, também a litúrgica, educa o homem para a liberdade interior ».(164)

Merecem ser aqui ouvidas de novo certas expressões particularmente significativas da ExortaçãoEvangelii nuntiandi de Paulo VI: « A Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da Mensagem que proclama (cfr.
Rm 1,16 1Co 1,18 1Co 2,4), procura converter, ao mesmo tempo, a consciência pessoal e colectiva dos homens, a actividade a que se dedicam e a vida e o meio concreto que lhes são próprios. Estratos da humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação. Poder-se-ia exprimir tudo isto dizendo: importa evangelizar — não de maneira decorativa, como que aplicando uma verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes — a cultura e as culturas do homem ... A ruptura entre o Evangelho e a cultura é, sem dúvida, o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Importa, assim, envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou, mais exactamente, das culturas ».(165)

O caminho que hoje se privilegia para a criação e a transmissão da cultura é o dos instrumentos da comunicação social. (166) Também o mundo dos « mass-media », na sequência do acelerado progresso das inovações e da influência, ao mesmo tempo planetária e capilar, sobre a formação da mentalidade e do costume, constitui uma nova fronteira da missão da Igreja. Em particular, a responsabilidade profissional dos fiéis leigos neste campo, exercida, tanto a título pessoal como através de iniciativas e instituições comunitárias, deve ser reconhecida em todo o seu valor e apoiada com mais adequados recursos materiais, intelectuais e pastorais.

No uso e na recepção dos instrumentos de comunicação, tornam-se urgentes tanto uma acção educativa em ordem ao sentido crítico, animado da paixão pela verdade, como uma acção de defesa da liberdade, do respeito pela dignidade pessoal, da elevação da autêntica cultura dos povos, com a recusa, firme e corajosa, de toda a forma de monopolização e de manipulação.

Não deve ficar por esta acção de defesa a responsabilidade pastoral dos fiéis leigos: em todos os caminhos do mundo, também nos principais da imprensa, do cinema, da rádio, da televisão e do teatro, deve anunciar-se o Evangelho que salva.

(162) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 53.
(163) Cf. Propositio 35.
(164) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 58.
(165) Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 18-20: AAS 68 (1976), 18-19.
(166) Cf. Propositio 37.


CAPÍTULO IV

OS TRABALHADORES DA VINHA DO SENHOR

Bons administradores da multiforme graça de Deus


A variedade das vocações

45 Segundo a parábola evangélica, o « proprietário » chama os trabalhadores para a sua vinha nasvárias horas do dia: alguns, ao amanhecer; outros, às nove da manhã; outros ainda, por volta do meio dia e das três da tarde; os últimos, cerca das cinco (cf. Mt 20,1 ss.). Ao comentar esta página do Evangelho, São Gregório Magno interpreta as várias horas da chamada relacionando-as com asidades da vida: « é possível aplicar a diversidade das horas — escreve ele — às diversas idades do homem. O amanhecer pode certamente representar, nesta nossa interpretação, a infância. A hora tércia, por sua vez, pode entender-se como sendo a adolescência: o sol dirige-se para o alto do céu, isto é, cresce o ardor da idade. A hora sexta é a juventude: o sol está como que no zénite do céu, isto é, nesta idade reforça-se a plenitude do vigor. A idade adulta representa a hora nona, porque, como o sol declina do seu alto, assim esta idade começa a perder o ardor da juventude. A hora undécima é a idade daqueles que se encontram muito avançados nos anos... Os trabalhadores são, portanto, chamados para a vinha em horas diferentes, como a querer significar que à santidade de vida um é chamado durante a infância, um outro na juventude, um outro quando adulto e um outro na idade mais avançada ».(167)

Podemos também tomar e alargar o comentário de São Gregório Magno referindo-o à extraordinária variedade de presenças na Igreja, todas e cada uma chamadas a trabalhar para o advento do Reino de Deus segundo a diversidade de vocações e da situações, carismas e ministérios. Trata-se de uma variedade ligada, não só à idade, mas também à diferença de sexo e à diversidade dos dons, como igualmente às vocações e às condições de vida; é uma variedade que torna mais viva e concreta a riqueza da Igreja.

(167) S. Gregório Magno, Hom. in Evang. I, XIX, 2: PL 76, 1155.


Jovens, crianças, idosos

Os jovens, esperança da Igreja

46 O Sínodo quis prestar uma atenção especial aos jovens. E justamente. Em tantos países do mundo, eles representam a metade de toda a população e, muitas vezes, a metade numérica do próprio Povo de Deus que vive nesses países. Já sob esse ponto de vista, os jovens constituem uma força excepcional e são um grande desafio para o futuro da Igreja. Nos jovens, efectivamente, a Igreja lê o seu caminho para o futuro que a espera e encontra a imagem e o convite daquela alegre juventude com que o Espírito de Cristo constantemente a enriquece. Nesse sentido, o Concílio definiu os jovens como « esperança da Igreja ».(168)

Na carta que escrevi aos jovens e às jovens do mundo, a 31 de Março de 1985, lê-se: « A Igreja olha para os jovens; antes, a Igreja, de um modo especial, vê-se a si mesma nos jovens, em todos vós e, ao mesmo tempo, em cada uma e em cada um de vós. Foi assim desde o princípio, desde os tempos apostólicos. As palavras de São João na sua Primeira Carta podem dar disso um especial testemunho: «Escrevo a vós, jovens, porque vencestes o maligno. Escrevi-vos a vós, filhinhos, porque conhecestes o Pai... Escrevi-vos a vós, jovens, porque sois fortes, e a palavra de Deushabita em vós» (
1Jn 2,13 ss.)... Na nossa geração, ao fim do segundo milénio depois de Cristo, também a Igreja vê-se a si mesma nos jovens ».(169)

Os jovens não devem ser considerados simplesmente como o objecto da solicitude pastoral da Igreja: são de facto e devem ser encorajados a ser sujeitos activos, protagonistas da evangelização e artífices da renovação social.(170) A juventude é o tempo de uma descobertaparticularmente intensa do próprio « eu » e do próprio « projecto de vida », é o tempo de umcrescimento que deve realizar-se « em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens » (Lc 2,52).

Como disseram os Padres sinodais, « a sensibilidade dos jovens intui profundamente os valores da justiça, da não-violência e da paz. O seu coração está aberto à fraternidade, à amizade e à solidariedade. Deixam-se mobilizar ao máximo em favor das causas que concernem a qualidade da vida e a conservação da natureza. Mas, estão eles também cheios de inquietações, de desilusões, angústias e receios do mundo, para além das tentações próprias do seu estado ».(171)

A Igreja deve reviver o amor de predilecção que Jesus mostrou ao jovem do Evangelho: « Jesus, olhando para ele, amou-o » (Mc 10,21). Por isso, a Igreja não se cansa de anunciar Jesus Cristo, proclamar o Seu Evangelho como a única e superabundante resposta às mais radicais aspirações dos jovens, como a proposta forte e entusiasta de um seguimento pessoal (« vem e segue-Me» (Mc 10,21), que comporta a vivência do amor filial de Jesus pelo Pai e a participação na salvação da humanidade.

A Igreja tem tantas coisas para dizer aos jovens, e os jovens tem tantas coisas a dizer à Igreja.Este diálogo recíproco, que deverá fazer-se com grande cordialidade, clareza e coragem, favorecerá o encontro e o intercâmbio das gerações, e será fonte de riqueza e de juventude para a Igreja e para a sociedade civil. Na sua mensagem aos jovens o Concílio diz: « A Igreja olha para vós com confiança e amor... Ela é a verdadeira juventude do mundo... Olhai para ela e nela encontrareis o rosto de Cristo ».(172)

(168) Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a educação cristã Gravissimum educationis, GE 2.
(169) João Paulo II, Carta Apost. aos jovens e às jovens do mundo, por ocasião do « Ano Internacional da Juventude », 15: AAS 77 (1985), 620-621.
(170) Propositio 52.
(171) Propositio 51.
(172) Conc. Ecum. Vat. II, « Mensagem aos jovens » (8 de Dezembro de 1965): AAS 58 (1965), 18.


As crianças e o reino dos céus

47 As crianças são, certamente, o alvo do amor delicado e generoso do Senhor Jesus: a elas reserva a Sua bênção e, ainda mais, assegura-lhes o Reino dos céus (cf. Mt 19,13-15 Mc 10,14). Em particular, Jesus exalta o papel activo que as crianças têm no Reino de Deus: são o símbolo eloquente e a esplêndida imagem daquelas condições morais e espirituais que são essenciais para se entrar no Reino de Deus e para viver a sua lógica de total abandono ao Senhor: « Em verdade vos digo: se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, não entrareis no Reino dos céus. Pois quem se tornar pequenino como esta criança será grande no Reino dos céus. E quem acolher uma só destas crianças em Meu nome, acolhe-Me a Mim » (Mt 18,3-5 cf. Lc 9,48).

As crianças são a lembrança constante de que a fecundidade missionária da Igreja tem a sua raiz vivificadora, não nos meios e nos merecimentos humanos, mas no dom totalmente gratuito de Deus. A vida de inocência e de graça das crianças, e também os sofrimentos injustos de que são vítimas, são, em virtude da cruz de Cristo, um enriquecimento espiritual para elas e para toda a Igreja: devemos todos tornar mais viva e grata consciência desse facto.

Deve reconhecer-se, além disso, que também à idade da infância e da adolescência se abrem preciosas possibilidades operativas tanto para a edificação da Igreja como para a humanização da sociedade. O que o Concílio diz sobre a presença benéfica e construtiva dos filhos no seio da família « Igreja doméstica »: « Os filhos, como membros vivos da família, também contribuem à sua maneira para a santificação dos pais »,(173) deve repetir-se acerca das crianças em relação à Igreja particular e universal. Já o observava João Gerson, teólogo e educador do século XV, para quem « as crianças e os adolescentes não são por nada uma parte insignificante na Igreja ».(174)

(173) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 48.
(174) J. GERSON, De parvulis ad Christum trahendis: CEuvres complètes, Desclée, Paris 1973, IX, 669.


Os idosos e o dom da sabedoria

48 As pessoas idosas, muitas vezes injustamente tidas por inúteis se não mesmo um peso insuportável, lembro que a Igreja lhes pede e delas espera que continuem a sua missão apostólica e missionária, que não só é possível e obrigatória, mas, de certo modo, tornada específica e original também nessa idade.

A Bíblia gosta de apresentar o idoso como o símbolo da pessoa cheia de sabedoria e de temor de Deus (cf.
Si 25,4-6). Nesse sentido, o « dom » do idoso poderia identificar-se com o de ser, na Igreja e na sociedade, a testemunha da tradição da fé (cf. Ps 44,2 Ex 12,26-27), o mestre de vida (cf. Si 6,34 Si 8,11-12), o obreiro da caridade.

Hoje, o número crescente de idosos nos vários países do mundo e a cessação antecipada da actividade profissional e activa abrem um novo espaço ao trabalho apostólico dos idosos: é um trabalho que deverá ser assumido superando decididamente a tentação de se refugiar nostalgicamente num passado que não volta mais ou de, por motivo das dificuldades encontradas, fugir dos empenhos presentes para o mundo das constantes novidades; e consciencializando-se sempre mais de que a sua função na Igreja e na sociedade não tem absolutamente paragens por razões de idade, mas tão só modalidades novas. Como diz o Salmista: « Até na velhice darão frutos, conservarão a sua seiva e o seu frescor, para anunciar quão justo é o Senhor » (Ps 92,15-16). Repito o que disse durante a celebração do Jubileu dos Idosos: « A entrada na terceira idade deve considerar-se um privilégio: não apenas porque nem todos têm a sorte de atingir essa meta, mas também e sobretudo porque esse é o tempo das possibilidades concretas de pensar melhor no passado, de conhecer e viver com maior profundidade o mistério pascal, de se tornar, na Igreja, exemplo para todo o Povo de Deus... Apesar da complexidade dos problemas que tendes para resolver, as forças que progressivamente se vão enfraquecendo, e apesar das insuficiências das organizações sociais, os atrasos da legislação oficial, as incompreensões de uma sociedade egoísta, vós não estais nem deveis sentir-vos à margem da vida da Igreja, elementos passivos de um mundo em movimento excessivo, mas sujeitos activos de um período humanamente e espiritualmente fecundo da existência humana. Tendes ainda uma missão para cumprir, um contributo a dar. Segundo o plano divino, cada ser humano é uma vida em crescimento, desde a primeira centelha da existência até ao último respiro ».(175)

(175) João Paulo II, Discurso aos grupos da Terceira Idade das Dioceses Italianas (23 de Março de 1984): Insegnamenti, VII, 1 (1984), 744.


Mulheres e homens

49 Os Padres sinodais dedicaram uma atenção especial à condição e ao papel da mulher, num dúplice objectivo: reconhecer e convidar a que todos e mais uma vez reconheçam o indispensável contributo da mulher na edificação da Igreja e no progresso da sociedade; e elaborar, além disso, uma análise mais específica acerca da participação da mulher na vida e na missão da Igreja.

Reportando-se a João XXIII, que vê na tomada de consciência por parte da mulher da própria dignidade e no acesso das mulheres às actividades públicas um sinal dos nossos tempos,(176) os Padres do Sínodo afirmaram repetida e veementemente, perante as mais variadas formas de descriminação e de marginalização a que se submete a mulher pela simples razão de ser mulher, a urgência de defender e de promover a dignidade pessoal da mulher e, portanto, a sua igualdade com o homem.

Se a todos na Igreja e na sociedade pertence esta tarefa, em particular pertence às mulheres, que devem sentir-se empenhadas como protagonistas em primeira linha. Há ainda um enorme esforço a fazer, em muitas partes do mundo e em diversos ambientes, para se destruir aquela injusta e deletéria mentalidade que considera o ser humano como uma coisa, como um objecto de compra e venda, um instrumento do interesse egoísta ou de puro prazer, tanto mais que a primeira vítima dessa mentalidade é precisamente a própria mulher. Pelo contrário, só o claro reconhecimento da dignidade pessoal da mulher constitui o primeiro passo a dar-se para promover a sua plena participação, tanto na vida eclesial como na social e pública. Deve dar-se uma resposta mais ampla e decisiva à exigência feita na Exortação Familiaris consortio acerca das múltiplas descriminações de que são vítimas as mulheres: « que por parte de todos se empreenda uma acção pastoral específica, mais vigorosa e incisiva, para debelá-las definitivamente, por forma a alcançar a plena estima da imagem de Deus que brilha em todos os seres humanos, nenhum excluído ».(177) Na mesma linha, os Padres sinodais afirmaram: « A Igreja, como expressão da sua missão, deve opor-se firmemente a todas as formas de discriminação e de abuso das mulheres ».(178) E ainda: « A dignidade da mulher, gravemente ferida na opinião pública, deve ser recuperada através do respeito efectivo dos direitos da pessoa humana e da prática da doutrina da Igreja ».(179)

Em particular, sobre a participação activa e responsável na vida e na missão da Igreja,sublinhe-se como já o Concílio Vaticano II tenha sido deveras explícito em reclamá-lo: « Já que, nos nossos dias, as mulheres tomam cada vez mais parte activa em toda a vida da sociedade, reveste-se de grande importância uma sua mais larga participação nos vários campos do apostolado da Igreja ».(180)

A consciência de que a mulher, com os dons e as funções que lhe são próprias, tem uma vocação específica própria cresceu e aprofundou-se no período pós — conciliar, encontrando a sua inspiração mais original no Evangelho e na história da Igreja. Para o crente, com efeito, o Evangelho, isto é, a palavra e o exemplo de Jesus Cristo, continua a ser o ponto de referência necessário e decisivo: e é deveras fecundo e inovador também para o actual momento histórico.

Embora não tendo sido chamadas para o apostolado próprio dos Doze e, portanto, para o sacerdócio ministerial, muitas mulheres acompanham Jesus no Seu ministério e dão assistência ao grupo dos Apóstolos (cfr.
Lc 8,2-3); estão presentes ao pé da Cruz (Lc 23,49); assistem à sepultura de Jesus (cfr. Lc 23,55) e, na madrugada de Páscoa, recebem e transmitem o anúncio da ressurreição (cfr. Lc 24,1-10); rezam com os Apóstolos no Cenáculo à espera do Pentecostes (Ac 1,14).

Na peugada do Evangelho, a Igreja das origens diferenciou-se da cultura do tempo e confia à mulher tarefas ligadas à evangelização. Nas suas Cartas, o apóstolo Paulo cita, até pelo nome, numerosas mulheres pelas suas variadas funções no seio e ao serviço das primeiras comunidades eclesiais (cfr. Rm 16,1-15 Ph 4,2-3 Col 4,15 1Co 11,5 1Tm 5,16). « Se o testemunho dos Apóstolos fundamenta a Igreja — disse Paulo VI — o das mulheres contribui para alimentar a fé das comunidades cristãs ».(181)

E como nas origens, assim na evolução sucessiva, a Igreja teve sempre, mesmo se de modos diferentes e com diversas acentuações, mulheres que desempenharam um papel, por vezes decisivo, e realizaram tarefas de considerável valor para a própria IgrejaÉ uma história de imensa operosidade, o mais das vezes humilde e escondida, mas nem por isso menos decisiva para o crescimento e para a santidade da Igreja. É necessário que essa história continue e, mesmo, se alargue e intensifique perante a crescente e universal consciência da dignidade pessoal da mulher e da sua vocação, bem como perante a urgência de uma « nova evangelização » e de uma maior « humanização » das relações sociais.

Recolhendo a herança do Concílio Vaticano II, onde se reflecte a mensagem do Evangelho e da história da Igreja, os Padres do Sínodo formularam, entre outras, esta clara « recomendação »: « é necessário que a Igreja, pela sua vida e pela sua missão, reconheça todos os dons das mulheres e dos homens e os traduza em prática ».(182) E ainda: « Este Sínodo proclama que a Igreja exige o reconhecimento e a utilização de todos esses dons, experiências e aptidões dos homens e das mulheres para que a sua missão se torne mais eficaz (cfr. Congregação da Doutrina da Fé, Instructio de libertate christiana et liberatione, 72) ».(183)

(176) Cf. João XXIII, Encicl. Pacem in terris: AAS 55 (1963), PT 267-268.
(177) João Paulo II, Exort. Ap. Familiaris consortio, FC 24: AAS 74 (1982), 109-110.
(178) Propositio 46.
(179) Propositio 47.
(180) Conc.. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, AA 9.
(181) Paulo VI, Discurso à Comissão do Ano Internacional da Mulher (18 de Abril de 1975): AAS67 (1975), 266.
(182) Propositio 46.
(183) Propositio 47.


Fundamentos antropológicos e teológicos

50 A condição para assegurar a justa presença da mulher na Igreja e na sociedade é a análise mais penetrante e mais cuidada dos fundamentos antropológicos da condição masculina e feminina, de forma a determinar a identidade pessoal própria da mulher na sua relação de diversidade e de recíproca complementariedade com o homem, não só no que se refere às posições que deve manter e às funções que deve desempenhar, mas também e mais profundamente no que concerne a sua estrutura e o seu significado pessoal. Os Padres sinodais sentiram vivamente essa exigência ao afirmarem que « os fundamentos antropológicos e teológicos precisam ser estudados a fundo em vista da solução dos problemas relativos ao verdadeiro significado e à dignidade de ambos os sexos ».(184)

Empenhada na reflexão sobre os fundamentos antropológicos e teológicos da condição feminina, a Igreja intervém no processo histórico dos vários movimentos de promoção da mulher e, descendo às próprias raízes do seu ser pessoal, dá-lhe o seu mais precioso contributo. Mas, antes e sobretudo, a Igreja entende com isso obedecer a Deus que, ao criar o homem « à Sua imagem », « homem e mulher os criou » (
Gn 1,27); e assim entende responder à chamada de Deus que a convida a conhecer, a admirar e a viver o Seu desígnio. É um desígnio que foi « no princípio » indelevelmente impresso no próprio ser da pessoa humana — homem e mulher — e, portanto, nas suas estruturas significativas e nos seus dinamismos profundos. É precisamente esse desígnio, sapientíssimo e amoroso, que deve ser explorado em toda a riqueza do seu conteúdo: é a riqueza que desde o « princípio » se veio progressivamente manifestando e actuando ao longo de toda a história da salvação e que culminou na « plenitude do tempo », quando « Deus mandou o Seu Filho, nascido de mulher » (Ga 4,4). Essa « plenitude » continua na história: a leitura do desígnio de Deus acerca da mulher é feita continuamente e deverá continuar a fazer-se na fé da Igreja, graças também à vida que tantas mulheres cristãs viveram. Sem esquecer o contributo que podem dar as várias ciências humanas e as diferentes culturas: estas, graças a um discernimento iluminado, poderão ajudar a intuir e a definir os valores e as exigências que pertencem à essência perene da mulher e os que estão ligados à evolução histórica das próprias culturas. Como nos recorda o Concílio Vaticano II, « a Igreja afirma que por baixo de todas as mudanças há muita coisa que não muda, por ter o seu fundamento último em Cristo, que é sempre o mesmo: ontem, hoje e nos séculos (cfr. He 13,8) »(185)

Sobre os fundamentos antropológicos e teológicos da dignidade pessoal da mulher debruça-se a Carta Apostólica sobre a dignidade e a vocação da mulher. O documento que retoma, continua e especifica as reflexões da catequese das Quartas-Feiras, dedicada, por muito tempo, à « teologia do corpo », pretende ser, ao mesmo tempo, o cumprimento de uma promessa feita na encíclicaRedemptoris mater (186) e a resposta ao pedido dos Padres sinodais.

A leitura da Carta Mulieris dignitatem, também pelo seu carácter de meditação bíblico-teológica, poderá ser um estímulo para todos, homens e mulheres, e em particular para os que cultivam as ciências humanas e as disciplinas teológicas, a fim de se avançar no estudo crítico e aprofundar sempre mais, na base da dignidade pessoal do homem e da mulher e da sua recíproca relação, os valores e os dons específicos da feminilidade e da masculinidade, não apenas a nível da vivência social, mas também e sobretudo da existência cristã e eclesial.

A meditação sobre os fundamentos antropológicos e teológicos da condição da mulher deve iluminar e guiar a resposta cristã à pergunta tão comum e, por vezes, tão aguda, sobre o «espaço » que a mulher pode e deve ter na Igreja e na sociedade.

Da palavra e do comportamento de Cristo, que são normativos para a Igreja, resulta com grande clareza que nenhuma discriminação existe no plano da relação com Cristo, no qual « não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus » (Ga 3,28) e no plano da participação na vida e na santidade da Igreja, como muito bem afirma a profecia de Joel realizada no Pentecostes: « Eu derramarei o Meu espírito sobre cada homem e profetizarão os vossos filhos e as vossas filhas » (Jl 2,28 cf. Ac 2,17 ss.). Como se lê na Carta Apostólica sobre a dignidade e a vocação da mulher: « Ambos — a mulher como o homem — são objecto, em igual medida, da dádiva da verdade divina e do amor no Espírito Santo. Ambos recebem as Suas "visitas" salvadoras e santificadoras ».(187)

(184) Ibid.
(185) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 10.
(186) A encíclica Redemptoris mater, depois de ter lembrado que a « dimensão mariana da vida cristã assume um relevo peculiar em relação com a mulher e com a sua condição », escreve: « Com efeito, a feminidade está numa relação singular com a Mãe do Redentor, argumento que poderá ser aprofundado noutro lugar. Aqui desejo apenas realçar que a figura de Maria de Nazaré projecta luz sobre a mulher enquanto tal, pelo próprio facto de Deus, no acontecimento sublime da encarnação do Filho, se ter entregado ao cuidado, livre e activo, de uma mulher. Pode, portanto, afirmar-se que a mulher, olhando para Maria, encontra nela o segredo para viver dignamente a sua feminidade e para realizar a sua verdadeira promoção. A luz de Maria, a Igreja vê no rosto da mulher os reflexos de uma beleza, que é espelho dos mais elevados sentimentos, de que é capaz o coração humano: a totalidade oblativa do amor; a força que sabe resistir aos maiores sofrimentos; a fidelidade sem limites e a operosidade incansável; a capacidade de conjugar a intuição penetrante com a palavra de apoio e de encorajamento » (João Paulo II, Encicl. Redemptoris mater RMA 46, AAS 79 [1987], 424-425).
(187) João Paulo II, Carta Apost. Mulieris dignitatem, MD 16.


Missão na Igreja e no mundo

51 Quanto, pois, à participação na missão apostólica da Igreja, não há dúvida de que, por força do Baptismo e do Crisma, a mulher — como o homem — torna-se participante no tríplice múnus de Jesus Cristo Sacerdote, Profeta e Rei e, portanto, é habilitada e vocacionada para o apostolado fundamental da Igreja: a evangelização. Por outra parte, precisamente na realização desse apostolado, a mulher é chamada a pôr em prática os seus « dons » próprios: antes de mais, o dom que é a sua própria dignidade pessoal, através da palavra e do testemunho de vida; os dons, portanto, relacionados com a sua vocação feminina.

Para participar na vida e na missão da Igreja, a mulher não pode receber o sacramento da Ordeme, por isso, não pode desempenhar as funções próprias do sacerdócio ministerial. Esta é uma disposição que a Igreja sempre encontrou na clara vontade, totalmente livre e soberana, de Jesus Cristo que chamou apenas homens para Seus apóstolos; (188) uma disposição que pode encontrar luz na relação entre Cristo Esposo e a Igreja Esposa.(189) Estamos na esfera da função e não na dadignidade e da santidade. Deve, na verdade, afirmar-se: « Embora a Igreja possua uma estrutura «hierárquica", essa estrutura, todavia, está totalmente ordenada para a santidade dos membros em Cristo ».(190)

Mas, como já dizia Paulo VI, se « nós não podemos mudar o comportamento de Nosso Senhor nem a chamada que Ele dirigiu às mulheres, devemos, porém, reconhecer e promover o papel da mulher na sua missão evangelizadora e na vida da comunidade cristã ».(191)

é absolutamente necessário que se passe do reconhecimento teórico da presença activa e responsável da mulher na Igreja à realização prática. E é neste claro sentido que deverá ler-se a presente Exortação que se dirige aos fiéis leigos, com a deliberada e repetida especificação « homens e mulheres ». Também o novo Código de Direito Canónico contém múltiplas disposições sobre a participação da mulher na vida e na missão da Igreja: são disposições que precisam de ser mais comummente conhecidas e de serem postas em prática, embora segundo as diversas sensibilidades culturais e oportunidades pastorais, com maior celeridade e resolução.

Veja-se, por exemplo, a participação das mulheres nos Conselhos pastorais diocesanos e paroquiais, assim como nos Sínodos diocesanos e nos Concílios particulares. Nesse sentido, os Padres sinodais escreveram: « As mulheres participem na vida da Igreja sem discriminação alguma, também nas consultas e na elaboração de decisões ».(192) E ainda: « As mulheres, que já têm tanta importância na transmissão da fé e na prestação de serviços de toda a espécie na vida da Igreja, devem ser associadas à preparação dos documentos pastorais e das iniciativas missionárias e devem ser reconhecidas como cooperadoras da missão da Igreja na família, na profissão e na comunidade civil ».(193)

No âmbito mais específico da evangelização e da catequese, deverá promover-se com maior força a função particular que a mulher tem na transmissão da fé, não só na família, mas também nos mais variados lugares educativos e, em termos mais vastos, em tudo o que concerne o acolhimento da Palavra de Deus, a sua compreensão e a sua comunicação, também através do estudo, da investigação e da docência da teologia.

Ao desempenhar a sua tarefa de evangelização, a mulher sentirá mais viva a necessidade de ser evangelizada. Assim, com « os olhos iluminados pela fé » (cf. Ef
Ep 1,18), a mulher poderá distinguir entre o que verdadeiramente responde à sua dignidade pessoal e à sua vocação e tudo o que, talvez sob o pretexto dessa « dignidade » e em nome da « liberdade » e do « progresso », faz com que a mulher não contribua para o fortalecimento dos verdadeiros valores, mas, pelo contrário, se torne responsável da degradação moral das pessoas, dos ambientes e da sociedade. Realizar um tal « discernimento » é uma urgência histórica inadiável e, ao mesmo tempo, uma possibilidade e uma exigência que derivam da participação no múnus profético de Cristo e da Sua Igreja por parte da mulher cristã. O « discernimento », de que fala muitas vezes o apóstolo Paulo, não consiste apenas numa avaliação das realidades e dos acontecimentos à luz da fé; é também uma decisão concreta e um empenhamento operativo, não só no âmbito da Igreja, mas também no da sociedade humana.

Pode afirmar-se que todos os problemas do mundo contemporâneo, de que já falava a segunda parte da Constituição conciliar Gaudium et spes e que com o tempo não foram por nada resolvidos nem atenuados, devem contar com a presença e o empenho das mulheres e, precisamente, com o seu contributo típico e insubstituível.

Em particular, duas grandes tarefas confiadas à mulher merecem ser novamente postas à atenção de todos.

A tarefa, antes de mais, de dar plena dignidade à vida matrimonial e à maternidade. Novas possibilidades se abrem hoje à mulher para uma compreensão mais profunda e para uma realização mais rica dos valores humanos e cristãos implicados na vida conjugal e na experiência da maternidade: o próprio homem — o marido e o pai — pode superar formas episódicas e unilaterais de absentismo ou de presença, mais, pode envolver-se em novas e significativas relações de comunhão interpessoal, precisamente graças à intervenção inteligente, amorosa e decisiva da mulher.

E, depois, a tarefa de assegurar a dimensão moral da cultura, isto é, a dimensão de uma cultura digna do homem, da sua vida pessoal e social. O Concílio Vaticano II parece relacionar a dimensão moral da cultura com a participação dos leigos no múnus real de Cristo: « Os leigos, também pela união das próprias forças, devem sanear às estruturas e as condições do mundo, se elas porventura propendem a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas da justiça e, antes, ajudem ao exercício das virtudes, em vez de o estorvarem. Agindo assim, informarão de valor moral a cultura e as obras do homem ».(194)

A medida que a mulher participar activa e responsavelmente na função das instituições, de que depende a salvaguarda do primado devido aos valores humanos na vida das comunidades políticas, as palavras do Concílio acima citadas abrirão um importante campo de apostolado da mulher: em todas as dimensões da vida dessas comunidades, desde a dimensão sócio-económica à sócio-política, devem respeitar-se e promover-se a dignidade pessoal da mulher e a sua vocação específica: no âmbito não só individual, mas também comunitário; não apenas em formas deixadas à liberdade responsável das pessoas, mas igualmente em formas garantidas por leis civis justas.

« Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe um auxiliar semelhante a ele » (Gn 2,18). A mulher Deus Criador confiou o homem. Sem dúvida, o homem foi confiado a cada homem, mas de modo particular à mulher, porque precisamente a mulher parece possuir, graças à experiência especial da sua maternidade, uma sensibilidade específica para com o homem e para com tudo o que constitui o seu verdadeiro bem, a começar pelo valor fundamental da vida. São tão grandes as possibilidades e as responsabilidades da mulher neste campo, numa época em que o progresso da ciência e da técnica nem sempre é inspirado a pautado pela verdadeira sabedoria, com o risco inevitável de « desumanizar » a vida humana, sobretudo quando ela exige um amor mais intenso e uma aceitação mais generosa!

A participação da mulher na vida da Igreja e da sociedade, através dos seus dons, constitui, ao mesmo tempo, a estrada necessária para a sua realização pessoal — na qual justamente tanto se insiste — e o contributo original da mulher para o enriquecimento da comunhão eclesial e para o dinamismo apostólico do Povo de Deus.

Nesta perspectiva deve considerar-se a presença também do homem ao lado da mulher.

(188) Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial Inter insigniores, 15 de Outubro de 1976: AAS 69 (1977), 98-116.
(189) Cf. João Paulo II, Carta Apost. Mulieris dignitatem, MD 26.
(190) Ibid., MD 27; « A Igreja é um corpo diferenciado, onde cada um tem a sua função; as tarefas são distintas e não deverão confundir-se. Não dão justificação à superioridade de uns sobre os outros; não são pretexto para invejas. O único carisma superior, que pode e deve ser desejado, é o da caridade (cf. 1Co 12-13). Os maiores no Reino dos céus não são os ministros mas os santos » (Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial Inter insigniores, 15 de Outubro de 1976: AAS 69 [1977], 115).
(191) Paulo VI, Discurso à Comissão do Ano Internacional da mulher, 18 de Abril de 1975: AAS 67 (1975), 266.
(192) Propositio 47.
(193) Ibid.
(194) Conc. Ecum. Vat. II, Cons. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 36.



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