Caritas in veritate PT




CARTA ENCÍCLICA

CARITAS IN VERITATE

DO SUMO PONTÍFICE

BENTO XVI

AOS BISPOS

AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS

AOS FIÉIS LEIGOS

E A TODOS OS HOMENS

DE BOA VONTADE

SOBRE O DESENVOLVIMENTO

HUMANO INTEGRAL

NA CARIDADE E NA VERDADE


INTRODUÇÃO

1 A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor — « caritas » — é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta. Cada um encontra o bem próprio, aderindo ao projecto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projecto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. Jn 8,32). Por isso, defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade. Esta, de facto, « rejubila com a verdade » (1Co 13,6). Todos os homens sentem o impulso interior para amar de maneira autêntica: amor e verdade nunca desaparecem de todo neles, porque são a vocação colocada por Deus no coração e na mente de cada homem. Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carências humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projecto de vida verdadeira que Deus preparou para nós. Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade do seu projecto. De facto, Ele mesmo é a Verdade (cf. Jn 14,6).


2 A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja. As diversas responsabilidades e compromissos por ela delineados derivam da caridade, que é — como ensinou Jesus — a síntese de toda a Lei (cf. Mt 22,36-40). A caridade dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o próximo; é o princípio não só das microrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorelações como relacionamentos sociais, económicos, políticos. Para a Igreja — instruída pelo Evangelho —, a caridade é tudo porque, como ensina S. João (cf. 1Jn 4,8 1Jn 4,16) e como recordei na minha primeira carta encíclica, « Deus é caridade » (Deus caritas est): da caridade de Deus tudo provém, por ela tudo toma forma, para ela tudo tende. A caridade é o dom maior que Deus concedeu aos homens; é sua promessa e nossa esperança.

Estou ciente dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar com o risco, daí resultante, de ser mal entendida, de excluí-la da vida ética e, em todo o caso, de impedir a sua correcta valorização. Nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais. Daqui a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na direcção assinalada por S. Paulo da « veritas in caritate » (Ep 4,15), mas também na direcção inversa e complementar da « caritas in veritate ». A verdade há-de ser procurada, encontrada e expressa na « economia » da caridade, mas esta por sua vez há-de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta. Facto este que se deve ter bem em conta hoje, num contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente se não mesmo refractário à mesma.


3 Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública. Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal. Na verdade, a caridade reflecte a dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é conjuntamente « Agápe » e « Lógos »: Caridade e Verdade, Amor e Palavra.


4 Porque repleta de verdade, a caridade pode ser compreendida pelo homem na sua riqueza de valores, partilhada e comunicada. Com efeito, a verdade é « lógos » que cria « diá-logos » e, consequentemente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une as inteligências no lógos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No actual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projectos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática.


5 A caridade é amor recebido e dado; é « graça » (cháris). A sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf. Jn 13,1), é « derramado em nossos corações pelo Espírito Santo » (Rm 5,5). Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade.

A esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a doutrina social da Igreja. Tal doutrina é « caritas in veritate in re sociali », ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da história. É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos. O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas socioeconómicos que afligem a humanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a actividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os actuais.


6 « Caritas in veritate » é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral. Destes, desejo lembrar dois em particular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização: a justiça e o bem comum.

Em primeiro lugar, a justiça. Ubi societas, ibi ius: cada sociedade elabora um sistema próprio de justiça. A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é « meu »; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é « dele », o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso « dar » ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é « inseparável da caridade »[1], é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, « a medida mínima » dela[2], parte integrante daquele amor « por acções e em verdade » (
1Jn 3,18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da « cidade do homem » segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão[3]. A « cidade do homem » não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo.

[1] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 22: AAS 59 (1967), 268; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 69.
[2] Discurso no Dia do Desenvolvimento (23 de Agosto de 1968): AAS 60 (1968), 626-627.
[3] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002: AAS 94 (2002), 132-140.


7 Depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum. Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele « nós-todos », formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social[4]. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis.Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A acção do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações[5], para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.

[4] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes
GS 26
[5] Cf. João XXIII, Carta enc. Pacem in terris (11 de Abril de 1963): AAS 55 (1963), PT 268-270.


8 Ao publicar a encíclica Populorum progressio em 1967, o meu venerado predecessor Paulo VI iluminou o grande tema do desenvolvimento dos povos com o esplendor da verdade e com a luz suave da caridade de Cristo. Afirmou que o anúncio de Cristo é o primeiro e principal factor de desenvolvimento [6] e deixou-nos a recomendação de caminhar pela estrada do desenvolvimento com todo o nosso coração e com toda a nossa inteligência[7], ou seja, com o ardor da caridade e a sapiência da verdade. É a verdade originária do amor de Deus — graça a nós concedida — que abre ao dom a nossa vida e torna possível esperar num « desenvolvimento do homem todo e de todos os homens »[8], numa passagem « de condições menos humanas a condições mais humanas »[9], que se obtém vencendo as dificuldades que inevitavelmente se encontram ao longo do caminho.

Passados mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica, pretendo prestar homenagem e honrar a memória do grande Pontífice Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traçada para os actualizar nos dias que correm. Este processo de actualização teve início com a encíclica Sollicitudo rei socialis do Servo de Deus João Paulo II, que desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo aniversário da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se reservado apenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha convicção de que a Populorum progressio merece ser considerada como « a Rerum novarum da época contemporânea », que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificação.

[6] Cf. n.
PP 16: AAS 59 (1967), 265.
[7] Cf. ibid., PP 82: o.c., 297.
[8] Ibid., PP 42: o.c., 278.
[9] Ibid., PP 20: o.c., 267.


9 O amor na verdade — caritas in veritate — é um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interacção ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano. Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora. A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf. Rm 12,21) e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades.

A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer [10] e não pretende « de modo algum imiscuir-se na política dos Estados »[11]; mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação. Sem verdade, cai-se numa visão empirista e céptica da vida, incapaz de se elevar acima da acção porque não está interessada em identificar os valores — às vezes nem sequer os significados — pelos quais julgá-la e orientá-la. A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jn 8,32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos[12].


[10] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes GS 36; Paulo VI, Carta ap. Octogesima adveniens (14 de Maio de 1971), 4: AAS 63 (1971), 403-404; João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus CA 43): AAS 83 (1991), 847.
[11] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 13: AAS 59 (1967), 263-264.
[12] Cf. Pont. Conselho « Justiça e Paz », Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 76.


CAPÍTULO I

A MENSAGEM DA POPULORUM PROGRESSIO

10 A releitura da Populorum progressio, mais de quarenta anos depois da sua publicação, incita a permanecer fiéis à sua mensagem de caridade e de verdade, considerando-a no âmbito do magistério específico de Paulo VI e, mais em geral, dentro da tradição da doutrina social da Igreja. Depois há que avaliar os termos diferentes em que hoje, diversamente de então, se coloca o problema do desenvolvimento. Por isso, o ponto de vista correcto é o da Tradição da fé apostólica[13], património antigo e novo, fora do qual a Populorum progressio seria um documento sem raízes e as questões do desenvolvimento ficariam reduzidas unicamente a dados sociológicos.

[13] Cf. Bento XVI, Discurso na Sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (13 de Maio de 2007): Insegnamenti III/1 (2007), 854-870.


11 A publicação da Populorum progressio deu-se imediatamente depois da conclusão do Concílio Ecuménico Vaticano II. A própria encíclica sublinha, nos primeiros parágrafos, a sua relação íntima com o Concílio[14]. Vinte anos depois, era João Paulo II que destacava, na Sollicitudo rei socialis, a fecunda relação daquela encíclica com o Concílio, particularmente com a constituição pastoral Gaudium et spes[15]. Desejo, também eu, lembrar aqui a importância que o Concílio Vaticano II teve na encíclica de Paulo VI e em todo o sucessivo magistério social dos Sumos Pontífices. O Concílio aprofundou aquilo que desde sempre pertence à verdade da fé, ou seja, que a Igreja, estando ao serviço de Deus, serve o mundo em termos de amor e verdade. Foi precisamente desta perspectiva que partiu Paulo VI para nos comunicar duas grandes verdades. A primeira é que a Igreja inteira, em todo o seu ser e agir, quando anuncia, celebra e actua na caridade, tende a promover o desenvolvimento integral do homem. Ela tem um papel público que não se esgota nas suas actividades de assistência ou de educação, mas revela todas as suas energias ao serviço da promoção do homem e da fraternidade universal quando pode usufruir de um regime de liberdade. Em não poucos casos, tal liberdade vê-se impedida por proibições e perseguições; ou então é limitada, quando a presença pública da Igreja fica reduzida unicamente às suas actividades sociocaritativas. A segunda verdade é que o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões[16]. Sem a perspectiva duma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro. Fechado dentro da história, está sujeito ao risco de reduzir-se a simples incremento do ter; deste modo, a humanidade perde a coragem de permanecer disponível para os bens mais altos, para as grandes e altruístas iniciativas solicitadas pela caridade universal. O homem não se desenvolve apenas com as suas próprias forças, nem o desenvolvimento é algo que se lhe possa dar simplesmente de fora. Muitas vezes, ao longo da história, pensou-se que era suficiente a criação de instituições para garantir à humanidade a satisfação do direito ao desenvolvimento. Infelizmente foi depositada excessiva confiança em tais instituições, como se estas pudessem conseguir automaticamente o objectivo desejado. Na realidade, as instituições sozinhas não bastam, porque o desenvolvimento humano integral é primariamente vocação e, por conseguinte, exige uma livre e solidária assunção de responsabilidade por parte de todos. Além disso, tal desenvolvimento requer uma visão transcendente da pessoa, tem necessidade de Deus: sem Ele, o desenvolvimento é negado ou acaba confiado unicamente às mãos do homem, que cai na presunção da auto-salvação e acaba por fomentar um desenvolvimento desumanizado. Aliás, só o encontro com Deus permite deixar de « ver no outro sempre e apenas o outro »[17], para reconhecer nele a imagem divina, chegando assim a descobrir verdadeiramente o outro e a maturar um amor que « se torna cuidado do outro e pelo outro »[18].

[14] Cf. nn.
PP 3-5: AAS 59 (1967), 258-260.
[15] Cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis SRS 6-7: AAS 80 (1988), 517-519.
[16] Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 14: AAS 59 (1967), 264.
[17] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est : AAS 98 (2006), 232.
[18] Ibid., : o.c., 222.


12 A ligação entre a Populorum progressio e o Concílio Vaticano II não representa um corte entre o magistério social de Paulo VI e o dos Pontífices seus predecessores, visto que o Concílio constitui um aprofundamento de tal magistério na continuidade da vida da Igreja[19]. Neste sentido, não ajudam à clareza certas subdivisões abstractas da doutrina social da Igreja, que aplicam ao ensinamento social pontifício categorias que lhe são alheias. Não existem duas tipologias de doutrina social — uma pré-conciliar e outra pós-conciliar —, diversas entre si, mas um único ensinamento, coerente e simultaneamente sempre novo[20]. É justo evidenciar a peculiaridade de uma ou outra encíclica, do ensinamento deste ou daquele Pontífice, mas sem jamais perder de vista a coerência do corpus doutrinal inteiro[21]. Coerência não significa reclusão num sistema, mas sobretudo fidelidade dinâmica a uma luz recebida. A doutrina social da Igreja ilumina, com uma luz imutável, os problemas novos que vão aparecendo[22]. Isto salvaguarda o carácter quer permanente quer histórico deste « património » doutrinal[23], o qual, com as suas características específicas, faz parte da Tradição sempre viva da Igreja[24]. A doutrina social está construída sobre o fundamento que foi transmitido pelos Apóstolos aos Padres da Igreja e, depois, acolhido e aprofundado pelos grandes Doutores cristãos. Tal doutrina remonta, em última análise, ao Homem novo, ao « último Adão que Se tornou espírito vivificante » (1Co 15,45) e é princípio da caridade que « nunca acabará » (1Co 13,8). É testemunhada pelos Santos e por quantos deram a vida por Cristo Salvador no campo da justiça e da paz. Nela se exprime a missão profética que têm os Sumos Pontífices de guiar apostolicamente a Igreja de Cristo e discernir as novas exigências da evangelização. Por estas razões, a Populorum progressio, inserida na grande corrente da Tradição, é capaz de nos falar ainda hoje.

[19] Cf. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana durante a apresentação de votos natalícios (22 de Dezembro de 2005): Insegnamenti I (2005), 1023-1032.
[20] Cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis SRS 3: AAS 80 (1988), 515.
[21] Cf. ibid., SRS 1: o.c., 513-514.
[22] Cf. ibid., SRS 3: o.c., 515.
[23] Cf. João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens LE 3: AAS 73 (1981), 583-584.
[24] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus CA 3: AAS 83 (1991), 794-796.


13 Além da sua importante ligação com toda a doutrina social da Igreja, a Populorum progressio está intimamente conexa com o magistério global de Paulo VI e, de modo particular, com o seu magistério social. De grande relevo foi, sem dúvida, o seu ensinamento social: reafirmou a exigência imprescindível do Evangelho para a construção da sociedade segundo liberdade e justiça, na perspectiva ideal e histórica de uma civilização animada pelo amor. Paulo VI compreendeu claramente como se tinha tornado mundial a questão social[25] e viu a correlação entre o impulso à unificação da humanidade e o ideal cristão de uma única família dos povos, solidária na fraternidade comum. Indicou o desenvolvimento, humana e cristãmente entendido, como o coração da mensagem social cristã e propôs a caridade cristã como principal força ao serviço do desenvolvimento. Movido pelo desejo de tornar o amor de Cristo plenamente visível ao homem contemporâneo, Paulo VI enfrentou com firmeza importantes questões éticas, sem ceder às debilidades culturais do seu tempo.

[25] Cf. Carta enc. Populorum progressio
PP 3: AAS 59 (1967), 258.


14 Depois, com a carta apostólica Octogesima adveniens de 1971, Paulo VI tratou o tema do sentido da política e do perigo de visões utópicas e ideológicas que prejudicavam a sua qualidade ética e humana. São argumentos estritamente relacionados com o desenvolvimento. Infelizmente as ideologias negativas florescem continuamente. Contra a ideologia tecnocrática, hoje particularmente radicada, já Paulo VI tinha alertado[26], ciente do grande perigo que era confiar todo o processo do desenvolvimento unicamente à técnica, porque assim ficaria sem orientação. A técnica, em si mesma, é ambivalente. Se, por um lado, há hoje quem seja propenso a confiar-lhe inteiramente tal processo de desenvolvimento, por outro, assiste-se à investida de ideologias que negam in toto a própria utilidade do desenvolvimento, considerado radicalmente anti-humano e portador somente de degradação. Mas, deste modo, acaba-se por condenar não apenas a maneira errada e injusta como por vezes os homens orientam o progresso, mas também as descobertas científicas que entretanto, se bem usadas, constituem uma oportunidade de crescimento para todos. A ideia de um mundo sem desenvolvimento exprime falta de confiança no homem e em Deus. Por conseguinte, é um grave erro desprezar as capacidades humanas de controlar os extravios do desenvolvimento ou mesmo ignorar que o homem está constitutivamente inclinado para « ser mais ». Absolutizar ideologicamente o progresso técnico ou então afagar a utopia duma humanidade reconduzida ao estado originário da natureza são dois modos opostos de separar o progresso da sua apreciação moral e, consequentemente, da nossa responsabilidade.

[26] Cf. ibid.,
PP 34: o.c., 274.


15 Outros dois documentos de Paulo VI, embora não estritamente ligados com a doutrina social — a encíclica Humanae vitae, de 25 de Julho de 1968, e a exortação apostólica Evangelii nuntiandi, de 8 de Dezembro de 1975 —, são muito importantes para delinear o sentido plenamente humano do desenvolvimento proposto pela Igreja. Por isso é oportuno ler também estes textos em relação com a Populorum progressio.

A encíclica Humanae vitae sublinha o significado conjuntamente unitivo e procriativo da sexualidade, pondo assim como fundamento da sociedade o casal, homem e mulher, que se acolhem reciprocamente na distinção e na complementaridade; um casal, portanto, aberto à vida[27]. Não se trata de uma moral meramente individual: a Humanae vitae indica os fortes laços existentes entre ética da vida e ética social, inaugurando uma temática do Magistério que aos poucos foi tomando corpo em vários documentos, sendo o mais recente a encíclica Evangelium vitae de João Paulo II[28]. A Igreja propõe, com vigor, esta ligação entre ética da vida e ética social, ciente de que não pode « ter sólidas bases uma sociedade que afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas contradiz-se radicalmente aceitando e tolerando as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada »[29].

Por sua vez, a exortação apostólica Evangelii nuntiandi tem uma relação muito forte com o desenvolvimento, visto que « a evangelização — escrevia Paulo VI — não seria completa, se não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, do homem »[30]. « Entre evangelização e promoção humana — desenvolvimento, libertação — existem de facto laços profundos »[31]: partindo desta certeza, Paulo VI ilustrava claramente a relação entre o anúncio de Cristo e a promoção da pessoa na sociedade. O testemunho da caridade de Cristo através de obras de justiça, paz e desenvolvimento faz parte da evangelização, pois a Jesus Cristo, que nos ama, interessa o homem inteiro. Sobre estes importantes ensinamentos, está fundado o aspecto missionário [32] da doutrina social da Igreja como elemento essencial de evangelização[33]. A doutrina social da Igreja é anúncio e testemunho de fé; é instrumento e lugar imprescindível de educação para a mesma.

[27] Cf. nn.
HV 8-9: AAS 60 (1968), 485-487; Bento XVI, Discurso aos participantes no Congresso Internacional organizado no 40º aniversário da « Humanae vitae » (10 de Maio de 2008): Insegnamenti IV/1 (2008), 753-756.
[28] Cf. Carta enc. Evangelium vitae EV 93: AAS 87 (1995), 507-508.
[29] Ibid., EV 101: o.c., 516-518.
[30] N. EN 29: AAS 68 (1976), 25.
[31] Ibid., EN 31: o.c., 26.
[32] Cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis SRS 41: AAS 80 (1988), 570-572.
[33] Cf. ibid., SRS 41: o.c., 570-572; Carta enc. Centesimus annus CA 5 CA 54: AAS 83 (1991), 799.859-860.


16 Na Populorum progressio, Paulo VI quis dizer-nos, antes de mais nada, que o progresso é, na sua origem e na sua essência, uma vocação: « Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação »[34]. É precisamente este facto que legitima a intervenção da Igreja nas problemáticas do desenvolvimento. Se este tocasse apenas aspectos técnicos da vida do homem, e não o sentido do seu caminhar na história juntamente com seus irmãos, nem a individuação da meta de tal caminho, a Igreja não teria título para falar. Mas Paulo VI, como antes dele Leão XIII na Rerum novarum[35], estava consciente de cumprir um dever próprio do seu serviço quando iluminava com a luz do Evangelho as questões sociais do seu tempo[36].

Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último. Não é sem motivo que a palavra « vocação » volta a aparecer noutra passagem da encíclica, onde se afirma: « Não há, portanto, verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana »[37]. Esta visão do desenvolvimento é o coração da Populorum progressio e motiva todas as reflexões de Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento. É também a razão principal por que tal encíclica continua actual nos nossos dias.

[34] N.
PP 15: AAS 59 (1967), 265.
[35] Cf. ibid., PP 2: o.c., 481-482; Leão XIII, Carta enc. Rerum novarum (15 de Maio de 1891): Leonis XIII P. M. Acta, XI (1892), 97-144; João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis SRS 8: AAS 80 (1988), 519-520; Carta enc. Centesimus annus CA 5: AAS 83 (1991), 799.
[36] Cf. Carta enc. Populorum progressio PP 2 PP 13: AAS 59 (1967), 258.263-264.
[37] Ibid., PP 42: o.c., 278.


17 A vocação é um apelo que exige resposta livre e responsável. O desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir tal desenvolvimento, prescindindo e sobrepondo-se à responsabilidade humana. Os « messianismos fascinantes, mas construtores de ilusões »[38] fundam sempre as próprias propostas na negação da dimensão transcendente do desenvolvimento, seguros de o terem inteiramente à sua disposição. Esta falsa segurança converte-se em fraqueza, porque implica a sujeição do homem, reduzido à categoria de meio para o desenvolvimento, enquanto a humildade de quem acolhe uma vocação se transforma em verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre. Paulo VI não tem dúvidas sobre a existência de obstáculos e condicionamentos que refreiam o desenvolvimento, mas está seguro também de que « cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso »[39]. Esta liberdade diz respeito não só ao desenvolvimento que usufruímos, mas também às situações de subdesenvolvimento, que não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica, mas dependem da responsabilidade humana. É por isso que « os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência »[40]. Também isto é vocação, um apelo que homens livres dirigem a homens livres em ordem a uma assunção comum de responsabilidade. Viva era, em Paulo VI, a percepção da importância das estruturas económicas e das instituições, mas era igualmente clara nele a noção da sua natureza de instrumentos da liberdade humana. Somente se for livre é que o desenvolvimento pode ser integralmente humano; apenas num regime de liberdade responsável, pode crescer de maneira adequada.

[38] Ibid.,
PP 11: o.c., 262; cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus CA 25: AAS 83 (1991), 822-824.
[39] Carta enc. Populorum progressio PP 15: AAS 59 (1967), 265.
[40] Ibid., PP 3: o.c., 258.

Caritas in veritate PT