Caritas in veritate PT 18


18 Além de requerer a liberdade, o desenvolvimento humano integral enquanto vocação exige também que se respeite a sua verdade.A vocação ao progresso impele os homens a « realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais »[41]. Mas aqui levanta-se o problema: que significa « ser mais »? A tal pergunta responde Paulo VI indicando a característica essencial do « desenvolvimento autêntico »: este « deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo »[42]. Na concorrência entre as várias concepções do homem, presentes na sociedade actual ainda mais intensamente do que na de Paulo VI, a visão cristã tem a peculiaridade de afirmar e justificar o valor incondicional da pessoa humana e o sentido do seu crescimento. A vocação cristã ao desenvolvimento ajuda a empenhar-se na promoção de todos os homens e do homem todo. Escrevia Paulo VI: « O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira »[43]. A fé cristã ocupa-se do desenvolvimento sem olhar a privilégios nem posições de poder nem mesmo aos méritos dos cristãos — que sem dúvida existiram e existem, a par de naturais limitações[44] —, mas contando apenas com Cristo, a Quem há-de fazer referência toda a autêntica vocação ao desenvolvimento humano integral. O Evangelho é elemento fundamental do desenvolvimento, porque lá Cristo, com « a própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo »[45]. Instruída pelo seu Senhor, a Igreja perscruta os sinais dos tempos e interpreta-os, oferecendo ao mundo « o que possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade »[46]. Precisamente porque Deus pronuncia o maior « sim » ao homem[47], este não pode deixar de se abrir à vocação divina para realizar o próprio desenvolvimento. A verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se não é desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, não é verdadeiro desenvolvimento. Esta é a mensagem central da Populorum progressio, válida hoje e sempre. O desenvolvimento humano integral no plano natural, enquanto resposta a uma vocação de Deus criador[48], procura a própria autenticação num « humanismo transcendente, que leva [o homem] a atingir a sua maior plenitude: tal é a finalidade suprema do desenvolvimento pessoal »[49]. Portanto, a vocação cristã a tal desenvolvimento compreende tanto o plano natural como o plano sobrenatural, motivo por que, « quando Deus fica eclipsado, começa a esmorecer a nossa capacidade de reconhecer a ordem natural, o fim e o ‘‘bem'' »[50].

[41] Ibid.,
PP 6: o.c., 260.
[42] Ibid., PP 14: o.c., 264.
[43] Ibid., PP 14: o.c., 264; cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus CA 53-62: AAS 83 (1991), 859-867; Carta enc. Redemptor hominis RH 13-14: AAS 71 (1979), 282-286.
[44] Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 12: AAS 59 (1967), 262-263.
[45] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes GS 22.
[46] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 13: AAS 59 (1967), 263-264.
[47] Cf. Bento XVI, Discurso aos participantes no IV Congresso Eclesial Nacional da Igreja que está na Itália (19 de Outubro de 2006): Insegnamenti II/2 (2006), 465-477.
[48] Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 16: AAS 59 (1967), 265.
[49] Ibid., PP 16: o.c., 265.
[50] Bento XVI, Discurso aos jovens no cais de Barangaroo (17 de Julho de 2008): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 19//VII/2008), 4.
19 Finalmente, a concepção do desenvolvimento como vocação inclui nele a centralidade da caridade. Paulo VI observava, na encíclica Populorum progressio, que as causas do subdesenvolvimento não são primariamente de ordem material, convidando-nos a procurá-las noutras dimensões do homem. Em primeiro lugar, na vontade, que muitas vezes descuida os deveres da solidariedade. Em segundo, no pensamento, que nem sempre sabe orientar convenientemente o querer; por isso, para a prossecução do desenvolvimento, servem « pensadores capazes de reflexão profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo »[51]. E não é tudo; o subdesenvolvimento tem uma causa ainda mais importante do que a carência de pensamento: é « a falta de fraternidade entre os homens e entre os povos »[52]. Esta fraternidade poderá um dia ser obtida pelos homens simplesmente com as suas forças? A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna. Ao apresentar os vários níveis do processo de desenvolvimento do homem, Paulo VI colocava no vértice, depois de ter mencionado a fé, « a unidade na caridade de Cristo que nos chama a todos a participar como filhos na vida do Deus vivo, Pai de todos os homens »[53].

[51] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio
PP 20: AAS 59 (1967), 267.
[52] Ibid., PP 66: o.c., 289-290.
[53] Ibid., PP 21: o.c., 267-268.
20 Abertas pela Populorum progressio, estas perspectivas permanecem fundamentais para dar amplitude e orientação ao nosso compromisso a favor do desenvolvimento dos povos. E a Populorum progressio sublinha repetidamente a urgência das reformas[54], pedindo para que, à vista dos grandes problemas da injustiça no desenvolvimento dos povos, se actue com coragem e sem demora. Esta urgência é ditada também pela caridade na verdade. É a caridade de Cristo que nos impele: « caritas Christi urget nos » (2Co 5,14). A urgência não está inscrita só nas coisas, não deriva apenas do encalçar dos acontecimentos e dos problemas, mas também do que está em jogo: a realização de uma autêntica fraternidade. A relevância deste objectivo é tal que exige a nossa disponibilidade para o compreendermos profundamente e mobilizarmo-nos concretamente, com o « coração », a fim de fazer avançar os actuais processos económicos e sociais para metas plenamente humanas.

[54] Cf. nn. PP 3 PP 29 PP 32: o.c., 258.272.273.


CAPÍTULO II

O DESENVOLVIMENTO HUMANO NO NOSSO TEMPO

21 Paulo VI tinha uma visão articulada do desenvolvimento. Com o termo « desenvolvimento », queria indicar, antes de mais nada, o objectivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endémicas e do analfabetismo. Isto significava, do ponto de vista económico, a sua participação activa e em condições de igualdade no processo económico internacional; do ponto de vista social, a sua evolução para sociedades instruídas e solidárias; do ponto de vista político, a consolidação de regimes democráticos capazes de assegurar a liberdade e a paz. Depois de tantos anos e enquanto contemplamos, preocupados, as evoluções e as perspectivas das crises que foram sucedendo neste período, interrogamo-nos até que ponto as expectativas de Paulo VI tenham sido satisfeitas pelo modelo de desenvolvimento que foi adoptado nos últimos decénios. E reconhecemos que eram fundadas as preocupações da Igreja acerca das capacidades do homem meramente tecnológico conseguir impor-se objectivos realistas e saber gerir, sempre adequadamente, os instrumentos à sua disposição. O lucro é útil se, como meio, for orientado para um fim que lhe indique o sentido e o modo como o produzir e utilizar. O objectivo exclusivo de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e criar pobreza. O desenvolvimento económico desejado por Paulo VI devia ser capaz de produzir um crescimento real, extensivo a todos e concretamente sustentável. É verdade que o desenvolvimento foi e continua a ser um factor positivo, que tirou da miséria milhões de pessoas e, ultimamente, deu a muitos países a possibilidade de se tornarem actores eficazes da política internacional. Todavia há que reconhecer que o próprio desenvolvimento económico foi e continua a ser afectado por anomalias e problemas dramáticos, evidenciados ainda mais pela actual situação de crise. Esta coloca-nos improrrogavelmente diante de opções que dizem respeito sempre mais ao próprio destino do homem, o qual aliás não pode prescindir da sua natureza. As forças técnicas em campo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração desregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre as medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade. Os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novo desenvolvimento futuro estão cada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos esforços de enquadramento global e uma nova síntese humanista. A complexidade e gravidade da situação económica actual preocupa-nos, com toda a justiça, mas devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidades a que nos chama o cenário de um mundo que tem necessidade duma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor. A crise obriga-nos a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e elaboração de nova planificação. Com esta chave, feita mais de confiança que resignação, convém enfrentar as dificuldades da hora actual.


22 Actualmente o quadro do desenvolvimento é policêntrico. Os actores e as causas tanto do subdesenvolvimento como do desenvolvimento são múltiplas, as culpas e os méritos são diferenciados. Este dado deveria induzir a libertar-se das ideologias que simplificam, de forma frequentemente artificiosa, a realidade, e levar a examinar com objectividade a consistência humana dos problemas. Hoje a linha de demarcação entre países ricos e pobres já não é tão nítida como nos tempos da Populorum progressio, como aliás foi assinalado por João Paulo II[55]. Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua « o escândalo de desproporções revoltantes »[56]. Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários. Também no âmbito das causas imateriais ou culturais do desenvolvimento e do subdesenvolvimento podemos encontrar a mesma articulação de responsabilidades: existem formas excessivas de protecção do conhecimento por parte dos países ricos, através duma utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual, especialmente no campo da saúde; ao mesmo tempo, em alguns países pobres, persistem modelos culturais e normas sociais de comportamento que retardam o processo de desenvolvimento.

[55] Cf. Carta enc. Sollicitudo rei socialis
SRS 28: AAS 80 (1988), 548-550.
[56] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 9: AAS 59 (1967), 261-262.


23 Temos hoje muitas áreas do globo que — de forma por vezes problemática e não homogénea — evoluíram, entrando na categoria das grandes potências destinadas a desempenhar um papel importante no futuro. Contudo há que sublinhar que não é suficiente progredir do ponto de vista económico e tecnológico; é preciso que o desenvolvimento seja, antes de mais nada, verdadeiro e integral. A saída do atraso económico — um dado em si mesmo positivo — não resolve a complexa problemática da promoção do homem nem nos países protagonistas de tais avanços, nem nos países economicamente já desenvolvidos, nem nos países ainda pobres que, além das antigas formas de exploração, podem vir a sofrer também as consequências negativas derivadas de um crescimento marcado por desvios e desequilíbrios.

Depois da queda dos sistemas económicos e políticos dos países comunistas da Europa Oriental e do fim dos chamados « blocos contrapostos », havia necessidade duma revisão global do desenvolvimento. Pedira-o João Paulo II, que em 1987 tinha indicado a existência destes « blocos » como uma das principais causas do subdesenvolvimento[57], enquanto a política subtraía recursos à economia e à cultura e a ideologia inibia a liberdade. Em 1991, na sequência dos acontecimentos do ano de 1989, o Pontífice pediu que o fim dos « blocos » fosse seguido por uma nova planificação global do desenvolvimento, não só em tais países, mas também no Ocidente e nas regiões do mundo que estavam a evoluir[58]. Isto, porém, realizou-se apenas parcialmente, continuando a ser uma obrigação real que precisa de ser satisfeita, talvez aproveitando-se precisamente das opções necessárias para superar os problemas económicos actuais.

[57] Cf. Carta enc. Sollicitudo rei socialis
SRS 20: AAS 80 (1988), 536-537.
[58] Cf. Carta enc. Centesimus annus CA 22-29: AAS 83 (1991), 819-830.


24 O mundo, que Paulo VI tinha diante dos olhos, registava muito menor integração do que hoje, embora o processo de sociabilização se apresentasse já tão adiantado que ele pôde falar de uma questão social tornada mundial. Actividade económica e função política desenrolavam-se em grande parte dentro do mesmo âmbito local e, por conseguinte, podiam inspirar recíproca confiança. A actividade produtiva tinha lugar prevalecentemente dentro das fronteiras nacionais e os investimentos financeiros tinham uma circulação bastante limitada para o estrangeiro, de tal modo que a política de muitos Estados podia ainda fixar as prioridades da economia e, de alguma maneira, governar o seu andamento com os instrumentos de que ainda dispunha. Por este motivo, a Populorum progressio atribuía um papel central, embora não exclusivo, aos « poderes públicos »[59].

Actualmente, o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar as limitações que são impostas à sua soberania pelo novo contexto económico comercial e financeiro internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder político dos Estados.

Hoje, aproveitando inclusivamente a lição resultante da crise económica em curso que vê os poderes públicos do Estado directamente empenhados a corrigir erros e disfunções, parece mais realista uma renovada avaliação do seu papel e poder, que hão-de ser sapientemente reconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes, mesmo através de novas modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo actual. Com uma função melhor calibrada dos poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas de participação na política nacional e internacional que se realizam através da acção das organizações operantes na sociedade civil; nesta linha, é desejável que cresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica por parte dos cidadãos.

[59] Cf. nn.
PP 23 PP 33: AAS 59 (1967), 268-269.273-274.


25 Do ponto de vista social, os sistemas de segurança e previdência — já presentes em muitos países nos tempos de Paulo VI — sentem dificuldade, e poderão senti-la ainda mais no futuro, em alcançar os seus objectivos de verdadeira justiça social dentro de um quadro de forças profundamente alterado. O mercado, à medida que se foi tornando global, estimulou antes de mais nada, por parte de países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as actividades produtivas a baixo custo a fim de reduzir os preços de muitos bens, aumentar o poder de compra e deste modo acelerar o índice de desenvolvimento centrado sobre um maior consumo pelo próprio mercado interno. Consequentemente, o mercado motivou novas formas de competição entre Estados procurando atrair centros produtivos de empresas estrangeiras através de variados instrumentos tais como impostos favoráveis e a desregulamentação do mundo do trabalho. Estes processos implicaram a redução das redes de segurança social em troca de maiores vantagens competitivas no mercado global, acarretando grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a solidariedade actuada nas formas tradicionais do Estado social. Os sistemas de segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função, quer nos países emergentes, quer nos desenvolvidos há mais tempo, quer naturalmente nos países pobres. Aqui, as políticas relativas ao orçamento com os seus cortes na despesa social, muitas vezes fomentados pelas próprias instituições financeiras internacionais, podem deixar os cidadãos impotentes diante de riscos antigos e novos; e tal impotência torna-se ainda maior devido à falta de protecção eficaz por parte das associações dos trabalhadores. O conjunto das mudanças sociais e económicas faz com que as organizações sindicais sintam maiores dificuldades no desempenho do seu dever de representar os interesses dos trabalhadores, inclusive pelo facto de os governos, por razões de utilidade económica, muitas vezes limitarem as liberdades sindicais ou a capacidade negociadora dos próprios sindicatos. Assim, as redes tradicionais de solidariedade encontram obstáculos cada vez maiores a superar. Por isso, o convite feito pela doutrina social da Igreja, a começar pela Rerum novarum[60], para se criarem associações de trabalhadores em defesa dos seus direitos há-de ser honrado, hoje ainda mais do que ontem, dando antes de mais nada uma resposta pronta e clarividente à urgência de instaurar novas sinergias a nível internacional, sem descurar o nível local.

A mobilidade laboral, associada à generalizada desregulamentação, constituiu um fenómeno importante, não desprovido de aspectos positivos porque capaz de estimular a produção de nova riqueza e o intercâmbio entre culturas diversas. Todavia, quando se torna endémica a incerteza sobre as condições de trabalho, resultante dos processos de mobilidade e desregulamentação, geram-se formas de instabilidade psicológica, com dificuldade a construir percursos coerentes na própria vida, incluindo o percurso rumo ao matrimónio. Consequência disto é o aparecimento de situações de degradação humana, além de desperdício de força social. Comparado com o que sucedia na sociedade industrial do passado, hoje o desemprego provoca aspectos novos de irrelevância económica do indivíduo, e a crise actual pode apenas piorar tal situação. A exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual. Queria recordar a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: « com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social »[61].

[60] Cf. Leonis XIII P. M. Acta, XI (1892), 135.
[61] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes
GS 63.


26 No plano cultural, as diferenças, relativamente aos tempos de Paulo VI, são ainda mais acentuadas. Então, as culturas apresentavam-se bastante bem definidas e tinham maiores possibilidades para se defender das tentativas de homogeneização cultural. Hoje, cresceram notavelmente as possibilidades de interacção das culturas, dando espaço a novas perspectivas de diálogo intercultural; um diálogo que, para ser eficaz, deve ter como ponto de partida uma profunda noção da específica identidade dos vários interlocutores. No entanto, não se deve descurar o facto de que esta aumentada transacção de intercâmbios culturais traz consigo, actualmente, um duplo perigo. Em primeiro lugar, nota-se um ecletismo cultural assumido muitas vezes sem discernimento: as culturas são simplesmente postas lado a lado e vistas como substancialmente equivalentes e intercambiáveis umas com as outras. Isto favorece a cedência a um relativismo que não ajuda o verdadeiro diálogo intercultural; no plano social, o relativismo cultural faz com que os grupos culturais se juntem ou convivam, mas separados, sem autêntico diálogo e, consequentemente, sem verdadeira integração. Depois, temos o perigo oposto que é constituído pelo nivelamento cultural e a homogeneização dos comportamentos e estilos de vida. Assim perde-se o significado profundo da cultura das diversas nações, das tradições dos vários povos, no âmbito das quais a pessoa se confronta com as questões fundamentais da existência[62]. Ecletismo e nivelamento cultural convergem no facto de separar a cultura da natureza humana. Assim, as culturas deixam de saber encontrar a sua medida numa natureza que as transcende[63], acabando por reduzir o homem a simples dado cultural. Quando isto acontece, a humanidade corre novos perigos de servidão e manipulação.

[62] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus
CA 24: AAS 83 (1991), 821-822.
[63] Cf. João Paulo II, Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agosto de 1993), VS 33 VS 46 VS 51: AAS 85 (1993), 1160.1169-1171.1174-1175; Discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas na comemoração do cinquentenário de fundação (5 de Outubro de 1995), 3: Insegnamenti XVIII/2 (1995), 732-733.


27 Em muitos países pobres, continua — com risco de aumentar — uma insegurança extrema de vida, que deriva da carência de alimentação: a fome ceifa ainda inúmeras vítimas entre os muitos Lázaros, a quem não é permitido — como esperara Paulo VI — sentar-se à mesa do rico avarento[64]. Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25,35 Mt 25,37 Mt 25,42) é um imperativo ético para toda a Igreja, que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra. A fome não depende tanto de uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais importante dos quais é de natureza institucional; isto é, falta um sistema de instituições económicas que seja capaz de garantir um acesso regular e adequado, do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional. O problema da insegurança alimentar há-de ser enfrentado numa perspectiva a longo prazo, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres por meio de investimentos em infra-estruturas rurais, sistemas de irrigação, transportes, organização dos mercados, formação e difusão de técnicas agrícolas apropriadas, isto é, capazes de utilizar o melhor possível os recursos humanos, naturais e socioeconómicos mais acessíveis a nível local, para garantir a sua manutenção a longo prazo. Tudo isto há-de ser realizado, envolvendo as comunidades locais nas opções e nas decisões relativas ao uso da terra cultivável. Nesta perspectiva, poderia revelar-se útil considerar as novas fronteiras abertas por um correcto emprego das técnicas de produção agrícola, tanto as tradicionais como as inovadoras, desde que as mesmas tenham sido, depois de adequada verificação, reconhecidas oportunas, respeitadoras do ambiente e tendo em conta as populações mais desfavorecidas. Ao mesmo tempo não deveria ser transcurada a questão de uma equitativa reforma agrária nos países em vias de desenvolvimento. Os direitos à alimentação e à água revestem um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, é necessária a maturação duma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os seres humanos, sem distinções nem discriminações[65]. Além disso, é importante pôr em evidência que o caminho da solidariedade com o desenvolvimento dos países pobres pode constituir um projecto de solução para a presente crise global, como homens políticos e responsáveis de instituições internacionais têm intuído nos últimos tempos. Sustentando, através de planos de financiamento inspirados pela solidariedade, os países economicamente pobres, para que provejam eles mesmos à satisfação das solicitações de bens de consumo e de desenvolvimento dos próprios cidadãos, é possível não apenas gerar verdadeiro crescimento económico mas também concorrer para sustentar as capacidades produtivas dos países ricos que correm o risco de ficar comprometidas pela crise.

[64] Cf. Carta enc. Populorum progressio PP 47: AAS 59 (1967), 280-281; João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis SRS 42: AAS 80 (1988), 572-574.
[65] Cf. Bento XVI, Mensagem por ocasião do Dia Mundial da Alimentação de 2007:AAS 99 (2007), 933-935.
28 Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento actual é a importância do tema do respeito pela vida, que não pode ser de modo algum separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos. Trata-se de um aspecto que, nos últimos tempos, está a assumir uma relevância sempre maior, obrigando-nos a alargar os conceitos de pobreza [66] e subdesenvolvimento às questões relacionadas com o acolhimento da vida, sobretudo onde o mesmo é de várias maneiras impedido.

Não só a situação de pobreza provoca ainda altas taxas de mortalidade infantil em muitas regiões, mas perduram também, em várias partes do mundo, práticas de controle demográfico por parte dos governos, que muitas vezes difundem a contracepção e chegam mesmo a impor o aborto. Nos países economicamente mais desenvolvidos, são muito difusas as legislações contrárias à vida, condicionando já o costume e a práxis e contribuindo para divulgar uma mentalidade antinatalista que muitas vezes se procura transmitir a outros Estados como se fosse um progresso cultural.

Também algumas organizações não governamentais trabalham activamente pela difusão do aborto, promovendo nos países pobres a adopção da prática da esterilização, mesmo sem as mulheres o saberem. Além disso, há a fundada suspeita de que às vezes as próprias ajudas ao desenvolvimento sejam associadas com determinadas políticas de saúde que realmente implicam a imposição de um forte controle dos nascimentos. Igualmente preocupantes são as legislações que prevêem a eutanásia e as pressões de grupos nacionais e internacionais que reivindicam o seu reconhecimento jurídico.

A abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento. Quando uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar as motivações e energias necessárias para trabalhar ao serviço do verdadeiro bem do homem. Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social[67]. O acolhimento da vida revigora as energias morais e torna-nos capazes de ajuda recíproca. Os povos ricos, cultivando a abertura à vida, podem compreender melhor as necessidades dos países pobres, evitar o emprego de enormes recursos económicos e intelectuais para satisfazer desejos egoístas dos próprios cidadãos e promover, ao invés, acções virtuosas na perspectiva duma produção moralmente sadia e solidária, no respeito do direito fundamental de cada povo e de cada pessoa à vida.

[66] Cf. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae
EV 18 EV 59 EV 63-64: AAS 87 (1995), 419-421.467-468.472-475.
[[67] Cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007, 5: Insegnamenti II/2 (2006), 778.


29 Outro aspecto da vida actual, intimamente relacionado com o desenvolvimento, é a negação do direito à liberdade religiosa. Não me refiro só às lutas e conflitos que ainda se disputam no mundo por motivações religiosas, embora estas às vezes sejam apenas a cobertura para razões de outro género, tais como a sede de domínio e de riqueza. Na realidade, com frequência hoje se faz apelo ao santo nome de Deus para matar, como diversas vezes foi sublinhado e deplorado publicamente pelo meu predecessor João Paulo II e por mim próprio[68]. As violências refreiam o desenvolvimento autêntico e impedem a evolução dos povos para um bem-estar socioeconómico e espiritual maior. Isto aplica-se de modo especial ao terrorismo de índole fundamentalista[69], que gera sofrimento, devastação e morte, bloqueia o diálogo entre as nações e desvia grandes recursos do seu uso pacífico e civil. Mas há que acrescentar que, se o fanatismo religioso impede em alguns contextos o exercício do direito de liberdade de religião, também a promoção programada da indiferença religiosa ou do ateísmo prático por parte de muitos países contrasta com as necessidades do desenvolvimento dos povos, subtraindo-lhes recursos espirituais e humanos. Deus é o garante do verdadeiro desenvolvimento do homem, já que, tendo-o criado à sua imagem, fundamenta de igual forma a sua dignidade transcendente e alimenta o seu anseio constitutivo de « ser mais ». O homem não é um átomo perdido num universo casual[70], mas é uma criatura de Deus, à qual Ele quis dar uma alma imortal e que desde sempre amou. Se o homem fosse fruto apenas do acaso ou da necessidade, se as suas aspirações tivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situações em que vive, se tudo fosse somente história e cultura e o homem não tivesse uma natureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, então poder-se-ia falar de incremento ou de evolução, mas não de desenvolvimento. Quando o Estado promove, ensina ou até impõe formas de ateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenhar no desenvolvimento humano integral e impede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso de uma resposta humana mais generosa ao amor divino[71]. Sucede também que os países economicamente desenvolvidos ou os emergentes exportem para os países pobres, no âmbito das suas relações culturais, comerciais e políticas, esta visão redutiva da pessoa e do seu destino. É o dano que o « superdesenvolvimento » [72] acarreta ao desenvolvimento autêntico, quando é acompanhado pelo « subdesenvolvimento moral »[73].

[68] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002, 4-7.12-15: AAS 94 (2002), 134-136.138-140; Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2004, 8: AAS 96 (2004), 119; Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2005, 4: AAS 97 (2005), 177-178; Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2006, 9-10: AAS 98 (2006), 60-61; Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007, 5.14: Insegnamenti II/2 (2006), 778.782-783.
[69] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002, 6: AAS 94 (2002), 135; Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2006, 9-10: AAS 98 (2006), 60-61.
[70] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no « Islinger Feld » de Regensburg (12 de Setembro de 2006): Insegnamenti II/2 (2006), 252-256.
[71] Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est : AAS 98 (2006), 217-218.
[72] João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis
SRS 28: AAS 80 (1988), 548-550.
[73] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 19: AAS 59 (1967), 266-267.


Caritas in veritate PT 18