Caritas in veritate PT 42


42 Notam-se às vezes atitudes fatalistas a respeito da globalização, como se as dinâmicas em acto fossem produzidas por forças impessoais anónimas e por estruturas independentes da vontade humana[102]. A tal propósito, é bom recordar que a globalização há-de ser entendida, sem dúvida, como um processo socioeconómico, mas esta sua dimensão não é a única. Sob o processo mais visível, há a realidade duma humanidade que se torna cada vez mais interligada; tal realidade é constituída por pessoas e povos, para quem o referido processo deve ser de utilidade e desenvolvimento[103], graças à assunção das respectivas responsabilidades por parte tanto dos indivíduos como da colectividade. A superação das fronteiras é um dado não apenas material mas também cultural nas suas causas e efeitos. Se a globalização for lida de maneira determinista, perdem-se os critérios para a avaliar e orientar. Trata-se de uma realidade humana que pode ter, na sua fonte, várias orientações culturais, sobre as quais é preciso fazer discernimento. A verdade da globalização enquanto processo e o seu critério ético fundamental provêm da unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem. Por isso é preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial.

Não obstante algumas limitações estruturais, que não se hão-de negar nem absolutizar, « a globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela »[104]. Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando com bom senso, guiados pela caridade e a verdade. Opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos, com o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportunidades de desenvolvimento por ele oferecidas. Adequadamente concebidos e geridos, os processos de globalização oferecem a possibilidade duma grande redistribuição da riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido; se mal geridos, podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade, bem como contagiar com uma crise o mundo inteiro. É preciso corrigir as suas disfunções, tantas vezes graves, que introduzem novas divisões entre os povos e no interior dos mesmos, e fazer com que a redistribuição da riqueza não se verifique à custa de uma redistribuição da pobreza ou até com o seu agravamento, como uma má gestão da situação actual poderia fazer-nos temer. Durante muito tempo, pensou-se que os povos pobres deveriam permanecer ancorados num estádio predeterminado de desenvolvimento, contentando-se com a filantropia dos povos desenvolvidos. Contra esta mentalidade, tomou posição Paulo VI na Populorum progressio. Hoje, as forças materiais de que se pode dispor para fazer aqueles povos sair da miséria são potencialmente maiores do que outrora, mas acabaram por se aproveitar delas prevalecentemente os povos dos países desenvolvidos, que conseguiram desfrutar melhor o processo de liberalização dos movimentos de capitais e do trabalho. Por isso a difusão dos ambientes de bem-estar a nível mundial não deve ser refreada por projectos egoístas, proteccionistas ou ditados por interesses particulares. De facto, hoje, o envolvimento dos países emergentes ou em vias de desenvolvimento permite gerir melhor a crise. A transição inerente ao processo de globalização apresenta grandes dificuldades e perigos, que poderão ser superados apenas se se souber tomar consciência daquela alma antropológica e ética que, do mais fundo, impele a própria globalização para metas de humanização solidária. Infelizmente esta alma é muitas vezes abafada e condicionada por perspectivas ético-culturais de delineamento individualista e utilitarista. A globalização é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que exige ser compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões, incluindo a teológica. Isto permitirá viver e orientar a globalização da humanidade em termos de relacionamento, comunhão e partilha.

[102] Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Instr. sobre a liberdade cristã e a libertação Libertatis conscientia (22 de Março de 1987), 74: AAS 79 (1987), 587.
[103] Cf. João Paulo II, Entrevista ao diário católico « La Croix » de 20 de Agosto de 1997.
[104] João Paulo II, Discurso à Pontifícia Academia das Ciências Sociais (27 de Abril de 2001): Insegnamenti XXIV/1 (2001), 800.



CAPÍTULO IV

DESENVOLVIMENTO DOS POVOS, DIREITOS E DEVERES, AMBIENTE


43 « A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever »[105]. Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão de que não devem nada a ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio. Por isso, é importante invocar uma nova reflexão que faça ver como os direitos pressupõem deveres, sem os quais o seu exercício se transforma em arbítrio[106]. Assiste-se hoje a uma grave contradição: enquanto, por um lado, se reivindicam presuntos direitos, de carácter arbitrário e libertino, querendo vê-los reconhecidos e promovidos pelas estruturas públicas, por outro existem direitos elementares e fundamentais violados e negados a boa parte da humanidade[107]. Aparece com frequência assinalada uma relação entre a reivindicação do direito ao supérfluo, se não mesmo à transgressão e ao vício, nas sociedades opulentas e a falta de alimento, água potável, instrução básica, cuidados médicos elementares em certas regiões do mundo do subdesenvolvimento e também nas periferias de grandes metrópoles. A relação está no facto de que os direitos individuais, desvinculados de um quadro de deveres que lhes confira um sentido completo, enlouquecem e alimentam uma espiral de exigências praticamente ilimitada e sem critérios. A exasperação dos direitos desemboca no esquecimento dos deveres. Estes delimitam os direitos porque remetem para o quadro antropológico e ético cuja verdade é o âmbito onde os mesmos se inserem e, deste modo, não descambam no arbítrio. Por este motivo, os deveres reforçam os direitos e propõem a sua defesa e promoção como um compromisso a assumir ao serviço do bem. Se, pelo contrário, os direitos do homem encontram o seu fundamento apenas nas deliberações duma assembleia de cidadãos, podem ser alterados em qualquer momento e, assim, o dever de os respeitar e promover atenua-se na consciência comum. Então os governos e os organismos internacionais podem esquecer a objectividade e « indisponibilidade » dos direitos. Quando isto acontece, põe-se em perigo o verdadeiro desenvolvimento dos povos[108]. Semelhantes posições comprometem a autoridade dos organismos internacionais, sobretudo aos olhos dos países mais carecidos de desenvolvimento. De facto, estes pedem que a comunidade internacional assuma como um dever ajudá-los a serem « artífices do seu destino »[109], ou seja, a assumirem por sua vez deveres. A partilha dos deveres recíprocos mobiliza muito mais do que a mera reivindicação de direitos.

[105] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio
PP 17: AAS 59 (1967), 265-266.
[106] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2003, 5: AAS 95 (2003), 343.
[107] Cf. ibid., 5: o.c., 343.
[108] Cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007, 13: Insegnamenti II/2 (2006), 781-782.
[109] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 65: AAS 59 (1967), 289.


44 A concepção dos direitos e dos deveres no desenvolvimento deve ter em conta também as problemáticas ligadas com o crescimento demográfico. Trata-se de um aspecto muito importante do verdadeiro desenvolvimento, porque diz respeito aos valores irrenunciáveis da vida e da família[110]. Considerar o aumento da população como a primeira causa do subdesenvolvimento é errado, inclusive do ponto de vista económico: basta pensar, por um lado, na considerável diminuição da mortalidade infantil e no alongamento médio da vida que se regista nos países economicamente desenvolvidos, e, por outro, nos sinais de crise que se observam nas sociedades onde se regista uma preocupante queda da natalidade. Obviamente é forçoso prestar a devida atenção a uma procriação responsável, que constitui, para além do mais, uma real contribuição para o desenvolvimento integral. A Igreja, que tem a peito o verdadeiro desenvolvimento do homem, recomenda-lhe o respeito dos valores humanos também no uso da sexualidade: o mesmo não pode ser reduzido a um mero facto hedonista e lúdico, do mesmo modo que a educação sexual não se pode limitar à instrução técnica, tendo como única preocupação defender os interessados de eventuais contágios ou do « risco » procriador. Isto equivaleria a empobrecer e negligenciar o significado profundo da sexualidade, que deve, pelo contrário, ser reconhecido e assumido responsavelmente tanto pela pessoa como pela comunidade. Com efeito, a responsabilidade impede que se considere a sexualidade como uma simples fonte de prazer ou que seja regulada com políticas de planificação forçada dos nascimentos. Em ambos os casos, estamos perante concepções e políticas materialistas, no âmbito das quais as pessoas acabam por sofrer várias formas de violência. A tudo isto há que contrapor a competência primária das famílias neste campo[111], relativamente ao Estado e às suas políticas restritivas, e também uma apropriada educação dos pais.

A abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e económica. Grandes nações puderam sair da miséria, justamente graças ao grande número e às capacidades dos seus habitantes. Pelo contrário, nações outrora prósperas atravessam agora uma fase de incerteza e, em alguns casos, de declínio precisamente por causa da diminuição da natalidade, problema crucial para as sociedades de proeminente bem-estar. A diminuição dos nascimentos, situando-se por vezes abaixo do chamado « índice de substituição », põe em crise também os sistemas de assistência social, aumenta os seus custos, contrai a acumulação de poupanças e, consequentemente, os recursos financeiros necessários para os investimentos, reduz a disponibilização de trabalhadores qualificados, restringe a reserva aonde ir buscar os « cérebros » para as necessidades da nação. Além disso, as famílias de pequena e, às vezes, pequeníssima dimensão correm o risco de empobrecer as relações sociais e de não garantir formas eficazes de solidariedade. São situações que apresentam sintomas de escassa confiança no futuro e de cansaço moral. Deste modo, torna-se uma necessidade social, e mesmo económica, continuar a propor às novas gerações a beleza da família e do matrimónio, a correspondência de tais instituições às exigências mais profundas do coração e da dignidade da pessoa. Nesta perspectiva, os Estados são chamados a instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade[112], preocupando-se também com os seus problemas económicos e fiscais, no respeito da sua natureza relacional.

[110] Cf. ibid.,
PP 36-37: o.c., 275-276.
[111] Cf. ibid., PP 37: o.c., 275-276.
[112] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem AA 11.


45 Dar resposta às exigências morais mais profundas da pessoa tem também importantes e benéficas consequências no plano económico. De facto, a economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa. Hoje fala-se muito de ética em campo económico, financeiro, empresarial. Nascem centros de estudo e percursos formativos de negócios éticos; difunde-se no mundo desenvolvido o sistema das certificações éticas, na esteira do movimento de ideias nascido à volta da responsabilidade social da empresa. Os bancos propõem contas e fundos de investimento chamados « éticos ». Desenvolvem-se as « finanças éticas », sobretudo através do microcrédito e, mais em geral, de microfinanciamentos. Tais processos suscitam apreço e merecem amplo apoio. Os seus efeitos positivos fazem-se sentir também nas áreas menos desenvolvidas da terra. Todavia, é bom formar também um válido critério de discernimento, porque se nota um certo abuso do adjectivo « ético », o qual, se usado vagamente, presta-se a designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem.

Com efeito, muito depende do sistema moral em que se baseia. Sobre este argumento, a doutrina social da Igreja tem um contributo próprio e específico para dar, que se funda na criação do homem « à imagem de Deus » (
Gn 1,27), um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor transcendente das normas morais naturais. Uma ética económica que prescinda destes dois pilares arrisca-se inevitavelmente a perder o seu cunho específico e a prestar-se a instrumentalizações; mais concretamente, arrisca-se a aparecer em função dos sistemas económico-financeiros existentes, em vez de servir de correcção às disfunções dos mesmos. Além do mais, acabaria até por justificar o financiamento de projectos que não são éticos. Por outro lado, não se deve recorrer ao termo « ético » de modo ideologicamente discriminatório, dando a perceber que não seriam éticas as iniciativas não dotadas formalmente de tal qualificação. Um dado é essencial: a necessidade de trabalhar não só para que nasçam sectores ou segmentos « éticos » da economia ou das finanças, mas também para que toda a economia e as finanças sejam éticas: e não por uma rotulação exterior, mas pelo respeito de exigências intrínsecas à sua própria natureza. A tal respeito, se pronuncia com clareza a doutrina social da Igreja, que recorda como a economia, em todas as suas extensões, seja um sector da actividade humana[113].

[113] Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio PP 14: AAS 59 (1967), 264; João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus CA 32: AAS 83 (1991), 832-833.


46 Considerando as temáticas referentes à relação entre empresa e ética e também a evolução que o sistema produtivo está a fazer, parece que a distinção usada até agora entre empresas que têm por finalidade o lucro (profit) e organizações que não buscam o lucro (non profit) já não é capaz de dar cabalmente conta da realidade, nem de orientar eficazmente o futuro. Nestas últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma ampla área intermédia. Esta é constituída por empresas tradicionais mas que subscrevem pactos de ajuda aos países atrasados, por fundações que são expressão de empresas individuais, por grupos de empresas que se propõem objectivos de utilidade social, pelo mundo diversificado dos sujeitos da chamada economia civil e de comunhão. Não se trata apenas de um « terceiro sector », mas de uma nova e ampla realidade complexa, que envolve o privado e o público e que não exclui o lucro mas considera-o como instrumento para realizar finalidades humanas e sociais. O facto de tais empresas distribuírem ou não os ganhos ou de assumirem uma ou outra das configurações previstas pelas normas jurídicas torna-se secundário relativamente à sua disponibilidade a conceber o lucro como um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também encontrem, em todos os países, adequada configuração jurídica e fiscal. Sem nada tirar à importância e utilidade económica e social das formas tradicionais de empresa, fazem evoluir o sistema para uma assunção mais clara e perfeita dos deveres por parte dos sujeitos económicos. E não só... A própria pluralidade das formas institucionais de empresa gera um mercado mais humano e simultaneamente mais competitivo.


47 O fortalecimento das diversas tipologias de empresa, mormente das que são capazes de conceber o lucro como um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e das sociedades, deve ser procurado também nos países que sofrem exclusão ou marginalização dos circuitos da economia global, onde é muito importante avançar com projectos de subsidiariedade devidamente concebida e gerida que tendam a potenciar os direitos, mas prevendo sempre também a assunção das correlativas responsabilidades. Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o sujeito que primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento. A preocupação principal é a melhoria das situações de vida das pessoas concretas duma certa região, para que possam desempenhar aqueles deveres que actualmente a indigência não lhes permite respeitar. A solicitude nunca pode ser uma atitude abstracta. Para poderem adaptar-se às diversas situações, os programas de desenvolvimento devem ser flexíveis; e as pessoas beneficiárias deveriam estar envolvidas directamente na sua delineação e tornar-se protagonistas da sua actuação. É necessário também aplicar os critérios da progressão e do acompanhamento — incluindo a monitorização dos resultados — porque não há receitas válidas universalmente; depende muito da gestão concreta das intervenções. « São os povos os autores e primeiros responsáveis do próprio desenvolvimento. Mas não o poderão realizar isolados »[114]. Esta advertência de Paulo VI é ainda mais válida hoje, com o processo de progressiva integração que se vai consolidando na terra. As dinâmicas de inclusão não têm nada de mecânico. As soluções hão-de ser calibradas olhando a vida dos povos e das pessoas concretas com base numa ponderada avaliação de cada situação. Ao lado dos macroprojectos servem os microprojectos, e sobretudo serve a mobilização real de todos os sujeitos da sociedade civil, das pessoas tanto jurídicas como físicas.

A cooperação internacional precisa de pessoas que partilhem o processo de desenvolvimento económico e humano, através da solidariedade feita de presença, acompanhamento, formação e respeito. Sob este ponto de vista, os próprios organismos internacionais deveriam interrogar-se sobre a real eficácia das suas estruturas burocráticas e administrativas, frequentemente muito dispendiosas. Às vezes sucede que o destinatário das ajudas seja utilizado em função de quem o ajuda e que os pobres sirvam para manter de pé dispendiosas organizações burocráticas que reservam para a sua própria conservação percentagens demasiado elevadas dos recursos que, ao invés, deveriam ser aplicados no desenvolvimento. Nesta perspectiva, seria desejável que todos os organismos internacionais e as organizações não governamentais se comprometessem a uma plena transparência, informando os doadores e a opinião pública acerca da percentagem de fundos recebidos destinada aos programas de cooperação, acerca do verdadeiro conteúdo de tais programas e, por último, acerca da configuração das despesas da própria instituição.

[114] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio
PP 77: AAS 59 (1967), 295.


48 O tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece o resultado maravilhoso da intervenção criadora de Deus, de que o homem se pode responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências — materiais e imateriais — no respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria criação. Se falta esta perspectiva, o homem acaba por considerar a natureza um tabu intocável ou, ao contrário, por abusar dela. Nem uma nem outra destas atitudes corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus.

A natureza é expressão de um desígnio de amor e de verdade. Precede-nos, tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida. Fala-nos do Criador (cf.
Rm 1,20) e do seu amor pela humanidade. Está destinada, no fim dos tempos, a ser « instaurada » em Cristo (cf. Ep 1,9-10 Col 1,19-20). Por conseguinte, também ela é uma « vocação »[115]. A natureza está à nossa disposição, não como « um monte de lixo espalhado ao acaso »[116], mas como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos quais o homem há-de tirar as devidas orientações para a « guardar e cultivar » (Gn 2,15). Mas é preciso sublinhar também que é contrário ao verdadeiro desenvolvimento considerar a natureza mais importante do que a própria pessoa humana. Esta posição induz a comportamentos neopagãos ou a um novo panteísmo: só da natureza, entendida em sentido puramente naturalista, não pode derivar a salvação para o homem. Por outro lado, há que rejeitar também a posição oposta, que visa a sua completa tecnicização, porque o ambiente natural não é apenas matéria de que dispor a nosso bel-prazer, mas obra admirável do Criador, contendo nela uma « gramática » que indica finalidades e critérios para uma utilização sapiente, não instrumental nem arbitrária. Advêm, hoje, muitos danos ao desenvolvimento precisamente destas concepções deformadas. Reduzir completamente a natureza a um conjunto de simples dados reais acaba por ser fonte de violência contra o ambiente e até por motivar acções desrespeitadoras da própria natureza do homem. Esta, constituída não só de matéria mas também de espírito e, como tal, rica de significados e de fins transcendentes a alcançar, tem um carácter normativo também para a cultura. O homem interpreta e modela o ambiente natural através da cultura, a qual, por sua vez, é orientada por meio da liberdade responsável, atenta aos ditames da lei moral. Por isso, os projectos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e a justiça entre as gerações, tendo em conta os diversos âmbitos: ecológico, jurídico, económico, político, cultural[117].

[115] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 6: AAS 82 (1990), 150.
[116] Heráclito de Éfeso (± 535-475 a.C.), Fragmento 22B124, in H. Diels-W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (Weidmann, Berlim 19526).
[117] Cf. Pont. Conselho « Justiça e Paz », Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nn. 451-487.
49 Hoje, as questões relacionadas com o cuidado e a preservação do ambiente devem ter na devida consideração as problemáticas energéticas. De facto, o açambarcamento dos recursos energéticos não renováveis por parte de alguns Estados, grupos de poder e empresas constitui um grave impedimento para o desenvolvimento dos países pobres. Estes não têm os meios económicos para chegar às fontes energéticas não renováveis que existem, nem para financiar a pesquisa de fontes novas e alternativas. A monopolização dos recursos naturais, que em muitos casos se encontram precisamente nos países pobres, gera exploração e frequentes conflitos entre as nações e dentro das mesmas. E muitas vezes estes conflitos são travados precisamente no território de tais países, com um pesado balanço em termos de mortes, destruições e maior degradação. A comunidade internacional tem o imperioso dever de encontrar as vias institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, com a participação também dos países pobres, de modo a planificar em conjunto o futuro.

Também sobre este aspecto, há urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade, especialmente nas relações entre os países em vias de desenvolvimento e os países altamente industrializados[118]. As sociedades tecnicamente avançadas podem e devem diminuir o consumo energético seja porque as actividades manufactureiras evoluem, seja porque entre os seus cidadãos reina maior sensibilidade ecológica. Além disso há que acrescentar que, actualmente, é possível melhorar a eficiência energética e fazer avançar a pesquisa de energias alternativas; mas é necessária também uma redistribuição mundial dos recursos energéticos, de modo que os próprios países desprovidos possam ter acesso aos mesmos. O seu destino não pode ser deixado nas mãos do primeiro a chegar nem estar sujeito à lógica do mais forte. Trata-se de problemas relevantes que, para ser enfrentados de modo adequado, requerem da parte de todos uma responsável tomada de consciência das consequências que recairão sobre as novas gerações, principalmente sobre a imensidade de jovens presentes nos povos pobres, que « reclamam a sua parte activa na construção de um mundo melhor »[119].

[118] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 10: AAS 82 (1990), 152-153.
[119] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio
PP 65: AAS 59 (1967), 289.
50 Esta responsabilidade é global, porque não diz respeito somente à energia, mas a toda a criação, que não devemos deixar às novas gerações depauperada dos seus recursos. É lícito ao homem exercer um governo responsável sobre a natureza para a guardar, fazer frutificar e cultivar inclusive com formas novas e tecnologias avançadas, para que possa acolher e alimentar condignamente a população que a habita. Há espaço para todos nesta nossa terra: aqui a família humana inteira deve encontrar os recursos necessários para viver decorosamente, com a ajuda da própria natureza, dom de Deus aos seus filhos, e com o empenho do seu próprio trabalho e inventiva. Devemos, porém, sentir como gravíssimo o dever de entregar a terra às novas gerações num estado tal que também elas possam dignamente habitá-la e continuar a cultivá-la. Isto implica « o empenho de decidir juntos depois de ter ponderado responsavelmente qual a estrada a percorrer, com o objectivo de reforçar aquela aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho »[120]. É desejável que a comunidade internacional e os diversos governos saibam contrastar, de maneira eficaz, as modalidades de utilização do ambiente que sejam danosas para o mesmo. É igualmente forçoso que se empreendam, por parte das autoridades competentes, todos os esforços necessários para que os custos económicos e sociais derivados do uso dos recursos ambientais comuns sejam reconhecidos de maneira transparente e plenamente suportados por quem deles usufrui e não por outras populações nem pelas gerações futuras: a protecção do ambiente, dos recursos e do clima requer que todos os responsáveis internacionais actuem conjuntamente e se demonstrem prontos a agir de boa fé, no respeito da lei e da solidariedade para com as regiões mais débeis da terra[121]. Uma das maiores tarefas da economia é precisamente um uso mais eficiente dos recursos, não o abuso, tendo sempre presente que a noção de eficiência não é axiologicamente neutra.

[120] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2008, 7: AAS 100 (2008), 41.
[121] Cf. Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembleia Geral das Nações Unidas (18 de Abril de 2008): Insegnamenti IV//1 (2008), 618-626.


51 As modalidades com que o homem trata o ambiente influem sobre as modalidades com que se trata a si mesmo, e vice-versa.Isto chama a sociedade actual a uma séria revisão do seu estilo de vida que, em muitas partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar aos danos que daí derivam[122]. É necessária uma real mudança de mentalidade que nos induza a adoptar novos estilos de vida, « nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens para um crescimento comum sejam os elementos que determinam as opções dos consumos, das poupanças e dos investimentos »[123]. Toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica provoca danos ambientais, assim como a degradação ambiental por sua vez gera insatisfação nas relações sociais. A natureza, especialmente no nosso tempo, está tão integrada nas dinâmicas sociais e culturais que quase já não constitui uma variável independente. A desertificação e a penúria produtiva de algumas áreas agrícolas são fruto também do empobrecimento das populações que as habitam e do seu atraso. Incentivando o desenvolvimento económico e cultural daquelas populações, tutela-se também a natureza. Além disso, quantos recursos naturais são devastados pela guerra! A paz dos povos e entre os povos permitiria também uma maior preservação da natureza. O açambarcamento dos recursos, especialmente da água, pode provocar graves conflitos entre as populações envolvidas. Um acordo pacífico sobre o uso dos recursos pode salvaguardar a natureza e, simultaneamente, o bem-estar das sociedades interessadas.

A Igreja sente o seu peso de responsabilidade pela criação e deve fazer valer esta responsabilidade também em público. Ao fazê-lo, não tem apenas de defender a terra, a água e o ar como dons da criação que pertencem a todos, mas deve sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo. Requer-se uma espécie de ecologia do homem, entendida no justo sentido. De facto, a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana: quando a « ecologia humana » [124] é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental. Tal como as virtudes humanas são intercomunicantes, de modo que o enfraquecimento de uma põe em risco também as outras, assim também o sistema ecológico se rege sobre o respeito de um projecto que se refere tanto à sã convivência em sociedade como ao bom relacionamento com a natureza.

Para preservar a natureza não basta intervir com incentivos ou penalizações económicas, nem é suficiente uma instrução adequada. Trata-se de instrumentos importantes, mas o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral. Se não é respeitado o direito à vida e à morte natural, se se tornam artificiais a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental. É uma contradição pedir às novas gerações o respeito do ambiente natural, quando a educação e as leis não as ajudam a respeitar-se a si mesmas. O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral. Os deveres que temos para com o ambiente estão ligados com os deveres que temos para com a pessoa considerada em si mesma e em relação com os outros; não se podem exigir uns e espezinhar os outros. Esta é uma grave antinomia da mentalidade e do costume actual, que avilta a pessoa, transtorna o ambiente e prejudica a sociedade.

[122] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 13: AAS 82 (1990), 154-155.
[123] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus
CA 36: AAS 83 (1991), 838-840.
[124] Ibid., 38: o.c., 840-841; cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007, 8: Insegnamenti II/2 (2006), 779.


52 A verdade e o amor que a mesma desvenda não se podem produzir, mas apenas acolher. A sua fonte última não é — nem pode ser — o homem, mas Deus, ou seja, Aquele que é Verdade e Amor. Este princípio é muito importante para a sociedade e para o desenvolvimento, enquanto nem uma nem outro podem ser somente produtos humanos; a própria vocação ao desenvolvimento das pessoas e dos povos não se funda sobre a simples deliberação humana, mas está inscrita num plano que nos precede e constitui para todos nós um dever que há-de ser livremente assumido. Aquilo que nos precede e constitui — o Amor e a Verdade subsistentes — indica-nos o que é o bem e em que consiste a nossa felicidade. E, por conseguinte, aponta-nos o caminho para o verdadeiro desenvolvimento.


Caritas in veritate PT 42