Christifideles laici PT 14

Partipantes no múnus sacerdotal, profético e real de Jesus Cristo

14 Dirigindo-se aos baptizados como a crianças recém-nascidas, o apóstolo Pedro escreve: « Agarrando-vos a Ele pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus, vós também, quais pedras vivas, sois usados na construção de um edifício espiritual, por meio de um sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus, por Jesus Cristo... Vós, porém, sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo que Deus adquiriu para anunciar as maravilhas d'Aquele que vos chamou das trevas à Sua luz admirável ... » (1P 2,4-5 1P 2,9).

Eis um novo aspecto da graça e da dignidade baptismal: os fiéis leigos participam, por sua vez, no tríplice múnus — sacerdotal, profético e real — de Jesus Cristo. Trata-se de um aspecto que a tradição viva da Igreja nunca esqueceu, como resulta, por exemplo, da explicação que Santo Agostinho deu do Salmo 26. Escreve ele: « David foi ungido rei. Naquele tempo ungiam-se apenas o rei e o sacerdote. Nessas duas pessoas prefigurava-se o futuro único rei e sacerdote, Cristo (daí que "Cristo" venha de "crisma"). Não foi, porém, ungido apenas a nossa Cabeça, mas fomos ungidos também nós, Seu corpo... Por isso, a unção diz respeito a todos os cristãos, quando no tempo do Antigo Testamento pertencia apenas a duas pessoas. Deduz-se claramente sermos nós o corpo de Cristo, do facto de sermos todos ungidos e de todos sermos n'Ele "cristos" e Cristo, porque, de certa forma, a Cabeça e o corpo formam o Cristo na sua integridade ».(19)

Nas pisadas do Concílio Vaticano II,(20) propus-me, desde o início do meu serviço pastoral, exaltar a dignidade sacerdotal, profética e real de todo o Povo de Deus, afirmando: « Aquele que nasceu da Virgem Maria, o Filho do carpinteiro — como o julgavam — o Filho do Deus vivo, como confessou Pedro, veio para fazer de todos nós "um reino de sacerdotes". O Concílio Vaticano II recordou-nos o mistério deste poder e o facto de que a missão de Cristo — Sacerdote, Profeta-Mestre, Rei — continua na Igreja. Todos, todo o Povo de Deus participa nesta tríplice missão ».(21)

Com esta Exortação mais uma vez convido os fiéis leigos a reler, a meditar e a assimilar com inteligência e com amor a rica e fecunda doutrina do Concílio sobre a sua participação no tríplice múnus de Cristo.(22) Eis agora em síntese os elementos essenciais dessa doutrina.

Os fiéis leigos participam no múnus sacerdotal, pelo qual Jesus se ofereceu a Si mesmo sobre a Cruz e continuamente Se oferece na celebração da Eucaristia para glória do Pai e pela salvação da humanidade. Incorporados em Cristo Jesus, os baptizados unem-se a Ele e ao Seu sacrifício, na oferta de si mesmos e de todas as suas actividades (cf. Rm 12,1-2). Ao falar dos fiéis leigos, o Concílio diz: « Todos os seus trabalhos, orações e empreendimentos apostólicos, a vida conjugal e familiar, o trabalho de cada dia, o descanso do espírito e do corpo, se forem feitos no Espírito, e as próprias incomodidades da vida, suportadas com paciência, se tornam em outros tantos sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo (cf. 1P 2,5); sacrifícios estes que são piedosamente oferecidos ao Pai, juntamente com a oblação do corpo do Senhor, na celebração da Eucaristia. E deste modo, os leigos, agindo em toda a parte santamente, como adoradores, consagram a Deus o próprio mundo ».(23)

A participação no múnus profético de Cristo, « que, pelo testemunho da vida e pela força da palavra, proclamou o Reino do Pai »,(24) habilita e empenha os fiéis leigos a aceitar, na fé, o Evangelho e a anunciá-lo com a palavra e com as obras, sem medo de denunciar corajosamente o mal. Unidos a Cristo, o « grande profeta » (Lc 7,16), e constituídos no Espírito « testemunhas » de Cristo Ressuscitado, os fiéis leigos tornam-se participantes quer do sentido de fé sobrenatural da Igreja que « não pode errar no crer »(25) quer da graça da palavra (cf. Act Ac 2,17-18 Ap 19,10); eles são igualmente chamados a fazer brilhar a novidade e a força do Evangelho na sua vida quotidiana, familiar e social, e a manifestar, com paciência e coragem, nas contradições da época presente, a sua esperança na glória « também por meio das estruturas da vida secular ».(26)

Ao pertencerem a Cristo Senhor e Rei do universo, os fiéis leigos participam no Seu múnus real e por Ele são chamados para o serviço do Reino de Deus e para a sua difusão na história. Vivem a realeza cristã, sobretudo no combate espiritual para vencerem dentro de si o reino do pecado (cf. Rm 6,12), e depois, mediante o dom de si, para servirem, na caridade e na justiça, o próprio Jesus presente em todos os seus irmãos, sobretudo nos mais pequeninos (cf. Mt 25,40).

Mas os fiéis leigos são chamados de forma particular a restituir à criação todo o seu valor originário. Ao ordenar as coisas criadas para o verdadeiro bem do homem, com uma acção animada pela vida da graça, os fiéis leigos participam no exercício do poder com que Jesus Ressuscitado atrai a Si todas as coisas e as submete, com Ele mesmo, ao Pai, por forma a que Deus seja tudo em todos (cf. 1Co 15,28 Jn 12,32).

A participação dos fiéis leigos no tríplice múnus de Cristo Sacerdote, Profeta e Rei encontra a sua raiz primeira na unção do Baptismo, o seu desenvolvimento na Confirmação e a sua perfeição e sustento dinâmico na Eucaristia. É uma participação que se oferece a cada um dos fiéis leigos, masenquanto formam o único corpo do Senhor. Com efeito, é a Igreja que Jesus enriquece com os Seus dons, qual Seu Corpo e Sua Esposa. Assim, os indivíduos participam no tríplice múnus de Cristo enquanto membros da Igreja, como claramente ensina o apóstolo Pedro, que define os baptizados como « raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo que Deus adquiriu » (1P 2,9). Precisamente por derivar da comunhão eclesial, a participação dos fiéis leigos no tríplice múnus de Cristo exige ser vivida e actuada na comunhão e para o crescimento da mesma comunhão. Escrevia Santo Agostinho: « Como chamamos a todos cristãos em virtude do místico crisma, assim a todos chamamos sacerdotes porque são membros do único Sacerdote ».(27)

(19) S. Agostinho, Enarr. in Ps. 26, II, 2: PL 36, 199-200.
(20) Cf. Conc. Ecum. Vat. II,, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 10.
(21) João Paulo II, Homilia ao início do ministério de Supremo Pastor da Igreja (22 de Outubro de 1978): AAS 70 (1978), 946.
(22) Cf. a nova proposta desta doutrina no Instrumentum Laboris, « De vocatione et missione laicorum in Ecclesia et in mundo viginti annis a Concilio Vaticano II elapsis », 25.
(23) Conc. Ecum. Vat. II,, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 34.
(24) Ibid., LG 35.
(25) Ibid., LG 12.
(26) Ibid., LG 35.
(27) S. Agostinho, De civitate Dei, XX, 10: CCL 48, 720.


Os fiéis leigos e a índole secular

15 A novidade cristã é o fundamento e o título da igualdade de todos os baptizados em Cristo, de todos os membros do Povo de Deus: « Comum é a dignidade dos membros, pela regeneração em Cristo, comum a graça dos filhos, comum a vocação à perfeição; uma só salvação, uma só esperança e indivisa caridade ».(28) Em virtude da comum dignidade baptismal, o fiel leigo é corresponsável, juntamente com os ministros ordenados e com os religiosos e as religiosas, da missão da Igreja.

Mas a comum dignidade baptismal assume no fiel leigo uma modalidade que o distingue, sem todavia o separar, do presbítero, do religioso e da religiosa. O Concílio Vaticano II apontou a índole secular como sendo essa modalidade: « A índole secular é própria e peculiar dos leigos ».(29)

Precisamente para se entender de forma completa, adequada e específica a condição eclesial do fiel leigo, é preciso aprofundar o alcance teológico da índole secular, á luz do plano salvífico de Deus e do mistério da Igreja.

Como dizia Paulo VI, a Igreja « tem uma autêntica dimensão secular, inerente á sua íntima natureza e missão, cuja raiz mergulha no mistério do Verbo encarnado e que se concretiza de formas diversas para os seus membros ».(30)

A Igreja, com efeito, vive no mundo, embora não seja do mundo (cf. Jo
Jn 17,16) e é enviada para dar continuidade à obra redentora de Jesus Cristo, a qual, « visando por natureza salvar os homens, compreende também a instauração de toda a ordem temporal ».(31)

é verdade que todos os membros da Igreja participam na sua dimensão secular, mas de maneiras diferentes. Nomeadamente a participação dos fiéis leigos tem uma sua modalidade de actuação e de função, que, segundo o Concílio, lhes é « própria e peculiar »: tal modalidade é indicada na expressão « índole secular ».(32)

Efectivamente, o Concílio descreve a condição secular dos fiéis leigos indicando-a, antes de mais, como o lugar onde lhes é dirigida a chamada de Deus: « Aí são chamados por Deus ».(33) Trata-se de um « lugar » descrito em termos dinâmicos: os fiéis leigos « vivem no século, isto é, empenhados em toda a qualquer ocupação e actividade terrena e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência ».(34) Os fiéis leigos são pessoas que vivem a vida normal no mundo, estudam, trabalham, estabelecem relações amigáveis, sociais, profissionais, culturais, etc. O Concílio considera essa sua condição não simplesmente como um dado exterior e ambiental, mas como uma realidade destinada a encontrar em Jesus Cristo a plenitude do seu significado.(35) Mais, atesta que: « O próprio Verbo encarnado quis participar da vida social dos homens... Santificou os laços sociais e, antes de mais, os familiares, fonte da vida social, e submeteu-Se livremente às leis do Seu país. Quis levar a vida de um operário do Seu tempo e da Sua terra ».(36)

O « mundo » torna-se assim o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos, pois também ele está destinado a dar glória a Deus Pai em Cristo. O Concílio pode, então, indicar qual o sentido próprio e peculiar da vocação divina dirigida aos fiéis leigos. Estes não são chamados a deixar o lugar que ocupam no mundo. O Baptismo não os tira de modo nenhum do mundo, como sublinha o apóstolo Paulo: « Irmãos, fique cada um de vós diante de Deus na condição em que estava quando foi chamado » (1Co 7,24); mas confia-lhes uma vocação que diz respeito a essa mesma condição intra-mundana: pois, os fiéis leigos « são chamados por Deus para que aí,exercendo o seu próprio ofício, inspirados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais, pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade ».(37)Dessa forma, o estar e o agir no mundo são para os fiéis leigos uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial, pois, é na sua situação intra-mundana que Deus manifesta o Seu plano e comunica a especial vocação de « procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus ».(38)

E foi precisamente nesta linha que os Padres sinodais afirmaram: « A índole secular do fiel leigo não deve, pois, definir-se apenas em sentido sociológico, mas sobretudo em sentido teológico. A característica secular é vista á luz do acto criador e redentor de Deus, que confiou o mundo aos homens e às mulheres, para tomarem parte na obra da criação, libertarem a mesma criação da influência do pecado e santificarem a si mesmos no matrimónio ou na vida celibatária, na família, no emprego e nas várias actividades sociais ».(39)

A condição eclesial dos fiéis leigos é radicalmente definida pela sua novidade cristã e caracterizada pela sua índole secular.(40)

As imagens evangélicas do sal, da luz e do fermento, embora se refiram indistintamente a todos os discípulos de Jesus, têm uma específica aplicação nos fiéis leigos. São imagens maravilhosamente significativas, porque falam, não só da inserção profunda e da participação plena dos fiéis leigos na terra, no mundo, na comunidade humana, mas também e, sobretudo, da novidade e da originalidade de uma inserção e de uma participação destinadas à difusão do Evangelho que salva.

(28) Conc. Ecum. Vat. II,, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 32.
(29) Ibid., LG 31.
(30) Paulo VI, Discurso aos membros dos Institutos Seculares (2 de Fevereiro de 1972): AAS 64 (1972), 208.
(31) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, AA 5.
(32) Conc. Ecum. Vat. II,, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 31.
(33) Ibid. LG 31
(34) Ibid. LG 31
(35) Cf. ibid., LG 48.
(36) Conc. Ecum. VAT. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 32.
(37) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 31.
(38) Ibid. LG 31
(39) Propositio 4.
(40) « Membros a pleno título do Povo de Deus e do Corpo místico, participantes, mediante o Baptismo, no tríplice múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, os leigos exprimem e exercem as riquezas dessa sua dignidade vivendo no mundo. O que para os membros do ministério ordenado pode constituir uma tarefa acessória e excepcional, para os leigos é missão típica. A vocação que lhes é própria "consiste em procurar o Reino de Deus tratando das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus" (Lumen gentium LG 31) » (João Paulo II, Angelus do 15 de Março de 1987:Insegnamenti, X, 1 [1987], 561).


Chamados à santidade

16 A dignidade do fiel leigo revela-se em plenitude quando se considera a primeira e fundamental vocação que o Pai, em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo, dirige a cada um deles: a vocação à santidade, isto é, à perfeição da caridade. O santo é o testemunho mais esplêndido da dignidade conferida ao discípulo de Cristo.

Sobre a universal vocação à santidade, o Concílio Vaticano II teve palavras sobremaneira luminosas. Pode dizer-se que foi precisamente esta a primeira incumbência confiada a todos os filhos e filhas da Igreja por um Concílio que se quis para a renovação evangélica da vida cristã. (41) Tal incumbência não é uma simples exortação moral, mas uma exigência do mistério da Igreja, que não se pode suprimir: a Igreja é a Vinha escolhida, por meio da qual as vides vivem e crescem com a mesma linfa santa e santificadora de Cristo; é o Corpo místico, cujos membros participam da mesma vida de santidade da Cabeça que é Cristo; é a Esposa amada do Senhor Jesus que a Si mesmo Se entregou para a santificar (cf.
Ep 5,25 ss.). O Espírito que santificou a natureza humana de Jesus no seio virginal de Maria (cf. Lc 1,35) é o mesmo Espírito que habita e actua na Igreja para lhe comunicar a santidade do Filho de Deus feito homem.

Hoje como nunca, urge que todos os cristãos retomem o caminho da renovação evangélica, acolhendo com generosidade o convite apostólico de « ser santos em todas as acções ». O Sínodo extraordinário de 1985, a vinte anos do encerramento do Concílio, insistiu com oportunidade sobre essa urgência: « Sendo a Igreja em Cristo um mistério, ela deve ser vista como sinal e instrumento de santidade... Os santos e santas foram sempre fonte e origem de renovação nas circunstâncias mais difíceis em toda a história da Igreja. Hoje temos muitíssima falta de santos, que devemos pedir com assiduidade ».(42)

Todos na Igreja, precisamente porque são seus membros, recebem e, por conseguinte, partilham a comum vocação à santidade. A título pleno, sem diferença alguma dos outros membros da Igreja, a essa vocação são chamados os fiéis leigos: « Todos os fiéis, de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade »; (43) « Todos os fiéis são convidados e têm por obrigação tender à santidade e à perfeição do próprio estado ».(44)

A vocação à santidade mergulha as suas raízes no Baptismo e volta a ser proposta pelos vários sacramentos, sobretudo pelo da Eucaristia: revestidos de Jesus Cristo e impregnados do Seu Espírito, os cristãos são « santos » e, por isso, são habilitados e empenhados em manifestar a santidade do seu ser na santidade de todo o seu operar. O apóstolo Paulo não se cansa de advertir todos os cristãos para que vivam « como convém a santos » (Ep 5,3).

A vida segundo o Espírito, cujo fruto é a santificação (Rm 6,22 cf. Ga 5,22), suscita e exige de todos e de cada um dos baptizados o seguimento e imitação de Jesus Cristo, no acolhimento das Suas Bem-aventuranças, na escuta e meditação da Palavra de Deus, na consciente e activa participação na vida litúrgica e sacramental da Igreja, na oração individual, familiar e comunitária, na fome e sede de justiça, na prática do mandamento do amor em todas as circunstancias da vida e no serviço aos irmãos, sobretudo os pequeninos, os pobres e os doentes.

(41) Veja-se, em particular, o cap. V da Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 39-42, que trata da « vocação universal à santidade na Igreja ».
(42) II Assemb. Ger. Extraor. Sínodo dos Bispos (1985), Ecclesia sub Verbo Dei mysteria Christi celebrans pro salute mundi. Relatio finalis, II, A, 4.
(43) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 40.
(44) Ibid., LG 42. Estas solenes e inequívocas afirmações do Concílio repropõem uma verdade fundamental da fé cristã. Assim, por exemplo, Pio XI na encíclica Casti connubii, dirigida aos esposos cristãos, escreve: « Podem e devem todos, qualquer que sejam as condições e o santo estado de vida que tenham escolhido, imitar o modelo perfeitíssimo de toda a santidade, que Deus propôs aos homens, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo, e com a ajuda de Deus chegar também ao nível sumo da perfeição cristã, como o mostram os exemplos de tantos santos »: AAS 22 (1930), 548.


Santificar-se no mundo

17 A vocação dos fiéis leigos à santidade comporta que a vida segundo o Espírito se exprima de forma peculiar na sua inserção nas realidades temporais e na sua participação nas actividades terrenas. É ainda o apóstolo que adverte: « Tudo quanto fizerdes por palavras e obras, fazei tudo no nome do Senhor Jesus, dando, por meio d'Ele, graças a Deus Pai » (Col 3,17). Aplicando as palavras do apóstolo aos fiéis leigos, o Concílio afirma categoricamente: « Nem os cuidados familiares nem outras ocupações profanas devem ser alheias à vida espiritual ».(45) Por sua vez, os Padres sinodais afirmaram: « A unidade de vida dos fiéis leigos é de enorme importância, pois, eles têm que se santificar na normal vida profissional e social. Assim, para que possam responder à sua vocação, os fiéis leigos devem olhar para as atividades da vida quotidiana como uma ocasião de união com Deus e de cumprimento da Sua vontade, e também como serviço aos demais homens, levando-os à comunhão com Deus em Cristo ». (46)

A vocação à santidade deverá ser compreendida e vivida pelos fiéis leigos, antes de mais, como sendo uma obrigação exigente a que não se pode renunciar, como um sinal luminoso do infinito amor do Pai que os regenerou para a Sua vida de santidade. Tal vocação aparece então comocomponente essencial e inseparável de nova vida baptismal e, por conseguinte, elemento constitutivo da sua dignidade. Ao mesmo tempo, a vocação à santidade anda intimamente ligada à missão e à responsabilidade confiadas aos fiéis leigos na Igreja e no mundo. Com efeito, a própria santidade já vivida, que deriva da participação na vida de santidade da Igreja, representa o primeiro e fundamental contributo para a edificação da própria Igreja, como « Comunhão dos Santos ». Um cenário maravilhoso se abre aos olhos iluminados pela fé: o de inúmeros fiéis leigos, homens e mulheres, que, precisamente na vida e nas ocupações do dia a dia, muitas vezes inobservados ou até incompreendidos e ignorados pelos grandes da terra, mas vistos com amor pelo Pai, são obreiros incansáveis que trabalham na vinha do Senhor, artífices humildes e grandes — certamente pelo poder da graça de Deus — do crescimento do Reino de Deus na história.

A santidade é, portanto, um pressuposto fundamental e uma condição totalmente insubstituível da realização da missão de salvação na Igreja. A santidade da Igreja é a fonte secreta e a medida infalível da sua operosidade apostólica e do seu dinamismo missionário. Só na medida em que a Igreja, Esposa de Cristo, se deixa amar por Ele e O ama, é que ela se torna Mãe fecunda no Espírito.

Retomemos mais uma vez a imagem bíblica: o rebentar e o alastrar das vides dependem da sua inserção na videira. « Como a vide não pode dar fruto por si mesma se não estiver na videira, assim acontecerá convosco se não estiverdes em Mim. Eu sou a videira, vós as vides. Quem permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer » (Jn 15,4-5).

é natural recordar aqui a solene proclamação de fiéis leigos, homens e mulheres, como Beatos e Santos, feita durante o mês do Sínodo. Todo o Povo de Deus, e os fiéis leigos em particular, podem ter agora novos modelos de santidade e novos testemunhos de virtudes heróicas vividos nas condições comuns e ordinárias da existência humana. Como disseram os Padres sinodais: « As Igrejas locais e, sobretudo, as chamadas Igrejas mais jovens deverão procurar diligentemente entre os próprios membros aqueles homens e mulheres que prestaram nessas condições (as condições quotidianas do mundo e o estado conjugal) o testemunho da santidade e que podem servir de exemplo aos demais, a fim de, se for o caso, os proporem para a beatificação e canonização ».(47)

Ao concluir estas reflexões, destinadas a definir a condição eclesial do fiel leigo, vem-me à mente a célebre recomendação de São Leão Magno: « Agnosce, o Christiane, dignitatem tuam! ».(48) é a mesma advertência de São Máximo, Bispo de Turim: « Considerai a honra que vos foi feita neste mistério! ».(49) Todos os baptizados são convidados a ouvir de novo as palavras de Santo Agostinho: « Alegremo-nos e agradeçamos: tornámo-nos não só cristãos, mas Cristo...! Maravilhai-vos e alegrai-vos: Cristo nos tornámos ».(50)

A dignidade cristã, fonte da igualdade de todos os membros da Igreja, garante e promove o espírito de comunhão e de fraternidade e, ao mesmo tempo, torna-se o segredo e a força do dinamismo apostólico e missionário dos fiéis leigos. É uma dignidade exigente, a dignidade dos trabalhadores que o Senhor chamou para a Sua vinha: « Incumbe a todos os leigos — lemos no Concílio — a magnífica tarefa de trabalhar para que o desígnio de salvação atinja cada vez mais os homens de todos os tempos e de toda a terra ».(51)

(45) Conc.. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, AA 4.
(46) Propositio, 5.
(47) Propositio, 8.
(48) S. Leão Magno, Sermo XXI, 3: S. Ch. 22 bis, 72.
(49) S. Máximo, Tract. III de Baptismo: PL 57, 779.
(50) S. Agostinho, In Ioann. Evang. tract., 21, 8; CCL 36, 216.
(51) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 33.


CAPÍTULO II

TODOS RAMOS DA ÚNICA VIDEIRA

A participação dos fiéis leigos na vida da Igreja-Comunhão


O Mistério da Igreja-Comunhão

18 Ouçamos de novo as palavras de Jesus: « Eu sou a verdadeira videira e o meu Pai é o agricultor ... Permanecei em Mim e Eu em vós » (Jn 15,1-4).

Nestas simples palavras é-nos revelada a misteriosa comunhão que vincula em unidade o Senhor e os discípulos, Cristo e os baptizados: uma comunhão viva e vivificante, pela qual os cristãos deixam de pertencer a si mesmos, tornando-se propriedade de Cristo, como as vides ligadas à videira.

A comunhão dos cristãos com Jesus tem por modelo, fonte e meta a mesma comunhão do Filho com o Pai no dom do Espírito Santo: unidos ao Filho no vínculo amoroso do Espírito, os cristãos estão unidos ao Pai.

Jesus prossegue: « Eu sou a videira e vós os ramos » (Jn 15,5). Da comunhão dos cristãos com Cristo brota a comunhão dos cristãos entre si: todos são ramos da única Videira, que é Cristo. Para o Senhor Jesus esta comunhão fraterna é o maravilhoso reflexo e a misteriosa participação na vida íntima de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Jesus reza por esta comunhão: « Que todos sejam um só, como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti, que também eles estejam em nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste » (Jn 17,21).

Esta comunhão é o próprio mistério da Igreja, como nos recorda o Concílio Vaticano II na célebre frase de São Cipriano: « A Igreja universal aparece como "um povo unido pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo" ».(52) Para esse mistério da Igreja-Comunhão somos habitualmente chamados, quando, no início da celebração eucarística, o sacerdote nos recebe com a saudação do apóstolo Paulo: « A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós » (2Co 13,13).

Depois de ter esboçado a « figura » dos fiéis leigos na sua dignidade, devemos agora reflectir sobre a sua missão e responsabilidade na Igreja e no mundo: mas estas só podem ser compreendidas de forma adequada no contexto vivo da Igreja-Comunhão.

(52) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 4.


O Concílio e a eclesiologia de comunhão

19 Esta é a idéia central que a Igreja deu de si no Concílio Vaticano II, como no-lo recorda o Sínodo extraordinário de 1985, celebrado a vinte anos do acontecimento conciliar: « A eclesiologia da comunhão é a idéia central e fundamental nos documentos do Concílio. A Koinonia-comunhão, fundada na Sagrada Escritura, é tida em grande honra na Igreja antiga e nas Igrejas orientais até aos nossos dias. Por isso, muito se tem feito desde o Concílio Vaticano II para que a Igreja como comunhão seja entendida de maneira mais clara e traduzida de modo mais concreto na vida. Que significa a complexa palavra "comunhão"? Trata-se fundamentalmente de comunhão com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo. Tem-se esta comunhão na Palavra de Deus e nos Sacramentos. O Baptismo é a porta e o fundamento da comunhão na Igreja. A Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a vida cristã (cf. LG 11). A comunhão do corpo de Cristo eucarístico significa e produz, isto é, edifica a íntima comunhão de todos os fiéis no Corpo de Cristo que é a Igreja (1Co 10,16) ».(53)

Logo a seguir ao Concílio, Paulo VI assim se dirigia aos fiéis: « A Igreja é uma comunhão. Que significa neste caso comunhão? Vamos ao parágrafo do catecismo que fala da sanctorum communionem, a comunhão dos santos. Igreja significa comunhão dos santos. E comunhão dos santos quer dizer uma dupla participação vital: a incorporação dos cristãos na vida de Cristo e a circulação dessa mesma caridade em todo o tecido dos fiéis, neste mundo e no outro. União a Cristo e em Cristo; e união entre os cristãos, na Igreja ». (54)

As imagens bíblicas com que o Concílio se propôs introduzir-nos na contemplação do mistério da Igreja, realçam a realidade da Igreja-comunhão na sua inseparável dimensão de comunhão dos cristãos com Cristo e de comunhão dos cristãos entre si. São as imagens do redil, do rebanho, da videira, do edifício espiritual, da cidade santa.(55) é sobretudo a imagem do corpo apresentada pelo apóstolo Paulo, cuja doutrina brota fresca e atraente em tantas páginas do Concílio.(56) Por sua vez, o Concílio reportando-se à história inteira da salvação, volta a propor a imagem da Igreja comoPovo de Deus: « Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O reconhecesse na verdade e O servisse santamente ».(57) Já nas suas primeiras linhas, a Constituição Lumen gentium compendia de forma admirável essa doutrina, ao escrever: « A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou seja, o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(58)

A realidade da Igreja-Comunhão é, pois, parte integrante, representa mesmo o conteúdo central do « mistério », ou seja, do plano divino da salvação da humanidade. Por isso, a comunhão eclesial não pode ser adequadamente interpretada, se é entendida como uma realidade simplesmente sociológica e psicológica. A Igreja-Comunhão é o povo « novo », o povo « messiânico », o povo que « tem por cabeça Cristo ... por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus... por lei o novo mandamento de amar como o próprio Cristo nos amou... por fim o Reino de Deus... (e é) constituído por Cristo numa comunhão de vida, de caridade e de verdade ».(59) Os laços que unem os membros do novo Povo entre si — e antes de mais com Cristo — não são os da « carne » e do « sangue », mas os do espírito, mais precisamente, os do Espírito Santo, que todos os baptizados recebem (cf. Jl 3,1).

Com efeito, aquele Espírito que desde a eternidade vincula a única e indivisa Trindade, aquele Espírito que « na plenitude do tempo » (Ga 4,4) une indissoluvelmente a carne humana ao Filho de Deus, esse mesmo e idêntico Espírito torna-se, ao longo das gerações cristãs, a fonte ininterrupta e inesgotável da comunhão na Igreja e da Igreja.

(53) II Assemb. Ger. Extraor. Sínodo dos Bispos (1985), Relação final Ecclesia sub Verbo Dei mysteria Christi celebrans pro salute mundi, II, C, 1.
(54) Paulo VI, Alocução de 8 de Junho de 1966: Insegnamenti, IV (1966), 794.
(55) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 6.
(56) Cf. ibid., LG 7 e passim.
(57) Ibid., LG 9.
(58) Ibid., LG 1.
(59) Ibid., LG 9.



Uma comunhão orgânica: diversidade e complementariedade

20 A comunhão eclesial configura-se, mais precisamente, como uma comunhão « orgânica », análoga à de um corpo vivo e operante: ela, de facto, caracteriza-se pela presença simultânea dadiversidade e da complementariedade das vocações e condições de vida, dos ministérios, carismas e responsabilidades. Graças a essa diversidade e complementariedade, cada fiel leigo encontra-seem relação com todo o corpo e dá-lhe o seu próprio contributo.

Sobre a comunhão orgânica do Corpo místico de Cristo insiste com muita ênfase o apóstolo Paulo, cuja doutrina tão rica podemos reencontrar na síntese que o Concílio esboçou: Jesus Cristo — lemos na Constituição Lumen gentium —, « comunicando o Seu Espírito, fez dos Seus irmãos, chamados de entre todos os povos, como que o Seu Corpo místico. Nesse corpo a vida de Cristo difunde-se nos crentes... Como todos os membros do corpo humano, apesar de serem muitos, formam no entanto um só corpo, assim também os fiéis em Cristo (cf.
1Co 12,12). Também na edificação do Corpo de Cristo existe diversidade de membros e de funções.

é um mesmo Espírito que distribui os Seus vários dons segundo a Sua riqueza da Igreja (cf. 1Co 12,1-11). Entre estes dons, sobressai a graça dos Apóstolos, a cuja autoridade o mesmo Espírito submete também os carismáticos (cf. 1Co 14). O mesmo Espírito, unificando o corpo por Si e pela Sua força e pela conexão interna dos membros, produz e promove a caridade entre os fiéis. Daí que, se algum membro padece, todos os membros sofrem juntamente (cf. 1Co 12,26) ».(60)

é sempre o único e idêntico Espírito o princípio dinâmico da variedade e da unicidade na e da Igreja. Lemos de novo na Constituição Lumen gentium: « E para que sem cessar nos renovemos n'Ele (Cristo) (cf. Ef Ep 4,23), deu-nos do Seu Espírito, o qual, sendo um e o mesmo na cabeça e nos membros, unifica e move o corpo inteiro, a ponto de os Santos Padres compararem a Sua acção à que o princípio vital, ou alma, desempenha no corpo humano ».(61) E numa outra passagem, particularmente densa e preciosa para podermos compreender a « organicidade » própria da comunhão eclesial, também no seu aspecto de constante crescimento para a comunhão perfeita, o Concílio escreve: « O Espírito habita na Igreja e nos corações dos fiéis, como num templo (cf. 1Co 3,16 1Co 6,19) e dentro deles ora e dá testemunho da adopção de filhos (cf. Ga 4,6 Rm 8,15-16 Rm 8,26). A Igreja, que Ele conduz à verdade total (cfr. Jo Jn 16,13) e unifica na comunhão e no ministério, enriquece-a Ele e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos e adorna-a com os Seus frutos (cf. Ep 4,11-12 1Co 12,4 Ga 5,22). Pela força do Evangelho rejuvenesce a Igreja e renova-a continuamente e leva-a à união perfeita com o seu Esposo. Porque o Espírito e a Esposa dizem ao Senhor Jesus: "Vem!" (cf. Ap Ap 22,17) ».(62)

A comunhão eclesial é, portanto, um dom, um grande dom do Espírito Santo, que os fiéis leigos são chamados a acolher com gratidão e, ao mesmo tempo, a viver com profundo sentido de responsabilidade. Isso é concretamente realizado através da sua participação na vida e na missão da Igreja, a cujo serviço os fiéis leigos colocam os seus variados e complementares ministérios e carismas.

O fiel leigo « não pode nunca fechar-se em si mesmo, isolando-se espiritualmente da comunidade, mas deve viver num contínuo intercâmbio com os outros, com um vivo sentido de fraternidade, na alegria de uma igual dignidade e no empenho em fazer frutificar ao mesmo tempo o imenso tesouro recebido em herança. O Espírito do Senhor dá-lhe, como aos outros, múltiplos carismas, convida-o a diferentes ministérios e funções, recorda-lhe, como também recorda aos outros em relação a ele, que tudo o que o distingue não é um suplemento de dignidade, mas uma especial e complementar habilitação para o serviço... Deste modo os carismas, os ministérios, as funções e os serviços do fiel leigo existem na comunhão e para a comunhão. São riquezas complementares em favor de todos, sob a sábia orientação dos Pastores ».(63)

(60) Ibid., LG 7.
(61) Ibid. LG 7
(62) Ibid., LG 4.
(63) João Paulo II, Homilia da solene Concelebração Eucarística no encerramento da VII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (30 de Outubro de 1987): AAS 80 (1988), 600.



Christifideles laici PT 14