Christifideles laici PT 37

Promover a dignidade da pessoa

37 Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa essencial, diria mesmo em certo sentido, a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis leigos, são chamados a prestar à família dos homens.

De todas as criaturas terrenas, só o homem é « pessoa », sujeito consciente e livre e, precisamente por isso, « centro e vértice » de tudo o que existe sobre a terra.(135)

A dignidade pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual ele transcende em valor todo o mundo material. A palavra de Jesus: « Que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perde a sua alma? » (
Mc 8,36) implica uma afirmação antropológica luminosa e estimulante: o homem vale não por aquilo que « tem » — mesmo que ele possuísse o mundo inteiro — mas por aquilo que « é ». Não são tanto os bens do mundo que contam, mas o bem da pessoa, o bem que é a própria pessoa.

A dignidade da pessoa aparece em todo o seu fulgor, quando se consideram a sua origem e o seu destino: criado por Deus à Sua imagem e semelhança e remido pelo sangue preciosíssimo de Cristo, o homem é chamado a tornar-se « filho no Filho » e templo vivo do Espírito, e tem por destino a vida eterna da comunhão beatífica com Deus. Por isso, toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem.

Em virtude da sua dignidade pessoal, o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser considerado e tratado como tal, e nunca ser considerado e tratado como um objecto que se usa, um instrumento, uma coisa.

A dignidade pessoal constitui o fundamento da igualdade de todos os homens entre si. Daí, a absoluta recusa de todas as mais variadas formas de discriminação que, infelizmente, continuam a dividir e a humilhar a família humana, desde as raciais e económicas às sociais e culturais, das políticas às geográficas, etc. Toda a discriminação é uma injustiça absolutamente intolerável, não tanto pelas tensões e conflitos que pode gerar no tecido social, quanto pela desonra feita à dignidade da pessoa: não só à dignidade daquele que é vítima da injustiça, mas ainda mais à daquele que pratica essa injustiça.

Fundamento da igualdade de todos os homens entre si, a dignidade pessoal é, ao mesmo tempo, ofundamento da participação e da solidariedade dos homens entre si: o diálogo e a comunhão têm a sua raiz última naquilo que os homens « são », antes e mais ainda do que naquilo que eles « têm ».

A dignidade pessoal é propriedade indestrutível de cada ser humanoÉ fundamental compreender-se toda a força que irrompe desta afirmação, que se baseia na unicidade e na irrepetibilidade de toda a pessoa. Dela deriva que o indivíduo seja irredutível a tudo o que o queira esmagar e anulá-lo no anonimato da colectividade, da instituição, da estrutura, do sistema. A pessoa, na sua individualidade, não é um número, não é o anel de uma cadeia, nem uma peça da engrenagem de um sistema. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar no seio de uma mulher. E disto continua a falar-nos o Natal cristão.(136)

(135) Cf. ibid., GS 12.
(136) « Se celebramos com tanta solenidade o Nascimento de Jesus, fazemo-lo para dar testemunho de que o homem é alguém, único e irrepetível. Se as nossas estatísticas humanas, as catalogações humanas, os humanos sistemas políticos, económicos e os sociais e as simples possibilidades humanas não conseguem garantir ao homem que ele possa nascer, viver e agir como um ser único e irrepetível, então, tudo isso lhe assegura Deus. Para Ele e diante d'Ele, o homem é sempre único e irrepetível; alguém que foi desde toda a eternidade ideado e escolhido; alguém que é chamado e denominado pelo próprio nome » (João Paulo II, Primeira rádio-mensagem natalícia ao mundo: AAS71 [1979], 66).


Venerar o inviolável direito à vida

38 O reconhecimento efectivo da dignidade pessoal de cada ser humano exige o respeito, a defesa e a promoção dos direitos da pessoa humana. Trata-se de direitos naturais, universais e invioláveis: ninguém, nem o indivíduo, nem o grupo, nem a autoridade, nem o Estado, pode modificar e muito menos eliminar esses direitos que emanam do próprio Deus.

Ora, a inviolabilidade da pessoa, reflexo da inviolabilidade absoluta do próprio Deus, tem a sua primeira e fundamental expressão na inviolabilidade da vida humanaÉ totalmente falsa e ilusória a comum defesa, que aliás justamente se faz, dos direitos humanos — como por exemplo o direito à saúde, à casa, ao trabalho, à família e à cultura, — se não se defende com a máxima energia odireito à vida, como primeiro e fontal direito, condição de todos os outros direitos da pessoa.

A Igreja nunca se deu por vencida perante todas as violações que o direito à vida, que é próprio de cada ser humano, tem sofrido e continua a sofrer, tanto por parte dos indivíduos como mesmo até por parte das próprias autoridades. O titular desse direito é o ser humano, em todas as fases do seudesenvolvimento, desde a concepção até à morte natural, e em todas as suas condições, tanto de saúde como de doença, de perfeição ou de deficiência, de riqueza ou de miséria. O Concílio Vaticano II afirma abertamente: « Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis; todas estas coisas e outras semelhantes são, sem dúvida, infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que as padecem, e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ».(137)

Ora, se a todos pertencem a missão e a responsabilidade de reconhecer a dignidade pessoal de cada ser humano e de defender o seu direito à vida, certos fiéis leigos são a isso chamados por um título particular: são os pais, os educadores, os agentes da saúde e todos os que detêm o poder económico e político.

Ao aceitar amorosa e generosamente toda a vida humana, sobretudo se fraca e doente, a Igreja vive hoje um momento fundamental da sua missão, tanto mais necessária quanto mais avassaladora se tornou uma « cultura de morte ». De facto, « a Igreja firmemente acredita que a vida humana, mesmo se fraca e sofredora, é sempre um dom maravilhoso do Deus da bondade. Contra o pessimismo e o egoísmo, que ensombram o mundo, a Igreja está do lado da vida: e em cada vida humana ela consegue descobrir o esplendor daquele " Sim ", daquele " Amen ", que é o próprio Cristo (cf.
2Co 1,19 Ap 3,14). Ao "não" que avassala e aflige o mundo, contrapõe esse vivo "Sim", defendendo dessa maneira o homem e o mundo daqueles que ameaçam e mortificam a vida ».(138) Pertence aos fiéis leigos, que mais directamente ou por vocação ou por profissão se ocupam do acolher a vida, tornar concreto e eficaz o "sim" da Igreja à vida humana.

Nas fronteiras da vida humana abrem-se hoje novas possibilidades e responsabilidades com o enorme progresso das ciências biológicas e médicas, aliado ao surpreendente poder tecnológico:o homem, com efeito, é já capaz, não só de « observar » mas também de « manipular » a vida humana no seu início e nas primeiras fases de seu desenvolvimento.

A consciência moral da humanidade não pode ficar alheia ou indiferente perante os passos gigantescos dados por uma força tecnológica que consegue ter um domínio cada vez mais vasto e profundo sobre os dinamismos que presidem à procriação e às primeiras fases do desenvolvimento da vida humana. Talvez nunca como hoje e neste campo, a sabedoria se revela como única ancora de salvação, para que o homem, na investigação científica e na aplicada, possa agir sempre com inteligência e com amor, isto é, no respeito, diria mesmo na veneração, da inviolável dignidade pessoal de todo o ser humano, desde o primeiro instante da sua existência. Isso acontece quando, usando meios lícitos, a ciência e a técnica se empenham na defesa da vida e na cura da doença, desde os inícios, recusando, no entanto, — pela própria dignidade da investigação — intervenções que se tornem perturbadoras do património genético do indivíduo e da geração humana.(139)

Os fiéis leigos que, a qualquer título ou a qualquer nível, se empenham na ciência e na técnica, bem como na esfera médica, social, legislativa e económica, devem corajosamente enfrentar os «desafios » que lhes lançam os novos problemas da bioética. Como disseram os Padres sinodais, « os cristãos devem exercer a sua responsabilidade como donos da ciência e da tecnologia, não como seus escravos ... Em ordem a esses "desafios" morais, que estão para serem lançados pela nova e imensa força da tecnologia e que põem em perigo, não só os direitos fundamentais dos homens, mas a própria essência biológica da espécie humana, é da máxima importância que os leigos cristãos — com a ajuda de toda a Igreja — tomem a peito o enquadramento da cultura nos princípios de um humanismo autêntico, de forma que a promoção e a defesa dos direitos do homem possam encontrar fundamento dinâmico e seguro na sua própria essência, aquela essência que a pregação evangélica revelou aos homens ».(140)

é urgente que todos, hoje, estejam alertados para o fenómeno da concentração do poder, e, em primeiro lugar, do poder tecnológico. Tal concentração tende, com efeito, a manipular, não só a essência biológica, mas também os conteúdos da própria consciência dos homens e os seus padrões de vida, agravando, assim, a discriminação e a marginalização de povos inteiros.

(137) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 27.
(138) João Paulo II, Exort. Ap. Familiaris consortio, FC 30: AAS 74 (1982), 116.
(139) Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Donum vitae sobre o respeito pela vida humana que nasce e a dignidade da procriação. Respostas a algumas questões de actualidade (22 de Fevereiro de 1987): AAS 80 (1988), 70-102.
(140) Propositio 36.


Livres de invocar o nome do Senhor

39 O respeito da dignidade pessoal, que comporta a defesa e a promoção dos direitos humanos, exige que se reconheça a dimensão religiosa do homem. Não se trata de uma exigência meramente « confessional », mas sim, de uma exigência que mergulha a sua raiz inextirpável na própria realidade do homem. A relação com Deus é, na verdade, elemento constitutivo do próprio « ser » e « existir » do homem: é em Deus que nós « vivemos, nos movemos e existimos » (Ac 17,28). Se nem todos acreditam nesta verdade, todos os que dela estão convencidos têm o direito de serem respeitados na sua fé e nas opções de vida, individual e comunitária, que dela derivam. Este é o direito à liberdade de consciência e à liberdade religiosa, cujo efectivo reconhecimento está entre os bens mais elevados e entre os deveres mais graves de todo o povo que queira verdadeiramente assegurar o bem da pessoa e da sociedade: « A liberdade religiosa, exigência insuprimível da dignidade de todos e de cada um dos homens, constitui uma pedra angular do edifício dos direitos humanos; e, portanto, é um factor insubstituível do bem das pessoas e de toda a sociedade, assim como da realização pessoal de cada um. Disto resulta, consequentemente, que a liberdade das pessoas consideradas individualmente e das comunidades professarem e praticarem a própria religião é um elemento essencial da convivência pacífica dos homens ... O direito civil e social à liberdade religiosa, ao atingir a esfera mais íntima do espírito, torna-se ponto de referência e, de certo modo, a medida dos outros direitos fundamentais ».(141)

O Sínodo não se esqueceu dos muitos irmãos e irmãs que ainda não gozam desse direito e que têm de enfrentar dificuldades, marginalizações, sofrimentos, perseguições e, por vezes, a morte por causa da confissão da fé. São, na sua maioria, irmãos e irmãs do laicado cristão. O anúncio do Evangelho e o testemunho cristão da vida no sofrimento e no martírio são o ápice do apostolado dos discípulos de Cristo, assim como o amor ao Senhor Jesus até ao dom da própria vida constitui uma fonte de fecundidade extraordinária para a edificação da Igreja. A mística videira mostra, assim, a sua vitalidade, como sublinhava Santo Agostinho: « Mas essa videira, como fora preanunciado pelos Profetas e pelo próprio Senhor, que espalhava pelo mundo inteiro as suas vides carregadas de fruto, tanto mais vicejava quanto mais a regava o abundante sangue dos mártires ».(142)

A Igreja inteira sente-se profundamente grata com esse exemplo e com esse dom: desses seus filhos ela tira razões para renovar o seu impulso de vida santa e apostólica.

Nesse sentido, os Padres sinodais consideraram seu especial dever « agradecer àqueles leigos que vivem quais incansáveis testemunhas da fé, em união fiel com a Sé Apostólica, apesar das restrições à liberdade e da falta de ministros sagrados. Eles jogam tudo, até a própria vida. Dessa maneira, os leigos dão testemunho de uma propriedade essencial da Igreja: a Igreja de Deus nasce da graça de Deus e a forma mais sublime de o manifestar é o martírio ».(143)

Quanto até aqui dissemos sobre o respeito pela dignidade pessoal e sobre o reconhecimento dos direitos humanos, prende-se, sem dúvida, com a responsabilidade de cada cristão, de cada homem. Mas, devemos imediatamente sublinhar como isso se revista hoje de uma dimensão mundial: trata-se, de facto, de uma questão que já atinge grupos humanos inteiros, até povos inteiros, que são violentamente espezinhados nos seus direitos fundamentais. Daí, aquelas formas de desigualdade de progresso entre os diversos Mundos que na recente Encíclica Sollicitudo rei socialis foram abertamente denunciadas.

O respeito pela pessoa humana ultrapassa a exigência de uma moral individual e coloca-se como critério de base, quase como pilar fundamental, na estruturação da própria sociedade, sendo a sociedade inteiramente finalizada para a pessoa.

Assim, intimamente ligada à responsabilidade de servir a pessoa põe-se a responsabilidade deservir a sociedade, qual tarefa geral daquela animação cristã da ordem temporal a que os fiéis leigos são chamados segundo as modalidades próprias e específicas.

(141) João Paulo II, Mensagem para o 21° dia mundial da paz (8 de Dezembro de 1987): AAS 80 (1988), 278 e 280.
(142) S. Agostinho, De Catech. Rud., XXIV, 44: CCL 46, 168.
(143) Propositio 32.


A família, primeiro espaço para o empenhamento social

40 A pessoa humana tem uma natural e estrutural dimensão social enquanto é chamada, desde o seu íntimo, à comunhão com os outros e à doação aos outros: « Deus, que cuida paternamente de todos, quis que os homens formassem uma só família e se tratassem entre si com espírito de irmãos ».(144) E, assim, a sociedade, fruto e sinal da sociabilidade do homem, mostra a sua verdade plena ao constituir-se comunhão de pessoas.

Dá-se interdependência e reciprocidade entre a pessoa e a sociedade: tudo o que for feito em favor da pessoa é também serviço feito à sociedade, e tudo o que for realizado em favor da sociedade reverte-se em benefício da pessoa. Por isso, o empenhamento apostólico dos fiéis leigos na ordem temporal adquire sempre e de forma indissolúvel um significado de serviço ao homem indivíduo na sua unicidade e irrepetibilidade e um significado de serviço a todos os homens.

Ora, a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a família: « Deus não criou o homem para o deixar sozinho; desde o princípio "homem e mulher os criou" (
Gn 1,27) e a sua união constitui a primeira expressão de comunhão de pessoas ».(145) Jesus mostrou-se preocupado em restituir ao casal a sua inteira dignidade (Mt 19,3-9) e à família a sua própria solidez(Mt 19,4-6); São Paulo mostrou a relação profunda do matrimónio com o mistério de Cristo e da Igreja (Ep 5, 22-4, 6; Col 3,18-21 cf. 1P 3,1-7).

O casal e a família constituem o primeiro espaço para o empenhamento social dos fiéis leigos.Trata-se de um empenho que só poderá ser desempenhado adequadamente na convicção do valor único e insubstituível da família para o progresso da sociedade e da própria Igreja.

Berço da vida e do amor, onde o homem « nasce » e « cresce », a família é a célula fundamental da sociedade. Deve reservar-se a essa comunidade uma solicitude privilegiada, sobretudo quando o egoísmo humano, as campanhas contra a natalidade, as políticas totalitárias, e também as situações de pobreza e de miséria física, cultural e moral, bem como a mentalidade edonista e consumista conseguem extinguir as fontes da vida, e onde as ideologias e os diversos sistemas, aliados a formas de desinteresse e de falta de amor, atentam contra a função educativa própria da família.

é urgente, portanto, realizar uma acção vasta, profunda e sistemática, apoiada não só na cultura, mas também nos meios económicos e nos instrumentos legislativos, destinada a assegurar à família a sua função de ser o lugar primário da « humanização » da pessoa e da sociedade.

A acção apostólica dos fiéis leigos consiste, antes de mais, em tornar a família consciente da sua identidade de primeiro núcleo social de base e do seu papel original na sociedade, para que a própria família se torne cada vez mais protagonista activa e responsável do seu crescimento e da sua participação na vida social. Dessa forma, a família poderá e deverá exigir de todos, a começar pelas autoridades públicas, o respeito por aqueles direitos que, salvando a família, salvam a mesma sociedade.

O que se escreveu na Exortação Familiaris consortio sobre a participação no progresso da sociedade (146) e o que a Santa Sé, a convite do Sínodo dos Bispos de 1980, formulou com a « Carta dos Direitos da Família » representa um programa operativo completo e orgânico para todos os fiéis leigos que, a qualquer título, estão interessados na promoção dos valores e das exigências da família: um programa cuja realização deve impor-se com tanta maior urgência e decisão quanto mais graves se fazem as ameaças à estabilidade e à fecundidade da família e quanto mais forte e sistemática se tornar a tentativa de marginalizar a família e de a esvaziar do seu peso social.

Como a experiência ensina, a civilização e a solidez dos povos dependem sobretudo da qualidade humana das próprias famílias. Assim, a acção apostólica em favor da família adquire um valor social incomparável. A Igreja, por sua parte, está profundamente convencida disso, bem sabendo que « o futuro da humanidade passa através da família ».(147)

(144) Conc.. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 24.
(145) Ibid., GS 12.
(146) Cf. João Paulo II, Exort. Ap. Familiaris consortio, FC 42-48: AAS 74 (1982), 134-140.
(147) Ibid., FC 85: AAS 74 81982), 188.


A caridade, alma e sustentáculo da solidariedade

41 O serviço feito à sociedade exprime-se e concretiza-se de variadíssimas maneiras: desde as livres e informais às institucionais, desde a ajuda dada aos indivíduos à que se destina aos vários grupos e comunidades de pessoas.

Toda a Igreja, como tal, é directamente chamada ao serviço da caridade: « A santa Igreja, assim como nos seus primeiros tempos, juntando a "ágape" à ceia eucarística, se mostrava toda unida à volta de Cristo pelo vínculo da caridade, assim em todos os tempos se pode reconhecer por este sinal do amor. E alegrando-se com as realizações alheias, ela reserva para si, como dever e direito próprios, que não pode alienar, as obras de caridade. Por isso, a misericórdia para com os pobres e enfermos e as chamadas obras de caridade e de mútuo auxílio para socorrer as múltiplas necessidades humanas são pela Igreja honradas de modo especial » (148) A caridade para com o próximo, nas expressões antigas e sempre novas das obras de misericórdia corporais e espirituais, representa o conteúdo mais imediato, comum e habitual da animação cristã da ordem temporal que constitui o empenho específico dos fiéis leigos.

Com a caridade para com o próximo, os fiéis leigos vivem e manifestam a sua participação na realeza de Jesus Cristo, isto é, no poder do Filho do homem que « não veio para ser servido, mas para servir » (
Mc 10,45): vivem e manifestam essa realeza na forma mais simples que é possível a todos e sempre e, ao mesmo tempo, na forma mais digna, pois a caridade é o dom mais alto que o Espírito dá em ordem à edificação da Igreja (1Co 13,13) e ao bem da humanidade. A caridade, com efeito, anima e sustenta a solidariedade activa que olha para a totalidade das necessidades do ser humano.

Uma caridade assim, actuada não só pelos indivíduos, mas também, de forma solidária, pelos grupos e pelas comunidades, é e será sempre necessária: nada e ninguém a pode e poderá substituir, nem sequer as múltiplas instituições e iniciativas públicas, que também se esforçam por dar resposta às carências — muitas vezes hoje tão graves e generalizadas — de uma população. Paradoxalmente, essa caridade é tanto mais necessária quanto mais as instituições, ao tornarem-se complexas na organização e pretendendo gerir todos os espaços disponíveis, acabam por se esvaziar devido ao funcionalismo impessoal, à burocracia exagerada, aos interesses privados injustos e ao desinteresse fácil e generalizado.

Precisamente neste contexto, continuam a aparecer e a espalhar-se, sobretudo nas sociedades organizadas, diversas formas de voluntariado que se traduzem numa multiplicidade de serviços e de obras. Se for vivido na sua verdade de serviço desinteressado ao bem das pessoas, especialmente as mais carecidas e as mais abandonadas dos próprios serviços sociais, o voluntariado deve ser visto como sendo uma importante expressão de apostolado, onde os fiéis leigos, homens e mulheres, desempenham um papel de primeiro plano.

(148) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, AA 8.


Todos destinatários e protagonistas da política

42 A caridade que ama e serve a pessoa nunca poderá estar dissociada da justiça: uma e outra, cada qual à sua maneira, exigem o pleno reconhecimento efectivo dos direitos da pessoa, a que é ordenada a sociedade com todas as suas estruturas e instituições.(149)

Para animar cristãmente a ordem temporal, no sentido que se disse de servir a pessoa e a sociedade, os fiéis leigos não podem absolutamente abdicar da participação na « política », ou seja, da múltipla e variada acção económica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum. Como repetidamente afirmaram os Padres sinodais, todos e cada um têm o direito e o dever de participar na política, embora em diversidade e complementariedade de formas, níveis, funções e responsabilidades. As acusações de arrivismo, idolatria de poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidas aos homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou partido político, bem como a opinião muito difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam minimamente nem o cepticismo nem o absenteismo dos cristãos pela coisa pública.

Pelo contrário, é muito significativa a palavra do Concílio Vaticano II: « A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, ao serviço dos homens ».(150)

Uma política em favor da pessoa e da sociedade tem o seu critério de base na busca do bem comum, como bem de todos os homens e do homem todo, bem oferecido e garantido para ser livre e responsavelmente aceite pelas pessoas, tanto individualmente como em grupo « A comunidade política — lemos na Constituição Gaudium et spes — existe precisamente em vista do bem comum; nele ela encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição ».(151)

Além disso, uma política em favor da pessoa e da sociedade encontra a sua linha constante de acção na defesa e na promoção da justiça, entendida como « virtude » para a qual todos devem ser educados e como « força » moral que apoia o empenho em favorecer os direitos e os deveres de todos e de cada um, na base da dignidade pessoal do ser humano.

No exercício do poder político é fundamental o espírito de serviço, único capaz de, ao lado da necessária competência e eficiência, tornar « transparente » ou « limpa » a actividade dos homens políticos, como aliás o povo justamente exige. Isso pressupõe a luta aberta e a decidida superação de certas tentações, tais como, o recurso à deslealdade e à mentira, o desperdício do dinheiro público em vantagem de uns poucos e com miras de clientela, o uso de meios equívocos ou ilícitos para a todo o custo conquistar, conservar e aumentar o poder.

Os fiéis leigos empenhados na política devem certamente respeitar a autonomia das realidades terrenas, rectamente entendida, como lemos na Constituição Gaudium et spes: « é de grande importância, sobretudo onde existe uma sociedade pluralista, que se tenha uma concepção exacta das relações entre a comunidade política e a Igreja, e ainda que se distingam claramente as actividades que os fiéis, isoladamente ou em grupo, desempenham em próprio nome como cidadãos guiados pela sua consciência de cristãos, e aquelas que eles exercem em nome da Igreja e em união com os seus pastores. A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é, ao mesmo tempo, o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana »,(152) Simultaneamente — e hoje sente-se-o com urgência e responsabilidade — os fiéis leigos devem dar testemunho daqueles valores humanos e evangélicos que estão intimamente ligados à própria actividade política, como a liberdade e a justiça, a solidariedade, a dedicação fiel e desinteressada ao bem de todos, o estilo simples de vida, o amor preferencial pelos pobres e pelos últimos. Isso exige que os fiéis leigos sejam cada vez mais animados de uma real participação na vida da Igreja e iluminados pela sua doutrina social. Para isso poder-lhes-á ser de apoio e de ajuda a familiaridade com as comunidades cristãs e com os seus Pastores.(153)

Estilo e meio de realizar uma política que tenha em vista o verdadeiro progresso humano é asolidariedade: esta pede a participação activa e responsável de todos na vida política, desde os cidadãos individualmente aos vários grupos, sindicatos e partidos: todos e cada um somos simultaneamente destinatários e protagonistas da política. Neste campo, como escrevi na EncíclicaSollicitudo rei socialis, a solidariedade « não é um sentimento de vaga compaixão ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos».(154)

A solidariedade política deve hoje actuar-se num horizonte que, superando uma simples nação ou um simples bloco de nações, assuma uma dimensão mais propriamente continental e mundial.

O fruto da actividade política solidária, a que todos tanto aspiram, e, todavia, sempre tão imperfeito, é a paz. Os fiéis leigos não podem ficar indiferentes, estranhos e indolentes diante de tudo o que negue ou comprometa a paz: violência e guerra, tortura e terrorismo, campos de concentração, militarização da política, corrida aos armamentos, ameaça nuclear. Antes, como discípulos de Cristo « Príncipe da paz » (
Is 9,5) e « Nossa Paz » (Ep 2,14), os fiéis leigos devem assumir o dever de serem « construtores de paz » (Mt 5,9), tanto com a conversão do « coração », como com a acção em favor da verdade, da liberdade, da justiça e da caridade que são os fundamentos irrenunciáveis da paz.(155)

Colaborando com todos aqueles que procuram verdadeiramente a paz e servindo-se dos específicos organismos e instituições nacionais e internacionais, os fiéis leigos deverão promover uma capilar acção educativa destinada a neutralizar a dominante cultura do egoísmo, do ódio, da vingança e da inimizade e a desenvolver a cultura da solidariedade a todos os níveis. Tal solidariedade, com efeito, « é caminho para a paz e simultaneamente para o progresso ».(156) Nesta ordem de ideias, os Padres sinodais convidaram todos os cristãos a recusar formas inaceitáveis de violência, a promover comportamentos de diálogo e de paz e a empenhar-se na instauração de uma ordem social e internacional justa.(157)

(149) Sobre a relação entre justiça e misericórdia, cf. a Encíclica Dives in misericordia, DM 12: AAS 72 (1980), 1215-1217.
(150) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 75.
(151) Ibid., GS 74.
(152) Ibid., GS 76.
(153) Cf. Propositio 28.
(154) João Paulo II, Encicl. Sollicitudo rei socialis, SRS 38: AAS 80 (1988), 565-566.
(155) Cf. João XXIII, Encicl. Pacem in terris: AAS 55 (1963), PT 265-266.
(156) João Paulo II, Encicl. Sollicitudo rei socialis, SRS 39: AAS 80 (1988), 568.
(157) Cf. Propositio 26.


Pôr o homem no centro da vida económico-social

43 O serviço prestado à sociedade pelos fiéis leigos tem um seu momento essencial na questão económico-social, cuja chave é dada pela organização do trabalho.

A gravidade actual de tais problemas, individuada no panorama do progresso e segundo a proposta de solução oferecida pela doutrina social da Igreja, foi recordada recentemente na EncíclicaSollicitudo rei socialis, que quero vivamente recomendar a todos, em especial aos fiéis leigos.

Entre os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja encontra-se o do destino universal dos bens: os bens da terra são, no desígnio de Deus, oferecidos a todos os homens e a cada um deles como meio do desenvolvimento de uma vida autenticamente humana. A propriedade privada que, precisamente por isso, possui uma intrínseca função social, está ao serviço desse destino. Concretamente o trabalho do homem e da mulher representa o instrumento mais comum e mais imediato para o progresso da vida económica, instrumento que constitui simultaneamente um direito e um dever de cada homem.

Tudo isto faz parte, de modo particular, da missão dos fiéis leigos. O fim e o critério da sua presença e da sua acção são, em termos gerais, formulados pelo Concílio Vaticano II: « Também na vida económica e social se devem respeitar e promover a dignidade e a vocação integral da pessoa humana e o bem de toda a sociedade. Com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social ».(158)

No contexto das importantes transformações em curso no mundo da economia e do trabalho, os fiéis leigos, empenhem-se em primeira linha na solução dos gravíssimos problemas do crescente desemprego, lutando em favor de uma mais rápida superação das numerosas injustiças que provêm de deficientes organizações do trabalho, transformando o lugar de trabalho numa comunidade de pessoas respeitadas na sua subjectividade e no seu direito à participação, desenvolvendo novas formas de solidariedade entre aqueles que tomam parte no trabalho comum, fomentando novos tipos de empresariedade e revendo os sistemas de comércio, de finança e de intercâmbios tecnológicos.

Em vista de tais objectivos, os fiéis leigos deverão executar o seu trabalho com competência profissional, com honestidade humana, espírito cristão, como meio da própria santificação,(159)segundo o convite explícito do Concílio: « Com o seu trabalho, o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve os seus irmãos, pode exercer uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda, sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo, o qual conferiu ao trabalho uma dignidade sublime, trabalhando com as suas próprias mãos em Nazaré ».(160)

Em relação com a vida económico-social e com o trabalho, levanta-se hoje, de forma cada vez mais aguda, a chamada questão « ecológica ». Sem dúvida, o homem recebeu do próprio Deus a missão de « dominar » as coisas criadas e de a cultivar o jardim » do mundo; mas, esta é uma tarefa que o homem deve desempenhar no respeito pela imagem divina que recebeu e, portanto, com inteligência e com amor: deve sentir-se responsável pelos dons que Deus lhe deu e continuamente lhe dá. O homem tem nas suas mãos um dom para transmitir — e, possivelmente, mesmo melhorado — às gerações futuras, também elas destinatárias dos dons do Senhor: « O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e abusar" ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da árvore" (cf.
Gn 2,16 s.), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas. Uma justa concepção do desenvolvimento não pode prescindir destas considerações — relativas ao uso dos elementos da natureza, às possibilidades de renovação dos recursos e às consequências de uma industrialização desordenada — as quais propõem uma vez mais à nossa consciência a dimensão moral, que deve distinguir o desenvolvimento ».(161)

(158) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 63.
(159) Cf. Propositio 24.
(160) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 67. Cf. João Paulo II, Encicl. Laborem exercens, LE 24-27: AAS 73 (1981), 637-647.
(161) João Paulo II, Encicl. Sollicitudo rei socialis, SRS 34: AAS 80 (1988), 560.



Christifideles laici PT 37