Dives in misericordia PT


Ioannes Paulus PP. II

Dives in misericordia

sobre a Misericórdia Divina


1980.11.30



Benção


Veneráveis irmãos e caríssimos filhos e filhas: saúde e benção apostólica!

I. QUEM ME VÊ, VÊ O PAI

(CF. Jn 14,9)



Revelação da misericórdia

1 «DEUS, RICO EM MISERICÓRDIA» 1 é Aquele que Jesus Cristo nos revelou como Pai e que Ele, seu próprio Filho, nos manifestou e deu a conhecer em Si mesmo 2.Convém recordar, a este propósito, o momento em que Filipe, um dos doze Apóstolos, dirigindo-se a Cristo lhe disse: «Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta». Jesus respondeu-lhe deste modo: «Há tanto tempo que estou convosco e não me conheces...? Quem me vê, vê o Pai» 3. Estas palavras foram proferidas no último discurso com que Cristo se despediu dos seus no princípio da Ceia Pascal.

Seguiram-se os acontecimentos daqueles dias sagrados, durante os quais havia de confirmar-se, de uma vez para sempre, o facto de que «Deus, que é rico em misericórdia, movido pela imensa caridade com que nos amou, restituíu-nos à vida juntamente com Cristo, quando estávamos mortos pelos nossos pecados» 4.

Seguindo a doutrina do Concílio Vaticano II, e atendendo às necessidades particulares dos tempos em que vivemos, dediquei a Encíclica Redemptor Hominis à verdade sobre o homem, verdade que, na sua plenitude e profundidade, nos é revelada em Cristo.

Exigência de não menor transcendência, nestes tempos críticos e difíceis, leva-nos a descobrir, também, no mesmo Cristo, o rosto do Pai, que é «Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação» 5. Lê-se na Constituição Gaudium et Spes: «Cristo, novo Adão... revela o homem a si mesmo plenamente e descobre-lhe a sua sublime vocação». E fá-lo precisamente «na revelação do mistério do Pai e do seu amor» 6. As palavras citadas atestam com clareza que a manifestação do homem, na plena dignidade da sua natureza, não pode verificar-se sem referência — não apenas conceitual, mas integralmente existencial—a Deus. O homem e a sua vocação suprema desvendam-se em Cristo, mediante a revelação do mistério do Pai e do seu amor.

Por esse motivo parece agora oportuno desenvolver este mistério. Sugerem-no múltiplas experiências da Igreja e do homem contemporâneo; e exigem-no também as aspirações de tantos corações humanos, os seus sofrimentos e esperanças, as suas angústias e expectativas. Se é verdade que todos e cada um dos homens, em certo sentido, são o caminho da Igreja — como afirmei na Encíclica Redemptor Hominis— também é verdade que o Evangelho e toda a Tradição nos indicam constantemente que devemos percorrer com todos e cada um dos homens este caminho, tal como Cristo o traçou, ao revelar em si mesmo o Pai e o seu amor 7.

Em Cristo Jesus, todos os caminhos que se dirigem ao homem, tais como eles foram confiados, duma vez para sempre à Igreja, conduzem sempre ao encontro do Pai e do seu amor. O Concílio do Vaticano II confirmou esta verdade adaptando-a às condições dos nossos tempos.

Quanto mais a missão realizada pela Igreja se centrar no homem — quanto mais for, por assim dizer, antropocêntrica — tanto mais se deve confirmar e realizar de modo teocêntrico, isto é, orientar-se em Jesus Cristo em direcção do Pai.

Enquanto as várias correntes do pensamento humano, do passado e do presente, têm sido e continuam a ser marcadas pela tendência para separar a até mesmo para contrapor o teocentrismo e o antropocentrismo, a Igreja, seguindo a Cristo, procura ao contrário uni-los conjuntamente na história do homem, de maneira orgânica e profunda. Este é um dos princípios fundamentais, e talvez o mais importante, do magistério do último Concílio. Na fase actual da história da Igreja, se nos propomos como tarefa principal pôr em prática a doutrina do grande Concílio, devemos procurar ater-nos precisamente a este princípio, com fé, espírito e coração abertos.

Na minha já citada Encíclica, procurei pôr em realce que o aprofundamento e o enriquecimento multiforme da consciência da Igreja, frutos do mesmo Concílio, devem abrir mais amplamente o nosso entendimento e o nosso coração ao próprio Cristo. Hoje quero expor que a abertura para Cristo que, como Redentor do mundo, revela plenamente o homem ao próprio homem, não pode realizar-se senão mediante uma relação, cada vez mais consciente , ao Pai e ao seu amor.

1
Ep 2,4.
2 Cf. Jn 1,18 He 1,1 s.
3 Jn 14,8 s.
4 Ep 2,4 s.
5 2Co 1,3
6 Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, GS 22: AAS, 58 (1966), p. 1042.
7 Cf. ibid. GS 22


Encarnação da misericórdia

2 Deus, que «habita numa luz inacessível» 8, fala também ao homem através da linguagem de todo o universo: «Desde a criação do mundo as perfeições invisíveis de Deus, tanto o seu poder eterno como a sua divindade, tornam-se reconhecíveis quando as obras por Ele realizadas são consideradas pela mente humana»9.

O conhecimento indirecto e imperfeito, obra da inteligência que procura Deus por meio das criaturas, através do mundo visível, não é ainda «visão do Pai». «Ninguém jamais viu a Deus», escreve S. João para dar maior relevo à verdade segundo a qual «o Filho unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer» 10. A «revelação» manifesta Deus no insondável mistério do seu ser -uno e trino- rodeado de «luz inacessível» 11. Mediante esta «revelação» de Cristo, conhecemos Deus, antes de mais nada na sua relação de amor para com o homem: na sua «filantropia» 12. É precisamente aqui que «as suas perfeições invisíveis» se tornam de maneira particular «reconhecíveis», incomparavelmente mais reconhecíveis do que através de todas as outras «obras por Ele realizadas». Tornam-se visíveis em Cristo e por meio de Cristo, por intermédio das suas acções e palavras e, por fim, mediante a sua morte na cruz e a sua ressurreição.

Deste modo em Cristo e por Cristo, Deus com a sua misericódia torna-se também particularmente visível; isto é, põe-se em evidência o atributo da divindade, que já o Antigo Testamento, servindo-se de diversos conceitos e termos, tinha chamado «misericórdia». Cristo confere a toda a tradição do Antigo Testamento quanto à misericórdia divina sentido definitivo. Não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e parábolas, mas sobretudo Ele próprio encarna-a e personifica-a. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia. Para quem a vê n'Ele — e n'Ele a encontra — Deus torna-se particularmente «visível» como Pai «rico em misericórdia»13.

A mentalidade contemporânea, talvez mais do que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica, nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou 14. Tal domínio sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a misericórdia.

A este propósito, podemos reportar-nos com proveito à imagem da «condição do homem no mundo contemporâneo», como está delineada no início da Constituição Gaudium et Spes, onde lemos, entre outras, as afirmações seguintes: «Assim, o mundo actual apresenta-se simultaneamente poderoso e débil, capaz do melhor e do pior; abre-se na sua frente o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio. Além disso, o homem toma consciência de que depende dele a boa orientação das forças que suscitou, as quais tanto o podem esmagar como servir» 15.

A situação do mundo contemporâneo não só manifesta transformações que fazem esperar um futuro melhor do homem sobre a terra, mas apresenta também múltiplas ameaças, que ultrapassam largamente as conhecidas até agora. Sem deixar de denunciar tais ameaças (por exemplo, com intervenções na ONU, na UNESCO, na FAO e noutras sedes), a Igreja deve também examiná-las à luz da verdade recebida de Deus.

A verdade revelada por Cristo a respeito de Deus «Pai das misericórdias» 16, permite-nos «vê-l'O» particularmente próximo do homem, sobretudo quando este sofre, quando é ameaçado no próprio coração da sua existência e da sua dignidade. Por este motivo, na actual situação da Igreja e do mundo, muitos homens e muitos ambientes, guiados por vivo sentido de fé, voltam-se quase espontaneamente, por assim dizer, para a misericórdia de Deus. São impelidos a fazê-lo certamente pelo próprio Cristo, o qual, mediante o seu Espírito, continua operante no íntimo dos corações humanos. O mistério de Deus «Pai das misericórdias» revelado por Cristo torna-se, no contexto das hodiernas ameaças contra o homem, como que um singular apelo dirigido à Igreja.

Na presente Encíclica, pretendo acolher tal apelo; desejo inspirar-me na linguagem da revelação e da fé, linguagem eterna e ao mesmo tempo incomparável pela sua simplicidade e profundidade, para com ela exprimir, uma vez mais, diante de Deus e dos homens, as grandes preocupações do nosso tempo.

A revelação e a fé ensinam-nos, efectivamente, não tanto a meditar de modo abstracto sobre o mistério de Deus, «Pai das misericórdias», quanto a recorrer a esta mesma misericórdia em nome de Cristo e em união com Ele. Cristo não disse, porventura, que o nosso Pai, Aquele que «vê o que é secreto» 17, está continuamente à espera, por assim dizer, de que nós, apelando para Ele em todas as necessidades, perscrutemos cada vez mais o seu mistério: o mistério do Pai e do seu amor? 18

É meu desejo, portanto, que estas considerações sirvam para aproximar mais de todos tal mistério e se tornem, ao mesmo tempo, um vibrante apelo da Igreja à misericórdia, de que o homem e o mundo contemporâneo tanto precisam. E precisam dessa misericórdia, mesmo sem muitas vezes o saberem.

8
1Tm 6,16.
9 Rm 1,20.
10 Jn 1,18.
11 1Tm 6,16.
12 Cf. Tt 3,4
13 Ep 2,4.
14 Cf. Gn 1,28.
15 Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, GS 9: AAS, 58 (1966), p. 1032.
16 2Co 1,3.
17 Mt 6,4 Mt 6,6 Mt 6,18.
18 Cf. Ep 3,18; e também Lc 11,5-13.



II. MENSAGEM MESSIÂNICA




Quando Cristo começou a fazer e a ensinar

3 Diante dos seus conterrâneos, em Nazaré, Cristo expõe as palavras do profeta Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu e me enviou a anunciar a Boa-Nova aos pobres, a proclamar a libertação aos captivos e o dom da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos e a promulgar um ano de acolhimento por parte do Senhor» 19. Segundo S. Lucas, estas afirmações sãoa sua primeira declaração messiânica, à qual se seguem os factos e as palavras conhecidos por intermédio do Evangelho. Mediante tais factos e palavras, Cristo torna o Pai presente no meio dos homens.

É muito significativo que estes homens sejam sobretudo os pobres, carecidos dos meios de subsistência, os que estão privados da liberdade, os cegos que não vêem a beleza da criação, os que vivem com a amargura no coração, ou então os que sofrem por causa da injustiça social e, por fim, os pecadores. Em relação a estes últimos, de modo especial, o Messias torna-se sinal particularmente legível de Deus que é amor, torna-se sinal do Pai. Do mesmo modo que os homens de então, também os homens do nosso tempo podem ver o Pai, neste sinal visível.

É igualmente significativo que, quando os mensageiros enviados por João Baptista vieram ter com Jesus e lhe perguntaram — «Tu és Aquele que está para vir, ou temos que esperar outro?» 20 — Ele, referindo-se ao mesmo testemunho com que havia inaugurado o seu ensino em Nazaré, lhes tenha respondido: «Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciada a Boa-Nova»; e é ainda significativo que tenha depois concluído: «Bem-aventurado aquele que não se escandalizar a meu respeito» 21.

Jesus revelou, sobretudo com o seu estilo de vida e com as suas acções, como está presente o amor no mundo em que vivemos, amor operante, amor que se dirige ao homem e abraça tudo quanto constitui a sua humanidade. Tal amor transparece especialmente no contacto com o sofrimento, injustiça e pobreza; no contacto com toda a «condição humana» histórica, que de vários modos manifesta as limitações e a fragilidade, tanto físicas como morais, do homem. Precisamente o modo e o âmbito em que se manifesta o amor são chamados na linguagem bíblica «misericórdia».

Cristo, portanto, revela Deus que é Pai, que é «amor», como se exprimiria S. João no sua primeira Epístola 22. Revela Deus «rico em misericórdia», como lemos em S. Paulo 23. Esta verdade, mais do que tema de ensino, é realidade que Cristo nos tornou presente. Tornar presente o Pai como amor e misericórdia, constitui na consciência do próprio Cristo, ponto fundamental do exercício da sua missão messiânica. Confirmam-no as palavras por Ele pronunciadas, primeiro na sinagoga de Nazaré e, depois, diante dos seus discípulos e dos enviados de João Baptista.

Baseando-se neste modo de manifestar a presença de Deus, que é Pai, amor e misericórdia, Jesus faz da mesma misericórdia um dos principais temas da sua pregação.Como de costume, também neste ponto ensina antes de mais «em parábolas», porque exprimem melhor a própria essência das coisas. Basta recordar a parábola do filho pródigo 24, ou a parábola do bom samaritano 25, ou ainda, por contraste, a do servo sem compaixão 26. Numerosas são ainda as passagens do ensinamento de Cristo que manifestam o amor e misericórdia sob um aspecto sempre novo. Basta ter diante dos olhos o bom pastor que vai à busca da ovelha tresmalhada 27, ou a mulher que varre a casa à procura da dracma perdida 28. O Evangelista que trata de modo particular estes temas do ensino de Cristo é S. Lucas, cujo Evangelho mereceu ser chamado «o Evangelho da misericórdia».

Quando se trata da pregação, levanta-se um problema de capital importância, no que diz respeito ao significado dos termos e ao conteúdo do conceito de «misericórdia» (em relação como conceito de «amor»). A recta compreensão desse conteúdo é a chave para se entender a própria realidade da misericórdia. E isto é o que para nós mais importa.

Antes de dedicar uma parte das nossas considerações a este assunto, ou seja, antes de estabelecer o significado das palavras e o conteúdo próprio do conceito de «misericórdia», devemos notar que Cristo, ao revelar o amor-misericórdia de Deus, exigia ao mesmo tempo dos homens que se deixassem guiar na própria vida pelo amor e pela misericórdia. Esta exigência faz parte da própria essência da mensagem messiânica e constitui a medula do «ethos» evangélico. O Mestre exprime isto mesmo, quer por meio do mandamento por Ele definido como «o primeiro e o maior» 29, quer sob a forma de bênção, ao proclamar no Sermão da Montanha: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» 30.

Deste modo, a mensagem messiânica sobre a misericórdia conserva sempre particular dimensão divino-humana. Cristo, enquanto é o cumprimento das profecias messiânicas, ao tornar-se encarnação do amor que se manifesta com particular intensidade em relação aos que sofrem, aos infelizes e aos pecadores, torna presente e, desse modo, revela mais plenamente o Pai, que é Deus «rico em misericórdia». Ao mesmo tempo, tornando-se para os homens modelo do amor misericordioso para com os outros, Cristo proclama com obras, mais ainda do que com palavras, o apelo à misericórdia, que é uma das componentes essenciais do «ethos» do Evangelho. Não importa cumprir somente um mandamento ou postulado de natureza ética, mas também de satisfazer a uma condição de capital importância, a fim de Deus se poder revelar na sua misericórdia para com o homem: «Os misericordiosos... alcançarão misericórdia».

19
Lc 4,18 s.
20 Lc 7,19.
21 Lc 7,22s.
22 1Jn 4,8 1Jn 4,16.
23 Cf, Ep 2,4.
24 Lc 15,11-32.
25 Lc 10,30-37.
26 Mt 18,23-35.
27 Mt 18,12-14 Lc 15,3-7.
28 Lc 15,8-10.
29 Mt 22,38.
30 Mt 5,7.


III. A MISERICÓRDIA NO ANTIGO TESTAMENTO




O conceito de «misericórdia» no Antigo Testamento

4 O conceito de «misericórdia» no Antigo Testamento tem longa e rica história. Devemos remontar a essa história, para fazer resplandecer mais plenamente a misericórdia que Cristo revelou. Revelando-a, quer pelas suas obras quer pelo seu ensino, Cristo dirigia-se a homens que não só conheciam o conceito de misericórdia, mas também, como povo de Deus da Antiga Aliança, tinham colhido da própria história plurissecular uma peculiar experiência da misericórdia de Deus. Esta íntima experiência foi tanto social e comunitária, como particular e individual.

Israel foi o povo da aliança com Deus, aliança que muitas vezes violou. Quando tomava consciência da própria infidelidade apelava para a misericórdia . E ao longo da história de Israel não faltaram Profetas e outros homens que despertavam tal consciência. A este propósito, os Livros do Antigo Testamento apresentam-nos numerosos testemunhos. Entre os factos e os textos mais salientes, podemos recordar: o início da história dos Juízes 31, a oração de Salomão ao ser inaugurado o Templo 32, uma parte das intervenções proféticas de Miqueias 33, as consoladoras garantias oferecidas por Isaías 34, a súplica dos hebreus exilados 35 e a renovação da Aliança depois do regresso do exílio 36.

É significativo o facto de os Profetas na sua pregação apresentarem a misericórdia, a qual muitas vezes se referem por causa dos pecados do povo, em ligação com a incisiva imagem do amor da parte de Deus. O Senhor ama Israel com amor de singular eleição, semelhante ao amor de um esposo 37; e por isso perdoa as suas culpas e até as infidelidades e traições. Ao encontrar-se perante a penitência, a conversão autêntica do povo, retabelece-o novamente na graça 38. Na pregação dos Profetas, a misericórdia significa a especial força do amor, que prevalece sobre o pecado e sobre a infidelidade do povo eleito.

Neste amplo contexto «social», a misericórdia aparece como o elemento correlativo da experiência interior de cada uma das pessoas que se encontram em estado de culpa, ou que suportam sofrimentos e desgraças de toda a espécie. Tanto o mal físico como o mal moral, ou pecado, fazem com que os filhos e as filhas de Israel se voltem para o Senhor, apelando para a sua misericórdia. Deste modo a Ele se dirige David, consciente da gravidade da sua culpa 39; igualmente a Ele se dirige Job, depois das suas rebeliões, ao encontrar-se na sua tremenda desventura 40; assim se dirige ao Senhor também Ester, consciente da ameaça mortal, iminente, contra o seu povo 41. E, além destes, deparamos ainda com outros exemplos nos Livros do Antigo Testamento 42.

Na origem desta multiforme convicção comunitária e pessoal, como é comprovado por todo o Antigo Testamento no decurso dos séculos, há que colocar a experiência fundamental do povo eleito, vivido nos dias do êxodo: o Senhor observou a aflição do seu povo, reduzido à escravidão, ouviu os seus clamores, deu-se conta dos seus sofrimentos e decidiu libertá-lo 43. Neste acto de salvação realizado pelo Senhor, o Profeta quis ver o seu amor e a sua compaixão 44. A segurança de todo o povo e de cada um dos seus membros radica na misericórdia divina que pode ser invocada em todas as circunstâncias dramáticas.

A isto vem juntar-se o facto de que a miséria do homem é também o seu pecado. O povo da Antiga Aliança conheceu esta miséria desde os tempos do êxodo, quando ergueu o bezerro de ouro. Mas o próprio Senhor triunfou sobre este gesto de ruptura da Aliança, quando se definiu solenemente a Moisés como «Deus compassivo e misericordioso, lento para a ira e cheio de bondade e de fidelidade» 45. É nesta revelação central que o povo eleito e cada um dos seus componentes irão encontrar, depois de terem prevaricado, a força e a razão para de novo se voltarem para o Senhor, para Lhe recordarem exactamente aquilo que Ele tinha revelado acerca de si próprio 46, e para Lhe implorarem perdão.

O Senhor revelou a sua misericórdia tanto nas obras como nas palavras, desde os primórdios do povo que escolheu para si. No decurso da sua história, este povo, quer em momentos de desgraça, quer ao tomar consciência do próprio pecado, entregou-se continuamente com confiança ao Deus das misericórdias. Na misericórdia do Senhor para com os seus manifestam-se todos os matizes do amor: Ele é para eles Pai 47, dado que Israel é seu filho primogénito 48; Ele é também o esposo daquela a quem o Profeta anuncia um nome novo: «bem-amada» (ruhama), porque usará de misericórdia para com ela 49.

Mesmo quando o Senhor, exasperado pela infidelidade do seu povo, decide acabar com ele, são ainda a compaixão e o amor generoso para com os seus que O levam a suster a sua indignação 50. E então, torna-se fácil compreender a razão pela qual os Salmistas, ao quererem cantar ao Senhor os mais sublimes louvores, entoarão hinos ao Deus do amor, da compaixão, da misericórdia e da fidelidade 51.

De tudo isto se deduz que a misericórdia faz parte não somente da noção de Deus, mas caracteriza também a vida de todo o povo de Israel e de cada um dos seus filhos e filhas: é a essência da intimidade com o seu Senhor, a essência do seu diálogo com Ele. Precisamente sob este aspecto, a misericórdia é apresentada em cada um dos Livros do Antigo Testamento com grande riqueza de expressões. Seria difícil, talvez, procurar nestes livros resposta meramente teórica à pergunta: o que é a misericórdia em si mesma. Contudo, a própria terminologia que neles é usada pode dizer-nos muitíssimo a tal respeito 52.

O Antigo Testamento proclama a misericórdia do Senhor mediante numerosos termos com significados afins. Estes termos são diferenciados no seu conteúdo particular, mas tendem a convergir, se assim se pode dizer, de vários pontos de vista para um único conteúdo fundamental, a fim de exprimir a riqueza transcendental da misericórdia e, ao mesmo tempo, para aproximá-la do homem sob aspectos diversos. O Antigo Testamento encoraja os homens desventurados, sobretudo os que estão oprimidos pelo pecado — como também todo o povo de Israel, que tinha aderido à Aliança com Deus — a fazerem apelo à misericórdia e permite-lhes contar com ela. Recorda-a nos tempos de queda e de desalento. Em seguida, dá graças e glória a Deus pela misericórdia, todas as vezes que ela se tenha manifestado e realizado, tanto na vida do povo como na das pessoas individualmente.

Deste modo, a misericórdia é contraposta , em certo sentido, à justiça divina; e revela-se, em muitos casos, não só mais poderosa, mas também mais profunda que ela. Já no Antigo Testamento se ensina que, embora a justiça no homem,seja autêntica virtude e em Deus signifique perfeição transcendente contudo o amor é «maior» do que a justiça. E é maior no sentido de que, relativamente a ela, é primário e fundamental. O amor condiciona, por assim dizer, a justiça; e, em última análise, a justiça serve a caridade. O primado e a superioridade do amor em relação à justiça — ponto característico de toda a Revelação — manifestam-se precisamente através da misericórdia. Isto pareceu tão claro aos Salmistas e aos Profetas que o próprio termo justiça acabou por significar a salvação realizada pelo Senhor por meio da sua misericórdia 53. A misericórdia difere da justiça, mas não se lhe opõe, se admitirmos na história do homem — como faz o Antigo Testamento precisamente — a presença de Deus, o qual já como Criador se ligou com particular amor às suas criaturas.

O amor, por natureza, exclui o ódio e o desejo do mal em relação àquele a quem alguma vez se deu a si mesmo como dom: Nihil odisti eorum quae fecisti, «não aborreceis nada do que fizestes» 54. Tais palavras indicam o fundamento profundo da conexão entre a justiça e a misericórdia em Deus, nas suas relações com o homem e com o mundo. Dizem-nos também que devemos procurar as raízes vivificantes e as razões íntimas desse nexo, remontando ao «princípio», no próprio mistério da criação. No contexto da Antiga Aliança, essas palavras preanunciam a plena revelação de Deus, que «é amor» 55.

O mistério da criação está em conexão com o mistério da eleição, que de modo especial plasmou a história do povo cujo pai espiritual é Abraão, como mérito da sua fé. Por meio deste povo que caminha através da história, tanto da Antiga como da Nova Aliança, aquele mistério de eleição refere-se a todos e a cada um dos homens e a toda a grande família humana. «Amo-te com amor eterno, por isso ainda te conservo os meus favores»56. «Ainda que os montes sejam abalados ... o meu amor jamais se apartará de ti, e a minha aliança de paz não será alterada»57. Esta verdade, anunciada outrora a Israel, encerra em si a perspectiva de toda a história do homem, perspectiva que é simultaneamente temporal e escatológica 58. Cristo revela o Pai na mesma perspectiva, na perspectiva e no estado dos espíritos já preparados, como o demonstram numerosas páginas do Antigo Testamento. Como remate desta revelação, na véspera da sua morte, diz ao Apóstolo Filipe aquelas memoráveis palavras: «Há tanto tempo que estou convosco e não me conheces?... Quem me vê, vê o Pai» 59.

31 Cf. Jz 3,7-9 32
32 Cf.
1S 8,22-53.
33 Cf. Mi 7,18-20.
34 Cf. Is 1,18 Is 51,4-16.
35 Cf. Ba 2,11-3,8
36 Cf. Ne 9
37 Cf. por ex. Os 2,21-25 Os 2,15 Is 54,6-8.
38 Cf. Jr 31,20 Ex 39,25-29.
39 Cf. 2S 11 2S 12 2S 24,10.
40 Job passim Jb 1.
41 Est 4,17k ss.
42 Cf. por ex. Ne 9,30-32 Tb 3,2 Tb 3,11-12 Tb 8,16s.; 1M 4,24.
43 Cf. Ex 3,7s
44 Cf. Is 63,9.
45 Ex 34,6.
46 Cf. Nb 14,18 2Ch 30,9 Ne 9,17 Ps 86,15(85), 15; Sg 15,1 Si 2,11 Jl 2,13.
47 Cf. Is 63,16.
48 Cf. Ex 4,22.
49 Cf Os 2,3.
50 Cf Os 11,7-9 Jr 31,20 Is 54,7s.
51 Cf. Ps 103 Ps 145(102) e 145(144).
52 Ao definirem a misericórdia, os Livros do Antigo Testamento servem-se sobretudo de duas expressões, cada uma das quais tem um matiz semantico diverso. Antes de mais, o termo hesed, que indica uma profunda atitude de «bondade». Quando esta disposição se estabelece entre duas pessoas, estas passam a ser, não apenas benévolas uma para com a outra, mas também reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior, portanto , também em virtude de uma fidelidade para consigo próprias. E se é certo que hesed significa também «graça» ou «amor», isto sucede precisamente na base de tal fidelidade. O facto de o compromisso em questão ter um carácter, não apenas moral, mas como que jurídico, não altera a sua realidade. Quando no Antigo Testamento o vocábulo hesed é referido ao Senhor isso acontece sempre em relação com a aliança que Deus fez com Israel. Esta aliança foi da parte de Deus um dom e uma graça para Israel. Contudo, uma vez que Deus, em coerência com a Aliança estabelecida, se tinha comprometido a respeitá-la, hesed adquiria, em certo sentido, um conteúdo legal. O compromisso «jurídico» da parte de Deus deixava de obrigar quando Israel infringia a aliança e não respeitava as condições da mesma. E era precisamente então que hesed, deixando de ser uma obrigação jurídica, revelava o seu aspecto mais profundo: tornava-se manifesto aquilo que fora ao princípio, ou seja, amor que doa, amor mais potente do que a traição, graça mais forte do que o pecado.
Esta fidelidade para a «filha do meu povo» infiel (cf. Lm 4,3 Lm 4,6), em última análise é, da parte de Deus, fidelidade a si próprio. Isto aparece evidente sobretudo pela frequência com que é usado o binómio hesed we'emet (= graça e fidelidade), que se poderia considerar uma endíades (cf. p. ex., Ex 34,6; 2S 2,6 2S 15,20 Ps 25,10 [24],10; Ps 40,1140[39], s.; Ps 85,11[84],11; Ps 138[137],2; Mi 7,20). «Eu faço isto, não por causa de vós, ó casa de Israel, mas pela honra do meu santo nome» (Ez 36,22). Assim, também Israel, embora sob o peso das culpas, por ter quebrado a aliança, não pode ter pretensões em relação ao hesed de Deus, com base numa suposta justiça (legal). No entanto, pode e deve continuar a esperar e a ter confiança em obtê-lo, já que o Deus da aliança é realmente «responsável pelo seu amor». Fruto deste amor é o perdão e a reconstituição na graça, o restabelecimento da aliança interior.
O segundo vocábulo que na terminologia do Antigo Testamento serve para definir a misericórdia é rahªmim.O matiz do seu significado é um pouco diverso do significado de hesed.Enquanto hesed acentua as características da fidelidade para consigo mesmo e da «responsabilidade pelo próprio amor» (que são características em certo sentido masculinas), rahªmim, já pela própria raiz, denota o amor da mãe (rehem= seio materno). Do vínculo mais profundo e originário, ou melhor, da unidade que liga a mãe ao filho, brota uma particular relação com ele, um amor particular. Deste amor se pode dizer que é totalmente gratuito, não fruto de merecimento, e que, sob este aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração. É uma variante como que «feminina» da fidelidade masculina para consigo próprio, expressa pelo hesed. Sobre este fundo psicológico, rahªmim dá origem a uma gama de sentimentos, entre os quais a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão, que o mesmo é dizer a prontidão para perdoar.
O Antigo Testamento atribui ao Senhor estas características quando, ao falar d'Ele, usa o termo rahªmim.Lemos em Isaías: «Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o fruto das suas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse do próprio filho, eu jarnais me esqueceria de ti» (Is 49,15). Este amor, fiel e invencível graças à força misteriosa, da maternidade, é expresso nos textos do Antigo Testamento de várias maneiras: como salvação dos perigos, especialmente dos inimigos, como perdão dos pecados — em relação aos indivíduos e também a todo o povo de Israel— e, finalmente, como prontidão em satisfazer a promessa e a esperança (escatológicas), não obstante a infidelidade humana, conforme lemos em Oséias: «Eu os curarei das suas infidelidades, amá-los-ei de todo o coração» (Os 14,5).
Na terminologia do Antigo Testamento encontramos ainda outras expressões, que se referem de modo diverso ao mesmo conteúdo fundamental. Todavia, as duas acima mencionadas merecem uma atenção particular. Nelas se manifesta claramente o seu originário aspecto antropomórfico: para indicar a misericórdia divina, os autores bíblicos servem-se dos termos que correspondem à consciência e à experiência dos homens seus contemporâneos. A terminologia grega da versão dos Setenta apresenta-se com uma riqueza menor do que a hebraica; não reflecte todos os cambiantes semânticos próprios do texto original. Em todo o caso, o Novo Testamento constrói sobre a riqueza e a profundidade que já caracterizavam o Antigo.
Deste modo, herdamos do Antigo Testamento — como que numa síntese especial — não apenas a riqueza das expressões usadas por aqueles Livros para definir a misericórdia divina, mas também uma específica, obviamente antropomórfica, «psicologia» de Deus: a impressionante imagem do seu amor que, em contacto com o mal e, em particular, com o pecado do homem e do povo, se manifesta como misericórdia. Esta imagem é composta, mais do que pelo conteudo, bastante genérico aliás, do verbo hãnan, sobretudo pelo conteúdo de hesed e de rahªmim O termo hãnan, exprime um conceito mais amplo: significa a manifestação da graça que comporta, por assim dizer, uma constante predisposição magnânima, benévola e clemente.
Além destes elementos semânticos fundamentais, o conceito de misericórdia no Antigo Testamento inclui também o conteúdo do verbo hãmal, que literalmente significa «poupar (o inimigo derrotado)», mas também significa «manifestar piedade e compaixão» e, por conseguinte, perdão e remissão da culpa. O termo hus exprime igualmente piedade e compaixão, mas isso sobretudo em sentido afectivo. Estes termos aparecem nos textos bíblicos com menor frequência para indicar a misericórdia. É oportuno ainda lembrar o já citado vocábulo 'emet, que significa: em primeiro lugar «solidez, segurança» (no grego dos Setenta, «verdade»); e depois, também «fidelidade»; e desta maneira parece relacionar-se com o conteúdo semântico próprio do termo hesed.

53 Ps 40,11(39),11; Ps 98,2(97),2 s.; Is 45,21 Is 51,5 Is 51,8 Is 56,1.
54 Sg 11,24
55 1Jn 4,8 1Jn 4,16.
56 Jr 31,3.
57 Is 54,10
58 Jon 4,2 Jon 4,11 Ps 145,9(144),9; Si 18,8-14 Sg 11,23-12,1.
59 Cf. Jn 14,9


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