Dives in misericordia PT 9


VI. «MISERICÓRDIA ... DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO»


Imagem da nossa geração

10 Temos todo o direito de acreditar que também a nossa geração foi abrangida pelas palavras da Mãe de Deus, quando glorificava a misericórdia de que participam, «de geração em geração», aqueles que se deixam guiar pelo temor de Deus. As palavras do Magnificat de Maria têm conteúdo profético, que diz respeito não só ao passado de Israel, mas também a todo o futuro do Povo de Deus sobre a terra. Com efeito, todos nós que vivemos actualmente na terra somos a geração que está consciente da aproximação do terceiro Milénio e que sente profundamente a viragem que hoje se está a venficar na história.

A geração contemporânea tem consciência de ser uma geração privilegiada, porque o progresso lhe proporciona imensas possibilidades, insuspeitadas há apenas alguns decénios. A actividade criadora do homem, a sua inteligência e o seu trabalho provocaram mudanças profundas, quer no campo da ciência e da técnica, quer no plano da vida social e cultural. O homem, de facto, estendeu o seu domínio sobre a natureza e adquiriu conhecimento mais aprofundado das leis do seu próprio comportamento social. Verificou que caíram ou se tornaram menores os obstáculos e as distâncias que separam os homens e as nações: graças ao vivo sentido do que é universal e à consciência mais nítida da unidade do género humano, aceitando a dependência recíproca numa solidariedade autêntica; e em virtude, ainda, do desejo — e também da possibilidade — de entrar em contacto com os seus irmãos e irmãs, ultrapassando as divisões artificialmente criadas pela geografia, ou pelas fronteiras nacionais ou raciais. Os jovens de hoje, sobretudo, sabem que o progresso da ciência e da técnica é capaz de produzir não somente novos bens materiais, mas também participação mais ampla no comum património do saber.

O desenvolvimento da informática, por exemplo, multiplicará as capacidades criadoras do homem e permitir-lhe-á o acesso aos bens de ordem intelectual e cultural dos outros povos. As novas técnicas da comunicação favorecerão maior participação nos acontecimentos e intercâmbio crescente de ideias. As conquistas das ciências biológicas, psicológicas e sociais ajudarão o homem a penetrar na riqueza do seu próprio ser. Se é verdade que tal progresso continua a ser, muitas vezes apanágio dos países industrializados, não se pode negar, contudo que a perspectiva de se conseguir que todos os povos e todas as nações dele usufruam, já não irá permanecer por muito tempo mera utopia, dado que existe real vontade política, a este respeito.

Mas, a par de tudo isso — ou melhor talvez, em tudo isso — existem dificuldades que se vão avolumando. Existem inquietudes e impotências a exigirem que se lhes dê a resposta profunda que o homem sabe que tem de dar. O quadro do mundo contemporâneo apresenta também sombras e desequilíbrios que nem sempre são superficiais. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II não é certamente o único documento que trata da vida da geração contemporânea, mas é um documento de importância singular. Nela se diz: «Na verdade, os desequilíbrios de que sofre o mundo actual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem.Porque, no íntimo do próprio homem muitos elementos se combatem. Enquanto, por uma parte, ele se experimenta como criatura que é, multiplamente limitado, por outra, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas, e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza o que deseja fazer. Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão grandes discórdias se originam para a sociedade» 109.

Quase ao fim da introdução da mesma Constituição pastoral lemos: «... Perante a actual evolução do mundo, cada dia são mais numerosos aqueles que põem ou sentem com maior acuidade, as questões fundamentais: Que é o homem? Qual é o sentido da dor, do mal e da morte que, apesar do enorme progresso alcançado, continuam a existir? Para que servem essas vitórias ganhas a tão grande preço?» 110.

Decorridos quase quinze anos após o encerramento do Concílio Vaticano II, ter-se-á tornado menos inquietante este quadro de tensões e de ameças, próprias da nossa época? Parece que não. Ao contrário, as tensões e as ameaças que no Documento conciliar pareciam apenas esboçar-se e não manifestar inteiramente todo o perigo que em si encerravam, no decurso destes anos revelaram-se mais claramente, confirmaram de várias maneiras o perigo e não permitem acalentar as ilusões de outrora.

109 Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes,
GS 10: AAS 58 (1966), p. 1032.
110 Ibid. GS 10



Fontes de inquietação

11 Aumenta no nosso mundo a sensação de ameaça, aumenta o medo existencial que anda ligado sobretudo — conforme já tive ocasião de insinuar na Encíclica Redemptor Hominis— com a perspectiva de um conflito que, tendo em conta os hodiernos arsenais atómicos, poderia significar a autodestruição parcial da humanidade. A ameaça não diz respeito apenas ao que os homens podem fazer uns aos outros, utilizando os recursos da técnica militar. Ela envolve ainda muito outros perigos que são o produto de uma civilização materialista, que, não obstante declarações «humanistas», aceita o primado das coisas sobre a pessoa. O homem contemporâneo, receia que, com o uso dos meios técnicos inventados por este tipo de civilização, não só cada um dos indivíduos, mas também os ambientes, as comunidades, as sociedades e as nações, possam vir a ser vítimas da violência de outros indivíduos, ambientes e sociedades. Na história do nosso século não faltam exemplos a esse respeito. Apesar de todas as declarações sobre os direitos do homem tomado na sua dimensão integral, isto é, na sua existência corpórea e espiritual, não podemos dizer que tais exemplos pertencem somente ao passado.

O homem tem justamente medo de vir a ser vítima da opressão que o prive da liberdade interior, da possibilidade de manifestar publicamente a verdade de que está convencido, da fé que professa, da faculdade de obedecer à voz da consciência que lhe indica o recto caminho a seguir. Os meios técnicos à disposição da civilização dos nossos dias encerram de facto, não apenas a possibilidade de uma autodestruição por meio de um conflito militar, mas também a possibilidade de uma sujeição «pacífica» dos indivíduos, dos ambientes de vida, de inteiras sociedades e de nações que, seja por que motivo for, se apresentem incómodos para aqueles que dispõem de tais meios e estão prontos para empregá-los sem escrúpulos. Pense-se ainda na tortura que continua a existir no mundo adoptada sistematicamente por Autoridades, como instrumento de dominação ou de opressão política, e posta em prática, impunemente, por subalternos.

Assim, ao lado da consciência da ameaça contra a vida vai crescendo a consciência da ameaça que destrói ainda mais aquilo que é essencial ao homem, ou seja, aquilo que está intimamente relacionado com a sua dignidade de pessoa, com o seu direito à verdade e à liberdade.

Tudo isto se desenrola, tendo como pano de fundo o gigantesco remorso constituído pelo facto de que, ao lado de homens e sociedades abastados e fartos, a viverem na abundância, dominados pelo consumismo e pelo prazer, não faltam na mesma família humana indivíduos e grupos sociais que sofrem a fome.Não faltam crianças que morrem de fome sob o olhar de suas mães. Não faltam, em várias partes do mundo, em vários sistemas sócio-económicos, áreas inteiras de miséria, de carência e de subdesenvolvimento. Este facto é universalmente conhecido. O estado de desigualdade entre os homens e os povos não só perdura, mas até aumenta. Sucede ainda nos nossos dias que ao lado dos que são abastados e vivem na abundância, há outros que vivem na indigência, padecem a miséria e, muitas vezes até morrem de fome, cujo número atinge dezenas e centenas de milhões. É por isso que a inquietação moral está destinada a tornar-se cada vez mais profunda. Evidentemente na base da economia contemporânea e da civilização materialista há uma falha fundamental ou, melhor dito, um conjunto de falhas ou até um mecanismo defeituoso, que não permite à família humana sair de situações tão radicalmente injustas.

Eis a imagem do mundo de hoje, onde existe tanto mal físico e moral, a ponto de o tornar um mundo enredado em tensões e contradições e, ao mesmo tempo, cheio de ameaças contra a liberdade humana, a consciência e a religião. Tal imagem explica a inquietação a que está sujeito o homem contemporâneo inquietação sentida, não só pelos que se acham desfavorecidos ou oprimidos, mas também por aqueles que gozam dos privilégios da riqueza, do progresso e do poder. Embora não faltem aqueles que procuram descobrir as causas de tal inquietação, ou reagir com os meios à disposição que lhes oferecem a técnica, a riqueza ou o poder, todavia, no mais fundo da alma humana, tal inquietação supera todos os paliativos. Como justamente concluiu na sua análise o Concílio Vaticano II, ela diz respeito aos problemas fundamentais de toda a existência humana. Esta inquietação está ligada ao próprio sentido da existência do homem no mundo. É mesmo inquietação quanto ao futuro do homem e de toda a humanidade e exige resoluções decisivas que hoje parecem impor-se ao género humano.



Bastará a justiça?

12 Não é difícil verificar que no mundo actual despertou em grande escala o sentido da justiça, o que indubitavelmente põe mais em relevo tudo o que se opõe à justiça, tanto nas relações entre os homens, grupos sociais ou «classes», como nas relações entre os Povos ou os Estados e até mesmo nas relações entre inteiros sistemas políticos ou os assim chamados «mundos». Esta corrente profunda e multiforme, em cuja base a consciência humana contemporânea situou a justiça, atesta o carácter ético das tensões e das lutas que avassalam o mundo.

A Igreja compartilha com os homens do nosso tempo este profundo e ardente desejo de vida justa sob todos os aspectos. Não deixa de fazer objecto de reflexão os vários aspectos da justiça exigida pela vida dos homens e das sociedades. Bem o comprova o amplo desenvolvimento alcançado no último século pela doutrina social católica. Na linha deste ensino situam-se tanto a educação e a formação das consciências humanas no espírito da justiça, como as iniciativas que, animadas pelo mesmo espírito, se vão desenvolvendo, especialmente no campo do apostolado dos leigos.

Apesar disso, seria difícil não se dar conta de que, muitas vezes, os programas que têm como ponto de partida a ideia da jústiça e que devem servir para sua realização na convivência dos homens, dos grupos e das sociedades humanas, na prática sofrem deformações. Embora depois continuem a apelar para a mesma ideia de justiça, todavia a experiência mostra que sobre ela predominam certas forças negativas, como o rancor o ódio e até a crueldade. Então, a ânsia de aniquilar o inimigo de limitar a sua liberdade ou mesmo de lhe impor dependência total, torna-se o motivo fundamental da acção. Isto contrasta com a essência da justiça que, por sua natureza, tende a estabelecer a igualdade e o equilíbrio entre as partes em conflito. Esta espécie de abuso da ideia de justiça e a sua alteração prática demonstram quanto a acção humana pode afastar-se da própria justiça, muito embora seja empreendida em seu nome.

Não sem razão Cristo reprovava nos seus ouvintes, fiéis à doutrina do Antigo Testamento, a disposição manifestada nestas palavras: «Olho por olho, dente por dente» 111. Era esta a forma de alterar a justiça naquele tempo; e as formas de hoje continuam a pautar-se pelo mesmo modelo. É óbvio efectivamente, que, em nome de uma pretensa justiça (por exemplo histórica ou de classe), muitas vezes se aniquila o próximo se mata, se priva da liberdade e se despoja dos mais elementares direitos humanos. A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida hurnana nas suas várias dimensões. Foi precisamente a experiência da realidade histórica que levou à formulação do axioma: summum ius, summa iniuria. Tal afirmação não tira o valor à justiça, nem atenua o significado da ordem instaurada sobre ela, indica apenas, sob outro aspecto, a necessidade de recorrer às forças mais profundas do espírito, que condicionam a própria ordem da justiça.

Tendo diante dos olhos a imagem da geração de que fazemos parte, a Igreja compartilha a inquietação de não poucos homens contemporâneos. Além disso, devemos preocupar-nos também com o declínio de muitos valores fundamentais que constituem valor incontestável não só da moral cristã, mas até simplesmente da moral humana, da cultura moral, como sejam o respeito pela vida humana desde o momento da concepção o respeito pelo matrimónio com a sua unidade indissolúvel e o respeito pela estabilidade da família. O permissivismo moral atinge sobretudo este sector mais sensível da vida e da convivência humana. Paralelamente, andam também a crise da verdade nas relações dos homens entre si, a falta de sentido de responsabilidade pela palavra , o utilitarismo nas relações dos homens entre si, a diminuição do sentido do autêntico bem comum e a facilidade com que este é sacrificado. Enfim, é a dessacralização que se transforma muita vezes em «desumanização»; o homem e a sociedade, para os quais nada é «sagrado», decaem moralmente, apesar de todas as aparências.

111
Mt 5,38


VII. A MISERICÓRDIA DE DEUS NA MISSÃO DA IGREJA


Em relação com esta imagem da nossa geração, que não pode deixar de despertar profunda inquietação, vêm à minha mente as palavras que, por motivo da Encarnação do Filho de Deus, ressoaram no Magnificat de Maria e que cantam a «misericórdia... de geração em geração». Conservando sempre no coração a eloquência destas palavras inspiradas, e aplicando-as às experiências e aos sofrimentos próprios da grande família humana , é preciso que a Igreja do nosso tempo tome consciência mais profunda e particular da necessidade de dar testemunho da misericórdia de Deus em toda a sua missão, em continuidade com a tradição da Antiga e da Nova Aliança e, sobretudo, no seguimento do próprio Cristo e dos seus Apóstolos. A Igreja deve dar testemunho da misericórdia de Deus revelada em Cristo, ao longo de toda a sua missão de Messias, professando-a em primeiro lugar como verdade salvífica de fé necessária para a vida em harmonia com a fé; depois, procurando introduzi-la e encarná-la na vida tanto dos fiéis, como, na medida do possível, na de todos os homens de boa vontade. Finalmente professando a misericórdia e permanecendo-lhe sempre fiel, a Igreja tem o direito e o dever de apelar para a misericórdia de Deus, implorando-a perante todas as formas do mal físico ou moral, diante de todas as ameaças que tornam carregado o horizonte da humanidade contemporânea.



A Igreja professa e proclama a misericórdia de Deus

13 A Igreja deve professar e proclamar a misericórdia divina em toda a sua verdade, tal como nos é transmitida pela Revelação. Nas páginas anteriores do presente documento, procurei delinear ao menos o perfil desta verdade, tão ricamente expressa em toda a Sagrada Escritura e na Tradição.

Na vida quotidiana da Igreja a verdade sobre a misericórdia de Deus, expressa na Bíblia, repercute-se como eco perene em numerosas leituras da Sagrada Liturgia. E o autêntico sentido da fé do Povo de Deus percebe-a bem, como atestam várias expressões da piedade pessoal e comunitária. Seria certamente difícil enumerá-las e resumi-las todas, dado que a maior parte delas está só gravada vivamente no íntimo dos corações e das consciências humanas. Há teólogos que afirmam ser a misericórdia o maior dos atributos e perfeições de Deus; e a Bíblia, a Tradição e toda a vida de fé do Povo de Deus oferecem-nos testemunhos inesgotáveis. Não se trata aqui da perfeição da imperscrutável essência de Deus no mistério da própria divindade, mas da perfeição e do atributo, graças aos quais o homem, na verdade íntima da sua existência, se encontra com maior intimidade e maior frequência em relação autêntica com o Deus vivo. De acordo com as palavras que Cristo dirigiu a Filipe 112, «a visão do Pai» — visão de Deus mediante a fé — tem precisamente no encontro com a sua misericórdia um momento singular de simplicidade e verdade interior, como aquele que nos é dado ver na parábola do filho pródigo.

«Quem me mê, vê o Pai» 113. A Igreja professa a misericórdia de Deus, a Igreja vive dela na sua vasta experiência de fé e também no seu ensino, contemplando constantemente a Cristo, concentrando se n'Ele, na sua vida e no seu Evangelho, na sua Cruz e Ressurreição, enfim, em todo o seu mistério. Tudo isto, que forma a «visão» de Cristo na fé viva e no ensino da Igreja, aproxima-nos da «visão do Pai» na santidade da sua misericórdia. A Igreja parece professar de modo particular a misericórdia de Deus e venerá-la, voltando-se para o Coração de Cristo. De facto, a aproximação de Cristo, no mistério do seu Coração, permite-nos deter-nos neste ponto da revelação do amor misericordioso do Pai, que constituiu, em certo sentido, o núcleo central — e, ao mesmo tempo, o mais acessível no plano humano — da missão messiânica do Filho do Homem.

A Igreja vive vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora. Neste contexto, assumem grande significado a meditação constante da Palavra de Deus e, sobretudo, a participação consciente e reflectida na Eucaristia e no sacramento da Penitência ou Reconciliação.

A Eucaristia aproxima-nos sempre do amor que é mais forte do que a morte. Com efeito, «todas as vezes que comemos deste Pão e bebemos deste Cálice», não só anunciamos a morte do Redentor, mas proclamamos também a sua ressurreição, «enquanto esperamos a sua vinda gloriosa» 114. A própria acção eucarística, celebrada em memória d'Aquele que na sua missão messiânica nos revelou o Pai por meio da Palavra e da Cruz, atesta o inexaurível amor, em força do qual Ele deseja sempre unir-se e como que tornar-se uma só coisa connosco, vindo ao encontro de todos os corações humanos.

O sacramento da Penitência ou Reconciliação aplana o caminho a cada um dos homens, mesmo quando sobrecarregados com graves culpas. Neste Sacramento todos os homens podem experimentar de modo singular a misericórdia, isto é, aquele amor que é mais forte do que o pecado. Convém que este tema fundamental apesar de já tratado na Encíclica Redemptor Hominis, seja abordado mais uma vez.

Porque existe o pecado no mundo, neste mundo que «Deus amou tanto ... que lhe deu o seu Filho unigénito» 115, Deus que «é amor» 116 não se pode revelar de outro modo a não ser como misericórdia, a qual corresponde não somente à verdade mais profunda daquele amor que Deus é, mas ainda a toda a verdade interior do homem e do mundo, sua pátria temporária.

A misericórdia em si mesma, como perfeição de Deus infinito é também infinita. Infinita, portanto, e inexaurível é a prontidão do Pai em acolher os filhos pródigos que voltam à sua casa. São infinitas também a prontidão e a força do perdão que brotam continuamente do admirável valor do Sacrifício do Filho. Nenhum pecado humano prevalece sobre esta força e nem sequer a limita. Da parte do homem pode limitá-la somente a falta de boa vontade, a falta de prontidão na conversão e na penitência, isto é, o permanecer na obstinação, que está em oposição com a graça e a verdade, especialmente diante do testemunho da cruz e da ressurreição de Cristo.

É por isso mesmo que a Igreja professa e proclama a conversão. A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia, isto é, do amor que é «paciente e benigno» 117 como o é o Criador e Pai; amor ao qual «Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo» 118 é fiel até às últimas consequências na história da Aliança com o homem, até à cruz, à morte e à ressurreição do seu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto do retorno para junto deste Pai, «rico em misericórdia».

O autêntico conhecimento do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é a fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo acto interior, mas também como disposição permanente, como estado de espírito. Aqueles que assim chegam ao conhecimento de Deus, aqueles que assim O «vêem», não podem viver de outro modo que não seja convertendo-se a Ele continuamente. Passam a viver in statu conversionis, em estado de conversão; e é este estado que constitui a característica mais profunda da peregrinação de todo homem sobre a terra in statu viatoris, em estado de peregrino. É evidente que a Igreja professa a misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, não somente com as palavras do seu ensino, mas sobretudo com a pulsação mais profunda da vida de todo o Povo de Deus. Mediante este testemunho de vida, a Igreja cumpre a sua missão própria como Povo de Deus, missão que participa da própria missão messiânica de Cristo, e que, em certo sentido, a continua.

A Igreja contemporânea está profundamente consciente de que só apoiada na misericórdia de Deus poderá realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II; e em primeiro lugar, a tarefa ecuménica que tende a unir todos os que crêem em Cristo. Empregando múltiplos esforços neste sentido, a Igreja confessa com humildade que somente o amor, que é mais poderoso do que a fraqueza das divisões humanas, pode realizar definitivamente a unidade que Cristo pedia ao Pai, e que o Espírito não cessa de pedir para nós «com gemidos inexprimíveis» 119.

112 Cf.
Jn 14,9s.
113 Ibid. Jn 14,9
114 Cf. 1Co 11,26, Aclamação no Missal Romano.
115 Jn 3,16.
116 1Jn 4,8.
117 Cf. 1Co 13,4
118 2Co 1,3
119 Rm 8,26


A Igreja procura pôr em prática a misericórdia

14 Jesus Cristo ensinou que o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado a «ter misericórdia» para com os demais. «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» 120. A Igreja vê nestas palavras um apelo à acção e esforça-se por praticar a misericórdia. Se todas as bem-aventuranças do Sermão da Montanha indicam o caminho da conversão e da mudança de vida, a que se refere aos misericordiosos é particularmente eloquente a tal respeito. O homem alcança o amor misericordioso de Deus e a sua misericórdia, na medida em que ele próprio se transforma interiormente, segundo o espírito de amor para com o próximo.

Este processo autenticamente evangélico não consiste numa transformação espiritual realizada de uma vez para sempre; mas é um completo estilo de vida, uma característica essencial e contínua da vocação cristã. Consiste, pois, na descoberta constante e na prática perseverante do amor, como força que ao mesmo tempo unifica e eleva, não obstante todas as dificuldades de natureza psicológica ou social. Trata-se, efectivamente, de um amor misericordioso que, por sua essência, é amor criador. O amor misericordioso, nas relações recíprocas entre os homens, nunca é um acto ou um processo unilateral. Ainda nos casos em que tudo pareceria indicar que apenas uma parte oferece e dá, e a outra não faz mais do que aceitar e receber (por exemplo, no caso do médico que cura, do mestre que ensina, dos pais que sustentaram e educam os filhos, do benfeitor que socorre os necessitados), de facto, também aquele que dá é sempre beneficiado. De qualquer maneira, também ele pode facilmente vir a encontrar-se na posição de quem recebe, de alguém que obtém um benefício, experimenta o amor misericordioso, ou se encontra em estado de ser objecto de misericórdia.

Neste sentido, Cristo crucificado é para nós o modelo, a inspiração e o incitamento mais nobre. Baseando-nos neste impressionante modelo, podemos, com toda a humildade, manifestar a misericórdia para com os outros, sabendo que Cristo a aceita como se tivesse sido praticada para com Ele próprio 121, Segundo este modelo, devemos também purificar continuamente todas as acções e todas intenções, em que a misericórdia é entendida e praticada de modo unilateral, como um bem feito apenas aos outros. Ela é realmente um acto de amor misericordioso só quando, ao praticá-la, estivermos profundamente convencidos de que ao mesmo tempo nós a estamos a receber, da parte daqueles que a recebem de nós. Se faltar esta bilateralidade e reciprocidade, as nossas acções não são ainda autênticos actos de misericórdia. Não se realizou ainda plenamente em nós a conversão, cujo caminho nos foi ensinado por Cristo com palavras e exemplos, até à Cruz, nem participamos ainda completamente da fonte magnífica do amor misericordioso que nos foi revelada por Ele.

O caminho que Cristo nos indicou no Sermão da Montanha, com a bem-aventurança dos misericordiosos, é muito mais rico do que aquilo que, por vezes, podemos advertir nos habituais juízos humanos sobre o tema da misericórdia. Tais juízos apresentam ordinariamente a misericórdia como acto ou processo unilateral, que pressupõe e mantém as distâncias entre aquele que pratica a misericórdia e aquele que dela é objecto, entre aquele que faz o bem e o que o recebe. Daqui nasce a pretensão de libertar da misericórdia as relações humanas e sociais e de baseá-las somente na justiça. Tais juízos sobre a misericórdia não têm em conta o vínculo fundamental que existe entre a misericórdia e a justiça, de que fala toda a tradição bíblica e, sobretudo, a actividade messiânica de Jesus Cristo. A misericórdia autêntica é, por assim dizer, a fonte mais profunda da justiça. Se esta é, em si mesma, apta para «servir de árbitro» entre os homens na recíproca repartição justa dos bens materiais, o amor, pelo contrário, e somente o amor (e portanto também o amor benevolente que chamamos «misericórdia»), é capaz de restituir o homem a si próprio.

A misericórdia autenticamente cristã é ainda, em certo sentido, a mais perfeita encarnação da «igualdade» entre os homens e, por conseguinte, também a encarnação mais perfeita da justiça, na medida em que esta, no seu campo, tem em vista o mesmo resultado. Enquanto a igualdade introduzida mediante a justiça se limita ao campo dos bens objectivos e extrínsecos, o amor e a misericórdia fazem com que os homens se encontrem uns com os outros naquele valor que é o mesmo homem, com a dignidade que lhe é própria. Ao mesmo tempo, a «igualdade» dos homens mediante o amor «paciente e benigno» 122 não elimina as diferenças. Aquele que dá torna-se mais generoso, quando se sente recompensado por aquele que recebe o seu dom. E, vice-versa, o que sabe receber o dom com a consciência de que também ele faz o bem, ao recebê-lo, está, por seu lado, a servir a grande causa da dignidade da pessoa, e contribui para unir mais profundamente os homens entre si.

A misericórdia torna-se, assim, elemento indispensável para dar forma às relações mútuas entre os homens, em espírito do mais profundo respeito por aquilo que é humano e pela fraternidade recíproca. É impossível conseguir que se estabeleça este vínculo entre os homens se se pretende regular as suas relações mútuas unicamente com a medida da justiça. Esta, em toda a gama das relações entre os homens, deve submeter-se, por assim dizer, a uma «correção» notável, por parte daquele amor que, como proclama S. Paulo, «é paciente» e «benigno», ou por outras palavras, que encerra em si as características - do amor misericordioso, tão essenciais para o Evangelho como para o Cristianismo. Tenhamos presente, além disto, que o amor misericordioso implica também ternura, compaixão e sensibilidade do coração, de que tão eloquentemente nos fala a parábola do filho pródigo 123, ou a da ovelha e a da dracma perdidas 124. O amor misericordioso, é sobretudo indispensável entre aqueles que estão mais próximos: os cônjuges, os pais e os filhos e os amigos; e é de igual modo indispensável na educação e na pastoral.

O seu campo de acção não se confina, porém, só a isto. Se Paulo VI, por mais de uma vez indicou que a «civilização do amor» 125 é o fim para o qual devem tender todos os esforços tanto no campo social e cultural, como no campo económico e político, é preciso acrescentar que este fim nunca será alcançado se nas nossas concepções e nas nossas actuações, relativas às amplas e complexas esferas da convivência humana, nos detivermos no critério do «olho por olho e dente por dente» 126, e, ao contrário, não tendermos para transformá-lo essencialmente, completando-o com outro espírito. É nesta direcção que nos conduz também o Concílio Vaticano II, quando, ao falar repetidamente da necessidade de tornar o mundo mais humano 127, centraliza a missão da Igreja no mundo contemporâneo precisamente na realização desta tarefa. O mundo dos homens só se tornará mais humano se introduzirmos no quadro multiforme das relações interpessoais e sociais, juntamente com a justiça, o «amor misericordioso» que constitui a mensagem messiânica do Evangelho.

O mundo dos homens só poderá tornar-se «cada vez mais humano» quando introduzirmos em todas as relações recíprocas, que formam a sua fisionomia moral, o momento do perdão, tão essencial no Evangelho. O perdão atesta que no mundo está presente o amor mais forte que o pecado. O perdão, além disso, é a condição fundamental da reconciliação, não só nas relações de Deus com o homem, mas também nas relações recíprocas dos homens entre si. Um mundo do qual se eliminasse o perdão seria apenas um mundo de justiça fria e irrespeitosa, em nome da qual cada um reivindicaria os próprio direitos em relação aos demais. Deste modo, as várias espécies de egoísmo, latentes no homem, poderiam transformar a vida e a convivência humana num sistema de opressão dos mais fracos pelos mais fortes, ou até numa arena de luta permanente de uns contra os outros.

Em todas as fases da história, mas especialmente na época actual a Igreja deve considerar como um dos seus principais deveres proclamar e introduzir na vida o mistério da misericórdia, revelado no mais alto grau em Jesus Cristo. Este mistério, não só para a própria Igreja como comunidade dos fiéis, mas também, em certo sentido, para todos os homens, é fonte de vida diferente daquela que é capaz de construir o homem, exposto às forças prepotentes da tríplice concupiscência que nele operam 128. É em nome deste mistério, precisamente, que Cristo nos ensina a perdoar sempre. Quantas vezes repetimos as palavras da oração que Ele próprio nos ensinou, pedindo: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido», isto é, aos que são culpados em relação a nós! 129. É realmente difícil expressar o valor profundo da atitude que tais palavras designam e inculcam. Quantas coisas dizem a cada homem acerca do seu semelhante e também acerca de si próprio! A consciência de sermos devedores uns para com os outros anda a par com o apelo à solidariedade fraterna, que S. Paulo exprimiu concisamente convidando-nos a suportar-nos «uns aos outros com caridade» 130, Que lição de humildade não está encerrada aqui, em relação ao homem, ao próximo e, também, a nós mesmos! Que escola de boa vontade para a vida comum de cada dia, nas várias condições da nossa existência! Se não déssemos atenção a esta norma, que restaria de qualquer programa «humanista» da vida e da educação?

Cristo sublinha com insistência a necessidade de perdoar aos outros. Quando Pedro lhe perguntou quantas vezes devia perdoar ao próximo, indicou-lhe o número simbólico de «setenta vezes sete» 131, querendo desta forma indicar-lhe que deveria saber perdoar sempre a todos e a cada um.

É evidente que exigência tão generosa em perdoar não anula as exigências objectivas da justiça. A justiça bem entendida constitui, por assim dizer, a finalidade do perdão. Em nenhuma passagem do Evangelho o perdão, nem mesmo a misericórdia como sua fonte, significam indulgência para com o mal, o escândalo, a injúria causada, ou os ultrajes. Em todos estes casos, a reparação do mal ou do escândalo, a compensação do prejuízo causado e a satisfação da ofensa são condição do perdão.

Assim, a estrutura fundamental da justiça penetra sempre no campo da misericórdia. Esta, no entanto, tem o condão de conferir à justiça um conteúdo novo, que se exprime do modo mais simples e pleno, no perdão. O perdão manifesta que, além do processo de «compensação» e de «trégua» que é a característica da justiça, é necessário o amor para que o homem se afirme como tal. O cumprimento das condições da justiça é indispensável, sobretudo, para que o amor possa revelar a sua própria fisionomia. Ao analisarmos a parábola do filho pródigo, dirigíamos a atenção para o facto de que aquele que perdoa e o que é perdoado se encontram num ponto essencial, que é a dignidade; isto é, o valor essencial do homem, que não se pode deixar perder e cuja afirmação, ou reencontro, são origem da maior alegria 132.

Com razão a Igreja considera seu dever e objectivo da sua missão, assegurar a autenticidade do perdão, tanto na vida e no comportamento concreto, como na educação e na pastoral. Não a protege doutro modo senão guardando a sua fonte, isto é, o mistério da misericórdia de Deus, revelado em Jesus Cristo.

Em todos os domínios a que se referem numerosas indicações do recente Concílio e a plurissecular experiência do apostolado, na base da missão da Igreja não existe outra preocupação senão ir «beber nas fontes do Salvador» 133. Daí provêm as múltiplas orientações para a missão da Igreja, tanto na vida de cada cristão, como na de cada comunidade ou de todo o Povo de Deus. O «beber nas fontes do Salvador» só se pode realizar com o espírito de pobreza a que o Senhor nos chamou com as palavras e com o exemplo: «o que recebestes de graça, dai-o também de graça» 134. Assim, em todos os caminhos da vida e do ministério da Igreja, — através da pobreza evangélica dos ministros e dispensadores e de todo o povo, que dão testemunho «das grande maravilhas» do seu Senhor — manifesta-se ainda melhor Deus que é «rico em misericórdia».

120
Mt 5,7
121 Cf. Mt 25,34-40
122 Cf. 1Co 13,4.
123 Cf. Lc 15,11-32.
124 Cf. Lc 15,1-10.
125 Cf. Insegnamenti di Paolo VI, vol. XIII (1975), p. 1568 (Discurso no encerramento do Ano Santo de 1975, 25-XII-1975); e vol. XIV (1976), pp. 40-42.
126 Mt 5,38.
127 Cf. Const. past. sobre a Igreja no Mundo ContemporâneoGaudium et Spes, GS 40: AAS 58 (1956), pp. 1057-1059; Paulo PP. VI, Exort. Apost. Paterna cum Benevolentia, especialmente nos nn. 1 e 6: AAS 67 (1975), pp. 7-9 e 17-23.
128 Cf. 1Jn 2,16.
129 Mt 6,12.
130 Ep 4,2 Ga 6,2.
131 Mt 18,22.
132 Cf. Lc 15,32
133 Cf. Is 12,3
134 Mt 10,8



Dives in misericordia PT 9