Ecclesia in Europa PT 48

Fidelidade à única mensagem


48 Para se poder anunciar o Evangelho da esperança, é necessária uma sólida fidelidade ao próprio Evangelho. Por isso, a pregação da Igreja, em todas as suas formas, deve ser cada vez mais centrada sobre a pessoa de Jesus e orientar sempre mais para Ele. É preciso vigiar para queseja apresentado na sua integridade: não só como modelo ético, mas primariamente como o Filho de Deus, o Salvador único e necessário de todos, que vive e actua na sua Igreja. Para que a esperança seja autêntica e inabalável, a « pregação íntegra, clara e renovada de Jesus Cristo ressuscitado, da ressurreição e da vida eterna »(82) deverá constituir uma prioridade na acção pastoral dos próximos anos.

Se o Evangelho a anunciar é idêntico em todos os tempos, são diversos os modos como tal anúncio pode ser realizado. Por conseguinte, cada um é convidado a « proclamar » Jesus e a fé n'Ele, em todas as circunstâncias; « atrair » os outros à fé, adoptando modos de vida pessoal, familiar, profissional e comunitária conformes ao Evangelho; « irradiar » alegria, amor e esperança ao seu redor, para que muitos, vendo as suas boas obras, glorifiquem o Pai que está nos Céus (cf.
Mt 5,16) e acabem « contagiados » e conquistados; tornar-se « fermento » que transforma e anima a partir de dentro toda a expressão cultural.(83)

Com o testemunho da vida


49 A Europa exige evangelizadores credíveis, cuja vida, em sintonia com a cruz e a ressurreição de Cristo, irradie a beleza do Evangelho.(84) Tais evangelizadores hão-de ser adequadamente formados.(85) Hoje torna-se ainda mais necessária a consciência missionária em todos os cristãos, a começar pelos Bispos, presbíteros, diáconos, consagrados, catequistas e professores de religião: « Cada baptizado, enquanto testemunha de Cristo, deve obter a formação adequada à sua condição, não só para evitar que a fé definhe por falta de cuidado num ambiente hostil como é o do mundo, mas também para dar apoio e impulso ao testemunho evangelizador ».(86)

O homem contemporâneo « escuta com maior benevolência as testemunhas do que os mestres, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas ».(87) Por isso, são decisivas a presença e os sinais da santidade: esta é pressuposto essencial para uma autêntica evangelização, capaz de devolver a esperança. Precisa-se de testemunhos fortes, pessoais e comunitários, de vida nova em Cristo. É que não basta oferecer a verdade e a graça através da proclamação da Palavra e da celebração dos Sacramentos; é necessário acolhê-las e vivê-las em cada circunstância concreta, no modo de ser dos cristãos e das comunidades eclesiais. Esta é uma das maiores apostas que esperam a Igreja que está na Europa, neste início do novo milénio.

Formar para uma fé adulta


50 « A situação cultural e religiosa actual da Europa exige a presença de católicos adultos na fé e de comunidades cristãs missionárias que testemunhem a caridade de Deus a todos os homens ».(88) Por conseguinte, o anúncio do Evangelho da esperança supõe que haja o cuidado depromover a passagem de uma fé apoiada na tradição social, e que tem o seu valor, a uma fé mais pessoal e adulta, esclarecida e convicta.

Por isso, os cristãos são chamados a possuir uma fé que lhes permita confrontar-se criticamente com a cultura actual resistindo às suas seduções; influir eficazmente nos sectores culturais, económicos, sociais e políticos; mostrar que a comunhão entre os membros da Igreja Católica e com os outros cristãos é mais forte do que qualquer vínculo étnico; transmitir com alegria a fé às novas gerações; construir uma cultura cristã que possa evangelizar a cultura mais ampla em que vivemos.(89)


51 Além de cuidarem de que o ministério da Palavra, a celebração da liturgia e o exercício da caridade tenham em vista a edificação e fortalecimento duma fé matura e pessoal, é preciso que as comunidades cristãs procurem propor uma catequese adaptada aos diferentes itinerários espirituais dos fiéis segundo as respectivas idades e estados de vida, prevendo-se ainda adequadas formas de acompanhamento espiritual e de redescoberta do próprio baptismo.(90) Obviamente um ponto fundamental de referência neste trabalho há-de ser o Catecismo da Igreja Católica.

De modo particular, dada a sua inegável prioridade na acção pastoral, é preciso cultivar, e eventualmente reintroduzir, o ministério da catequese enquanto educação e desenvolvimento da fé de cada pessoa, para que a semente, lançada pelo Espírito Santo e transmitida no Baptismo, cresça e chegue à maturação. Referida constantemente à Palavra de Deus, conservada na Sagrada Escritura, proclamada na Liturgia e interpretada pela Tradição da Igreja, uma catequese orgânica e sistemática constitui, sem sombra de dúvida, um instrumento essencial e primário de formação dos cristãos para uma fé adulta.(91)


52 Nesta mesma linha, há que assinalar também a função importante da teologia. De facto, existe um nexo intrínseco e indivisível entre a evangelização e a reflexão teológica, porque esta, apesar de ciência com um estatuto e metodologia próprios, vive da fé da Igreja e está ao serviço da sua missão.(92) Nasce da fé e é chamada a interpretá-la, mantendo a sua ligação imprescindível com a comunidade cristã em todas as suas articulações; posta ao serviço do crescimento espiritual de todos os fiéis,(93) a teologia introdu-los na compreensão profunda da mensagem de Cristo.

No cumprimento da sua missão de anunciar o Evangelho da esperança, a Igreja na Europa vê com apreço e gratidão a vocação dos teólogos, valoriza e promove o seu trabalho.(94) Com estima e afecto, convido-os a perseverarem no serviço que realizam, unindo sempre pesquisa científica e oração, mantendo um diálogo atencioso com a cultura contemporânea, aderindo fielmente ao Magistério e colaborando com ele em espírito de comunhão na verdade e na caridade, respirando osensus fidei do povo de Deus e ajudando a alimentá-lo.


II. Dar testemunho na unidade e no diálogo




A comunhão entre as Igrejas particulares


53 O anúncio do Evangelho da esperança será mais forte e eficaz, se puder contar com o testemunho duma profunda unidade e comunhão na Igreja. Cada uma das Igrejas particulares não pode enfrentar sozinha o desafio que a espera. Há necessidade duma autêntica colaboração entre todas as Igrejas particulares do continente, que seja expressão da sua comunhão essencial;colaboração essa requerida também pela nova realidade europeia.(95) Coloca-se neste âmbito o contributo dos organismos eclesiais do continente, a começar pelo Conselho das Conferências Episcopais Europeias. Trata-se dum instrumento eficaz para uma busca conjunta do caminhos mais idóneos para evangelizar a Europa.(96) Com o « intercâmbio dos dons » entre as diversas Igrejas particulares, põem-se em comum as experiências e reflexões da Europa do Ocidente e do Oriente, do Norte e do Sul, assumindo orientações pastorais comuns; por isso, o referido Conselho tem-se revelado uma expressão sempre mais significativa do sentimento colegial entre os Bispos do continente, para juntos anunciarem, com ousadia e fidelidade, o nome de Jesus Cristo, única fonte de esperança para todos na Europa.

Unidos com todos os cristãos


54 Ao mesmo tempo, apresenta-se como um imperativo irrenunciável o dever duma fraterna e convicta colaboração ecuménica.

O êxito da evangelização está estreitamente relacionado com o testemunho de unidade que todos os discípulos de Cristo conseguirem dar: « Todos os cristãos são chamados a desempenhar esta missão de acordo com a própria vocação. A tarefa da evangelização compreende o comportamento de um com o outro e o comportamento conjunto dos cristãos, que deve partir do interior; evangelização e unidade, evangelização e ecumenismo estão indissoluvelmente ligados entre si ».(97) Lembro aqui as palavras escritas por Paulo VI ao Patriarca ecuménico Atenágoras I: « Possa o Espírito Santo guiar-nos no caminho da reconciliação, para que a unidade das nossas Igrejas se torne um sinal cada vez mais luminoso de esperança e de conforto para toda a humanidade ».(98)

Em diálogo com as outras religiões


55 Como sucede em todo o serviço da « nova evangelização », também é necessário, no anúncio do Evangelho da esperança, que se procure instaurar um profundo e lúcido diálogo inter-religioso, de modo particular com o hebraísmo e o islamismo. Este diálogo, « entendido como método e meio para um conhecimento e enriquecimento recíproco, não está em contraposição com a missão ad gentes; pelo contrário, tem laços especiais com ela e constitui uma sua expressão ».(99) Praticar o referido diálogo não significa deixar-se conquistar por uma « mentalidade de indiferentismo, muito difundida infelizmente também entre os cristãos, frequentemente radicada em concepções teológicas incorrectas e geradora de um relativismo religioso que leva a pensar que “tanto vale uma religião como outra” ».(100)


56 Trata-se, antes, de tomar uma consciência mais viva dos laços que unem a Igreja ao povo hebreu e do papel singular de Israel na história da salvação. Como se dissera já na I Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa e foi reiterado no último Sínodo, é preciso reconhecer as raízes comuns que existem entre o cristianismo e o povo hebreu, chamado por Deus a uma aliança que permanece irrevogável (cf. Rm Rm 11,29),(101) tendo alcançado a sua plenitude definitiva em Cristo.

Por isso, é necessário promover o diálogo com o hebraísmo, sabendo que isso tem uma importância fundamental tanto para a autoconsciência cristã como para a superação das divisões entre as Igrejas, e trabalhar para que floresça uma nova primavera no relacionamento recíproco. Isto exige que cada comunidade eclesial procure, na medida em que as circunstâncias lho permitirem, praticar o diálogo e a colaboração com os crentes da religião hebraica. Uma tal prática requer, para além do mais, que « se recorde a parte de responsabilidade que os filhos da Igreja possam ter tido na origem e difusão duma atitude antisemita na história e que se peça perdão a Deus disso mesmo, promovendo na medida do possível encontros de reconciliação e de amizade com os filhos de Israel ».(102) Mas, neste contexto, é forçoso lembrar também os numerosos cristãos que, sobretudo em períodos de perseguição e por vezes à custa da própria vida, ajudaram e salvaram estes seus « irmãos mais velhos ».


57 Trata-se ainda de deixar-se estimular a um melhor conhecimento das outras religiões, para se poder instaurar um colóquio fraterno com as pessoas que aderem a elas e vivem actualmente na Europa. De modo particular, é importante um correcto relacionamento com o islamismo. Tal relacionamento, como várias vezes ao longo destes anos se deram conta os Bispos europeus, « deve ser conduzido com prudência, com clareza de ideias acerca das suas possibilidades e dos seus limites, e com confiança no plano salvífico de Deus em relação a todos os seus filhos ».(103) Para além do mais, é preciso ter consciência da notável diferença existente entre a cultura europeia, que tem profundas raízes cristãs, e o pensamento muçulmano.(104)

A tal propósito, é necessário preparar adequadamente os cristãos, que vivem diariamente em contacto com os muçulmanos, para conhecerem de modo objectivo o islamismo e saberem relacionar-se com ele; essa preparação deve ser dada particularmente aos seminaristas, aos presbíteros e a todos os agentes pastorais. Além disso é compreensível que a Igreja, quando pede às instituições europeias que tenham a peito promover a liberdade religiosa na Europa, insista ao mesmo tempo com países de diversa tradição religiosa, onde os cristãos são minoria, para uma reciprocidade de tratamento, isto é, ver lá garantida e observada a liberdade religiosa.(105)

Neste âmbito, « compreende-se a desilusão e o sentimento de frustração dos cristãos que acolhem, por exemplo na Europa, crentes de outras religiões dando-lhes a possibilidade de exercerem o seu culto, e que se vêem proibidos de exercer o culto cristão » (106) nos países onde tais crentes são a maioria tendo feito da sua religião a única autorizada e promovida. A pessoa humana tem direito à liberdade religiosa e, em qualquer parte do mundo, todos « devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana ».(107)


III. Evangelizar a vida social

Evangelização da cultura e inculturação do Evangelho



58 O anúncio de Jesus Cristo deve alcançar também a cultura europeia contemporânea. A evangelização da cultura deve mostrar que hoje, nesta Europa, também é possível viver em plenitude o Evangelho enquanto itinerário que dá sentido à existência. Para isso, a pastoral deve assumir a tarefa de plasmar uma mentalidade cristã na vida ordinária: na família, na escola, na comunicação social, no mundo da cultura, do trabalho e da economia, na política, nos tempos livres, na saúde e na doença. É preciso fazer uma serena análise crítica da situação cultural actual da Europa, avaliando as tendências salientes, os factos e as situações de maior relevância do nosso tempo à luz da centralidade de Cristo e da antropologia cristã.

Recordando a fecundidade cultural do cristianismo ao longo da história da Europa, também hoje é preciso mostrar a perspectiva evangélica, teórica e prática, da realidade e do homem. Além disso, considerando a grande relevância que têm as ciências e as realizações técnicas na cultura e na sociedade da Europa, a Igreja, através dos seus instrumentos de aprofundamento teórico e de iniciativa prática, é chamada a apresentar as suas sugestões acerca dos conhecimentos científicos e das suas aplicações, indicando o carácter insuficiente e inadequado duma concepção inspirada pelo cientismo, que pretende reconhecer como objectivamente válido apenas o saber experimental, e oferecendo os critérios éticos que o homem possui inscritos na sua natureza.(108)


59 No caminho da evangelização da cultura, coloca-se o importante serviço que realizam as escolas católicas. Há que trabalhar para que seja reconhecida uma efectiva liberdade de educação e a igualdade jurídica entre escolas estatais e não estatais. Estas são às vezes o único meio para apresentar a tradição cristã àqueles que andam longe da Igreja. Aos fiéis empenhados no mundo da escola, exorto-os a perseverarem na sua missão, irradiando a luz de Cristo Salvador nas suas específicas actividades educativas, científicas e académicas.(109) De modo particular, há que valorizar o contributo dos cristãos que se consagram à pesquisa e à docência nas Universidades: com o « serviço do pensamento », eles transmitem às jovens gerações os valores dum património cultural enriquecido por dois milénios de experiência humanista e cristã. Convicto da importância das instituições académicas, peço ainda que, nas diversas Igrejas particulares, seja promovida uma adequada pastoral universitária, favorecendo deste modo a resposta às necessidades culturais actuais.(110)


60 Não se pode esquecer também o contributo positivo da valorização dos bens culturais da Igreja. De facto, podem constituir um factor peculiar para suscitar de novo um humanismo de inspiração cristã. Com a sua adequada conservação e lúcido aproveitamento, tais bens, enquanto testemunho vivo da fé professada ao longo dos séculos, podem tornar-se um válido instrumento para a nova evangelização e a catequese, convidando a redescobrir o sentido do mistério.

Ao mesmo tempo, sejam promovidas novas expressões artísticas da fé, através de um diálogo assíduo com os cultores da arte.(111) Com efeito, a Igreja tem necessidade da arte, literatura, música, pintura, escultura e arquitectura, porque « deve tornar perceptível e até o mais fascinante possível o mundo do espírito, do invisível, de Deus » (112) e porque a beleza artística, como reflexo do Espírito de Deus, é um cifrado do mistério, um convite a buscar o rosto de Deus que se tornou visível em Jesus de Nazaré.

A educação dos jovens para a fé


61 Encorajo, depois, a Igreja na Europa a prestar crescente atenção à educação dos jovens para a fé. Quando se perscruta o futuro, o nosso pensamento não pode deixar de fixar-se neles: devemos encontrar-nos com a inteligência, o coração, o carácter dos jovens, para lhes oferecer uma sólida formação humana e cristã.

Em qualquer ocasião que registe a participação de muitos jovens, não é difícil descobrir a presença de diversas atitudes neles. Constata-se o desejo de estarem juntos para saírem do isolamento, uma sede mais ou menos consciente de absoluto; encontra-se neles uma fé secreta que pede para ser purificada pois deseja seguir o Senhor; intui-se a decisão de continuarem o caminho já abraçado e a exigência de partilharem a fé.


62 Para tal, é preciso renovar a pastoral juvenil, estruturando-a segundo as faixas etárias, adaptando-a às exigências próprias de crianças, adolescentes e jovens. Além disso, é necessário torná-la mais orgânica e coerente com as questões dos jovens ouvidos pacientemente para serem protagonistas da evangelização e da edificação da sociedade.

Neste caminho, devem-se promover ocasiões de encontro entre os jovens, nos quais se favoreça um clima de escuta mútua e de oração. Não é preciso ter medo de ser exigentes com eles no que se refere ao seu crescimento espiritual. Seja-lhes indicado o caminho da santidade, animando-os a tomarem decisões empenhativas no seguimento de Jesus, sustentados por uma intensa vida sacramental. Assim, poderão resistir às seduções duma cultura, que muitas vezes lhes propõe apenas valores efémeros ou mesmo contrários ao Evangelho, e tornarem-se eles próprios capazes de mostrar uma mentalidade cristã em todos os âmbitos da existência, incluindo os de divertimento e passatempo.(113)

Tenho ainda vivos nos olhos os rostos felizes de tantos jovens, verdadeira esperança da Igreja e do mundo, sinal eloquente do Espírito que não Se cansa de suscitar novas energias. Encontrei-os quer no meu peregrinar pelos vários países quer nas inesquecíveis Jornadas Mundiais da Juventude.(114)

A solicitude pelos mass-media


63 Vista a importância dos meios de comunicação social, a Igreja na Europa não pode deixar dereservar uma particular atenção ao variegado mundo dos mass-media. Isso comporta, para além do mais, a adequada formação dos cristãos que trabalham nos mass-media e dos seus utentes tendo por objectivo um bom domínio das novas linguagens. Há-de pôr-se um cuidado especial na escolha de pessoas preparadas para a comunicação da mensagem através dos mass-media. Será muito útil também um intercâmbio entre as Igrejas de informações e estratégias sobre os diversos aspectos e iniciativas relativos a tal comunicação. E não se deve transcurar a criação de meios locais, mesmo a nível paroquial, de comunicação social.

Ao mesmo tempo, é preciso entrar dentro dos processos da comunicação social, para torná-la mais respeitadora da verdade da informação e da dignidade da pessoa humana. A este propósito, convido os católicos a tomarem parte na elaboração de um código deontológico para todos os que trabalham no sector da comunicação social, deixando-se guiar pelos critérios recentemente indicados pelos organismos competentes da Santa Sé (115) e que os Bispos assim tinham elencado no Sínodo: « Respeito pela dignidade da pessoa humana, pelos seus direitos, incluindo o direito à própria privacidade; serviço à verdade, à justiça e aos valores humanos, culturais e espirituais; estima pelas diversas culturas, evitando que se dissolvam na massa, tutela dos grupos minoritários e dos mais débeis; busca do bem comum, acima dos interesses particulares ou do predomínio de critérios meramente económicos ».(116)

A missão « ad gentes »


64 Um anúncio de Jesus Cristo e do seu Evangelho, que se limitasse unicamente ao âmbito europeu, acusaria sintomas de uma inquietante carência de esperança. A obra de evangelização é animada por verdadeira esperança cristã, quando se abre para os horizontes universais, levando a oferecer gratuitamente a todos aquilo que, por nossa vez, tínhamos recebido em dom. A missão « ad gentes » torna-se assim expressão duma Igreja plasmada pelo Evangelho da esperança, que se renova e rejuvenesce sem cessar. Ao longo dos séculos, foi esta a consciência da Igreja na Europa: multidões sem conta de missionários e missionárias, saindo ao encontro de outros povos e civilizações, anunciaram o Evangelho de Jesus Cristo às nações do mundo inteiro.

Igual ardor missionário deve animar a Igreja na Europa actual. A diminuição do número de presbíteros e consagrados, em certos países, não deve impedir qualquer Igreja particular de assumir as exigências da Igreja universal. Cada uma procurará favorecer a preparação para a missão ad gentes, a fim de poder responder generosamente à solicitação que ainda se levanta de muitos povos e nações, desejosos de conhecer o Evangelho. As Igrejas doutros continentes, sobretudo da Ásia e da África, têm os olhos postos ainda nas Igrejas da Europa, esperando que elas continuem a cumprir a sua vocação missionária. Os cristãos na Europa não podem falhar à sua história.(117)

O Evangelho: livro para a Europa de hoje e de sempre


65 Ao cruzar a Porta Santa na abertura do Grande Jubileu do ano 2000, tinha bem erguido à vista da Igreja e do mundo o livro do Evangelho. Possa este gesto, realizado também por cada Bispo nas respectivas catedrais do mundo, indicar o compromisso que espera hoje e sempre a Igreja no nosso continente.

Igreja na Europa, entra no novo milénio com o Livro do Evangelho! Todos os fiéis acolham esta exortação conciliar: « Aprendam “a sublime ciência de Jesus Cristo” (
Ph 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque “a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo” ».(118) Que a Bíblia Sagrada continue a ser um tesouro para a Igreja e para cada cristão: no estudo cuidadoso da Palavra, encontraremos alimento e força para realizar quotidianamente a nossa missão.

Tomemos este Livro nas nossas mãos! Recebamo-lo do Senhor, que continuamente no-lo oferece através da sua Igreja (cf. Ap Ap 10,8). Comamo-lo (cf. Ap Ap 10,9), para que se torne vida da nossa vida. Saboreemo-lo profundamente: embora sem nos poupar canseiras, conseguirá dar-nos alegria porque é doce como o mel (cf. Ap Ap 10,9-10). Ficaremos cheios de esperança e capazes de comunicá-la a todo o homem e mulher que encontrarmos no nosso caminho.



CAPÍTULO IV


CELEBRAR O EVANGELHO DA ESPERANÇA


« Ao que está sentado sobre o trono

e ao Cordeiro sejam dadas

acções de graças, honra, glória e poder

para todo o sempre » (Ap 5,13)


Uma comunidade orante


66 O Evangelho da esperança, anúncio da verdade que liberta (cf. Jo Jn 8,32), deve ser celebrado. Diante do Cordeiro do Apocalipse, tem início uma solene liturgia de louvor e de adoração: « Ao que está sentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas acções de graças, honra, glória e poder para todo o sempre » (Ap 5,13). A própria visão, que revela Deus e o sentido da história, tem lugar « no dia do Senhor » (Ap 1,10), o dia da ressurreição recordado pela assembleia dominical.

A Igreja, que acolhe esta revelação, é uma comunidade que reza. Ao rezar, escuta o seu Senhor e aquilo que o Espírito lhe diz (cf. Ap Ap 2,1-3 Ap Ap 2,22); adora, louva, agradece, e também implora a vinda do Senhor: « Vem, Senhor Jesus! » (Ap 22,84), afirmando deste modo que só d'Ele espera a salvação.

Também é pedido a ti, Igreja de Deus que vives na Europa, para seres comunidade que reza, celebrando o teu Senhor através dos sacramentos, da liturgia e da vida inteira. Na oração, descobrirás a presença vivificante do Senhor. Deste modo, enraizando n'Ele toda a tua acção, poderás propor de novo aos europeus o encontro com Ele mesmo, esperança verdadeira e única capaz de satisfazer plenamente o anseio de Deus, oculto nas diversas formas de busca religiosa que surgem na Europa contemporânea.


I. Redescobrir a liturgia


O sentido religioso na Europa actual


67 Apesar de haver vastas áreas de descristianização no continente europeu, existem todavia sinais que ajudam a esboçar o rosto de uma Igreja que, acreditando, anuncia, celebra e serve o seu Senhor. De facto, não faltam exemplos de cristãos autênticos que vivem momentos de silêncio contemplativo, participam fielmente em iniciativas espirituais, vivem na sua existência diária o Evan- gelho e testemunham-no nos vários sectores das suas obrigações. Além disso, podem-se divisar manifestações de um « povo santo » que demonstram como também é possível na Europa actual viver o Evangelho a nível pessoal e numa autêntica experiência comunitária.


68 A par de muitos exemplos de fé genuína, existe na Europa também uma religiosidade vaga e, por vezes, insidiosa. Os seus sinais são frequentemente genéricos e superficiais, se não mesmo contraditórios nas próprias pessoas que os fornecem. Trata-se de fenómenos evidentes de fuga para o espiritualismo, sincretismo religioso e esotérico, procura de factos extraordinários a todo o custo, chegando-se mesmo a opções transviadas, como a adesão a seitas perigosas ou a experiências pseudo-religiosas.

O generalizado desejo de alimento espiritual deve ser acolhido com compreensão e purificado. Ao homem que se dá conta, embora confusamente, de não poder viver só de pão, é necessário que a Igreja possa testemunhar de forma persuasiva a resposta que Jesus deu ao tentador: « Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus » (
Mt 4,4).

Uma Igreja que celebra


69 No contexto da sociedade actual, frequentemente fechada à transcendência, sufocada por comportamentos consumistas, presa fácil de antigas e novas idolatrias e, ao mesmo tempo, sedenta de algo que ultrapasse o imediato, a tarefa que espera a Igreja na Europa é simultaneamente árdua e entusiasmante. Tal tarefa consiste em redescobrir o sentido do « mistério »; renovar as celebrações litúrgicas para que sejam sinais mais eloquentes da presença de Cristo Senhor; proporcionar novos espaços de silêncio, oração e contemplação; voltar aos sacramentos, sobretudo à Eucaristia e à Penitência, como fontes de liberdade e de nova esperança.

Por isso, a ti, Igreja que vives na Europa, dirijo um premente convite: sê uma Igreja que reza, louva a Deus, reconhece-Lhe o primado absoluto e exalta-O com jubilosa fé. Redescobre o sentido do mistério: vive-o com humilde gratidão; testemunha-o com alegria convicta e contagiante.Celebra a salvação de Cristo: acolhe-a como um dom que faz de ti seu sacramento; faz da tua vida o verdadeiro culto espiritual agradável a Deus (cf. Rm
Rm 12,1).

O sentido do mistério


70 Alguns sintomas revelam uma atenuação do sentido do mistério nas próprias celebrações litúrgicas, quando o objectivo destas é precisamente reforçá-lo. Por isso, é urgente que se reavive na Igreja o autêntico sentido da liturgia.Esta, como foi recordado pelos padres sinodais,(119) é instrumento de santificação, celebração da fé da Igreja, meio de transmissão da fé. Constitui, juntamente com a Sagrada Escritura e os ensinamentos dos Padres da Igreja, uma fonte viva de autêntica e sólida espiritualidade. Como bem salienta a tradição das venerandas Igrejas do Oriente, os fiéis, através da liturgia, entram em comunhão com a Santíssima Trindade, experimentando como dom da graça a sua participação na natureza divina. Ela torna-se assim antecipação da Bem-aventurança final e participação na glória celeste.


71 Nas celebrações, é preciso pôr novamente ao centro Jesus, para deixar-se iluminar e guiar por Ele. Podemos encontrar aqui uma das respostas mais eficazes que as nossas Comunidades são chamadas a dar a uma religiosidade vaga e inconsistente. A liturgia da Igreja não tem como objectivo aplacar os desejos e os medos do homem, mas escutar e acolher Jesus, o Vivente, que honra e louva o Pai, para louvá-Lo e honrá-Lo com Ele. As celebrações eclesiais proclamam que a nossa esperança vem de Deus, por meio de Jesus nosso Senhor.

Trata-se de viver a liturgia como obra da Santíssima Trindade. Nos mistérios celebrados, é o Pai que trabalha para nós; é Ele que nos fala, perdoa, escuta, dá o seu Espírito; a Ele nos dirigimos, a Ele escutamos, louvamos, invocamos. É Jesus que actua para a nossa santificação, tornando-nos participantes do seu mistério. É o Espírito Santo que age com a sua graça e faz de nós o Corpo de Cristo, a Igreja.

A liturgia deve ser vivida como anúncio e antecipação da glória futura, meta última da nossa esperança. De facto, como ensina o Concílio, « pela liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos, (...) até Nosso Senhor Jesus Cristo aparecer como nossa vida e nós aparecermos com Ele na glória ».(120)

Formação litúrgica


72 Se já tanta estrada se fez depois do Concílio Ecuménico Vaticano II para viver o sentido autêntico da liturgia, resta ainda muita por fazer. São necessárias uma contínua renovação e uma constante formação de todos: ordenados, consagrados e leigos.

A verdadeira renovação, longe de servir-se de actos arbitrários, consiste em desenvolver cada vez melhor a consciência do sentido do mistério, para fazer das liturgias momentos de comunhão com o mistério grande e sagrado da Santíssima Trindade. Celebrando as acções sagradas como relacionamento com Deus e acolhimento dos seus dons, expressão de autêntica vida espiritual, a Igreja na Europa poderá verdadeiramente alimentar a sua esperança e oferecê-la a quem a perdeu.


73 Para isso, é necessário um grande esforço de formação.Tendo como finalidade favorecer a compreensão do verdadeiro sentido das celebrações da Igreja e ainda uma adequada instrução sobre os ritos, tal formação requer uma autêntica espiritualidade e a educação para vivê-la em plenitude.(121) Por conseguinte, há que promover ainda mais uma verdadeira « mistagogia litúrgica », com a participação activa de todos os fiéis, cada qual segundo as próprias competências, nas acções sagradas, particularmente na Eucaristia.


II. Celebrar os sacramentos



74 Um lugar de grande relevo há-de ser reservado à celebração dos sacramentos, enquanto actos de Cristo e da Igreja, ordenados a prestar culto a Deus, à santificação dos homens e à edificação da Comunidade eclesial. Sabendo que neles age o próprio Cristo por meio do Espírito Santo, sejam celebrados com o máximo cuidado e criando as condições adequadas. As Igrejas particulares do continente terão a peito reforçar a sua pastoral dos sacramentos para dar a conhecer a sua verdade profunda. Os padres sinodais puseram em evidência esta necessidade, para contrastar dois perigos: por um lado, certos ambientes eclesiais parecem ter perdido o genuíno sentido do sacramento e poderiam banalizar os mistérios celebrados; por outro, muitos baptizados, seguindo costumes e tradições, continuam a recorrer aos sacramentos em momentos significativos da sua existência, mas não vivem de acordo com as indicações da Igreja.(122)

A Eucaristia


75 A Eucaristia, dom supremo de Cristo à Igreja, torna sacramentalmente presente o sacrifício de Cristo oferecido pela nossa salvação: « Na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa ».(123) Nela, « fonte e centro de toda a vida cristã »,(124) bebe a Igreja, na sua peregrinação, achando lá a fonte de toda a esperança. De facto, a Eucaristia « dá estímulo à nossa caminhada na história, lançando uma semente de activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres ».(125)

Todos somos convidados a confessar a fé na Eucaristia, « penhor da glória futura », seguros de que a comunhão com Cristo, agora vivida como peregrinos na existência mortal, antecipa o encontro supremo daquele dia em que « seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é » (
1Jn 3,2). A Eucaristia é uma « amostra de eternidade no tempo », é presença divina e comunhão com ela; memorial da Páscoa de Cristo, é por sua natureza portadora da graça na história humana. Abre para o futuro de Deus; sendo comunhão com Cristo, com o seu Corpo e o seu Sangue, ela é participação na vida eterna de Deus.(126)


Ecclesia in Europa PT 48