Ecclesia in Europa PT 76

A Reconciliação


76 Juntamente com a Eucaristia, deve desempenhar papel fundamental na recuperação da esperança o sacramento da Reconciliação: « De facto, a experiência pessoal do perdão recebido de Deus por cada um de nós é fundamento essencial de esperança para o nosso futuro ».(127) Uma das raízes para o desânimo que hoje invade a muitos, há que buscá-la na incapacidade de se reconhecerem pecadores e de se deixarem perdoar; tal incapacidade fica-se a dever frequentemente à solidão de quem, vivendo como se Deus não existisse, não tem ninguém a quem pedir perdão. Ao invés, quem se reconhece pecador e se entrega à misericórdia do Pai celeste, experimenta a alegria duma verdadeira libertação e pode prosseguir ao longo do caminho da vida sem se fechar na própria miséria.(128) Deste modo, recebe a graça de um novo início e reencontra motivos para esperar.

Por isso, é necessário que o sacramento da Reconciliação seja revitalizado na Igreja da Europa. Há que reafirmar, porém, que a forma deste sacramento é a confissão pessoal dos pecados seguida da absolvição individual. Tal encontro do penitente com o sacerdote deve ser promovido de todas as formas previstas no rito do Sacramento. Perante a perda generalizada do sentido do pecado e o acentuar-se de uma mentalidade eivada de relativismo e subjectivismo em campo moral, é preciso que cada comunidade eclesial providencie uma séria formação das consciências.(129) Os padres sinodais insistiram para que seja claramente reconhecida a verdade do pecado pessoal e a necessidade do perdão pessoal de Deus através do ministério do sacerdote. As absolvições colectivas não são uma forma alternativa de administrar o sacramento da Reconciliação.(130)


77 Dirijo-me aos sacerdotes, exortando-os a disponibilizarem-se generosamente para atender de confissão e a darem eles mesmos o exemplo aproximando-se regularmente do sacramento da Penitência. Recomendo-lhes que tenham o cuidado de actualizar-se no campo da teologia moral, para poderem enfrentar com competência as problemáticas ultimamente surgidas no âmbito da moral pessoal e social. Além disso, prestem particular atenção às condições concretas de vida em que se encontram os fiéis e procurem pacientemente levá-los a reconhecerem as exigências da lei moral cristã, ajudando-os a viverem o sacramento como um encontro feliz com a misericórdia do Pai celeste.(131)

Oração e vida


78 A par da celebração eucarística, é preciso promover também outras formas de oração comunitária,(132) ajudando a descobrir a ligação que existe entre elas e a oração litúrgica. De modo particular, conservando viva a tradição da Igreja latina, sejam promovidas as diversas manifestações do culto eucarístico fora da Missa: adoração pessoal, exposição e procissão, entendidas como expressão de fé na presença real do Senhor que permanece no Sacramento do Altar.(133) Na celebração pessoal e comunitária da Liturgia das Horas, que se reveste de singular valor mesmo para os fiéis-leigos, como lembrou o Concílio Vaticano II,(134) procure-se ensinar a ver a referida conexão com o mistério eucarístico. As famílias sejam incitadas a reservar espaço para a oração feita em comum, podendo assim interpretar à luz do Evangelho toda a existência matrimonial e familiar. Deste ponto de partida e escutando a Palavra de Deus, formar-se-á aquela liturgia doméstica que acompanhará os sucessivos momentos da família.(135)

Qualquer forma de oração comunitária pressupõe a oração individual. É entre a pessoa e Deus que nasce aquele colóquio autêntico que se exprime no louvor, na acção de graças, na súplica dirigida ao Pai por Jesus Cristo e no Espírito Santo. Nunca seja transcurada a oração pessoal, que é de algum modo a respiração do cristão. Na educação para ela, leve-se também a descobrir a sua ligação com a oração litúrgica.


79 Reserve-se uma especial atenção também à piedade popular.(136) Esta, presente em larga escala nas diversas regiões da Europa através das confrarias, das peregrinações e procissões nos numerosos santuários, enriquece o caminho do ano litúrgico, inspirando usos e costumes familiares e sociais. Todas estas formas devem ser objecto duma cuidadosa pastoral de promoção e renovamento, ajudando a desenvolver tudo o que nelas seja genuína expressão da sabedoria do povo de Deus. Tal é, sem dúvida, o santo rosário. Neste ano que lhe é dedicado, apraz-me recomendar mais uma vez a sua recitação, porque « o rosário, quando descoberto no seu pleno significado, conduz ao âmago da vida cristã, oferecendo uma ordinária e fecunda oportunidade espiritual e pedagógica para a contemplação pessoal, a formação do povo de Deus e a nova evangelização ».(137)

No campo da piedade popular, é preciso vigiar constantemente sobre aspectos ambíguos de determinadas manifestações, preservando-as de desvios secularistas, de consumismos imprudentes ou mesmo de riscos de superstição, para mantê-las sob formas maturas e autênticas. Há que realizar uma obra pedagógica, explicando como a piedade popular deve ser vivida sempre de harmonia com a liturgia da Igreja e em conexão com os sacramentos.


80 Não se pode esquecer que o « culto espiritual agradável a Deus » (cf. Rm Rm 12,1) realiza-se sobretudo na existência quotidiana, vivida na caridade através do dom livre e generoso de si mesmo, inclusive em momentos de aparente impotência. Assim, a vida é animada por uma esperança inabalável, porque assente apenas na certeza do poder de Deus e da vitória de Cristo: é uma vida repleta das consolações de Deus, com as quais somos chamados, por nossa vez, a consolar aqueles que encontrarmos no nosso caminho (cf. 2Co 1,4).

O dia do Senhor


81 Momento paradigmático e altamente evocativo para a celebração do Evangelho da esperança é o dia do Senhor.

No contexto actual, as circunstâncias tornam precária a possibilidade de os cristãos viverem plenamente o domingo como dia do encontro com o Senhor. Não é raro acontecer que fique reduzido a « fim de semana », a mero tempo de evasão. Por isso, é preciso uma acção pastoral articulada a nível educativo, espiritual e social, que ajude a viver o seu verdadeiro sentido.


82 Renovo, pois, o convite para se recuperar o significado mais profundo do dia do Senhor:(138) seja santificado com a participação na Eucaristia e com um repouso rico de alegria cristã e de fraternidade. Seja celebrado como centro de todo o culto, incessante prenúncio da vida sem fim, que reaviva a esperança e anima a caminhar. Por isso, não haja medo de defendê-lo contra qualquer ataque e esforçar-se por que seja salvaguardado na organização do trabalho, para que possa ser um dia para o homem a bem da sociedade inteira. De facto, se o domingo for privado do seu significado originário e deixar de haver nele possibilidade de dar espaço adequado à oração, ao repouso, à união e à alegria, pode acontecer que « o homem permaneça encerrado num horizonte tão restrito, que já não lhe permite ver o “céu”. Então, mesmo bem trajado, torna-se intimamente incapaz de “festejar” ».(139) E, sem a dimensão da festa, a esperança não encontraria uma casa onde habitar.



CAPÍTULO V


SERVIR O EVANGELHO DA ESPERANÇA


« Conheço as tuas obras, a tua caridade,

o teu serviço, a tua fé, a tua paciência » (Ap 2,19)




O caminho do amor


83 A palavra que o Espírito diz às Igrejas contém um juízo sobre a sua vida. Este debruça-se sobre factos e comportamentos: « Conheço as tuas obras » é a introdução que, à maneira de um refrão e com poucas variações, aparece nas cartas escritas às sete Igrejas. As obras revelam-se positivas, quando são fruto do esforço, da paciência, das provas suportadas, da tribulação, da pobreza, da fidelidade nas perseguições, da caridade, da fé, do serviço. Neste sentido, podem ser lidas como a descrição duma Igreja que, além de anunciar e celebrar a salvação que lhe vem do Senhor, também a « vive » na sua existência concreta.

Para servir o Evangelho da esperança, é pedido também à Igreja na Europa que percorra a estrada do amor. Trata-se duma estrada que passa através da caridade evangelizadora, do empenho multiforme no serviço, da opção por uma generosidade sem tréguas nem confins.


I. O serviço da caridade


Na comunhão e solidariedade


84 A caridade, recebida e oferecida, é para qualquer pessoa a experiência originária donde nasce a esperança.« O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e não o assume, se não participa nele vivamente ».(140)

Por isso, à Igreja na Europa actual põe-se o desafio de ajudar o homem contemporâneo a experimentar o amor de Deus Pai e de Cristo no Espírito Santo, através do testemunho da caridade, a qual por si mesma possui uma intrínseca força evangelizadora.

O « Evangelho », este anúncio feliz para todo o homem, consiste em última análise nisto: Deus amou-nos primeiro (cf.
1Jn 4,10 1Jn 4,19); Jesus amou-nos até ao fim (cf. Jo Jn 13,1). Por intermédio do dom do Espírito, é oferecida aos crentes a caridade de Deus, tornando-os participantes da sua própria capacidade de amar: a caridade preme no coração de cada discípulo e da Igreja inteira (cf. 2Co 5,14). Precisamente porque dada por Deus, a caridade torna-se mandamento para o homem (cf. Jo Jn 13,34).

Viver na caridade torna-se, assim, um anúncio feliz para toda a pessoa, tornando visível o amor de Deus, que não abandona ninguém. Enfim, significa dar ao homem perdido verdadeiras razões para continuar a esperar.


85 É vocação da Igreja, enquanto « sinal credível – embora sempre inadequado – do amor concreto, fazer encontrar os homens e mulheres com o amor de Deus e de Cristo, que vem à procura deles ».(141) « Sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano »,(142) a Igreja confirma-se como tal quando as pessoas, as famílias e as comunidades vivem intensamente o Evangelho da caridade. Por outras palavras, as nossas comunidades eclesiaissão chamadas a ser verdadeiras escolas de comunhão.

Por sua própria natureza, o testemunho da caridade deve estender-se para além das fronteiras da comunidade eclesial, envolvendo toda a pessoa, de tal modo que o amor por todos os homens se torne estímulo de autêntica solidariedade em toda a vida social.Quando a Igreja serve a caridade, simultaneamente faz crescer a « cultura da solidariedade », concorrendo assim para dar nova vida aos valores universais da convivência humana.

Nesta perspectiva, é preciso redescobrir o sentido autêntico do voluntariado cristão. Este, nascido da fé e por ela continuamente alimentado, deve saber conjugar capacidade profissional e amor genuíno, impelindo aqueles que o praticam a « elevarem os sentimentos de simples filantropia até à altura da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por entre fadigas e cansaços, a consciência da dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das pessoas, iniciando – se necessário – novos caminhos em lugares onde a necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes ».(143)


II. Servir o homem na sociedade


Devolver a esperança aos pobres


86 Pede-se, à Igreja inteira, para dar novamente esperança aos pobres.Acolhê-los e servi-los significa, para ela, acolher e servir Cristo (cf. Mt Mt 25,40). O amor preferencial pelos pobres é uma dimensão necessária do ser cristão e do serviço do Evangelho. Amá-los e testemunhar-lhes que são particularmente amados por Deus significa reconhecer que as pessoas valem por si mesmas, independentemente das condições económicas, culturais, sociais em que se encontrem, ajudando-as a valorizarem as suas potencialidades.


87 Depois, é preciso deixar-se interpelar pelo fenómeno do desemprego, que constitui um grave flagelo social em muitas nações da Europa. A isto, há que acrescentar os problemas ligados ao aumento dos fluxos migratórios. À Igreja, pede-se que continue a recordar que o trabalho constitui um bem pelo qual se deve responsabilizar toda a sociedade.

Ao propor os critérios éticos que devem guiar o mercado e a economia segundo um escrupuloso respeito da centralidade do homem, a Igreja não desistirá de procurar dialogar com as pessoas empenhadas a nível político, sindical e empresarial.(144) Tudo isto deve tender à edificação de uma Europa vista como comunidade de povos e de pessoas, uma comunidade solidária na esperança, não se deixando sujeitar exclusivamente às leis do mercado, mas decididamente intencionada a salvaguardar a dignidade do homem mesmo nas relações económicas e sociais.


88 Seja dado adequado relevo também à pastoral dos doentes. Considerando que a doença é uma situação que levanta questões essenciais sobre o sentido da vida, « numa sociedade do progresso e da eficiência, numa cultura caracterizada pela idolatria do corpo, pela remoção do sofrimento e da dor e pelo mito da perene juventude »,(145) o cuidado dos doentes deve ser tido como uma das prioridades. Com tal finalidade, há que promover, por um lado, uma conveniente presença pastoral nos diversos centros do sofrimento, por exemplo através da solicitude de capelães hospitalares, de membros de associações de voluntariado, de instituições sanitárias eclesiásticas; e, por outro, um apoio às famílias dos doentes. Além disso, será necessário acompanhar o pessoal médico e paramédico com meios pastorais adequados, que o sustente na exigente vocação ao serviço dos doentes. Com efeito, na sua actividade os agentes sanitários prestam diariamente um nobre serviço à vida. Deles se espera que dêem aos seus pacientes também aquele apoio espiritual especial que supõe o calor dum autêntico contacto humano.


89 Por último, não se pode esquecer que às vezes é feito um uso indevido dos bens da terra. De facto, faltando à sua missão de cultivar e guardar a terra com sabedoria e amor (cf. Gn Gn 2,15), o homem tem em muitas regiões devastado bosques e planuras, poluído as águas, tornado irrespirável o ar, alterado os sistemas hidrogeológicos e atmosféricos e desertificado imensas extensões.

Neste caso, servir o Evangelho da esperança significa empenhar-se de modo novo num correcto uso dos bens da terra,(146) estimulando uma atenção tal que, além de tutelar os habitat naturais, defenda a qualidade da vida das pessoas, preparando para as gerações futuras um ambiente mais harmonioso com o projecto do Criador.

A verdade do matrimónio e da família


90 A Igreja na Europa, em todas as suas articulações, deve propor sem cessar e fielmente a verdade do matrimónio e da família.(147) É uma necessidade que sente arder-lhe dentro, porque sabe que um tal dever é qualificante para ela em virtude da missão evangelizadora que lhe foi confiada pelo seu Esposo e Senhor, e que hoje se apresenta com excepcional premência. De facto, não poucos factores culturais, sociais e políticos concorrem para desencadear uma crise cada vez mais evidente da família. Tais factores comprometem de várias formas a verdade e a dignidade da pessoa humana e põem em discussão, desfigurando-o, o próprio conceito de família. O valor da indissolubilidade matrimonial é ignorado sempre mais; reclamam-se formas de reconhecimento legal para as convivências de facto, equiparando-as aos matrimónios legítimos; não faltam tentativas para serem aceites modelos com casais onde a diferença sexual não resulta essencial.

Neste contexto, pede-se à Igreja que anuncie com renovado vigor aquilo que diz o Evangelho sobre o matrimónio e a família, para individuar o seu significado e valor no desígnio salvífico de Deus. É preciso, de modo particular, reiterar que ambas as instituições são realidades que derivam da vontade de Deus. Impõe-se redescobrir a verdade da família, enquanto íntima comunhão de vida e de amor,(148) aberta à geração de novas pessoas; e também a sua dignidade de « igreja doméstica » e a sua participação na missão da Igreja e na vida da sociedade.


91 Segundo os padres sinodais, é necessário reconhecer que muitas famílias, pela sua existência vivida quotidianamente no amor, são testemunhas visíveis da presença de Jesus que as acompanha e sustenta com o dom do seu Espírito. Para apoiá-las no seu caminho, dever-se-á aprofundar a teologia e a espiritualidade do matrimónio e da família; proclamar, com firmeza, integralmente e mediante exemplos eficazes, a verdade e a beleza da família baseada no matrimónio, visto como união estável e fecunda dum homem e duma mulher; promover, em cada comunidade eclesial, uma pastoral familiar adequada e orgânica. Ao mesmo tempo é preciso prestar, com materna solicitude por parte da Igreja, uma ajuda àqueles que se encontram em situações difíceis, como, por exemplo, mães solteiras, pessoas separadas, divorciadas, filhos abandonados. Em todas as circunstâncias é necessário estimular, guiar e apoiar o devido protagonismo das famílias, singularmente ou associadas, na Igreja e na sociedade, e diligenciar para que se promovam políticas familiares autênticas e adequadas por parte dos diversos Estados e da própria União Europeia.(149)


92 Um cuidado particular deve ser reservado à educação para o amor nos jovens e noivos, através de específicos itinerários de preparação para a celebração do sacramento do matrimónio, ajudando-os a viverem castamente até esse momento. Na sua obra educadora, a Igreja estenderá a sua solicitude aos recém-casados, acompanhando-os também depois da celebração das núpcias.


93 Finalmente, a Igreja é chamada a atender, com materna bondade, àquelas situações matrimoniais onde a esperança facilmente sucumbe. Em particular, « diante de inúmeras famílias desfeitas, a Igreja sente-se chamada, não a exprimir um juízo severo e insensível, mas antes a fazer penetrar dentro de tantos dramas humanos a luz da palavra de Deus, acompanhada pelo testemunho da sua misericórdia. É com este espírito que a pastoral familiar procura ocupar-se também das situações dos crentes que se divorciaram e voltaram a casar pelo civil.Eles não estão excluídos da comunidade; pelo contrário, são convidados a participar na sua vida, percorrendo um caminho de crescimento no espírito das exigências evangélicas. Sem esconder a verdade da desordem moral objectiva em que se encontram e das consequências que daí derivam para a prática sacramental, a Igreja pretende mostrar-lhes toda a sua solidariedade materna ».(150)


94 Se, para servir o Evangelho da esperança, é necessário reservar uma adequada e prioritária atenção à família, inegável é também que as próprias famílias têm uma tarefa insubstituível a desempenhar relativamente ao mesmo Evangelho da esperança. Por isso, com confiança e afecto, renovo a todas as famílias cristãs, que vivem nesta Europa, este convite: « Famílias, tornai-vos naquilo que sois! ». E vós sois uma reposição viva da caridade de Deus: de facto, tendes a « missão de guardar, revelar e comunicar o amor, qual reflexo vivo e participação real do amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo Senhor pela Igreja, sua esposa ».(151)

Vós sois o « santuário da vida (...); o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico ».(152)

Vós sois o fundamento da sociedade, enquanto lugar primeiro de « humanização » da pessoa e da vida civil,(153) modelo para a instauração de relações sociais vividas no amor e na solidariedade.

Sede vós mesmas testemunhas credíveis do Evangelho da esperança! É que vós sois « Gaudium et spes »,(154) alegria e esperança.

Servir o Evangelho da vida


95 O envelhecimento e diminuição da população que se verifica em diversos países da Europa não pode deixar de ser motivo de preocupação; de facto, a queda da natalidade é sintoma de uma relação não serena com o próprio futuro; é uma manifestação clara de falta de esperança, é sinal daquela « cultura da morte » que atravessa a sociedade actual.(155)

A par da queda da natalidade, há que recordar outros sinais que concorrem para se formar o eclipse do valor da vida e desencadear uma espécie de conjura contra a mesma. Entre eles, conta-se antes de mais a difusão do aborto, recorrendo inclusive a preparados químico-farmacológicos que tornam possível praticá-lo sem ter de recorrer ao médico e subtraindo-se a qualquer forma de responsabilidade social; isto é favorecido pela presença no ordenamento de muitos Estados do continente de legislações permissivas de um acto que permanece um « crime abominável »(156) e sempre constitui uma desordem moral grave. Não se podem esquecer também os atentados perpetrados através de « intervenções sobre embriões humanos, que, apesar de visar objectivos em si legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte », ou por meio do emprego desonesto das técnicas de diagnóstico pré-natal, postas ao serviço não de possíveis terapias precoces, mas de « uma mentalidade eugenista que aceita o aborto selectivo ».(157)

Há que mencionar ainda a tendência, que se regista em algumas partes da Europa, a considerar que se possa permitir pôr fim conscientemente à vida própria ou de outro ser humano: daí a difusão daeutanásia, mascarada ou actuada às claras, não faltando solicitações e tristes exemplos de legalização dela.


96 À vista deste estado de coisas, é necessário « servir o Evangelho da vida » nomeadamente através de « uma mobilização geral das consciências e um esforço ético comum, para se actuar uma grande estratégia a favor da vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida ».(158) Este é um desafio imenso que temos a responsabilidade de enfrentar, sabendo que « o futuro da civilização europeia depende muito duma decidida defesa e promoção dos valores da vida, núcleo do seu património cultural »; (159) trata-se efectivamente de restituir à Europa a sua verdadeira dignidade, ou seja, a dignidade de ser um lugar onde toda a pessoa veja afirmada a sua incomparável dignidade.

De bom grado faço minhas estas palavras dos padres sinodais: « O Sínodo dos Bispos europeus incita as comunidades cristãs a fazerem-se evangelizadoras da vida. Encoraja os esposos e as famílias cristãs a apoiarem-se mutuamente na fidelidade à sua missão de colaboradores de Deus na geração e educação de novas criaturas; vê com apreço toda a generosa tentativa de reagir contra o egoísmo no âmbito da transmissão da vida, que é alimentado por falsos modelos de segurança e felicidade; pede aos Estados e à União Europeia que actuem políticas de longo alcance, que promovam as condições concretas de habitação, emprego e serviços sociais, idóneas para favorecer a constituição da família que realize a sua vocação à maternidade e à paternidade, e assegurem assim à Europa de hoje o recurso mais precioso: os europeus de amanhã ».(160)

Construir uma cidade digna do homem


97 A caridade operosa obriga-nos a apressar o Reino futuro. Por isso mesmo, colabora na promoção dos valores autênticos que estão na base duma civilização digna do homem. De facto, como recorda o Concílio Vaticano II, « os cristãos, peregrinos da cidade celestial, devem buscar e saborear as coisas do alto. Mas, com isso, de modo algum diminui, antes aumenta a importância do seu dever de colaborar com todos os outros homens na edificação dum mundo mais humano ».(161)A expectativa dos novos céus e da nova terra, longe de afastar da história, intensifica a solicitude pela realidade presente onde já cresce a novidade que é germe e figura do mundo que há-de vir.

Animados por tais certezas de fé, trabalhamos para a construção duma cidade digna do homem. Embora não seja possível construir na história uma ordem social perfeita, todavia sabemos que todo o esforço sincero por construir um mundo melhor é acompanhado pela bênção de Deus e que qualquer germe de justiça e de amor plantado no tempo presente floresce para a eternidade.


98 Ao construir esta cidade digna do homem, sirva de inspiração a doutrina social da Igreja. De facto, através dela, a Igreja coloca ao continente europeu a questão da qualidade moral da sua civilização. Tal doutrina nasce do encontro da mensagem bíblica com a razão, por um lado, e, por outro, com os problemas e as situações referentes à vida do homem e da sociedade. Com o conjunto dos princípios que oferece, contribui para pôr bases sólidas para uma convivência à medida do homem, na justiça, verdade, liberdade e solidariedade. Tendo em vista defender e promover a dignidade da pessoa, fundamento não só da vida económica e política, mas também da justiça social e da paz, ela é capaz de sustentar as colunas mestras do futuro do continente.(162) A doutrina em questão contém também as referências para se poder defender a estrutura moral da liberdade, de modo a salvaguardar a cultura e a sociedade europeia da utopia totalitária tanto da « justiça sem liberdade », como da « liberdade sem verdade » à qual aparece associado um falso conceito de « tolerância », ambas elas prenúncio de erros e de horrores para a humanidade, como tristemente dá testemunho a história recente da própria Europa.(163)


99 A doutrina social da Igreja, pela sua ligação intrínseca com a dignidade da pessoa, pode ser compreendida também pelos que não pertencem à comunidade dos crentes. Por isso, é urgente divulgar o seu conhecimento e estudo, vencendo a ignorância que há dela mesmo entre os cristãos. Exige-o a nova Europa em vias de construção, carecida de pessoas educadas segundo tais valores, prontas a trabalhar pela realização do bem comum. Para isso é necessária a presença de leigos cristãos nas diversas responsabilidades da vida civil, da economia, da cultura, da saúde, da educação e da política, actuando de modo a poder permeá-las com os valores do Reino.(164)

Em prol duma cultura do acolhimento


100 Entre os desafios que hoje se apresentam no serviço ao Evangelho da esperança, conta-se o fenómeno crescente das migrações, que interpela a capacidade da Igreja para acolher toda a pessoa, qualquer que seja o povo ou a nação a que pertença. E impele também toda a sociedade europeia com as suas instituições a procurarem uma ordem justa, formas de convivência respeitosas de todos e da legalidade também, num processo que leve à integração possível.

Considerando o estado de miséria, de subdesenvolvimento ou mesmo de insuficiente liberdade, que infelizmente ainda caracteriza diversos países, entre as causas que constrangem muitos a deixar a própria terra, é preciso um corajoso empenhamento de todos para realizar uma ordem económica internacional mais justa, que seja capaz de promover o autêntico desenvolvimento de todos os povos e países.


101 O fenómeno migratório põe à prova a capacidade que tem a Europa de dar espaço a formas deacolhimento e hospitalidade inteligente. Exige-o a visão « universalista » do bem comum: é necessário alongar o olhar até abraçar as exigências da família humana inteira. O próprio fenómeno da globalização reclama abertura e partilha, se não quiser ser raiz de exclusão e marginalização mas sim de participação solidária de todos na produção e intercâmbio dos bens.

Cada um deve trabalhar para o crescimento duma cultura do acolhimento perfeita, que, tendo em conta a dignidade igual de toda a pessoa e o dever da solidariedade para com os mais débeis, pretende que sejam reconhecidos a cada imigrante os direitos fundamentais. É responsabilidade das autoridades públicas controlar os fluxos migratórios segundo as exigências do bem comum. O acolhimento deve realizar-se sempre no respeito das leis, comportando consequentemente, quando necessário, a firme repressão dos abusos.


102 É necessário ainda empenhar-se por individuar possíveis formas de genuína integração dos imigrados legitimamente acolhidos no tecido social e cultural das diversas nações europeias. Uma tal integração requer, por um lado, que não se deva ceder ao indiferentismo quanto aos valores humanos universais e, por outro, que se tenha a peito salvaguardar o património cultural próprio de cada nação. Uma convivência pacífica e um intercâmbio recíproco das riquezas interiores tornará possível a edificação duma Europa que saiba ser casa comum, na qual cada um possa sentir-se acolhido, ninguém se veja discriminado, todos sejam tratados e vivam responsavelmente como membros de uma única e grande família.


103 A Igreja, por sua vez, é chamada a « prosseguir na sua acção de criar e melhorar cada vez mais os seus serviços de acolhimento e os seus cuidados pastorais em favor dos imigrantes e dos refugiados »,(165) fazendo com que se respeitem a sua di- gnidade e liberdade e seja favorecida a sua integração.

De forma particular, reserve-se um específico cuidado pastoral à integração dos imigrantes católicos, respeitando a sua cultura e a originalidade da sua tradição religiosa. Para isso, procurem-se favorecer contactos entre as Igrejas de origem dos imigrantes e as de acolhimento para se estudar formas de ajuda que possam mesmo prever a presença, junto dos imigrantes, de presbíteros, consagrados e agentes pastorais adequadamente formados originários dos seus países.

Além disso, o serviço do Evangelho exige que a Igreja, defendendo a causa dos oprimidos e marginalizados, peça às autoridades políticas dos diversos Estados e aos responsáveis das instituições europeias para reconhecerem a condição de refugiados àqueles que fogem do seu país de origem porque corre perigo a sua própria vida, ou então favorecerem o regresso aos respectivos países; e criarem também as condições para seja respeitada a dignidade de todos os imigrantes e sejam defendidos os seus direitos fundamentais.(166)


III. Decidamo-nos pela caridade!



104 O apelo, dirigido pelos padres sinodais a todos os cristãos do continente europeu para viverem a caridade operosa,(167) representa a síntese feliz dum autêntico serviço ao Evangelho da esperança. Agora proponho-o de novo a ti, Igreja de Cristo que vives na Europa. As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos europeus de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, sejam também as tuas alegrias e as tuas esperanças, as tuas tristezas e as tuas angústias, e nada do que é genuinamente humano deixe de ter eco no teu coração. Olha para a Europa e o seu caminho com a simpatia de quem aprecia todo o elemento positivo, mas conjuntamente sem fechar os olhos sobre o que há de incoerente com o Evangelho, denunciando-o com vigor.


105 Igreja da Europa, acolhe todos os dias, com renovada pujança, o dom da caridade que o teu Senhor te oferece e do mesmo te torna capaz. Aprende d'Ele os conteúdos e a medida do amor. Esê Igreja das bem-aventuranças, continuamente configurada com Cristo (cf. Mt Mt 5,1-12).

Livre de entraves e sujeições, sê pobre e amiga dos mais pobres, acolhedora para com toda a pessoa e atenta a qualquer forma, antiga ou nova, de pobreza.

Purificada continuamente pela bondade do Pai, reconhece no comportamento de Cristo, que sempre defendeu a verdade mostrando-Se ao mesmo tempo misericordioso para com os pecadores, a norma suprema da tua acção.

Em Jesus, em cujo nascimento foi anunciada a paz (cf. Lc Lc 2,14), n'Ele que abateu com a sua morte o muro da inimizade (cf. Ef Ep 2,14) e deu a paz verdadeira (cf. Jo Jn 14,27), sê artífice de paz, convidando os teus filhos a deixarem purificar o coração de toda a hostilidade, egoísmo e parcialidade, favorecendo em qualquer circunstância o diálogo e o respeito mútuo.

Em Jesus, justiça de Deus, nunca te canses de denunciar qualquer forma de injustiça. Vivendo no mundo segundo os valores do Reino futuro, serás Igreja da caridade, darás o teu indispensável contributo para edificar na Europa uma civilização sempre mais digna do homem.



Ecclesia in Europa PT 76