Ecclesia in America PT


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA

PÓS-SINODAL

ECCLESIA IN AMERICA

DO SANTO PADRE

JOÃO PAULO II

AOS BISPOS

AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

AOS CONSAGRADOS E ÀS CONSAGRADAS

E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS

SOBRE O ENCONTRO COM JESUS CRISTO VIVO

CAMINHO PARA A CONVERSÃO,

A COMUNHÃO E A SOLIDARIEDADE

NA AMÉRICA



INTRODUÇÃO

1 A Igreja na América, cheia de alegria pela fé recebida e agradecida a Cristo por este dom imenso da fé, celebrou recentemente o quinto centenário do início da pregação do Evangelho em seu próprio território. Esta comemoração tornou todos os católicos americanos mais conscientes do anseio que Cristo tem de encontrar os habitantes do chamado Novo Mundo, para incorporá-los na sua Igreja e, desta forma, fazer-se presente na história do Continente. A evangelização da América não é somente um dom do Senhor; é também fonte de novas responsabilidades. Graças a ação dos que evangelizaram o Continente em todas as direções, inumeráveis filhos nasceram da Igreja e do Espírito Santo.(1) Nos seus corações, tanto no passado como atualmente, continuam ecoando as palavras do Apóstolo: « Anunciar o Evangelho, não é glória para mim; é uma obrigação que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho! » (1Co 9,16). Este dever baseia-se no mandato conferido pelo Senhor ressuscitado aos Apóstolos, antes da sua Ascensão ao céu: « Pregai o Evangelho a toda criatura » (Mc 16,15).

Este mandato diz respeito a toda a Igreja, e a Igreja que está na América, neste particular momento da sua história, é chamada a acolhê-lo, respondendo, com amorosa generosidade, à tarefa fundamental da evangelização. Meu predecessor Paulo VI, o primeiro Papa que visitou a América, o sublinhava em Bogotá: « Caberá a nós, [Senhor Jesus], como teus representantes e administradores dos teus divinos mistérios (cf. 1Co 4,1 1P 4,10), difundir entre os homens os tesouros da tua palavra, da tua graça, dos teus exemplos ». (2) O dever da evangelização constitui, para o discípulo de Cristo, uma urgência ditada pela caridade: « O amor de Cristo nos constrange » (2Co 5,14), afirma o Apóstolo Paulo, recordando a obra do Filho de Deus com o seu sacrifício redentor: « Um só morreu por todos [...], a fim de que os que vivem, já não vivam para si, mas para Aquele que por eles morreu e ressurgiu » (2Co 5,14-15).

A comemoração de ocorrências particularmente evocadoras do amor de Cristo por nós, suscita no coração, junto ao agradecimento, a necessidade de « anunciar as maravilhas de Deus », ou seja, a necessidade de evangelizar. Assim, a lembrança da recente celebração dos quinhentos anos da chegada da mensagem evangélica à América, isto é, desde que Cristo chamou a América à fé, e o próximo Jubileu, no qual a Igreja celebrará os 2000 anos da encarnação do Filho de Deus, são ocasiões privilegiadas nas quais eleva-se espontaneamente com mais força do coração a expressão da nossa gratidão ao Senhor. Consciente da grandeza dos dons recebidos, a Igreja peregrina na América deseja partilhar a riqueza da fé e da comunhão em Cristo com toda a sociedade, e com cada um dos homens e mulheres que vivem em terra americana.

(1) A este respeito, é significativa a antiga inscrição no batistério de S. João de Latrão: « Virgineo foetu Genitrix Ecclesia natos – quos spirante Deo concipit amne parit » (E. Diehl, Inscriptiones latinae christiane veteres, n. 1513, I.I, Berolini 1925, p. 289).
(2) Homilia por ocasião das ordenações diaconais e presbiterais em Bogotá (22 de agosto de 1968):AAS 60 (1968), 614-615.


A idéia de celebrar esta Assembléia sinodal

2 No mesmo dia em que completavam-se os quinhentos anos do início da evangelização da América, dia 12 de outubro de 1992, desejando abrir novos horizontes e dar renovado impulso à evangelização, no discurso de abertura dos trabalhos da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo, fiz a proposta de um encontro sinodal, « visando incrementar a cooperação entre as diversas Igrejas particulares » para juntos enfrentar, no âmbito da nova evangelização e como expressão da comunhão episcopal, « os problemas relativos à justiça e à solidariedade entre todas as nações da América ». (3) A reação positiva com a qual os Bispos da América acolheram minha indicação, permitiu-me anunciar na Carta apostólica Tertio millennio adveniente o propósito de convocar uma Assembléia Sinodal « sobre as problemáticas da nova evangelização em duas partes do mesmo Continente tão diversas entre si pela origem e pela história, e sobre as temáticas da justiça e das relações econômicas internacionais, tendo em conta a enorme disparidade entre Norte e Sul ».(4) Assim foi possível iniciar os trabalhos preparatórios propriamente ditos, e chegar finalmente à celebração da Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos para a América, que teve lugar no Vaticano de 16 de novembro a 12 de dezembro de 1997.

(3) N. 17: AAS 85 (1993), 820.
(4) N.
TMA 38: AAS 87 (1995), 30.


O tema da Assembléia

3 De acordo com a ideia inicial e após ter ouvido as sugestões do Conselho pré-sinodal, expressão viva do pensamento de muitos Pastores do Povo de Deus no Continente americano, enunciei o tema da Assembléia Especial do Sínodo para a América na seguinte forma: « Encontro com Jesus Cristo vivo, caminho para a conversão, a comunhão e a solidariedade na América ». Assim formulado, o tema manifesta com clareza a centralidade da pessoa de Jesus Cristo ressuscitado, presente na vida da Igreja, que convida à conversão, à comunhão e à solidariedade. O ponto de partida deste programa de evangelização é, certamente, o encontro com o Senhor. O Espírito Santo, dom de Cristo no mistério pascal, guia-nos em direção às metas pastorais que a Igreja na América deve alcançar no terceiro milênio cristão.


A celebração da Assembléia como experiência de encontro

4 A experiência vivida durante a Assembléia teve, sem dúvida, o caráter de um encontro com o Senhor. Lembro com satisfação, de modo particular, as duas concelebrações solenes que eu mesmo presidi na Basílica de S. Pedro respectivamente na inauguração e no encerramento dos trabalhos da Assembléia. O contato com o Senhor ressuscitado, verdadeira, real e substancialmente presente na Eucaristia, constituiu o clima espiritual que permitiu a todos os Bispos da Assembléia Sinodal de se reconhecerem não só como irmãos no Senhor, mas também como membros do Colégio Episcopal, desejosos de seguir, sob a presidência do Sucessor de Pedro, as pegadas do Bom Pastor, servindo a Igreja peregrina em todas as regiões do Continente. A todos ficou patente a alegria dos participantes na Assembléia, que nela descobriam uma excepcional ocasião de encontro com o Senhor, com o Vigário de Cristo, com tantos Bispos, sacerdotes, consagrados e leigos vindos de todas as partes do Continente.

Alguns fatores precedentes contribuíram sem dúvida, de modo indireto mas eficaz, para garantir este clima de encontro fraterno na Assembléia Sinodal. Em primeiro lugar, há que assinalar as experiências de comunhão vividas anteriormente nas Assembléias Gerais do Episcopado Latino-Americano no Rio de Janeiro (1955), Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Nelas, os Pastores da Igreja que está na América Latina tiveram ocasião de refletir juntos como irmãos sobre as questões pastorais mais urgentes naquela região do Continente. A estas Assembléias devem-se acrescentar as reuniões periódicas interamericanas de Bispos, nas quais os participantes tiveram a possibilidade de se abrirem aos horizontes de todo o Continente, dialogando acerca dos problemas e desafios comuns que dizem respeito à Igreja nos Países americanos.


Contribuir para a unidade do Continente

5 Na primeira proposta, que fiz em Santo Domingo, relativa à possibilidade de celebrar-se uma Assembléia Especial do Sínodo, assinalei que « a Igreja, já no limiar do terceiro milênio da era cristã e numa época em que caíram muitas barreiras e fronteiras ideológicas, sente como um dever iniludível unir espiritualmente ainda mais todos os povos que formam este grande Continente e, ao mesmo tempo, a partir da missão religiosa que lhe é própria, incentivar o espírito solidário entre todos eles ».(5) Os elementos comuns a todos os povos da América, entre os quais ressalta uma comum identidade cristã e um sincero empenho na consolidação dos vínculos de solidariedade e comunhão entre as diversas expressões do rico patrimônio cultural do Continente, constituem o motivo decisivo que me levou a pedir que a Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos dedicasse as suas reflexões à América como uma única realidade. A escolha de usar a palavra no singular queria significar não só a unidade, sob certos aspectos já existente, mas também aquele vínculo mais estreito ao qual os povos do Continente aspiram e que a Igreja deseja favorecer, no âmbito da própria missão dirigida a promover a comunhão no Senhor.

(5) Discurso de abertura da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (12 de outubro de 1992), 17: AAS 85 (1993), 820-821.


No quadro da nova evangelização

6 Na perspectiva do Grande Jubileu do Ano 2000, quis que houvesse uma Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos para cada um dos cinco Continentes: depois daquelas dedicadas à África (1994), à América (1997), à Ásia (1998) e ultimamente à Oceânia (1998), neste ano de 1999, com a ajuda do Senhor, será celebrada uma nova Assembléia Especial para a Europa. Deste modo, durante o ano jubilar será possível uma Assembléia Geral Ordinária que sintetize e tire as conclusões dos preciosos elementos que as distintas Assembléias continentais foram elaborando. Isto será facilitado pelo fato que em todos estes Sínodos houve preocupações semelhantes e centros comuns de interesse. Neste sentido, referindo-me a esta série de Assembléias Sinodais, pus em destaque que em todas elas « o tema de fundo é o da evangelização, ou melhor, da nova evangelização, cujas bases foram colocadas pela Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi de Paulo VI ».(6) Por isto, tanto na minha primeira alusão à celebração desta Assembléia Especial do Sínodo como, mais tarde, no anúncio explícito da mesma depois que todas Conferências Episcopais da América assumiram a ideia, indiquei que suas deliberações deviam mover-se « no âmbito da nova evangelização », (7) enfrentando os problemas com ela derivados. (8)

Esta preocupação era ainda mais evidente, devido ao fato de eu ter formulado pela primeira vez o programa de uma nova evangelização por terras americanas. Com efeito, quando a Igreja em toda a América se preparava para recordar os quinhentos anos do início da primeira evangelização do Continente, falando ao Conselho Episcopal Latino-Americano em Port-au-Prince (Haiti), afirmei: « A comemoração de meio milênio de evangelização terá o seu significado pleno se for um renovado compromisso da vossa parte, como Bispos, juntamente com o vosso Presbitério e fiéis, compromisso não certamente de re-evangelização mas de uma evangelização nova. Nova no seu entusiasmo, nos seus métodos, na sua expressão ». (9) Posteriormente, convidei toda a Igreja a levar a cabo tal exortação, apesar de que o programa de evangelização, olhando à grande variedade que o mundo de hoje apresenta, deva-se diversificar a começar por duas situações claramente opostas: a dos países fortemente atingidos pelo secularismo e a dos outros onde « ainda se conservam bem vivas as tradições de piedade e de religiosidade popular cristã ».(10) Trata-se, sem dúvida, de duas situações presentes, em distinto grau, ora nos diferentes países, ora nos diversos ambientes concretos dos mesmos países do Continente americano.

(6) João Paulo II, Carta Ap. Tertio millennio adveniente (10 de novembro de 1994), 21: AAS 87 (1995),
TMA 17.
(7) Discurso de abertura da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (12 de outubro de 1992), 17: AAS 85 (1993), 820.
(8) Cf. Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de novembro de 1994), TMA 38: AAS 87 (1995), 30.
(9) Discurso de abertura da XIX Assembléia do CELAM (9 de março de 1983), III: AAS 75 (1983), 778.
(10) João Paulo II, Exort. Ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de dezembro de 1988), CL 34: AAS81 (1989), 454.


Com a presença e a ajuda do Senhor

7 O mandato de evangelizar, que o Senhor ressuscitado deixou à sua Igreja, está acompanhado da certeza, baseada na sua promessa, de que Ele continua vivo e agindo entre nós: « Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo » (Mt 28,20). Esta misteriosa presença de Cristo na sua Igreja constitui para ela uma garantia de sucesso no cumprimento da tarefa que lhe foi confiada. Ao mesmo tempo, tal presença torna possível o nosso encontro com Ele, como Filho enviado pelo Pai, como Senhor da Vida que nos comunica o seu Espírito. Um renovado encontro com Jesus Cristo conscientizará todos os membros da Igreja na América do fato de ser chamados a continuar a missão do Redentor em suas terras.

O encontro pessoal com o Senhor, se for autêntico, trará também consigo a renovação eclesial: as Igrejas particulares do Continente, como Igrejas irmãs e vizinhas entre si, aumentarão os vínculos de cooperação e de solidariedade, para prolongar e tornar mais incisiva a obra salvadora de Cristo na história da América. Em atitude de abertura à unidade, fruto de uma autêntica comunhão com o Senhor ressuscitado, as Igrejas particulares e nelas cada um dos seus membros descobrirão, através da própria experiência espiritual, que o « encontro com Jesus Cristo vivo » é « caminho de conversão, de comunhão e de solidariedade ». E, na medida em que estas metas forem alcançadas, tornar-se-á possível uma dedicação sempre maior à nova evangelização da América.


CAPÍTULO I

O ENCONTRO COM JESUS CRISTO VIVO


« Achamos o Messias » (Jn 1,41)



Os encontros com o Senhor no Novo Testamento

8 Os Evangelhos mencionam numerosos encontros de Jesus com homens e mulheres da sua época. Uma característica comum a todas estas narrações é a força transformadora que encerram e manifestam os encontros com Jesus, visto que « desencadeiam um autêntico processo de conversão, comunhão e solidariedade ».(11) Um dos encontros mais significativos é o da samaritana (cf. Jo Jn 4,5-42). Jesus a chama para saciar sua sede, que não era só material: na verdade, « Aquele que lhe pedia de beber, tinha sede da fé da mulher mesma ».(12) Dizendo-lhe « dá-Me de beber » (Jn 4,7) e falando-lhe de água viva, o Senhor suscita na samaritana uma pergunta, quase uma súplica, cujo verdadeiro objetivo supera algo que ela, naquele momento, não é capaz de compreender: « Senhor, dá-me dessa água, para eu já não ter mais sede » (Jn 4,15). Na verdade, a samaritana, mesmo se « ainda não compreende »,(13) está pedindo aquela água viva de que fala o seu divino Interlocutor. Quando Jesus lhe revela a própria messianidade (cf. Jo Jn 4,26), a samaritana sente-se movida a ir anunciar aos seus conterrâneos a descoberta do Messias (cf. Jo Jn 4,28-30). Da mesma forma, quando Jesus encontra Zaqueu (cf. Lc Lc 19,1-10), o fruto mais precioso é a conversão do publicano, que toma consciência das injustiças cometidas e decide devolver com largueza — « o quádruplo » — a quem tinha defraudado. Além disso, assume uma atitude de desprendimento dos bens materiais e de caridade para com os indigentes, que leva-o a dar aos pobres a metade das suas posses.

Uma menção especial merecem os encontros com Cristo ressuscitado, narrados no Novo Testamento. Graças ao seu encontro com o Senhor, Maria Madalena supera o desânimo e a tristeza causados pela morte do Mestre (cf. Jo Jn 20,11-18). Na sua nova dimensão pascal, Jesus convida-a ir anunciar aos discípulos que Ele ressuscitou: « Vai a meus irmãos » (Jn 20,17). É por isso que Maria Madalena pôde ser chamada « a apóstola dos apóstolos ».(14) Por sua vez, os discípulos de Emaús, depois de terem encontrado e reconhecido o Senhor ressuscitado, voltam para Jerusalém para contar aos apóstolos e aos outros discípulos o que lhes tinha acontecido (cf. Lc Lc 24,13-35). Jesus, « começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dEle se achava dito em todas as Escrituras » (Lc 24,27). Mais tarde, eles reconhecerão que o seu coração se abrasava enquanto o Senhor, ao longo do caminho, conversava com eles e lhes explicava as Escrituras (cf. Lc Lc 24,32). Não resta dúvida de que S. Lucas, ao narrar este episódio, e especialmente o momento decisivo no qual os dois discípulos reconhecem a Jesus, alude explicitamente às narrações da instituição da Eucaristia, ou seja, ao comportamento de Jesus na Última Ceia (cf. Lc Lc 24,30). O evangelista, para contar o que os discípulos de Emaús narram aos Onze, utiliza uma expressão que, na Igreja primitiva, possuia um preciso significado eucarístico: « O tinham reconhecido ao partir o pão » (Lc 24,35).

Entre os encontros com o Senhor ressuscitado, um dos que tiveram uma influência decisiva na história do cristianismo foi, sem dúvida, a conversão de Saulo, o futuro Paulo, apóstolo das gentes, no caminho para Damasco. Foi ali que se deu a mudança radical da sua vida, passando de perseguidor a apóstolo (cf. At Ac 9,3-30 Ac 22,6-11 Ac 26,12-18). O mesmo Paulo fala desta extraordinária experiência como uma revelação do Filho de Deus, « a fim de que eu O tornasse conhecido entre os gentios » (Ga 1,16).

O convite do Senhor respeita sempre a liberdade dos chamados. Existem certos casos em que o homem, encontrando-se com Jesus, resiste à mudança de vida para a qual Ele o convida. São numerosos os casos de pessoas contemporâneas de Jesus que O viram e ouviram, sem que, no entanto, tenham-se aberto à sua palavra. O Evangelho de S. João vê no pecado a causa que impede o ser humano de abrir-se à luz que é Cristo: « A luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, pois as suas obras eram más » (Jn 3,19). Os textos evangélicos ensinam que o apegamento às riquezas constitui um obstáculo para receber a chamada a seguir total e generosamente a Jesus. Típico, a este respeito, é o caso do jovem rico (cf. Mt 19,16-22 Mc 10,17-22 Lc 18,18-23).

(11) Propositio 3.
(12) S. Agostinho, Trat. in Joh., 15, 11: CCL 36, 154.
(13) Ibid. 15, 17: l.c., 156.
(14) « Salvator ...ascensionis suae eam (Mariam Magdalenam) ad apostolos instituit apostolam ». Rabano Mauro, De vita beatae Mariae Magdalenae, 28: PL 112, 1574. Cf. S. Pedro Damião,Sermo 56: PL 144, 820; Hugo De Cluni, Commonitorium: PL 159, 952; S. Tomás De Aquino, In Joh. Evang. expositio, 20, 3.


Encontros pessoais e encontros comunitários

9 Alguns encontros com Jesus, referidos pelos Evangelhos, são claramente pessoais como, por exemplo, as chamadas vocacionais (cf. Mt Mt 4,19 Mt 9,9 Mc Mc 10,21 Lc Lc 9,59). Neles, Jesus dialoga na intimidade com os seus interlocutores: « Rabi (que quer dizer Mestre), onde moras? » [...] « Vinde e vede » (Jn 1,38-39). Mas, em outras ocasiões, os encontros adquirem um caráter comunitário. Assim são, de modo particular, os encontros com os Apóstolos, que têm uma importância fundamental para a constituição da Igreja. Com efeito, os Apóstolos, escolhidos por Jesus dentre a vasta gama dos discípulos (cf. Mc Mc 3,13-19 Lc Lc 6,12-16), são objeto de uma especial formação e de um trato mais íntimo. Às multidões Jesus fala com parábolas, para, logo a seguir, explicá-las aos Doze: « Porque a vós é dado compreender os mistérios do reino dos céus, mas a eles, não » (Mt 13,11). Eles são chamados a ser os anunciadores da Boa Nova e a desempenhar uma missão especial para construir a Igreja com a graça dos Sacramentos. Com esta finalidade eles recebem o necessário poder: Jesus lhes confere o poder de perdoar os pecados, invocando a plenitude do próprio poder que o Pai Lhe deu no céu e na terra (cf. Mt Mt 28,18). Eles serão os primeiros a receber o dom do Espírito Santo (cf. At Ac 2,1-4) dom esse conferido depois a todos os que, pelos Sacramentos de iniciação, serão incorporados na Comunidade cristã (cf. At Ac 2,38).


O encontro com Cristo no tempo da Igreja

10 A Igreja constitui o lugar onde os homens, encontrando a Jesus, podem descobrir o amor do Pai: com efeito, quem viu a Jesus, viu o Pai (cf. Jn 14,9). Jesus, neste tempo após a sua ascensão ao céu, atua através da poderosa intervenção do Espírito Paráclito (cf. Jo Jn 16,7), que transforma os fiéis, dando-lhes a nova vida. Desta forma, eles tornam-se capazes de amar com o mesmo amor de Deus, « que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado » (Rm 5,5). A graça divina torna os cristãos capazes de ser transformadores do mundo, nele construindo uma nova civilização, que o meu predecessor Paulo VI oportunamente chamou « a civilização do amor ».(15)

De fato, « o Verbo de Deus, tendo assumido a natureza humana em tudo, à excepção do pecado (cf. He 4,15), manifesta o plano do Pai de revelar à pessoa humana o modo de chegar à plenitude da própria vocação [...]. Desta forma, Jesus não só reconcilia o homem com Deus, mas o reconcilia também consigo próprio, revelando-lhe a sua própria natureza ».(16) Com estas palavras, os Padres Sinodais, na esteira do Concílio Vaticano II, reafirmaram que Jesus é o caminho a ser seguido para se alcançar a plena realização pessoal, cujo ponto culminante é o encontro definitivo e eterno com Deus. « Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por Mim » (Jn 14,6). Deus nos « predestinou para ser conformes à imagem do seu Filho, a fim de que Este seja o primogênito entre muitos irmãos » (Rm 8,29). Jesus Cristo é, portanto, a resposta definitiva à pergunta acerca do sentido da vida, às questões fundamentais que inquietam hoje tantos homens e mulheres do Continente Americano.

(15) Alocução no encerramento do Ano Santo (25 de dezembro de 1975): AAS 68 (1976), 145.
(16) Propositio, 9; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneoGaudium et spes, GS 22.


Através de Maria encontramos a Jesus

11 Tendo nascido Jesus, vieram os Magos do Oriente a Belém e « acharam o menino com Maria, sua mãe » (Mt 2,11). No início da vida pública, durante as bodas em Caná, quando o Filho de Deus realiza o primeiro dos sinais, suscitando a fé dos discípulos (cf. Jo Jn 2,11), é Maria que intervém predispondo os servos para obedecer a seu Filho, com estas palavras: « Fazei o que Ele vos disser » (Jn 2,5). A este respeito, escrevi numa outra ocasião: « A Mãe de Cristo apresenta-se diante dos homens como porta-voz da vontade do Filho, como quem indica aquelas exigências que devem ser satisfeitas, para que possa manifestar-se o poder salvífico do Messias ».(17) Por este motivo, Maria é caminho seguro para encontrar a Cristo. A devoção à Mãe do Senhor, quando é autêntica, leva sempre a orientar a própria vida segundo o espírito e os valores do Evangelho.

E como não pôr em evidência o papel que a Virgem Maria ocupa no caminho da Igreja que peregrina na América ao encontro do Senhor? Com efeito, a Santíssima Virgem está « ligada de modo especial ao nascimento da Igreja na história [...] dos povos da América, que através dEla, chegaram a encontrar o Senhor ».(18)

Por todas as partes do Continente, a presença da Mãe de Deus foi muito intensa desde os dias da primeira evangelização, graças ao esforço dos missionários. Na sua pregação, « o Evangelho foi anunciado, apresentando a Virgem Maria como sua realização mais alta. Desde os primórdios — invocada com o título de Nossa Senhora de Guadalupe — Maria constitui um grande sinal, de rosto materno e misericordioso, da proximidade do Pai e de Cristo, com quem Ela nos convida a entrar em comunhão ».(19)

A aparição de Maria ao índio João Diego na colina de Tepeyac, em 1531, teve uma repercussão decisiva na evangelização. (20) Tal influxo supera amplamente os confins da nação mexicana, alcançando o inteiro Continente. E a América, que historicamente foi e continua a ser um cadinho de povos, reconheceu no rosto mestiço da Virgem de Tepeyac, « em Santa Maria de Guadalupe, um grande exemplo de evangelização perfeitamente inculturada ». (21) Por isso, não somente no Centro e no Sul, mas também no Norte do Continente, a Virgem de Guadalupe é venerada como Rainha de toda a América. (22)

Com o passar do tempo foi aumentando nos Pastores e fiéis a consciência do papel desempenhado pela Virgem na evangelização do Continente. Na oração composta para a Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos para a América, Maria Santíssima de Guadalupe é invocada como « Padroeira de toda a América e Estrela da primeira e da nova evangelização ». Nesta perspectiva, acolho com alegria a proposta dos Padres sinodais para que, no dia 12 de dezembro, seja celebrada, em todo o Continente, a festa de Nossa Senhora de Guadalupe, Mãe e Evangelizadora da América. (23) Nutro no meu coração a firme esperança de que Ela, a cuja intercessão se deve o fortalecimento da fé nos primeiros discípulos (cf. Jo Jn 2,11), conduza, com a sua materna intercessão a Igreja neste Continente, alcançando-lhe, como outrora sobre a Igreja nascente (cf. Ac 1,14), a efusão do Espírito Santo, para que a nova evangelização produza um esplêndido florescimento de vida cristã.

(17) Carta enc. Redemptoris Mater (25 de março de 1987), RMA 21: AAS 79 (1987), 369.
(18) Propositio 5.
(19) III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Mensagem aos povos da América Latina (Puebla, fevereiro de 1979), n. 282. Relativamente aos Estados Unidos da América, veja-se National Conference of Catholic Bishops, Behold Your Mother Woman of Faith (Washington 1973), pp. 53-55.
(20) Cf. Propositio 6.
(21) João Paulo II, Discurso de abertura da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Santo Domingo, 12 de outubro de 1992), 24: AAS 85 (1993), 826.
(22) Cf. National Conference of Catholic Bishops, Behold Your Mother Woman of Faith(Washington 1973), p. 37.
(23) Cf. Propositio 6.


Lugares de encontro com Cristo

12 Confiando na ajuda de Maria, a Igreja na América deseja conduzir os homens e as mulheres do Continente ao encontro de Cristo, ponto de partida para uma autêntica conversão e uma renovada comunhão e solidariedade. Este encontro contribuirá eficazmente para consolidar a fé de muitos católicos, favorecendo o seu amadurecimento numa fé convicta, viva e operativa.

Para que a procura de Cristo, presente na sua Igreja, não se reduza a algo meramente abstrato, é necessário mostrar os lugares e momentos concretos nos quais, no âmbito da Igreja, é possível encontrá-Lo. A reflexão dos Padres Sinodais a este propósito foi rica de sugestões e observações.

Em primeiro lugar, eles apontaram « a Sagrada Escritura, lida à luz da Tradição, dos Padres e do Magistério, e aprofundada através da meditação e da oração ». (24) Foi encarecida a promoção do conhecimento dos Evangelhos, nos quais é proclamado, com palavras a todos facilmente acessíveis, o modo como Jesus viveu entre os homens. A leitura destes textos sagrados, quando acolhida com a mesma atenção com que as multidões escutavam Jesus na encosta do monte das Bem-aventuranças, ou na margem do lago de Tiberíades enquanto Ele pregava desde a barca, produz autênticos frutos de conversão do coração.

Um segundo lugar de encontro com Jesus é a Sagrada Liturgia. (25) Ao Concílio Vaticano II devemos uma riquíssima exposição da multíplice presença de Cristo na Liturgia, cuja importância deve ser objeto de constante pregação: Cristo está presente no celebrante que renova sobre o altar o mesmo e único sacrifício da Cruz; está presente nos sacramentos onde exerce sua força eficaz. Quando é proclamada a sua palavra, é Ele mesmo que nos fala. Além disso, está presente na comunidade, como prometeu: « Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles » (
Mt 18,20). Ele está presente « sobretudo sob as espécies eucarísticas ». (26) O meu predecessor Paulo VI considerou necessário explicar a peculiariedade da presença real de Cristo na Eucaristia, que « é chamada “real”, não por exclusão, como se as outras não fossem “reais”, mas por antonomásia, porque é substancial ». (27) Sob as espécies do pão e do vinho, « encontra-se presente Cristo total na sua “realidade física”, inclusive corporalmente ». (28)

A Escritura e a Eucaristia, como lugares de encontro com Cristo, são evocadas na narração da aparição do Ressuscitado aos discípulos de Emaús. Mas o texto do Evangelho sobre o juízo final (cf. Mt 25,31-46), onde se diz que seremos julgados acerca do amor para com os mais necessitados, nos quais Jesus Cristo está misteriosamente presente, indica que é preciso não descurar um terceiro lugar de encontro com o Senhor: « as pessoas, especialmente os pobres, com os quais Cristo Se identifica ». (29) No encerramento do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI recordava que « no rosto de todo homem, sobretudo se se tornou transparente pelas lágrimas ou pelas dores, podemos e devemos descobrir o rosto de Cristo (cf. Mt Mt 25,40), o Filho do Homem ».(30)

(24) Propositio 4.
(25) Cf. ibid.
(26) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 7.
(27) Carta enc. Mysterium fidei (3 de setembro de 1965): AAS 57 (1965), 764.
(28) Ibid.: l.c., 766.
(29) Propositio 4.
(30) Discurso na última sessão pública do Concílio Vaticano II (7 de dezembro de 1965): AAS58 (1966), 58.


CAPÍTULO II

O ENCONTRO COM JESUS CRISTO NA AMÉRICA DE HOJE

« A quem muito se deu, muito será exigido » (Lc 12,48)



A situação dos homens e mulheres da América e seu encontro com o Senhor

13 Nos Evangelhos narram-se os encontros com Cristo de pessoas nas mais distintas situações. Trata-se, às vezes, de situações de pecado, que revelam a necessidade da conversão e do perdão do Senhor. Em outras situações, emergem atitudes positivas de busca da verdade, de autêntica confiança em Jesus, que favorecem a criação de uma relação de amizade com Ele e estimulam o desejo de imitá-Lo. Não podem, da mesma forma, ser esquecidos os dons com os quais o Senhor prepara alguns para um encontro posterior. Assim é que Deus tornando Maria desde o primeiro instante « cheia de graça » (Lc 1,28), preparou-A tendo em vista a realização nEla do seu mais elevado encontro com a natureza humana: o mistério inefável da Encarnação.

Visto que tanto os pecados como as virtudes sociais não existem em abstrato, mas provêm de atos pessoais, (31) é necessário ter presente que a América é hoje uma realidade complexa, fruto das tendências e modos de agir dos homens e mulheres que nela vivem. É nesta situação real e concreta que estes devem encontrar-se com Jesus.

(31) Cf. João Paulo II, Exort. Ap. Reconciliatio et paenitentia (2 de dezembro de 1984), RP 16: AAS77 (1985), 214-217.


A identidade cristã da América

14 O maior dom que a América recebeu do Senhor é a fé que forjou sua identidade cristã. Já são mais de quinhentos anos que o nome de Cristo foi anunciado no Continente. Fruto da evangelização que acompanhou os movimentos migratórios da Europa é a fisionomia religiosa americana, marcada por valores morais que, mesmo nem sempre vividos com coerência e em certas ocasiões postos em discussão, podem ser considerados, de certo modo, patrimônio de todos os habitantes da América, inclusive daqueles que não o reconhecem explicitamente. É evidente que a identidade cristã da América não pode ser considerada como sinônimo de identidade católica. A presença de outras confissões cristãs em grau maior ou menor nas diversas partes da América, torna particularmente urgente o empenho ecumênico, para procurar a unidade de todos os crentes em Cristo. (32)

(32) Cf. Propositio 61.



Ecclesia in America PT