Ecclesia in America PT 59

A dívida externa

59 A existência de uma dívida externa que sufoca não poucos povos do Continente americano, constitui um problema complexo. Mesmo sem abordar seus numerosos aspectos, a Igreja, na sua solicitude pastoral, não pode ignorar este problema, pois este se refere à vida de tantas pessoas. Por isto, diversas Conferências Episcopais na América, conscientes da sua gravidade, organizaram a este respeito encontros de estudo e publicaram documentos destinados a indicar soluções operacionais. (216) Também eu expressei, em diversas ocasiões, minha preocupação por esta situação, que tornou-se, em certos casos, insustentável. Na perspectiva do já iminente Grande Jubileu do ano 2000, ao recordar o significado social que revestiam os jubileus no Antigo Testamento, escrevi: « No espírito do livro do Levítico (Lv 25,8-12), os cristãos deverão fazer-se eco de todos os pobres do mundo, propondo o Jubileu como um tempo oportuno para pensar, além do mais, numa consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas nações ». (217)

Reitero o auspício, feito a propósito pelos Padres Sinodais, de que o Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, junto com outros organismos competentes como a Seção para as Relações com os Estados da Secretaria de Estado, « procure, no estudo e no diálogo com os representantes do Primeiro Mundo e com os responsáveis do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, vias de solução para o problema da dívida externa e normas que impeçam a repetição de idênticas situações por ocasião de futuros empréstimos ». (218) Do maior nível possível, seria oportuno que « peritos em economia e em questões monetárias, de prestígio internacional, procedessem a uma análise crítica da ordem econômica mundial, nos seus aspectos positivos e negativos, para, deste modo, corrigir a ordem atual, e propusessem um sistema e mecanismos capazes de garantir o desenvolvimento integral e solidário das pessoas e dos povos ». (219)

(216) Cf. Propositio 75.
(217) Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de novembro de 1994), TMA 51: AAS 87 (1995), 36.
(218) Propositio 75.
(219) Ibid.


Luta contra a corrupção

60 O fenômeno da corrupção é, também na América, notavelmente estendido. A Igreja pode contribuir eficazmente a extirpar este mal da sociedade civil com « uma maior presença de leigos cristãos qualificados que, pela sua educação familiar, escolar e paroquial, promovam a prática de valores como a verdade, a honestidade, a laboriosidade e o serviço do bem comum ». (220) Para conseguir este objetivo, bem como para iluminar todos os homens de boa vontade, desejosos de acabar com os males derivados da corrupção, é preciso ensinar e difundir em larga escala a parte que corresponde a este tema no Catecismo da Igreja Católica, promovendo, ao mesmo tempo, entre os católicos de cada Nação o conhecimento dos documentos publicados a respeito pelas Conferências Episcopais das outras Nações. (221) Os cristãos assim formados contribuirão significativamente para a solução daquele problema, esforçando-se por levar à prática a doutrina social da Igreja, em todos os aspectos que lhes afeta na vida e nos que eles podem chegar a influir.

(220) Propositio 37.
(221) Cf. ibid. Sobre a publicação destes textos, cf. João Paulo II, Motu proprio Apostolos suos(21 de maio de 1998), n. IV: AAS 90 (1998), 657.


O problema das drogas

61 Quanto ao grave problema do comércio das drogas, a Igreja na América pode colaborar eficazmente com os responsáveis das Nações, os dirigentes de empresas privadas, as organizações não governamentais e as instâncias internacionais para elaborar projetos destinados a eliminar tal comércio, que ameaça a integridade dos povos na América. (222) Esta colaboração deve estender-se aos orgãos legislativos, apoiando as iniciativas que impedem a « reciclagem do dinheiro », favorecem o controle dos bens dos que estão envolvidos neste tráfego e cuidam que a produção e o comércio das substâncias químicas com que se obtêm as drogas se realizem de acordo com a lei. A urgência e a gravidade do problema tornam indispensável um apelo aos diversos ambientes e grupos da sociedade civil, a fim de unir-se na luta contra o comércio das drogas. (223) No que diz respeito de modo específico aos Bispos, é necessário — de acordo com uma sugestão dos Padres Sinodais — que eles próprios, como Pastores do Povo de Deus, denunciem com coragem e com força o hedonismo, o materialismo e aqueles estilos de vida que facilmente induzem à droga. (224)

É necessário, também, levar em conta que se deve ajudar aos agricultores pobres, para que não caiam na tentação do dinheiro fácil, conseguido com a cultivação de plantas para a obtenção das drogas. A este respeito, a FAO e os Organismos internacionais podem oferecer uma preciosa colaboração aos Governos nacionais favorecendo, com vários incentivos, as produções agrícolas alternativas. Seja estimulada também a obra dos que se esforçam por recuperar os que se drogam, dedicando uma atenção pastoral às vítimas da tóxicodependência: é fundamental oferecer o justo « sentido da vida » às novas gerações que, se este vier a faltar, terminam frequentemente caindo na espiral perversa dos entorpecentes. Este trabalho de reabilitação social também pode constituir um verdadeiro e próprio empenho de evangelização. (225)

(222) Cf. Propositio 38.
(223) Cf. ibid.
(224) Cf. ibid.
(225) Cf. ibid.


A corrida aos armamentos

62 Um fator que paralisa o progresso de muitas nações na América é a corrida aos armamentos. Das Igrejas particulares da América deve levantar-se um voz profética, que denuncie tanto o rearmamento quanto o comércio escandaloso de armas de guerra, o qual consome enormes somas dinheiro que deveriam ser, pelo contrário, destinadas a combater a miséria e a promover o desenvolvimento. (226) Por outro lado, o armazenamento de armas constitui uma causa de instabilidade e uma ameaça para a paz. (227) Eis porque a Igreja permanece vigilante diante do risco de conflitos armados, até mesmo entre nações irmãs. Esta, como sinal e instrumento de reconciliação e de paz, deve procurar « com todos os meios possíveis, inclusive através da mediação e da arbitragem, de agir a favor da paz e da fraternidade entre os povos ». (228)

(226) Cf. Pontifício Conselho « Justiça e Paz », O comércio internacional de armas. Uma reflexão ética (1 de maio de 1994): Ench. Vat. 14, nn. 1071-1154.
(227) Cf. Propositio 76.
(228) Ibid.


Cultura da morte e sociedade dominada pelos poderosos

63 Hoje, na América, como em outras partes do mundo, parece entrever-se um modelo de sociedade em que dominam os poderosos, marginalizando e até mesmo eliminando os mais fracos: penso aqui nas crianças não nascidas, vítimas indefesas do aborto; nos anciãos e nos doentes incuráveis, às vezes objeto de eutanásia; e nos inumeráveis seres humanos postos à margem pelo consumismo e pelo materialismo. Não posso esquecer, também, do desnecessário recurso à pena de morte, quando « outros processos incruentos forem suficientes para defender do agressor e para proteger a segurança das pessoas [...]. De fato, hoje, com os meios a disposição do Estado para reprimir o crime com eficácia, tornando inofensivo quem o cometeu, sem privá-lo definitivamente a possibilidade de redimir-se, os casos de absoluta necessidade de supressão do réu são “já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes” ». (229) Este modelo de sociedade é baseado na cultura da morte, estando, portanto, em contraste com a mensagem evangélica. Perante esta realidade desoladora, a Comunidade eclesial propõe-se defender sempre mais a cultura da vida.

A este respeito, os Padres Sinodais, fazendo-se eco dos recentes documentos do Magistério da Igreja, reafirmaram com vigor o incondicionado respeito e total devotamento a favor da vida humana desde a concepção até a morte natural, e exprimem a condenação dos males como o aborto e a eutanásia. Para sustentar estes ensinamentos da lei divina e natural, é essencial promover o conhecimento da doutrina social da Igreja, e esforçar-se a fim de que os valores da vida e da família sejam reconhecidos e defendidos na vivência social e nos ordenamentos do Estado. (230) Paralelamente à tutela da vida, há de ser intensificada, através de várias instituições pastorais, uma promoção ativa das adoções e uma constante assistência às mulheres com problemas na gravidez, quer antes quer depois do nascimento do filho. Mais, há de reservar-se uma especial atenção pastoral às mulheres que sofreram ou procuraram ativamente o aborto. (231)

Como não dar graças a Deus, e como não expressar vivo apreço pelos irmãos e irmãs na fé que na América, junto a outros cristãos e inúmeras pessoas de boa vontade, estão empenhados em defender, com todos os meios legais, a vida e a tutelar o nascituro, o doente incurável e os inválidos? Sua ação é ainda mais meritória se se consideram a indiferença de muitos, as ameaças eugenéticas e os atentados à vida e à dignidade humana, que diariamente se cometem em todo lugar. (232)

Idêntico cuidado se há de ter pelos anciãos, por vezes descurados e abandonados a si próprios. Estes devem ser respeitados como pessoas; é importante realizar para eles iniciativas de acolhida e de assistência, que promovam seus direitos e garantam, na medida do possível, o bem-estar físico e espiritual. Os anciãos hão de ser protegidos das situações e pressões que poderiam induzi-los ao suicídio; de modo particular, eles devem ser amparados hoje contra a tentação do suicídio assistido e a eutanásia.

Junto aos Pastores do Povo de Deus na América, faço apelo aos « católicos que trabalham no campo médico-sanitário e a todos os que desempenham funções públicas, como também aos que se dedicam ao ensino, a fim de que façam todo o possível para defender as vidas que correm maior perigo, agindo com uma consciência bem formada segundo a doutrina católica. Os Bispos e os presbíteros têm, neste campo, a especial responsabilidade de testemunhar sem tréguas o Evangelho da vida e de exortar a coerência dos fiéis ». (233) Ao mesmo tempo, é indispensável que a Igreja na América ilumine, com oportunas intervenções, a elaboração das decisões das assembléias legislativas, estimulando os cidadãos, seja os católicos seja as outras pessoas de boa vontade, a constituir organizações para promover válidos projetos de lei e para se opor aos que ameaçam a família e a vida, que são duas realidades inseparáveis. Hoje em dia, é preciso cuidar especialmente daquilo que se refere ao diagnóstico pré-natal, para que, de modo algum, a dignidade humana seja lesionada.

(229) Catecismo da Igreja Católica, n. 2267, que cita João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae(25 de marzo de 1995),
EV 56: AAS 87 (1995), 463-464.
(230) Cf. Propositio 13.
(231) Cf. ibid.
(232) Cf. ibid.
(233) Ibid.


Os povos indígenas e os americanos de origem africana

64 Se a Igreja na América, fiel ao Evangelho de Cristo, pensa percorrer o caminho da solidariedade, deve dedicar uma especial atenção àquelas comunidades étnicas que são, ainda hoje, objeto de injustas discriminações. De fato, é preciso extirpar toda tentativa de marginalização das populações indígenas. O que supõe, em primeiro lugar, que se devem respeitar seus territórios e os pactos com elas estabelecidos; da mesma forma, há que responder às suas legítimas necessidades sociais, sanitárias e culturais. Como é possível esquecer a exigência de reconciliação entre os povos indígenas e as sociedades onde vivem?

Desejaria lembrar aqui que também os americanos de origem africana continuam sofrendo, em algumas zonas, preconceitos étnicos, que constituem, para eles, um sério obstáculo para encontrar a Cristo. Tendo em vista que toda pessoa, de qualquer raça e condição, foi criada por Deus à sua imagem, sejam promovidos planos concretos, em que não deve faltar a oração comunitária, que favoreçam a compreensão e a reconciliação entre povos distintos, constituindo pontes de amor cristão, de paz e de justiça entre todos os homens. (234)

Para alcançar estes objetivos é indispensável formar agentes pastorais competentes, capazes de fazer uso de métodos já legitimamente « inculturados » na catequese e na liturgia, evitando sincretismos que se apoiem numa exposição parcial da genuína doutrina cristã. Igualmente obter-se-á mais facilmente um número adequado de Pastores que desempenhem a própria atividade entre os indígenas, se houver a preocupação de promover vocações para o sacerdócio e para a vida consagrada entre estes povos. (235)

(234) Cf. Propositio 19.
(235) Cf. Propositio 18.


A problemática dos imigrantes

65 O Continente americano conheceu na sua história muitos movimentos migratórios, com contingentes de homens e mulheres chegados às várias regiões, na esperança de um futuro melhor. O fenômeno continua ainda hoje, e engloba, de modo particular, numerosas pessoas e famílias provindas das Nações latino-americanas, estabelecidas nas regiões setentrionais do Continente, a ponto de constituir, em alguns casos, uma considerável parte da população. Com frequência, estas são portadoras de um patrimônio cultural e religioso rico de significativos elementos cristãos. A Igreja está ciente dos problemas surgidos com esta situação e empenha-se em desenvolver, com todos os meios, a própria ação pastoral entre estes imigrantes, para favorecer o seu estabelecimento no território, e para suscitar, ao mesmo tempo, uma atitude de acolhida por parte das populações locais, convencida de que da mútua abertura trará um enriquecimento para todos.

As comunidades eclesiais não deixarão de ver no fenômeno, uma específica chamada a viver o valor evangélico da fraternidade e, ao mesmo tempo, um convite a imprimir um renovado impulso à própria religiosidade, para uma evangelização mais incisiva. Neste sentido, os Padres Sinodais lembraram que « a Igreja na América deve ser advogada atenta que defende, contra toda injusta restrição, o direito natural da livre movimentação de toda a pessoa dentro da sua nação e de uma nação para outra. É preciso cuidar dos direitos dos migrantes e das suas famílias, e do respeito da sua dignidade humana, inclusive no caso das imigrações ilegais ». (236)

Com relação aos migrantes há de haver uma atitude hospitaleira e acolhedora, que os estimule a se inserir na vida eclesial, ressalvadas sempre sua liberdade e a peculiar identidade cultural. Para tanto, é de sobremaneira vantajosa a colaboração entre as Dioceses de onde eles provêm e aquelas em que são acolhidos, inclusive através de específicas estruturas pastorais previstas na legislação e na praxe da Igreja. (237) Desta forma, pode-se assegurar uma mais adequada e completa assistência pastoral. A Igreja na América deve sentir-se mobilizada pela constante solicitude de não deixar faltar uma eficaz ação evangelizadora dos que acabam de chegar e ainda não conhecem a Cristo. (238)

(236) Propositio 20.
(237) Cf. Congregação para os Bispos, Instr. Nemo est (22 de agosto de 1969), n. 16: AAS 61 (1969), 621-622; Código de Direito Canônico, câns.
CIC 294 CIC 518; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. CIO 280, § 1.
(238) Propositio 20.



CAPÍTULO VI

A MISSÃO DA IGREJA NA AMÉRICA ATUAL: A NOVA EVANGELIZAÇÃO

« Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jn 20,21)



Enviados por Cristo

66 Cristo ressuscitado, antes da sua ascensão ao céu, enviou os Apóstolos a anunciar o Evangelho pelo mundo inteiro (cf. Mc 16,15), conferindo-lhes os poderes necessários para realizar essa missão. É significativo que, antes de confiar o último mandato missionário, Jesus tenha feito referência ao poder universal que recebera do Pai (cf. Mt 28,18). Na realidade, Cristo transmitiu aos Apóstolos a missão recebida do Pai (cf. Jn 20,21), tornando-os assim participantes dos seus poderes.

Mas também « os fiéis leigos, precisamente por serem membros da Igreja, têm por vocação e por missão anunciar o Evangelho: para essa obra foram habilitados e nela comprometidos pelos sacramentos da iniciação cristã e pelos dons do Espírito Santo ». (239) De fato, eles foram « feitos participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo ». (240) Por conseguinte, « os fiéis leigos, devido à sua participação no múnus profético de Cristo, estão plenamente comprometidos nesta tarefa da Igreja » (241) e, portanto, devem sentir-se chamados e enviados a proclamar a Boa Nova do Reino. As palavras de Jesus: « Ide vós também para a minha vinha » (Mt 20,4), (242) devem ser vistas como dirigidas não só aos Apóstolos, mas a todos aqueles que desejam ser autênticos discípulos do Senhor.

A tarefa fundamental para a qual Cristo envia os seus discípulos é o anúncio da Boa Nova, isto é, a evangelização (cf. Mc 16,15-18). Segue-se daí que « evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade ». (243) Como já disse em outras ocasiões, a singularidade e novidade da situação em que o mundo e a Igreja se encontram, às portas do terceiro milênio, e as exigências que daí derivam, fazem com que a missão evangelizadora atualmente requeira também um novo programa que, no seu conjunto, pode definir-se « nova evangelização ». (244) Como Pastor supremo da Igreja, desejo ardentemente convidar todos os membros do Povo de Deus, e de modo especial os que vivem no Continente americano — donde fiz, pela primeira vez, apelo a um compromisso novo « no seu entusiasmo, nos seus métodos, na sua expressão » (245) — para assumirem este projeto e colaborarem nele. Cada um, ao aceitar esta missão, lembre-se de que o núcleo vital da nova evangelização deve ser o anúncio claro e inequívoco da pessoa de Jesus Cristo, isto é, o anúncio do seu nome, da sua doutrina, da sua vida, das suas promessas e do Reino que Ele nos conquistou por meio do seu mistério pascal. (246)

(239) João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de dezembro de 1988), CL 33: AAS81 (1989), 453.
(240) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 31.
(241) João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de dezembro de 1988), CL 34: AAS81 (1989), 455.
(242) Cf. ibid., CL 2: l.c., 394-397.
(243) Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de dezembro de 1975), EN 14: AAS 68 (1976), 13.
(244) Cf. Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de dezembro de 1988), CL 34: AAS 81 (1989), 455.
(245) Discurso à Assembléia do CELAM (9 de março de 1983), III: AAS 75 (1983), 778.
(246) Cf. Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de dezembro de 1975), EN 22: AAS 68 (1976), 20.


Jesus Cristo, « boa nova » e primeiro evangelizador

67 Jesus Cristo é a « boa nova » da salvação comunicada aos homens de ontem, de hoje e de sempre; mas, ao mesmo tempo, Ele é também o primeiro e supremo evangelizador. (247) A Igreja deve colocar o centro da sua atenção pastoral e da sua ação evangelizadora em Cristo crucificado e ressuscitado. « Tudo o que se projeta no campo eclesial deve partir de Cristo e do seu Evangelho ». (248) Por isso, « a Igreja na América deve falar cada vez mais de Jesus Cristo, rosto humano de Deus e rosto divino do homem. É este anúncio que verdadeiramente mexe com os homens, que desperta e transforma os ânimos, ou seja, que converte. É preciso anunciar Cristo com alegria e fortaleza, mas sobretudo com o testemunho da própria vida ». (249)

Cada cristão poderá cumprir eficazmente a sua missão, na medida em que assumir a vida do Filho de Deus feito homem como o modelo perfeito da sua ação evangelizadora. A simplicidade do seu estilo e as suas opções devem ser regras para todos na obra da evangelização. Nesta perspectiva, os pobres hão de ser considerados entre os primeiros destinatários da evangelização, a exemplo de Cristo que dizia de Si mesmo: « O Espírito do Senhor (...) Me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres » (
Lc 4,18). (250)

Como já indiquei antes, o amor pelos pobres deve ser preferencial, mas não exclusivo. O ter limitado a atenção pastoral pelos pobres com um certo exclusivismo — como assinalaram os Padres Sinodais —, levou, às vezes, a descurar os ambientes dos dirigentes da sociedade, com o conseqüente afastamento da Igreja de muitos deles. (251) Os prejuízos derivados da difusão do secularismo nesses ambientes, tanto políticos como econômicos, sindicais, militares, sociais ou culturais, demonstram a urgência da sua evangelização, que deve ser animada e guiada pelos Pastores, chamados por Deus para cuidar de todos. Estes poderão contar com o apoio daqueles que — e, felizmente, são ainda numerosos — permaneceram fiéis aos valores cristãos: a este respeito, os Padres Sinodais recordaram « o empenho de não poucos (...) dirigentes na construção de uma sociedade justa e solidária ». (252) Com o seu apoio, os Pastores enfrentarão a difícil tarefa de evangelização destes setores da sociedade: com renovado fervor e uma metodologia atualizada, dirigir-se-ão aos dirigentes, homens e mulheres, para levar-lhes o anúncio de Cristo, insistindo principalmente sobre a formação das consciências, através da doutrina social da Igreja. Esta formação constituirá o melhor antídoto contra os inúmeros casos de incoerência e, em certos casos, de corrupção existentes na estrutura sócio-política. Vice-versa, se se descura esta evangelização dos dirigentes, não deve surpreender que muitos deles sigam critérios alheios e, às vezes, claramente contrários ao Evangelho.

(247) Cf. ibid., EN 7: l.c., 9-10.
(248) João Paulo II, Mensagem ao CELAM (14 de setembro de 1997), 6: L'Osservatore Romano(ed. portuguesa de 4 de outubro de 1997), 11.
(249) Propositio 8.
(250) Cf. Propositio 57.
(251) Cf. Propositio 16.
(252) Ibid.


O encontro com Cristo impele a evangelizar

68 O encontro com o Senhor gera uma profunda transformação em todos aqueles que não se fecham a Ele. O primeiro impulso que nasce dessa transformação é comunicar aos outros a riqueza descoberta neste encontro. Não se trata apenas de ensinar aquilo de que tivemos conhecimento, mas de fazer também, à semelhança da mulher samaritana, com que os outros encontrem pessoalmente Jesus: « Vinde ver » (Jn 4,29). O resultado será igual ao que então se verificou no coração dos samaritanos: « Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo » (Jn 4,42). A Igreja, que vive da presença permanente e misteriosa do seu Senhor ressuscitado, tem como centro da sua missão o empenho de « levar todos os homens a encontrar-se com Cristo ». (253)

Ela é chamada a anunciar que Cristo é verdadeiramente o Vivente, o Filho de Deus, que Se fez homem, morreu e ressuscitou. Ele é o único Salvador de todos os homens e do homem todo e, como Senhor da história, atua continuamente na Igreja e no mundo, por meio do seu Espírito, até ao fim dos séculos. Esta presença do Ressuscitado na Igreja torna possível o nosso encontro com Ele, graças à ação invisível do seu Espírito vivificante. Aquele encontro realiza-se na fé recebida e vivida na Igreja, o corpo místico de Cristo. Este, portanto, possui essencialmente uma dimensão eclesial e leva a um compromisso de vida. De fato, « encontrar Cristo vivo significa acolher o amor com que Ele primeiro nos amou, optar por Ele, aderir livremente à sua pessoa e ao seu projeto, que consiste no anúncio e realização do Reino de Deus ». (254)

A chamada faz-nos ir à procura de Jesus: « “Rabbi — que quer dizer Mestre —, onde moras?”. “Vinde ver”, respondeu-lhes. Foram, pois, e viram onde morava e permaneceram junto dEle nesse dia (Jn 1,38-39). Este permanecer não se limita ao dia da vocação, mas estende-se a toda a vida. Segui-Lo implica viver como Ele viveu, aceitar a sua mensagem, assumir como próprios os seus critérios, abraçar o seu destino, partilhar o seu projeto que é o desígnio do Pai: convidar a todos para a comunhão trinitária e para a comunhão com os irmãos numa sociedade justa e solidária ». (255) O desejo ardente de convidar os outros para se encontrarem com Aquele que nós encontramos, está na raiz da missão evangelizadora a que é chamada toda a Igreja mas que é sentida com particular urgência hoje na América, depois de ter celebrado os 500 anos da primeira evangelização e quando se prepara para comemorar com gratidão os 2000 anos da vinda do Filho unigênito de Deus ao mundo.

(253) Propositio 2.
(254) Ibid.
(255) Ibid.


Importância da catequese

69 A nova evangelização, na qual todo o Continente está empenhado, indica que a fé não pode ser pressuposta, mas deve ser explicitamente proposta em toda a sua amplitude e riqueza. Este é o objetivo principal da catequese, sendo esta, por sua própria natureza, uma dimensão essencial da nova evangelização. « A catequese é um itinerário de formação na fé, na esperança e na caridade, que forma a mente e toca o coração, levando a pessoa a abraçar Cristo de modo pleno e completo. Introduz o crente mais plenamente na experiência da vida cristã, que inclui a celebração litúrgica do mistério da redenção e o serviço cristão aos outros ». (256)

Conhecendo bem a necessidade de uma catequese completa, aceitei a proposta feita pelos Padres da Assembléia Extraordinária do Sínodo dos Bispos de 1985, para se elaborar « um catecismo ou compêndio de toda a doutrina católica, tanto em matéria de fé como de moral », que pudesse ser « ponto de referência para os catecismos ou compêndios que venham a ser preparados nas diversas regiões ». (257) Essa proposta ficou concretizada com a publicação da edição típica doCatechismus Catholicae Ecclesiae. (258) Além do texto oficial do Catecismo e para uma melhor utilização dos seus conteúdos, quis que fosse elaborado e publicado também um Diretório Geral da Catequese. (259) Recomendo vivamente o uso destes dois instrumentos, com valor universal, a todos os que se dedicam à catequese na América. É desejável que ambos os documentos sejam utilizados « na preparação e revisão de todos os programas paroquiais e diocesanos de catequese, tendo presente que a situação religiosa dos jovens e dos adultos requer uma catequese mais querigmática e mais orgânica na apresentação dos conteúdos da fé ». (260)

É necessário reconhecer e estimular a missão benemérita que muitos catequistas desempenham, por todo o Continente americano, como autênticos mensageiros do Reino: « A sua fé e o seu testemunho de vida são parte integrante da catequese ». (261) Desejo encorajar cada vez mais os fiéis a assumirem, com abnegação e amor ao Senhor, este serviço da Igreja, consagrando-lhe generosamente o seu tempo e os seus talentos. Por seu lado, os Bispos preocupem-se por oferecer aos catequistas uma formação adequada para que possam desempenhar esta tarefa tão indispensável à vida da Igreja.

Sobretudo num Continente como a América onde a questão social constitui uma dimensão saliente, convém ter presente na catequese que « o crescimento na compreensão da fé e a sua expressão prática na vida social estão intimamente relacionados. As forças que trabalham para favorecer o encontro com Cristo não podem deixar de ter uma positiva repercussão na promoção do bem comum numa sociedade justa ». (262)

(256) Propositio 10.
(257) Relação final Ecclesia sub verbo Dei mysteria Christi celebrans pro salute mundi (7 de dezembro de 1985), II, B, a, 4: L'Osservatore Romano (ed. port. de 22 de dezembro de 1985), 6.
(258) Cf. Carta ap. Laetamur magnopere (15 de agosto de 1997): AAS 89 (1997), 819-821.
(259) Congr. do Clero, Direttorio generale per la catechesi (15 de agosto de 1997), Libreria Editrice Vaticana, 1997.
(260) Propositio 10.
(261) Ibid.
(262) Ibid.


Evangelização da cultura

70 O meu predecessor Paulo VI, com sábia inspiração punha em relevo que a « ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época ». (263) Justamente por isso, os Padres Sinodais consideraram que « a nova evangelização requer um esforço lúcido, sério e organizado para evangelizar a cultura ». (264) O Filho de Deus, quando assumiu a natureza humana, encarnou-Se no âmbito de um determinado povo, embora a sua morte redentora tenha trazido a salvação a todos os homens, qualquer que seja a sua cultura, raça e condição. O dom do seu Espírito e o seu amor são destinados a todos e cada um dos povos e culturas para os unir entre si à imagem daquela perfeita união que existe em Deus Uno e Trino. Para que isso seja possível, é necessário inculturar a pregação, de forma que o Evangelho seja anunciado na linguagem e na cultura de quantos o ouvem. (265) Simultaneamente, porém, é preciso não esquecer que só o mistério pascal de Cristo, suprema manifestação do Deus infinito na finitude da história, poderá ser válido ponto de referência para toda a humanidade peregrina à procura da unidade autêntica e da verdadeira paz.

O rosto mestiço da Virgem de Guadalupe constituiu, desde o início, um símbolo da inculturação da evangelização, da qual Ela foi a estrela e a guia. Com a sua poderosa intercessão, a evangelização poderá penetrar no coração dos homens e mulheres da América, e permear as suas culturas transformando-as a partir de dentro. (266)

(263) Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de dezembro de 1985),
EN 20: AAS 68 (1976), 19.
(264) Propositio 17.
(265) Cf. ibid.
(266) Cf. ibid.


Evangelizar os centros educacionais

71 O mundo da educação é um campo privilegiado para promover a inculturação do Evangelho. Todavia, os centros educacionais católicos, e os que, mesmo sem ser confessionais, têm de fato uma clara inspiração católica, só poderão desenvolver uma ação de autêntica evangelização se souberem conservar, com clareza e a todos os níveis, incluindo o universitário, a sua orientação católica. Os conteúdos do projeto educativo deverão fazer referência constante a Jesus Cristo e à sua mensagem, tal como a Igreja a apresenta na sua doutrina dogmática e moral. Somente assim será possível formar dirigentes autenticamente cristãos nos diversos campos da atividade humana e da sociedade, especialmente na política, na economia, na ciência, na arte e na reflexão filosófica. (267) Neste sentido, « é essencial que a Universidade Católica seja, ao mesmo tempo, verdadeira e realmente ambas as coisas: Universidade e Católica (...). A índole católica é um elemento constitutivo da Universidade enquanto instituição, não dependendo, portanto, da simples decisão dos indivíduos que, em certo momento, dirigem a Universidade ». (268) Por isso, há de ser objeto de particular solicitude o trabalho pastoral nas Universidades Católicas: deve-se promover o empenho apostólico dos estudantes, para se tornarem eles próprios evangelizadores do mundo universitário. (269) Além disso, « é preciso estimular a cooperação entre as Universidades Católicas da América inteira para que se enriqueçam mutuamente », (270) contribuindo dessa forma para a realização, também a nível universitário, do princípio da solidariedade e de intercâmbio entre os povos de todo o Continente.

Algo parecido deve ser dito a propósito também das escolas católicas, sobretudo no âmbito do ensino secundário: « É preciso fazer um esforço especial para reforçar a identidade católica das escolas, cuja natureza específica se fundamenta num projeto educacional que tem a sua origem na pessoa de Cristo e a sua raiz na doutrina do Evangelho. As escolas católicas devem procurar não só oferecer uma educação qualificada do ponto de vista técnico e profissional, mas também e sobretudo cuidar da formação integral da pessoa humana ». (271) Vista a importância da tarefa que desempenham os educadores católicos, uno-me aos Padres Sinodais que, de ânimo agradecido, encorajaram todos aqueles que se dedicam ao ensino nas escolas católicas — sacerdotes, homens e mulheres consagrados, e leigos comprometidos —, « para que perseverem na sua missão, tão importante ». (272) É preciso fazer com que a influência destes centros de ensino chegue, sem distinções nem exclusivismos, a todos os setores da sociedade. É indispensável fazer todo o esforço possível para que as escolas católicas, não obstante as dificuldades econômicas, continuem a oferecer « a educação católica aos pobres e aos marginalizados da sociedade ». (273) Nunca será possível libertar os indigentes da sua pobreza, se primeiro não forem libertos da miséria resultante da carência de uma digna educação.

No projeto global da nova evangelização, o setor da educação ocupa um lugar privilegiado. Por isso, há que encorajar a atividade de todos os docentes católicos, inclusive daqueles empenhados em escolas não confessionais. Faço também um apelo urgente aos consagrados e às consagradas, para que não abandonem este campo que é tão importante para a nova evangelização. (274)

Como fruto e expressão da comunhão entre todas as Igrejas particulares da América, reforçada com certeza pela experiência espiritual da Assembléia Sinodal, não há de negligenciar-se a promoção de simpósios para educadores católicos, de âmbito nacional e continental, procurando assim organizar e incrementar a ação pastoral educativa em todos os ambientes. (275)

Para cumprir todas estas tarefas, a Igreja na América tem necessidade, no campo do ensino, de um próprio espaço de liberdade que deve ser entendido, não como um privilégio, mas como um direito, em virtude da missão evangelizadora que lhe foi confiada pelo Senhor. Além disso, os pais têm o direito fundamental e primário de decidir sobre a educação de seus filhos e, por esse motivo, os pais católicos devem ter a possibilidade de escolher uma educação de acordo com suas próprias convicções religiosas. A função do Estado neste âmbito é de caráter subsidiário. Ele tem a obrigação « de garantir a todos a educação e de respeitar e defender a liberdade de ensino. O monopólio do Estado neste campo deve ser denunciado como uma forma de totalitarismo, lesivo dos direitos fundamentais que deve defender, especialmente do direito dos pais à educação religiosa dos seus filhos. A família é o primeiro espaço educativo da pessoa ». (276)

(267) Cf. Propositio 22.
(268) Propositio 23.
(269) Cf. ibid.
(270) Ibid.
(271) Propositio 24.
(272) Ibid.
(273) Ibid.
(274) Cf. Propositio 22.
(275) Cf. ibid.
(276) Ibid.



Ecclesia in America PT 59