Ecclesia in Africa PT 68

Desenvolvimento humano integral

68 O desenvolvimento humano integral — desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, especialmente de quem é mais pobre e marginalizado na comunidade — tem a ver com o âmago da evangelização. « Entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento e libertação, existem, de facto, laços profundos: laços de ordem antropológica, dado que o homem que há-de ser evangelizado não é um ser abstracto mas antes um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e económicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da Criação do plano da Redenção, onde se apontam, para além do mais, situações bem concretas de injustiça que há-de ser combatida, e de justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica qual é a ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo do amor sem promover, na justiça e na paz, o verdadeiro, autêntico desenvolvimento do homem? ».117

Assim, quando inaugurou o ministério público na sinagoga de Nazaré, o Senhor Jesus, para ilustrar a sua missão, escolheu o texto messiânico do livro de Isaías: « O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça do Senhor » (
Lc 4,18-19 cf. Is Is 61,1-2).

O Senhor, portanto, considera-Se enviado a aliviar a miséria dos homens e a combater toda a forma de marginalização. Veio libertar o homem; veio assumir as nossas enfermidades e carregar os nossos males: de facto, « todo o ministério de Jesus está ligado à atenção a todos os que, à sua volta, eram afectados pelo sofrimento: pessoas enlutadas, paralíticos, leprosos, cegos, surdos, mudos... (cf. Mt 8,17) ».118 « É impossível aceitar que a obra de evangelização possa ou deva negligenciar os problemas extremamente graves, debatidos sobremaneira hoje em dia, relativos à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo »:119 a libertação, que a evangelização anuncia, « não pode ser limitada à simples e restrita dimensão económica, política, social e cultural; mas deve ter em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o absoluto, o próprio Absoluto de Deus ».120

Justamente afirma o Concílio Vaticano II: « Procurando o seu fim salvífico, a Igreja não se limita a comunicar ao homem a vida divina; mas espalha sobre todo o mundo os reflexos da sua luz, sobretudo enquanto cura e eleva a dignidade da pessoa humana, consolida a coesão da sociedade e dá um sentido mais profundo à actividade quotidiana dos homens. A Igreja pensa, assim, que, por meio de cada um dos seus membros e por toda a sua comunidade, muito pode ajudar para tornar mais humana a família dos homens e a sua história ».121 A Igreja anuncia e começa a actuar o Reino de Deus seguindo os passos de Jesus, uma vez que « a natureza do Reino é a comunhão de todos os seres humanos entre si e com Deus ».122 Deste modo, « o Reino é fonte de libertação plena e de salvação total para os homens: com estes, portanto, a Igreja caminha e vive real e intimamentesolidária com a sua história ».123

(117) Pablo VI, EN 31: AAS 68 (1976), 26.
(118) Sínodo de los Obispos, Asamblea especial para África, Lineamenta, 79.
(119) Pablo VI, EN 31: AAS 68 (1976), 26.
(120) EN 33: l.c., 27.
(121) GS 40.
(122) RMi 15: AAS 83 (1991), 263.
(123) CL 36: AAS 81 (1989), 459.


69 A história dos homens assume o seu sentido mais autêntico na Encarnação do Verbo de Deus, que é o fundamento da dignidade humana recuperada. Por Cristo, « imagem do Deus invisível e primogénito de toda a criação » (Col 1,15), é que o homem foi redimido; melhor, « pela sua Encarnação, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ».124 Como não clamar com S. Leão Magno: « Reconhece, ó cristão, a tua dignidade »?125

Anunciar Cristo é, pois, revelar ao homem a sua dignidade inalienável, que Deus resgatou através da encarnação do seu Filho unigénito. Assim prossegue o Concílio Vaticano II: « Tendo a Igreja, por sua parte, a missão de manifestar o mistério de Deus, último fim do homem, ela descobre ao mesmo tempo ao homem o sentido da sua existência, a verdade profunda acerca dele mesmo ».126

Dotado de uma dignidade tão incomparável, o homem não pode viver em condições infra-humanas de vida social, económica, cultural e política. Está aqui o fundamento teológico da luta pela defesa da dignidade pessoal, pela justiça e a paz social, pela promoção humana, a libertação e o desenvolvimento do homem todo e de todo o homem. E aqui está também a razão pela qual, tendo em conta esta dignidade, o progresso dos povos — no âmbito de cada nação e nas relações internacionais — deverá realizar-se de maneira solidária, como justamente observava o meu predecessor Paulo VI.127 Nesta perspectiva, ele pôde sentenciar: « O desenvolvimento é o novo nome da paz ».128 Assim, pode-se dizer com justa razão que « o desenvolvimento integral supõe o respeito da dignidade humana, que só pode realizar-se na justiça e na paz ».129

(124) Vaticano II, GS 22.
(125) Sermo XXI, 3: SCh 22 a, 72.
(126) GS 41.
(127) Cf. PP 48: AAS 59 (1967), 281.
(128) PP 87, l.c., 299.
(129) Propositio 45.


Fazer-se voz dos sem voz

70 Fortalecidos pela fé e a esperança na força salvadora de Jesus, os Padres do Sínodo concluíram os trabalhos, renovando o compromisso de assumirem o desafio de ser instrumentos da salvação nos diversos âmbitos da vida dos povos africanos. « A Igreja — declararam — deve continuar a cumprir a sua missão profética, e ser voz dos sem voz »,130 a fim de que, por toda a parte, a dignidade humana seja reconhecida a toda a pessoa, e o homem esteja sempre no centro de todos os programas governamentais. O Sínodo « interpela a consciência dos Chefes de Estado e dos responsáveis pela vida pública, para que garantam sempre mais a libertação e o desenvolvimento dos seus povos ».131 Só por tal preço se constrói a paz entre as nações.

A evangelização deve promover todas as iniciativas que contribuam para desenvolver e nobilitar o homem na sua existência espiritual e material. Trata-se do desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, considerado não só isoladamente, mas também e de modo especial no horizonte de um progresso solidário e harmonioso de todos os membros de uma nação e de todos os povos da terra.132

Em suma, a evangelização deve denunciar e combater tudo quanto degrada e destrói o homem. « O exercício do ministério da evangelização no campo social, que é um aspecto do múnus proféticoda Igreja, compreende também a denúncia dos males e das injustiças. Mas convém esclarecer que o anúncio é sempre mais importante do que a denúncia; e esta não pode prescindir daquele, pois é isso que lhe dá a verdadeira solidez e a força da sua motivação mais alta ».133

(130) Propositio 45.
(131) Ib. 45.
(132) Cf. Pablo VI,
PP 48: AAS 59 (1967), 281.
(133) SRS 41: AAS 80 (1988), 572.


Meios de comunicação social

71 « Desde sempre, Deus Se caracteriza pelo seu desejo de comunicar. E fá-lo de diversas maneiras. Comunica o ser a toda a criatura, animada ou inanimada. De modo particular com o homem, estabelece relações privilegiadas. "Depois de ter, em diversas ocasiões e de muitas maneiras, falado outrora aos nossos pais pelos profetas, Deus, nestes tempos que são os últimos, falou-nos pelo Filho" (He 1,1-2) ».134 O Verbo de Deus é, por sua natureza, palavra, diálogo e comunicação. Ele veio restaurar, por um lado, a comunicação e as relações entre Deus e os homens, e, por outro, as relações dos homens entre si.

Os mass-media foram considerados pelo Sínodo sob dois aspectos importantes e complementares: como um universo cultural novo e em expansão, e como um conjunto de meios ao serviço da comunicação. Fundamentalmente eles constituem uma nova cultura que tem a sua linguagem própria e, sobretudo, os seus valores e contra-valores específicos. Por este motivo, têm necessidade, como todas as culturas, de ser evangelizados.135

De facto, em nossos dias, os mass-media constituem por si mesmos não só um mundo à parte, mas uma cultura e uma civilização diversa. E a Igreja é convidada a levar a Boa Nova da salvação também a esse mundo. Os arautos do Evangelho devem, pois, entrar aí para se deixarem permearpor essa nova civilização e cultura, com o objectivo de saberem servir-se convenientemente dela. « O primeiro areópago dos tempos modernos é o mundo das comunicações, que está a unificar a humanidade, transformando-a — como se costuma dizer — numa "aldeia global". Os meios de comunicação social alcançaram tamanha importância que são para muitos o principal instrumento de informação e formação, de guia e inspiração dos comportamentos individuais, familiares e sociais ».136

A formação no uso dos mass-media é, portanto, uma necessidade, não só para quem anuncia o Evangelho, que deve, para além do mais, possuir o estilo da comunicação, mas também para oleitor, o receptor e o telespectador que, preparados para compreenderem o género da comunicação, hão-de saber acolher os dados fornecidos, com discernimento e espírito crítico.

Na África, onde a transmissão oral é uma das características da sua cultura, tal formação reveste importância capital. Precisamente este tipo de comunicação deve recordar aos Pastores, especialmente aos Bispos e aos sacerdotes, que a Igreja é enviada para falar, para pregar o Evangelho por palavras e gestos. Por isso, ela não pode calar sob risco de faltar à sua missão, a não ser que, em certas circunstâncias, o próprio silêncio seja já um modo de falar e testemunhar. Portanto, devemos anunciar sempre e em toda a ocasião, oportuna e inoportunamente (cf. 2Tm 4,2), com o fim de edificar na caridade e na verdade.

(134) Sínodo de los Obispos, Asamblea especial para África, Instrumentum laboris, 127
(135) Cf. "Mensaje del Sínodo" (6 de mayo de 1994), 45-46: L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española, 20 de mayo de 1994, 6.
(136) RMi 37, c: AAS 83 (1991), 285.


CAPÍTULO IV

NA PERSPECTIVA DO TERCEIRO MILÉNIO CRISTÃO


I. Os desafios actuais

72 A Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos foi convocada para dar ocasião à Igreja de Deus, espalhada pelo Continente, de reflectir sobre a sua missão evangelizadora na perspectiva do terceiro milénio e predispor, como tive o cuidado de lembrar, « uma orgânica solidariedade pastoral em todo o território africano e nas ilhas contíguas ».137 Como foi já assinalado, tal missão comporta urgências e desafios, resultantes das profundas e rápidas mudanças nas sociedades africanas e das consequências da consolidação de uma civilização à escala mundial.

(137) Ángelus (6 de enero de 1989), 2: Insegnamenti XII, 1 (1989), 40.


A necessidade do Baptismo

73 A primeira urgência é, naturalmente, a evangelização. Por um lado, a Igreja deve assimilar e viver cada vez melhor a mensagem de que foi constituída depositária pelo Senhor. Por outro, deve testemunhar e anunciar esta mensagem a quantos ainda não conhecem Jesus Cristo. De facto, foi a pensar neles que o Senhor disse aos Apóstolos: « Ide, pois, ensinai todas as nações » (Mt 28,19).

Como sucedeu no Pentecostes, a pregação do querigma tem como finalidade natural levar o ouvinte à metanoia e ao Baptismo: « O anúncio da Palavra de Deus visa a conversão cristã, isto é, a adesão plena e sincera a Cristo e ao Evangelho, mediante a fé ».138 Por outro lado, a conversão a Cristo « está conexa com o Baptismo: está-o não só por ser práxis comum da Igreja, mas por vontade de Cristo, que enviou a sua Igreja a fazer discípulos em todas as nações e a baptizá-los (cf. Mt 28,19); está-o ainda por intrínseca exigência da recepção em plenitude da vida nova n'Ele: "Em verdade, em verdade, te digo — ensina Jesus a Nicodemos — quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus" (Jn 3,5). O Baptismo, de facto, regenera-nos para a vida de filhos de Deus; une-nos a Jesus Cristo e unge-nos no Espírito Santo: aquele não é um simples selo da conversão, uma espécie de sinal exterior que a comprova e atesta; mas é o sacramento que significa e opera este novo nascimento do Espírito, instaura vínculos reais e indivisíveis com a Trindade, torna-nos membros do Corpo de Cristo, que é a Igreja ».139 Portanto, um itinerário de conversão que não chegasse ao Baptismo, ter-se-ia detido a meio da estrada.

Na verdade, os homens de boa vontade que, sem culpa alguma da sua parte, não são alcançados pelo anúncio evangélico, mas vivem de harmonia com a sua consciência segundo a lei de Deus, serão salvos por Cristo e em Cristo. Para todo o ser humano, de facto, existe sempre em acto o chamamento de Deus, que aguarda ser identificado e acolhido (cf. 1Tm 2,4). É precisamente para favorecer esse acolhimento que é pedido aos discípulos de Cristo que não se dêem paz enquanto não for levado a todos o feliz anúncio da salvação.

(138) RMi 46: AAS 83 (1991), 292.
(139) RMi 47, l.c., 293-294.


Urgência da evangelização

74 Com efeito, está estabelecido que o Nome de Jesus Cristo é o único no qual podemos ser salvos (cf. Act Ac 4,12). Visto que, na África, há milhões de pessoas ainda não evangelizadas, a Igreja encontra-se perante a tarefa, necessária e urgente, de proclamar a Boa Nova a todos, e de levar os que a escutam até ao Baptismo e à vida cristã. « A urgência da actividade missionária deriva da radical novidade de vida, trazida por Cristo e vivida pelos seus discípulos. Esta nova vida é dom de Deus, sendo pedido ao homem que a acolha e desenvolva, se quiser realizar-se segundo a sua vocação integral em conformidade com Cristo ».140 Esta vida nova, na originalidade radical do Evangelho, comporta também rupturas relativamente aos costumes e à cultura de qualquer povo da terra, visto que o Evangelho não será nunca um produto interno de determinado país, mas sempre vem « de fora », vem do Alto. Para os baptizados, o grande desafio permanecerá sempre a coerência de uma existência cristã conforme aos compromissos do Baptismo, que significa morte ao pecado e ressurreição quotidiana para uma vida nova (cf. Rm Rm 6,4-5). Sem tal coerência, dificilmente os discípulos de Cristo poderão ser « sal da terra » e « luz do mundo » (Mt 5,13 Mt 5,14). Se a Igreja em África se empenhar, vigorosa e decididamente, por este caminho, a Cruz poderá ser plantada em toda a parte do Continente para a salvação dos povos que não tenham medo de abrir as portas ao Redentor.

(140) RMi 7, l.c., 255-256.


Importância da formação

75 Em todos os sectores da vida eclesial, tem capital importância a formação. De facto, ninguém poderá conhecer realmente as verdades de fé que nunca teve oportunidade de aprender, nem será capaz de realizar actos para os quais nunca foi iniciado. Eis porque « a comunidade inteira precisa de ser preparada, motivada e reforçada em vista da evangelização, cada qual segundo a sua função específica no seio da Igreja ».141 Isto aplica-se aos Bispos, aos presbíteros, aos membros dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica, aos membros dos Institutos Seculares, e a todos os fiéis leigos.

A formação missionária não pode deixar de ocupar um lugar privilegiado. Ela é « obra da Igreja local, com a ajuda dos missionários e dos seus Institutos, bem como dos cristãos das jovens Igrejas. Este trabalho não deve ser visto como marginal, mas sim central na vida cristã ».142

O programa de formação há-de incluir, de modo particular, a preparação dos leigos para desempenharem plenamente o seu papel de animação cristã da ordem temporal (política, cultural, económica, social), que é empenho característico da vocação secular do laicado. A tal propósito, não se há-de deixar de encorajar leigos competentes e motivados a empenharem-se na acção política,143 onde poderão, através de um digno exercício dos cargos públicos, « atender ao bem comum e, ao mesmo tempo, abrir caminho ao Evangelho ».144

(141) Sínodo de los obispos, Asamblea especial para África, Relatio ante disceptationem (11 de abril de 1994), 8: L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española, 22 de abril de 1994, 9.
(142)
RMi 83: AAS 83 (1991), 329.
(143) Cf. Sínodo de los Obispos, Asamblea especial para África, Mensaje del Sínodo (6 de mayo de 1994), 33: L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española, 20 de mayo de 1994, 3.
(144) Vaticano II, AA 14.


Aprofundar a fé

76 A Igreja em África, para ser evangelizadora, deve « começar por se evangelizar a si mesma. (...) Tem necessidade de ouvir sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões da sua esperança e o mandamento novo do amor. Povo de Deus imerso no mundo, e não raro tentado pelos ídolos, a Igreja precisa de ouvir, incessantemente, proclamar as grandes obras de Deus ».145

Em África, hoje, « a formação da fé (...) fica- -se, muitas vezes, pela fase elementar, e as seitas facilmente se aproveitam desta ignorância ».146 Torna-se, assim, urgente um sério aprofundamento da fé, porque a rápida evolução da sociedade fez surgir novos desafios, ligados particularmente com os fenómenos de desenraizamento familiar, urbanização, desemprego, e ainda com as múltiplas seduções materialistas, uma certa secularização, e aquela espécie de trauma intelectual provocado pela avalanche de ideias insuficientemente ponderadas, difusas pelos mass-media.147

(145) Pablo VI,
EN 15: AAS 68 (1976), 14.
(146) Discurso a la Conferencia episcopal de Camerún, (Yaundé, 13 de agosto de 1985), 4: Insegnamenti VIII, 2 (1985), 378.
(147) Cf. Discurso a la Conferencia episcopal de Camerún, (Yaundé, 13 de agosto de 1985), 5: Insegnamenti VIII, 2 (1985), 378.


A força do testemunho

77 A formação deve procurar dar aos cristãos não apenas uma habilitação técnica para transmitir melhor os conteúdos da fé, mas também uma convicção pessoal profunda para os testemunhar eficazmente na vida. Assim, todos aqueles que são chamados a proclamar o Evangelho, esforçar-se-ão por agir com docilidade total ao Espírito, o qual, « hoje ainda, como nos inícios da Igreja, age em cada um dos evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por Ele ».148 « As técnicas de evangelização são boas, obviamente; mas ainda as mais aperfeiçoadas não poderiam substituir a acção discreta do Espírito Santo. A preparação mais apurada do evangelizador nada faz sem Ele. De igual modo, a dialéctica mais convincente, sem Ele permanece impotente para com o espírito dos homens. E, ainda, os mais elaborados esquemas com base sociológica e psicológica, sem Ele, em breve se demonstram desprovidos de valor ».149

Um verdadeiro testemunho por parte dos crentes é, hoje, essencial em África, para proclamar de forma autêntica a fé. De modo particular, é preciso que eles ofereçam o testemunho de um amor recíproco sincero. « A vida eterna é "que Te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (
Jn 17,3). O fim último da missão é fazer participar na comunhão que existe entre o Pai e o Filho: os discípulos devem viver a unidade entre si, permanecendo no Pai e no Filho, para que o mundo conheça e creia (cf. Jo Jn 17,21-23). Trata-se de um texto de grande alcance missionário, fazendo-nos entender que somos missionários sobretudo por aquilo que se é, como Igreja que vive profundamente a unidade no amor, e não tanto por aquilo que se diz ou faz ».150

(148) Pablo VI, EN 75: AAS 68 (1976), 65.
(149) Pablo VI, EN 65: AAS 68 (1976), 65-66.
(150) RMi 23: AAS 83 (1991), 269-270.


Inculturar a fé

78 Devido à profunda convicção de que «a síntese entre cultura e fé não é só uma exigência da cultura, mas também da fé », porque « uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, nem inteiramente pensada, nem fielmente vivida »,151 a Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos considerou a inculturação uma prioridade e uma urgência na vida das Igrejas particulares em África: só assim pode o Evangelho lançar sólidas raízes nas comunidades cristãs do Continente. Na esteira do Concílio Vaticano II,152 os Padres Sinodais interpretaram a inculturação como um processo que abrange a vida cristã em toda a sua extensão — teologia, liturgia, costumes, estruturas — obviamente sem lesar o direito divino e a grande disciplina da Igreja, corroborada ao longo dos séculos por frutos extraordinários de virtude e heroísmo.153

O desafio da inculturação em África consiste em fazer com que os discípulos de Cristo possam assimilar cada vez melhor a mensagem evangélica, continuando, no entanto, fiéis a todos os valores africanos autênticos. Inculturar a fé em todos os sectores da vida cristã e humana apresenta-se como uma tarefa árdua, para cujo cumprimento é necessária a assistência do Espírito do Senhor que guia a Igreja para a verdade total (cf. Jo
Jn 16,13).

(151) Discurso a los participantes en el Congreso nacional del Movimiento eclesial de Compromiso cultural (16 de enero de 1982), 2: Insegnamenti V, 1 (1982), 131.
(152) Cf. .
(153) Cf. Propositio 32; Vaticano II, SC 37-40.


Uma comunidade reconciliada

79 O desafio do diálogo é, fundamentalmente, o desafio da transformação das relações entre os homens, entre as nações e entre os povos, na vida religiosa, política, económica, social e cultural. É o desafio do amor de Cristo por todos os homens, amor que o seu discípulo deve reproduzir na sua vida: « É por isto que todos saberão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros » (Jn 13,35).

« A evangelização continua o diálogo de Deus com a humanidade, um diálogo que atinge o seu ápice na pessoa de Jesus Cristo ».154 Por meio da Cruz, Ele destruiu em Si mesmo a inimizade (cf. Ef Ep 2,16) que divide e afasta os homens uns dos outros.

Ora, apesar da civilização contemporânea lembrar uma « aldeia global », em África, como aliás noutras partes do mundo, o espírito de diálogo, de paz e reconciliação está ainda longe de habitar no coração de todos os homens. As guerras, os conflitos, os comportamentos racistas e xenófobos ainda dominam demasiadamente o mundo das relações humanas.

A Igreja em África pressente a exigência de se tornar lugar de autêntica reconciliação para todos, graças ao testemunho dado pelos seus filhos e filhas. Deste modo, mutuamente perdoados e reconciliados, eles poderão levar ao mundo o perdão e a reconciliação, que Cristo, nossa Paz (cf. Ef Ep 2,14), oferece à humanidade, através da sua Igreja. Caso contrário, o mundo assemelhar-se-á cada vez mais a um campo de batalha, no qual contam apenas os interesses egoístas e onde predomina alei da força, que afasta inexoravelmente a humanidade da suspirada civilização do amor.

(154) Propositio 38.



II. A família


Evangelizar a família

80 « O futuro do mundo e da Igreja passa através da família ».155 Com efeito, a família é a primeira célula não apenas da comunidade eclesial viva, mas também da sociedade. Na África, de modo particular, a família representa a base sobre a qual está construído o edifício da sociedade. Por isso mesmo, o Sínodo considera a evangelização da família africana como uma das maiores prioridades, se se quer que ela assuma, por sua vez, o papel de sujeito activo na perspectiva da evangelização das famílias pelas famílias.

Do ponto de vista pastoral, isso constitui um verdadeiro desafio, dadas as dificuldades de ordem política, económica, social e cultural que os núcleos familiares em África têm de enfrentar no contexto das grandes mudanças da sociedade contemporânea. Embora adoptando os valores positivos da modernidade, a família africana deverá, pois, salvaguardar os seus próprios valores essenciais.

(155)
FC 75: AAS 74 (1982), 173.


A Sagrada Família como modelo

81 A tal propósito, a Sagrada Família que, segundo o Evangelho (cf. Mt Mt 2,14-15), viveu durante algum tempo na África, é « protótipo e exemplo de todas as famílias cristãs »,156 modelo e fonte espiritual para cada família cristã.157

Para usar as palavras do Papa Paulo VI, peregrino na Terra Santa, « Nazaré é a escola em que se começa a compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho. (...) Aqui, nesta escola, se compreende a necessidade de ter uma disciplina espiritual, se se quer (...) ser discípulo de Cristo ».158 Nesta sua profunda meditação sobre o mistério de Nazaré, Paulo VI convida a fixar uma tríplice lição: lição de silêncio, de vida familiar, de trabalho. Na casa de Nazaré, cada um vive a própria missão em perfeita harmonia com os outros membros da Sagrada Família.

(156) FC 86, l.c., 189-190.
(157) Cf. Propositio 14.
(158) Homilía en la basílica de la Anunciación en Nazaret (5 de enero de 1964): AAS 56 (1964), 167.


Dignidade e função do homem e da mulher

82 A dignidade do homem e da mulher deriva do facto de que, quando Deus criou o homem, « criou-o à imagem de Deus; Ele os criou varão e mulher » (Gn 1,27). Tanto o homem como a mulher são criados « à imagem de Deus », isto é, dotados de inteligência e vontade, e consequentemente de liberdade. Prova-o a narração sobre o pecado dos primeiros pais (cf. Gn Gn 3). O Salmista canta a dignidade incomparável do homem assim: « Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes. Destes-lhe domínio sobre as obras das vossas mãos. Tudo submetestes debaixo dos seus pés » (Ps 8,6-7).

Criados os dois à imagem de Deus, o homem e a mulher, embora diferentes, são essencialmente iguais sob o ponto de vista da natureza humana. « Ambos, desde o início, são pessoas, ao contrário dos outros seres vivos do mundo que os circunda. A mulher é um outro "eu" na comum humanidade »,159 e cada um constitui um auxiliar para o outro (cf. Gn Gn 2,18-25).

« Ao criar o homem, "varão e mulher", Deus dá a dignidade pessoal, por igual, ao homem e à mulher, enriquecendo-os de direitos inalienáveis e de responsabilidades que são próprias da pessoa humana ».160 O Sínodo deplorou certos costumes africanos e determinadas práticas « que privam as mulheres dos seus direitos e do respeito que lhes é devido »,161 e pediu que a Igreja no Continente se esforce por promover a salvaguarda de tais direitos.

(159) MD 6: AAS 80 (1988), 1.662-1.664; Carta a las mujeres (29 de junio de 1995), 7: L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española, 14 de julio de 1995, 2. 12.
(160) FC 22: AAS 74 (1982), 107.
(161) Propositio 48.


Dignidade e função do Matrimónio

83 Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, é Amor (cf. 1Jn 4,8). « A comunhão entre Deus e os homens encontra o seu definitivo cumprimento em Jesus Cristo, o Esposo que ama e Se doa como Salvador da humanidade, unindo-a a Si como seu corpo. Ele revela a verdade originária do Matrimónio, a verdade do "princípio" e, libertando o homem da dureza do seu coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente. Esta revelação chega à sua definitiva plenitude no dom do amor que o Verbo de Deus faz à humanidade, assumindo a natureza humana, e no sacrifício que Jesus Cristo faz de Si mesmo sobre a cruz pela sua Esposa, a Igreja. Neste sacrifício, descobre-se inteiramente aquele desígnio que Deus imprimiu na humanidade do homem e da mulher, desde a sua criação; o Matrimónio dos baptizados torna-se assim o símbolo real da Nova e Eterna Aliança, decretada no Sangue de Cristo ».162

O amor recíproco dos esposos baptizados manifesta o Amor de Cristo e da Igreja. Sinal do Amor de Cristo, o Matrimónio é um sacramento da Nova Aliança: « Os esposos são para a Igreja ochamamento permanente daquilo que aconteceu sobre a Cruz; são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação da qual o sacramento os faz participar. Deste acontecimento de salvação, o Matrimónio, como todo o sacramento, é memorial, actualização e profecia ».163

O Matrimónio cristão é, pois, um estado de vida, um caminho de santidade cristã, uma vocação que deve conduzir à ressurreição gloriosa e ao Reino, onde « nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos » (Mt 22,30). Por isso, o Matrimónio exige um amor indissolúvel; graças a esta sua estabilidade, pode contribuir eficazmente para realizar em plenitude a vocação baptismal dos esposos.

(162) FC 13: AAS 74 (1982), 93-94.
(163) Ib. FC 13


Salvar a família africana

84 Na aula do Sínodo, foram muitas as intervenções que puseram em evidência as ameaças que gravam actualmente sobre a família africana. As preocupações dos Padres Sinodais eram tanto mais justificadas quanto o documento preparatório de uma Conferência das Nações Unidas, realizada em Setembro de 1994 no Cairo, em terra africana, parecia claramente querer adoptar resoluções em contraste com não poucos valores familiares africanos. Fazendo próprias as preocupações, que eu anteriormente tinha manifestado aos promotores da referida Conferência e aos Chefes de Estado do mundo inteiro,164 eles lançaram um premente apelo para que fosse salvaguardada a família: « Não permitais — clamaram eles — que a família africana seja humilhada precisamente na sua própria terra! Não permitais que o Ano Internacional da Família se torne o ano da destruição da família! ».165

(164) Cf. Mensaje a la señora Nafis Sadik, secretaria general de la Conferencia internacional de 1994 sobre población y desarrollo (18 de marzo de 1994): AAS 87 (1995), 190-196.
(165) Sínodo de los Obispos, Asamblea especial para África, Mensaje del Sínodo (6 de mayo de 1994), 30: L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española, 20 de mayo de 1994, 5.


A família aberta à sociedade

85 O Matrimónio, por sua natureza, transcende o casal, dada a sua especial missão de perpetuar a humanidade. Do mesmo modo, por natureza, a família estende-se para além dos limites do lar doméstico: ela está orientada para a sociedade. « A família possui vínculos vitais e orgânicos com a sociedade, porque constitui o seu fundamento e alimento contínuo, mediante o dever de serviço à vida: saem, de facto, da família os cidadãos, e é na família que eles encontram a primeira escola daquelas virtudes sociais, que são a alma da vida e do desenvolvimento da mesma sociedade. Assim, por força da sua natureza e vocação, longe de fechar-se em si mesma, a família abre-se às outras famílias e à sociedade, assumindo a sua tarefa social ».166

Nesta linha, a Assembleia Especial para a África afirma que o fim da evangelização é edificar a Igreja como Família de Deus, antecipação, mesmo se imperfeita, do Reino sobre a terra. As famílias cristãs de África tornar-se-ão, desse modo, verdadeiras « igrejas domésticas », contribuindo para o progresso da sociedade na direcção de uma vida mais fraterna. Assim se realizará a transformação das sociedades africanas, por meio do Evangelho!

(166)
FC 42: AAS 74 (1982), 134.


CAPÍTULO V

« VÓS SEREIS MINHAS TESTEMUNHAS » EM ÁFRICA


Testemunho e santidade

86 Os desafios apontados mostram como fora oportuna a Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos: a tarefa da Igreja no Continente é imensa; para a enfrentar é necessária a colaboração de todos. O testemunho constitui o elemento central. Cristo interpela os seus discípulos em África e confia-lhes o mandato que deu aos Apóstolos no dia da Ascensão: « Vós sereis minhas testemunhas » (Ac 1,8) em África.


87 O anúncio da Boa Nova, pela palavra e pelas obras, abre o coração das pessoas ao desejo dasantidade, da configuração com Cristo. Na primeira Carta aos Coríntios, S. Paulo dirige-se « aos [que foram] santificados em Jesus Cristo, chamados à santidade, com todos os que, em qualquer lugar, invocam o nome de Jesus Cristo Senhor deles e nosso » (1,2). É que a pregação do Evangelho tem como objectivo a construção da Igreja de Deus, na perspectiva do advento do Reino, que Cristo entregará ao Pai no fim dos tempos (cf. 1Co 15,24).

Ora « a entrada no Reino de Deus exige uma mudança de mentalidade (metanoia) e de comportamento, um testemunho de vida por palavras e obras que tem o seu alimento na recepção dos sacramentos, nomeadamente a Eucaristia, dentro da Igreja, sacramento de salvação ».167

Também a inculturação, pela qual a fé penetra na vida das pessoas e das suas comunidades de origem, constitui um caminho para a santidade. Como, na encarnação, Cristo assumiu a natureza humana excluindo apenas o pecado, analogamente, por meio da inculturação, a mensagem cristã assimila os valores da sociedade em que é anunciada, deixando de fora quanto esteja marcado pelo pecado. Na medida em que a comunidade eclesial saiba integrar os valores positivos de uma determinada cultura, torna-se instrumento da sua abertura às dimensões da santidade cristã. Uma inculturação, sabiamente conduzida, purifica e eleva as culturas dos vários povos.

Sob este ponto de vista, é chamada a desempenhar um papel importante a liturgia. Esta, enquanto modo eficaz de proclamar e viver os mistérios da salvação, pode contribuir validamente para elevar e enriquecer específicas manifestações da cultura de um povo. Será, pois, responsabilidade da autoridade competente procurar, segundo modelos ricos de beleza artística, a inculturação daqueles elementos litúrgicos que, à luz das normas vigentes, possam ser modificados.168

(167) Propositio 5.
(168) Cf. Propositio 34.



Ecclesia in Africa PT 68