Ecclesia in Asia PT 9


CAPÍTULO II

JESUS SALVADOR: UM DOM PARA A ÁSIA


O dom da fé

10 À medida que se ia desenrolando o debate sinodal sobre as complexas realidades da Ásia, tornava-se sempre mais evidente para todos que a única contribuição da Igreja para os habitantes do continente é a proclamação de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, o mesmo e único Salvador para todos os povos.35 Aquilo que distingue a Igreja de outras comunidades religiosas é a sua fé em Jesus Cristo; e ela não pode esconder esta preciosa luz da fé debaixo do alqueire (cf. Mt Mt 5,15), pelo que a sua missão é partilhar esta luz com todos. A Igreja « quer oferecer a vida nova que encontrou em Jesus Cristo a todos os povos da Ásia que procuram a plenitude de vida, a fim de que possam instaurar a mesma comunhão com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo, no poder do Espírito Santo ».36 Esta fé em Jesus Cristo é o que anima a acção evangelizadora da Igreja na Ásia, levada a cabo muitas vezes em circunstâncias difíceis e até perigosas. Os Padres Sinodais observaram que proclamar Jesus como o único Salvador pode apresentar dificuldades particulares nas suas culturas, uma vez que muitas religiões asiáticas ensinam suas próprias manifestações divinas portadoras de salvação. Os desafios enfrentados nos seus esforços evangelizadores, longe de desanimar os Padres Sinodais, foram um incentivo ainda maior para se empenharem em transmitir « a fé que a Igreja da Ásia herdou dos Apóstolos e partilha com a Igreja de todas as gerações e lugares ».37 Com efeito, eles declararam-se convictos de que « o coração da Igreja da Ásia permanecerá inquieto até quando a Ásia inteira encontrar o seu repouso na paz de Cristo, o Senhor Ressuscitado ».38

A fé da Igreja em Jesus é um dom recebido, e um dom que deve ser partilhado; é o maior dom que a Igreja pode oferecer à Ásia. Partilhar a verdade de Jesus Cristo com os demais é dever sagrado de todos os que receberam o dom da fé. Na Encíclica Redemptoris missio, escrevi que « a Igreja, e nela cada cristão, não pode esconder nem guardar para si esta novidade e riqueza, recebida da bondade divina para ser comunicada a todos os homens ».39 Acrescentando logo a seguir: « Aqueles que estão incorporados na Igreja Católica devem sentir-se privilegiados e, por isso mesmo, mais comprometidos em testemunhar a fé e a vida cristã como serviço aos irmãos e resposta devida a Deus ».40

Profundamente convencidos disto, os Padres Sinodais sentiram-se igualmente conscientes da sua responsabilidade pessoal de compreender, através do estudo, oração e reflexão, a verdade eterna de Jesus, para levarem a sua força e vitalidade aos desafios actuais e futuros da evangelização na Ásia.

(35) Cf. propositio 5.
(36) Assembleia Especial para a Ásia do Sínodo dos Bispos, Relatio ante disceptationem, II parte:L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Abril de 1998), 202.
(37) Assembleia Especial para a Ásia do Sínodo dos Bispos, Relatio post disceptationem, 3.
(38) Propositio 8.
(39) N. RMi 11: AAS 83 (1991), 260.
(40) Ibid., RMi 11: o. c., 260.


Jesus Cristo, o Deus humanado que salva

11 As Escrituras atestam que Jesus viveu uma existência autenticamente humana. Jesus, que proclamamos como o único Salvador, caminhou sobre a terra como o Deus humanado, na posse plena da natureza humana; era como nós em tudo, à excepção do pecado. Nascido duma Virgem Mãe, nos arredores humildes de Belém, achou-Se sem recursos como outros meninos, e até sofreu o destino de um refugiado, escapando à ira de um chefe cruel (cf. Mt Mt 2,13-15). Viveu submisso a pais humanos, que nem sempre entenderam as suas atitudes, mas confiou-Se a eles e obedeceu-lhes amorosamente (cf. Lc Lc 2,41-52). Constantemente em oração, Jesus viveu em íntima relação com Deus, a Quem Se dirigia com a palavra Abba, « Pai », para espanto dos seus ouvintes (cf. Jo Jn 8,34-59).

Aproximou-Se dos pobres, marginalizados e humildes, dizendo que eram verdadeiramente bem-aventurados, pois Deus estava com eles. Comeu com os pecadores, assegurando-lhes que há um lugar para eles à mesa do Pai, quando se afastam dos seus maus caminhos e regressam a Ele. Tocando os impuros e deixando que O tocassem, Jesus fez-lhes sentir a proximidade de Deus. Chorou por um amigo morto, restituiu vivo o filho morto à sua mãe viúva, declarou bem-vindas as crianças e lavou os pés aos seus discípulos. Nunca a compaixão divina tinha sido acessível tão imediatamente.

O doente, o paralítico, o cego, o surdo e o mudo, todos experimentaram cura e perdão ao tocá-Lo. Como seus companheiros e colaboradores mais íntimos, Ele escolheu um grupo insólito no qual se misturavam pescadores com cobradores de impostos, zelotas com pessoas ignorantes da Lei, e mulheres também. Uma nova família se foi criando sob o amor surpreendente do Pai que tudo abraça. Jesus pregou com simplicidade, servindo-Se de exemplos da vida diária para falar do amor de Deus e do seu Reino; e o povo reconheceu que Ele falou com autoridade.

Mas, foi acusado de ser blasfemo, um violador da Lei sagrada, um estorvo público que devia ser eliminado. Depois de um julgamento baseado em testemunhas falsas (cf. Mc Mc 14,15), foi condenado a morrer como um criminoso na cruz e, abandonado e humilhado, pareceu um falhado. Foi sepultado à pressa num túmulo emprestado. Mas no terceiro dia depois da sua morte e apesar das guardas que estavam de vigia, o túmulo foi encontrado vazio! Jesus, ressuscitado dos mortos, em seguida apareceu aos seus discípulos, antes de voltar para o Pai, que O tinha enviado. Com todos os cristãos, acreditamos que esta vida muito particular, num determinado sentido tão normal e simples mas noutro completamente maravilhosa e tão envolvida em mistério, introduziu na história humana o Reino de Deus e « aplicou o seu poder sobre todas as facetas da vida e da sociedade humana, prisioneiras do pecado e da morte ».41 Através das suas palavras e acções, especialmente pelo seu sofrimento, morte e ressurreição, Jesus realizou o desígnio que o Pai tinha de reconciliar consigo a humanidade, porque o pecado original tinha criado uma ruptura no relacionamento entre o Criador e a sua criação. Na Cruz, carregou sobre Si mesmo os pecados do mundo — passado, presente e futuro. S. Paulo recorda que estávamos mortos em consequência dos nossos pecados, mas a sua morte devolveu-nos novamente à vida: Deus « vivificou-vos com Ele, perdoando-vos todos os vossos pecados; cancelando a acta escrita contra nós, cujas prescrições nos condenavam; aboliu-a inteiramente, cravando-a na Cruz » (Col 2,13-14). Assim, a salvação ficou concluída duma vez por todas. Jesus é o nosso Salvador no sentido mais pleno da palavra, porque as suas palavras e obras, especialmente a sua ressurreição dos mortos, revelaram que Ele é o Filho de Deus, o Verbo preexistente que reina para sempre como Senhor e Messias.

(41) Assembleia Especial para a Ásia do Sínodo dos Bispos, Relatio post disceptationem, 3.


A pessoa e missão do Filho de Deus

12 O « escândalo » do cristianismo é o facto de acreditar que o Deus Santíssimo, Omnipotente e Omnisciente assumiu para Si próprio a nossa natureza humana, e suportou o sofrimento e a morte para conquistar a salvação para todo o povo (cf. 1Co 1,23). A fé que recebemos ensina que Jesus Cristo revelou e cumpriu o plano que o Pai tinha de salvar o mundo e a humanidade inteira, por causa « do que Ele é » e « daquilo que Ele fez para ser o que é ». « O que Ele é » e « aquilo que Ele fez » só adquire o seu significado pleno quando se coloca dentro do mistério de Deus Uno e Trino. Tem sido uma constante do meu pontificado lembrar aos crentes a comunhão de vida da Santíssima Trindade e a unidade das três Pessoas divinas no plano da criação e da redenção. As Encíclicas Redemptor hominis, Dives in misericordia, e Dominum et vivificantem debruçam-se sobre o Filho, o Pai e o Espírito Santo, respectivamente, e suas funções no plano divino de salvação. Mas, não podemos isolar ou separar uma Pessoa das outras, dado que cada uma delas Se revela apenas no âmbito da comunhão de vida e acção da Trindade. A acção salvadora de Jesus tem a sua origem na comunhão do Pai, e abre o caminho a todos os que acreditam n'Ele para entrarem em comunhão íntima com a Trindade e, na Trindade, uns com os outros.

« Quem Me vê, vê o Pai », reclama Jesus (Jn 14,9). Somente n'Ele habita corporalmente a plenitude da divindade (cf. Col Col 2,9), constituindo-O como a única e absoluta Palavra salvadora de Deus (cf. He 1,1-4). Enquanto Palavra definitiva do Pai, Jesus torna conhecido o mais plenamente possível Deus e o seu desígnio salvador. « Ninguém vem ao Pai senão por Mim », disse Jesus (Jn 14,6). Ele é « o Caminho, a Verdade e a Vida » ( Jo Jn 14,6), porque — como Ele mesmo explica — « o Pai que está em Mim é que faz as obras » (Jn 14,10). Só na pessoa de Jesus, a palavra divina de salvação aparece em toda a sua plenitude, introduzindo nos últimos tempos (cf. Heb He 1,1-2). Por isso, nos primeiros dias da Igreja, Pedro pôde proclamar: « Não há salvação em nenhum outro, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar » (Ac 4,12).

A missão do Salvador atingiu o seu ponto culminante no Mistério Pascal. Na Cruz, ao « estender os braços entre o céu e a terra, como sinal indelével da (...) aliança »,42 Jesus lançou o seu apelo final pedindo ao Pai que perdoasse os pecados da humanidade: « Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem » (Lc 23,34). Jesus destruiu o pecado em virtude do seu amor para com o Pai e a humanidade inteira. Ele assumiu sobre Si próprio todas as feridas feitas à humanidade pelo pecado, e ofereceu a libertação através da conversão. Os primeiros frutos disto são evidentes na pessoa do ladrão arrependido, suspenso a seu lado noutra cruz (cf. Lc Lc 23,43). A sua última expressão foi o grito do Filho fiel: « Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito » (Lc 23,46). Neste acto supremo de amor, Jesus confiou toda a sua vida e missão nas mãos do Pai que O tinha enviado. Entregou assim ao Pai a criação inteira e toda a humanidade, para ser finalmente recebida por Ele com amor compassivo.

Tudo o que o Filho é e realizou, foi aceite pelo Pai, que ofereceu estes dons ao mundo no próprio momento em que ressuscitou Jesus dos mortos e O sentou à sua mão direita, onde o pecado e a morte já não têm qualquer poder. Com o Sacrifício Pascal de Jesus, o Pai ofereceu irrevogavelmente reconciliação e vida em abundância ao mundo.Este dom extraordinário só poderia vir através do seu Filho amado, o único que era capaz de corresponder plenamente ao amor do Pai, recusado com o pecado. Em Jesus Cristo, pelo poder do Espírito Santo, ficámos a saber que Deus não Se encontra distante, nem acima, nem fora do homem, mas está muito perto, antes unido a cada pessoa e à humanidade inteira em todas as situações da vida. Esta é a mensagem que o cristianismo oferece ao mundo, sendo uma fonte de consolação e esperança incomparável para todos os crentes.

(42) Missal Romano: Oração Eucarística I das Missas da Reconciliação.


Jesus Cristo: a verdade da humanidade

13 Como pode a humanidade de Jesus e o mistério inefável da encarnação do Filho do eterno Pai iluminar a condição humana? O Filho encarnado de Deus não só revela completamente o Pai e o seu plano de salvação, mas também « revela plenamente o homem a si próprio ».43 As suas palavras e acções, e sobretudo a sua morte e ressurreição, revelam a profundidade do que significa ser homem. Através de Jesus, o homem pode finalmente conhecer a verdade acerca de si mesmo. A vida perfeitamente humana de Jesus, completamente devotada ao amor e serviço do Pai e do homem, revela que a vocação de todo o ser humano é receber amor e, em troca, dar amor. Admiramos, em Jesus, a capacidade inexaurível do coração humano para amar a Deus e o homem, mesmo quando isso acarreta grande sofrimento. Mas sobretudo é na cruz que Jesus quebra o poder da resistência auto-destruidora ao amor, que o pecado nos impõe. Por sua vez, o Pai responde ressuscitando Jesus como o primogénito de todos os que estão predestinados a ser conformes à imagem do seu Filho (cf. Rm 8,29). Naquele instante, Jesus tornou-Se de uma vez por todas simultaneamente revelação e realização duma humanidade recriada e renovada de acordo com o plano de Deus. Assim em Jesus descobrimos a grandeza e a dignidade de cada pessoa no coração de Deus, que criou o homem à sua própria imagem (cf. Gen Gn 1,26), e encontramos a origem da nova criação em que nos transformámos pela sua graça.

O Concílio Vaticano II ensinou que, « pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ».44 Nesta profunda intuição, os Padres Sinodais viram a suprema fonte de esperança e força para o povo da Ásia, nas suas lutas e incertezas. Quando homens e mulheres respondem com fé viva à oferta do amor de Deus, a sua presença gera amor e paz, transformando o coração humano a partir de dentro. Na Encíclica Redemptor hominis, escrevi que « a redenção do mundo — aquele tremendo mistério de amor em que a criação foi renovada — é, na sua raiz mais profunda, a plenitude da justiça num coração humano — o Coração do Filho primogénito —, a fim de que ela possa tornar-se justiça dos corações de muitos homens, os quais, precisamente no Filho primogénito, foram predestinados desde toda a eternidade para se tornarem filhos de Deus e chamados à graça, chamados ao amor ».45

Assim, a missão de Jesus não só restaurou a comunhão entre Deus e a humanidade, mas estabeleceu também uma nova comunhão entre os seres humanos, alienados uns dos outros por causa do pecado. Para além de todas as divisões, Jesus dá às pessoas a possibilidade de viverem como irmãos e irmãs, reconhecendo todos um único Pai, Aquele que está nos céus (cf. Mt Mt 23,9). N'Ele, surgiu uma nova harmonia, onde « não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus » (Ga 3,28). Jesus é a nossa paz, « Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava » (Ep 2,14). Em tudo o que disse e fez, Jesus foi a voz, as mãos e os braços do Pai, congregando todos os filhos de Deus numa única família de amor. Rezou para que os seus discípulos pudessem viver em comunhão, tal como Ele está em comunhão com o Pai (cf. Jo Jn 17,11). Entre as suas últimas palavras, ouvímo-Lo dizer: « Como o Pai Me amou também Eu vos amei; permanecei no meu amor. (...) O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei » (Jn 15,9 Jn 15,12). Enviado pelo Deus da comunhão, Jesus estabeleceu a comunhão entre o céu e a terra em sua própria pessoa, visto que Ele é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. A fé diz-nos que « agradou a Deus que residisse n'Ele toda a plenitude, e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, pacificando, pelo sangue da sua cruz, tanto as da terra como as dos céus » (Col 1,19-20). Deste modo, a salvação pôde fundar-se na pessoa do Filho de Deus feito homem e na missão unicamente confiada a Ele enquanto Filho, uma missão de serviço e de amor pela vida de todos. Juntamente com a Igreja espalhada pelo mundo, a Igreja da Ásia proclama esta verdade de fé: « Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo Homem, que Se deu em resgate por todos » (1Tm 2,5-6).

(43) João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), RH 10: AAS 71 (1979), 274.
(44) Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 22.
(45) N. RH 9: AAS 71 (1979), 272-273.


O carácter único e universal\b\i: da salvação de Jesus

14 Os Padres Sinodais reafirmaram que o Verbo preexistente, o Filho de Deus gerado desde toda a eternidade, « já estava presente na criação, na história e em cada anseio humano de bem ».46 Por meio do Verbo, presente no cosmo já antes da Encarnação, foi feito o mundo (cf. Jn 1,1-4 Jn 1,10 Col 1,15-20). Mas enquanto Verbo encarnado que viveu, morreu e ressuscitou dos mortos, Jesus Cristo é agora proclamado como o cumprimento de toda a criação, de toda a história e de todo o anseio humano de uma vida em abundância.47 Ressuscitado dos mortos, Jesus Cristo « está unido, duma forma nova e misteriosa, a cada elemento e ao conjunto da criação ».48 N'Ele, « encontram a sua plenitude e realização os valores autênticos de todas as tradições religiosas e culturais, tais como misericórdia e submissão à vontade de Deus, compaixão e integridade, não-violência e justiça, piedade filial e harmonia com a criação ».49 Desde o primeiro instante do tempo até ao seu termo, Jesus é o único Mediador universal. Mesmo a todos aqueles que não professam explicitamente a fé n'Ele como Salvador, também lhes chega a salvação como uma graça de Jesus Cristo, através da comunicação do Espírito Santo.

Acreditamos que Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é o único Salvador, porque só Ele — o Filho — realizou o plano universal de salvação do Pai. Enquanto manifestação definitiva do mistério do amor do Pai por todos, Jesus é realmente único, e « é precisamente esta singularidade única de Cristo que Lhe confere um significado absoluto e universal, pelo qual, enquanto está na história, é o centro e o fim da mesma história ».50

Não há indivíduo, nação ou cultura que fique insensível ao apelo de Jesus, que fala verdadeiramente a partir do âmago da condição humana. « É a sua própria vida que fala, a sua humanidade, a sua fidelidade à verdade e o seu amor que a todos abraça. Fala, ainda, a sua morte na cruz, isto é, a imperscrutável profundidade do seu sofrimento e do seu abandono ».51 Contemplando Jesus na sua natureza humana, os povos da Ásia encontram as suas questões mais profundas respondidas, as suas esperanças realizadas, a sua dignidade exaltada, e o seu desespero vencido. Jesus é a Boa Nova para os homens e mulheres de todo o tempo e lugar, que andam à procura do significado da existência e da verdade da sua própria humanidade.

(46) Assembleia Especial para a Ásia do Sínodo dos Bispos, Relatio post disceptationem, 3.
(47) Cf. ibid., 3.
(48) Ibid., 3.
(49) Propositio 5.
(50) João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 6: AAS 83 (1991), 255.
(51) João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), RH 7: AAS 71 (1979), 269.


CAPÍTULO III

O ESPÍRITO SANTO: SENHOR QUE DÁ A VIDA


O Espírito de Deus na criação e na história

15 Se é verdade que o significado salvífico de Jesus só pode ser compreendido no contexto da revelação que Ele fez do plano de salvação da Trindade, conclui-se daí que o Espírito Santo é uma parte absolutamente vital do mistério de Jesus e da salvação que Ele traz. Os Padres Sinodais referiram-se frequentemente ao papel do Espírito Santo na história da salvação, fazendo notar que uma errada separação entre o Redentor e o Espírito Santo meteria em risco a verdade de Jesus como o único Salvador de todos.

Na tradição cristã, o Espírito Santo sempre esteve associado com a vida e com a doação da vida. O Símbolo niceno-constantinopolitano chama ao Espírito Santo « Senhor que dá a vida ». Por isso, não admira que muitas interpretações da narração da criação, no Génesis, tenham visto o Espírito Santo no vento impetuoso que soprava sobre as águas (cf. Gen
Gn 1,2). O Espírito Santo esteve presente desde o primeiro instante da criação, a primeira manifestação do amor de Deus Uno e Trino, e continua presente no mundo como força que lhe dá vida.52 Uma vez que a criação é o princípio da história, o Espírito constitui, em determinado sentido, um poder que actua secretamente na história, guiando-a pelos caminhos da verdade e do bem.

A revelação da pessoa do Espírito Santo, o amor recíproco entre o Pai e o Filho, é peculiar do Novo Testamento. No pensamento cristão, Ele é visto como a nascente da vida para todas as criaturas. A criação é uma livre comunicação de amor de Deus, pela qual, do nada, fez existir todas as coisas. Nada há de criado, que não seja cumulado daquele intercâmbio incessante de amor que caracteriza a vida mais íntima da Trindade, isto é, cumulado do Espírito Santo: « O Espírito do Senhor enche o universo » (Sg 1,7). A presença do Espírito na criação produz ordem, harmonia e recíproca dependência entre tudo o que existe.

Criados à imagem de Deus, os homens tornam-se morada do Espírito duma forma nova quando são elevados à dignidade da adopção divina (cf. Gal Ga 4,5). Renascidos pelo Baptismo, experimentam a presença e o poder do Espírito, não tanto como Autor da Vida, mas como Aquele que purifica e salva, produzindo frutos de « caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança » (Ga 5,22-23). Estes frutos do Espírito são sinal de que « o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido » (Rm 5,5).

Quando livremente aceite, este amor torna os homens e mulheres instrumentos visíveis da actividade incessante do Espírito invisível. É sobretudo esta nova capacidade de dar e receber amor que dá testemunho da presença e força interior do Espírito Santo. Em consequência da transformação e re-criação por Ele operada no coração das pessoas, o Espírito influencia as sociedades e culturas humanas.53 « Com efeito, Ele está na base dos ideais nobres e das iniciativas benfeitoras da humanidade peregrina: "com admirável providência, o Espírito de Deus dirige o curso dos tempos e renova a face da terra" ».54

Seguindo o exemplo do Concílio Vaticano II, os Padres Sinodais chamaram a atenção para a acção múltipla e diversificada do Espírito Santo, que continuamente espalha as sementes da verdade no meio de todos os povos, das suas religiões, culturas e filosofias.55 Isto significa que estas religiões, culturas e filosofias são capazes de ajudar as pessoas, individual e colectivamente, a lutarem contra o mal e a servirem a vida e tudo o mais que seja bom. As forças de morte isolam as pessoas, sociedades e comunidades religiosas umas das outras, gerando suspeita e rivalidade que levam ao conflito. O Espírito Santo, pelo contrário, sustenta as pessoas na sua busca de entendimento e aceitação recíproca. Por isso, o Sínodo justamente viu o Espírito de Deus como o principal agente do diálogo da Igreja com todos os povos, culturas e religiões.

(52) Cf. João Paulo II, Carta enc. Dominum et vivificantem (18 de Maio de 1986), DEV 54: AAS 78 (1986), 875.
(53) Cf. ibid., DEV 59: o. c., 885.
(54) João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 28: AAS 83 (1991), 274; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 26.
(55) Cf. propositio 11; Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 4 AGD 15; Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 17; Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 11 GS 22 GS 38; João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 28: AAS 83 (1991), 273-274.


O Espírito Santo e a encarnação do Verbo

16 Sob a guia do Espírito, a história da salvação desenrola-se no palco do mundo, e mesmo no universo, de acordo com o plano eterno do Pai. Este plano, iniciado pelo Espírito desde a origem mesma da criação, foi revelado no Antigo Testamento e levado a cumprimento pela graça de Jesus Cristo, e é continuado, na nova criação, pelo mesmo Espírito até que o Senhor volte na glória, no final dos tempos.56 A encarnação do Filho de Deus é a obra suprema do Espírito Santo: « A concepção e o nascimento de Jesus Cristo são a obra maior realizada pelo Espírito Santo na história da criação e da salvação: a graça suprema — "a graça da união" — fonte de todas as outras graças ».57 A encarnação é o acontecimento pelo qual Deus agregou a Si mesmo, em nova e definitiva união, não apenas o homem mas também toda a criação e a história inteira.58

Tendo sido concebido no seio da Virgem Maria pelo poder do Espírito Santo (cf.
Lc 1,35 Mt 1,20), Jesus de Nazaré, o Messias e o único Salvador, viveu cheio do Espírito Santo. Este desceu sobre Ele no baptismo (cf. Mc 1,10) e conduziu-O ao deserto para Se fortalecer antes do seu ministério público (cf. Mc 1,12 Lc 4,1 Mt 4,1). Na sinagoga de Nazaré, deu início ao seu ministério profético, aplicando a Si próprio a visão de Isaías onde se fala da unção do Espírito que leva a pregar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos e um ano de graça do Senhor (cf. Lc Lc 4,18-19). Pelo poder do Espírito, Jesus curou os enfermos e expulsou os demónios, como sinal de que o Reino de Deus tinha chegado (cf. Mt 12,28). Depois de ressuscitar dos mortos, Ele concedeu aos discípulos o Espírito Santo que tinha prometido enviar sobre a Igreja quando voltasse para o Pai (cf. Jn 20,22-23).

Tudo isto mostra como a missão salvífica de Jesus apresenta a marca inconfundível da presença do Espírito: vida, vida nova. Entre o envio do Filho pelo Pai e o envio do Espírito pelo Pai e o Filho, existe uma ligação íntima e vital.59 A acção do Espírito na criação e na história humana adquire cabalmente um novo significado na acção realizada na vida e missão de Jesus. As « sementes do Verbo » espalhadas pelo Espírito preparam a criação inteira, a história e o homem para a plena maturação em Cristo.60

Os Padres Sinodais manifestaram a sua preocupação pela tendência em separar a actividade do Espírito Santo da de Jesus Salvador. Como resposta a tal preocupação, apraz-me repetir aqui o que escrevi na Encíclica Redemptoris missio: O Espírito « não é de modo algum uma alternativa a Cristo, nem vem preencher uma espécie de vazio, como algumas vezes se sugere existir, entre Cristo e oLogos. Tudo quanto o Espírito opera no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas e religiões, assume um papel de preparação evangélica, e não pode deixar de referir-se a Cristo, Verbo feito carne pela acção do Espírito, "a fim de, como Homem perfeito, salvar todos os homens e recapitular em Si todas as coisas" ».61

Por conseguinte, a presença universal do Espírito Santo não pode servir como desculpa para deixar de proclamar explicitamente Jesus Cristo como Salvador, o único Salvador. Pelo contrário, a presença universal do Espírito é inseparável da salvação universal que temos em Jesus. A presença do Espírito na criação e na história aponta para Jesus Cristo, no Qual criação e história foram redimidas e plenificadas. A presença e acção do Espírito, tanto antes da encarnação como no momento culminante do Pentecostes, sempre aponta para Jesus e para a salvação que Ele trouxe. Do mesmo modo, também a presença universal do Espírito Santo nunca pode ser separada da sua actividade no âmbito do Corpo de Cristo, a Igreja.62

(56) Cf. Assembleia Especial para a Ásia do Sínodo dos Bispos, Relatio ante disceptationem, II parte: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Abril de 1998), 202.
(57) João Paulo II, Carta enc. Dominum et vivificantem (18 de Maio de 1986), DEV 50: AAS 78 (1986), 870; cf. S. Tomás de Aquino, Summa theologiae, III 2,10-12 III 6,6 III 7,13.
(58) Cf. João Paulo II, Carta enc. Dominum et vivificantem (18 de Maio de 1986), DEV 50: AAS 78 (1986), 870.
(59) Cf. ibid., DEV 24: o. c., 832.
(60) Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 28: AAS 83 (1991), 274.
(61) N. RMi 29: AAS 83 (1991), 275; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 45.
(62) Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 29: AAS 83 (1991), 275.


O Espírito Santo e o Corpo de Cristo

17 O Espírito Santo preserva infalivelmente os laços de comunhão entre Jesus e a sua Igreja. Habitando na Igreja como num templo (cf. 1Co 3,16), o Espírito, antes de mais, guia-a para a plenitude da verdade sobre Jesus. Depois, é o Espírito que dá poderes à Igreja para continuar a missão de Jesus, em primeiro lugar dando testemunho do próprio Jesus, realizando assim o que Ele tinha prometido antes da sua morte e ressurreição, isto é, que enviaria o Espírito aos seus discípulospara que pudessem dar testemunho d'Ele (cf. Jo Jn 15,26-27). Obra do Espírito na Igreja é também o atestar que os crentes são filhos adoptivos de Deus, que hão-de herdar a salvação, a desejada plenitude de comunhão com o Pai (cf. Rom Rm 8,15-17). Dotando a Igreja de diferentes carismas e dons, o Espírito fá-la crescer em comunhão como um único corpo formado por muitos membros diversos (cf. 1Co 12,4 Ep 4,11-16). O Espírito congrega na unidade toda a variedade de pessoas, com seus diferentes costumes, recursos e talentos, fazendo da Igreja um sinal da comunhão de toda a humanidade sob a chefia de Cristo.63 O Espírito forma a Igreja como uma comunidade de testemunhas, que, com o seu estímulo, dão testemunho de Jesus Salvador (cf. Act Ac 1,8). Neste sentido, o Espírito Santo é o primeiro agente da evangelização. A partir disto, os Padres Sinodais chegariam a concluir que, tal como o ministério terreno de Jesus foi realizado com a força do Espírito Santo, assim « o mesmo Espírito foi dado à Igreja pelo Pai e o Filho no Pentecostes, para levar a termo a missão de amor e serviço de Jesus na Ásia ».64

O plano do Pai para a salvação do homem não terminou com a morte e ressurreição de Jesus. Pelo dom do Espírito de Cristo, os frutos da sua missão salvadora foram oferecidos pela Igreja a todos os povos de todos os tempos, através da proclamação do Evangelho e do serviço amoroso à família humana. Como observa o Concílio Vaticano II, a Igreja « é impelida pelo Espírito Santo a cooperar para que o desígnio de Deus, que fez de Cristo o princípio de salvação para todo o mundo, se realize totalmente ».65 Fortalecida pelo Espírito para realizar a salvação de Cristo na terra, a Igreja é a semente do Reino de Deus e suspira ardentemente pela sua vinda final. A sua identidade e missão são inseparáveis do Reino de Deus, que Jesus anunciou e inaugurou com tudo o que disse e fez, sobretudo com a sua morte e ressurreição. O Espírito lembra à Igreja que não é fim em si mesma: em tudo o que ela é e faz, existe para servir Cristo e a salvação do mundo. Na actual economia da salvação, as actividades do Espírito Santo na criação, na história e na Igreja são, todas elas, parte de um desígnio eterno da Trindade sobre tudo o que existe.

(63) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 13.
(64) Propositio 12.
(65) Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 17.


O Espírito Santo e a missão da Igreja na Ásia

18 O Espírito que Se movia sobre a Ásia no tempo dos Patriarcas e dos profetas e, ainda mais vigorosamente, no tempo de Jesus Cristo e da Igreja antiga, move-Se agora entre os cristãos asiáticos, fortalecendo o testemunho da sua fé no meio dos povos, culturas e religiões do Continente. Tal como o esplêndido diálogo de amor entre Deus e o homem foi preparado pelo Espírito e realizado em terra asiática no mistério de Cristo, assim também o diálogo entre o Salvador e os povos do Continente continua hoje pelo poder do mesmo Espírito Santo, em acção na Igreja. Neste processo, Bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e leigas têm todos um papel essencial a desempenhar, recordando-se destas palavras de Jesus que são simultaneamente uma promessa e um mandato: « Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e até aos confins do mundo » (Ac 1,8).

A Igreja está convencida de que, no mais íntimo dos povos, culturas e religiões da Ásia, há sede de « água viva » (cf. Jo Jn 4,10-15), uma sede que o próprio Espírito criou e que só Jesus Salvador pode saciar plenamente. A Igreja vê o Espírito Santo continuar a preparar os povos da Ásia para o diálogo de salvação com o Salvador de todos. Guiada pelo Espírito na sua missão de serviço e de amor, a Igreja pode proporcionar um encontro entre Jesus Cristo e os povos da Ásia que suspiram pela vida em plenitude. Somente neste encontro se funda a possibilidade de ter aquela água viva que jorra para a vida eterna, nomeadamente o conhecimento do único Deus verdadeiro e de Jesus Cristo que Ele enviou (cf. Jo Jn 17,3).

A Igreja bem sabe que só pode cumprir a sua missão obedecendo às inspirações do Espírito Santo. Destinada a ser um sinal e instrumento autêntico da acção do Espírito nas complexas realidades da Ásia, ela deve discernir, nas mais diversas circunstâncias do Continente, o apelo do Espírito para testemunhar, de forma nova e efectiva, Jesus Salvador. A verdade plena de Jesus e a salvação por Ele alcançada são sempre um dom, nunca o resultado do esforço humano. « O próprio Espírito atesta em união com o nosso espírito que somos filhos de Deus; filhos e igualmente herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo » (Rm 8,16-17). Por isso, a Igreja clama sem cessar: « Vinde, Espírito Santo; enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor ». Este é o fogo que Jesus lança sobre a terra. A Igreja da Ásia compartilha o seu ardente desejo de ver este fogo ateado (cf. Lc Lc 12,49). Com tais sentimentos, os Padres Sinodais procuraram discernir as áreas principais de missão para a Igreja na Ásia ao cruzar o limiar do novo milénio.


Ecclesia in Asia PT 9