Evangelii nuntiandi PT


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA

EVANGELII NUNTIANDI

DO PAPA PAULO VI

AO EPISCOPADO, AO CLERO

AOS FIÉIS DE TODA A IGREJA

SOBRE A EVANGELIZAÇÃO

NO MUNDO CONTEMPORÂNEO






Veneráveis irmãos e diletos filhos
Saúde e bênção apostólica

INTRODUÇÃO


1 O empenho em anunciar o Evangelho aos homens do nosso tempo, animados pela esperança mas ao mesmo tempo torturados muitas vezes pelo medo e pela angústia, é sem dúvida alguma um serviço prestado à comunidade dos cristãos, bem como a toda a humanidade.á

É por isso que a tarefa de confirmar os irmãos, que nós recebemos do Senhor com o múnus de sucessor de Pedro (1) e que constitui para nós "cada dia um cuidado solícito" (2), um programa de vida e de atividade e um empenho fundamental do nosso pontificado, tal tarefa afigura-se-nos ainda mais nobre e necessária quando se trata de reconfortar os nossos irmãos na missão de evangelizadores, a fim de que, nestes tempos de incerteza e de desorientação, eles a desempenhem cada vez com mais amor, zelo e alegria.

1. Cf.
Lc 22,32.
2. 2Co 11,28.


Evocação de três acontecimentos


2 E é precisamente isso que nós intentamos fazer agora, no final deste Ano Santo, no decorrer do qual a Igreja, ao "procurar infatigavelmente anunciar o Evangelho a todos os homens" (3), outra coisa não quis senão desempenhar-se do seu ofício de mensageira da Boa Nova de Jesus Cristo, proclamada em base a dois lemas fundamentais; "Revesti-vos do homem novo", (4) e "Reconciliai-vos com Deus".(5)

Queremos fazer isso, também, neste décimo aniversário de encerramento do Concílio Vaticano II, cujos objetivos se resumem, em última análise, num só intento: tornar a Igreja do século XX mais apta ainda para anunciar o Evangelho à humanidade do mesmo século XX.

Queremos fazer isso, ainda, um ano depois da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos, dedicado, como é sabido, à evangelização; e fazemo-lo também porque isso nos foi demandado pelos próprios Padres sinodais. Efetivamente, ao concluir-se essa memorável Assembléia, eles decidiram confiar ao Pastor da Igreja universal, com grande confiança e simplicidade, o fruto de todo o seu labor, declarando que esperavam do Papa um impulso novo, capaz de suscitar, numa Igreja ainda mais arraigada na força e na potência imorredouras do Pentecostes, tempos novos de evangelização.(6)

3. Conc. Ecum. Vaticano II , Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, n.
AGD 1: AAS 58 (1966) p. 947.
4. Cf. Ep 4,24 Ep 2,15 Col 3,10 Ga 3,27 Rm 13,14 2Co 5,17.
5. 2Co 5,20.
6. Cf. Paulo PP. VI, Discurso por ocasião do encerramento da III Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos (26 de outubro de 1974); AAS 66 (1974), pp. 634-635, 637.


Tema muitas vezes realçado no decorrer do nosso pontificado


3 Quanto a este tema da evangelização, nós tivemos oportunidade, em diversas ocasiões, de realçar a sua importância, muito antes das jornadas do Sínodo. "As condições da sociedade, tivemos ocasião de dizer ao Sacro Colégio dos Cardeais, a 22 de junho de 1973, obrigam-nos a todos a rever os métodos, a procurar, por todos os meios ao alcance, e a estudar o modo de fazer chegar ao homem moderno a mensagem cristã, na qual somente ele poderá encontrar a resposta às suas interrogações e a força para a sua aplicação de solidariedade humana".(7) E acrescentávamos na mesma altura que, para dar uma resposta válida às exigências do Concílio que nos interpelam, é absolutamente indispensável colocar-nos bem diante dos olhos um patrimônio de fé que a Igreja tem o dever de preservar na sua pureza intangível, ao mesmo tempo que o dever também de o apresentar aos homens do nosso tempo, tanto quanto isso é possível, de uma maneira compreensível e persuasiva.

7. Paulo PP. VI, Discurso ao Sacro Colégio dos Cardeais (22 de junho de 1973): AAS 65 (1973), p. 383.



Na linha do Sínodo de 1974

4 Esta fidelidade a uma mensagem da qual nós somos os servidores, e às pessoas a quem nós a devemos transmitir intata e viva, constitui o eixo central da evangelização, Ela levanta três problemas candentes, que o Sínodo dos Bispos de 1974 teve constantemente diante dos olhos: O que é que é feito, em nossos dias, daquela energia escondida da Boa Nova, suscetível de impressionar profundamente a consciência dos homens? Até que ponto e como é que essa força evangélica está em condições de transformar verdadeiramente o homem deste nosso século? Quais os métodos que hão de ser seguidos para proclamar o Evangelho de modo a que a sua potência possa ser eficaz?

Tais perguntas, no fundo, exprimem o problema fundamental que a Igreja hoje põe a si mesma e que nós poderíamos equacionar assim: Após o Concílio e graças ao Concílio, que foi para ela uma hora de Deus nesta viragem da história, encontrar-se-á a Igreja mais apta para anunciar o Evangelho e para o inserir no coração dos homens, com convicção, liberdade de espírito e eficácia? Sim ou não?


Convite à reflexão

5 Todos nós vemos a urgência em dar a esta pergunta uma resposta leal, humilde, corajosa e, depois, de agir conseqüentemente.

Com o nosso "cuidado solícito de todas as Igrejas", (8) nós desejaríamos ajudar os nossos Irmãos e Filhos a responder a tais interpelações. Oxalá que as nossas palavras, que intentam ser uma reflexão sobre a evangelização, a partir das riquezas do Sínodo, possam levar à mesma reflexão todo o povo de Deus congregado na Igreja, e vir a ser um impulso novo para todos, especialmente para aqueles "que se afadigam na pregação e no ensino", (9) a fim de que cada um deles seja "um operário que distribui retamente a Palavra da verdade" (10) e realize obra de pregador do Evangelho e se desempenhe com perfeição do próprio ministério.

Pareceu-nos de capital importância uma Exortação deste gênero, porque a apresentação da mensagem evangélica não é para a Igreja uma contribuição facultativa: é um dever que lhe incumbe, por mandato do Senhor Jesus, a fim de que os homens possam acreditar e ser salvos. Sim, esta mensagem é necessária; ela é única e não poderia ser substituída. Assim, ela não admite indiferença nem sincretismo, nem acomodação, É a salvação dos homens que está em causa; é a beleza da Revelação que ela representa; depois, ela comporta uma sabedoria que não é deste mundo. Ela é capaz, por si mesma, de suscitar a fé, uma fé que se apóia na potência de Deus.(11) Enfim, ela é a Verdade. Por isso, bem merece que o apóstolo lhe consagre todo o seu tempo, todas as suas energias e lhe sacrifique, se for necessário, a sua própria vida.

8.
2Co 11,28.
9. 1Tm 5,17
10. 2Tm 2,15.
11. Cf. 1Co 2,5.


I. DE CRISTO EVANGELIZADOR A UMA IGREJA EVANGELIZADORA


Testemunho e missão de Jesus

6 O testemunho que o Senhor dá de si mesmo e que São Lucas recolheu no seu Evangelho, "Eu devo anunciar a Boa Nova do Reino de Deus",(12) tem, sem dúvida nenhuma, uma grande importância, porque define, numa frase apenas, toda a missão de Jesus: "Para isso é que fui enviado".(13) Estas palavras assumem o seu significado pleno se se confrontam com os versículos anteriores, nos quais Cristo tinha aplicado a si próprio as palavras do profeta Isaías: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres".(14)

Andar de cidade em cidade a proclamar, sobretudo aos mais pobres, e muitas vezes os mais bem dispostos para o acolher, o alegre anúncio da realização das promessas e da aliança feitas por Deus, tal é a missão para a qual Jesus declara ter sido enviado pelo Pai. E todos os aspectos do seu mistério, a começar da própria encarnação, passando pelos milagres, pela doutrina, pela convocação dos discípulos e pela escolha e envio dos doze, pela cruz, até a ressurreição e à permanência da sua presença no meio dos seus, fazem parte da sua atividade evangelizadora.

12.
Lc 4,43.
13. Ibidem. Lc 4,43
14. Lc 4,18; cf. Is 61,1.


Jesus, o primeiro evangelizador

7 No decorrer do Sínodo, muitas vezes os Bispos lembraram esta verdade: o próprio Jesus, "Evangelho de Deus",(15) foi o primeiro e o maior dos evangelizadores. Ele foi isso mesmo até o fim, até a perfeição, até o sacrifício da sua vida terrena.

Evangelizar: Qual o significado que teve para Cristo este imperativo? Não é fácil certamente exprimir, numa síntese completa, o sentido, o conteúdo e os modos da evangelização, tal como Jesus a concebia e a pôs em prática. De resto, uma tal síntese jamais será uma coisa perfeitamente acabada. Aqui, bastar-nos-á recordar alguns dos aspetos essenciais.

15. Cf.
Mc 1,1 Rm 1,1-3.


O anúncio do reino de Deus

8 Como evangelizador, Cristo anuncia em primeiro lugar um reino, o reino de Deus, de tal maneira importante que, em comparação com ele, tudo o mais passa a ser "o resto", que é "dado por acréscimo". (16) Só o reino, por conseguinte, é absoluto, e faz com que se torne relativo tudo o mais que não se identifica com ele. O Senhor comprazer-se-ia em descrever, sob muitíssimas formas diversas, a felicidade de fazer parte deste reino, felicidade paradoxal, feita de coisas que o mundo aborrece; (17) as exigências do reino e a sua carta magna; (18) os arautos do reino; (19) os seus mistérios; (20) os seus filhos; (21) e a vigilância e a fidelidade que se exigem daqueles que esperam o seu advento definitivo.(22)

16. Cf.
Mt 6,33.
17. Cf. Mt 5,3-12.
18. Cf. Mt 5-7.
19. Cf. Mt 10.
20. Cf. Mt 13.
21. Cf. Mt 18.
22. Cf. Mt 24,25.


O anúncio da salvação libertadora

9 Como núcleo e centro da sua Boa Nova, Cristo anuncia a salvação, esse grande dom de Deus que é libertação de tudo aquilo que oprime o homem, e que é libertação sobretudo do pecado e do maligno, na alegria de conhecer a Deus e de ser por ele conhecido, de o ver e de se entregar a ele. Tudo isto começa durante a vida do mesmo Cristo e é definitivamente alcançado pela sua morte e ressurreição; mas deve ser prosseguido, pacientemente, no decorrer da história, para vir a ser plenamente realizado no dia da última vinda de Cristo, que ninguém, a não ser o Pai, sabe quando se verificará. (23)

23. Cf.
Mt 24,36 Ac 1,7 1Th 5,1-2.


À custa de um esforço de conversão

10 Este reino e esta salvação, palavras-chave da evangelização de Jesus Cristo, todos os homens os podem receber como graça e misericórdia; e no entanto, cada um dos homens deve conquistá-los pela força, os violentos apoderam-se dele, diz o Senhor, (24) pelo trabalho e pelo sofrimento, por uma vida em conformidade com o Evangelho, pela renúncia e pela cruz, enfim pelo espírito das bem-aventuranças. Mas, antes de mais nada, cada um dos homens os conquistará mediante uma total transformação do seu interior que o Evangelho designa com a palavra "metanoia", uma conversão radical, uma modificação profunda dos modos de ver e do coração.(25)

24. Cf.
Mt 11,12 Lc 16,16.
25. Cf. Mt 4,17.


Pregação infatigável

11 Cristo realiza esta proclamação do reino de Deus por meio da pregação infatigável de uma palavra da qual se diria que não tem nenhuma outra igual em parte alguma: "Eis uma doutrina nova, ensinada com autoridade!"; (26) "Todos testemunhavam a seu respeito, e admiravam-se das palavras cheias de graça que saíam de sua boca" (27); "Jamais alguém falou como este homem".(28) As suas palavras desvendavam o segredo de Deus, o seu desígnio e a sua promessa, e modificavam por isso mesmo o coração dos homens e o seu destino.

26.
Mc 1,27.
27. Lc 4,22,
28. Jn 7,46.


Também com sinais

12 Mas ele realiza igualmente esta proclamação com sinais inumeráveis que provocam a estupefação das multidões e, ao mesmo tempo, as arrastam para junto dele, para o ver, para o escutar e para se deixarem transformar por ele: enfermos curados, água transformada em vinho, pão multiplicado e mortos que tornam à vida. Entre todos os demais, há um sinal a que ele reconhece uma grande importância: os pequeninos, os pobres são evangelizados, tornam-se seus discípulos, reúnem-se "em seu nome" na grande comunidade daqueles que acreditam nele. Efetivamente, aquele Jesus que declarava, "Eu devo anunciar a Boa Nova do reino de Deus" (29), é o mesmo Jesus do qual o evangelista São João dizia que ele tinha vindo e devia morrer "para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos".(30) Assim aperfeiçoou ele a sua revelação, completando-a e confirmando-a com toda a manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, com sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e com a sua ressurreição e com o envio do Espírito de verdade. (31)

29.
Lc 4,43.
30. Jn 11,52,
31. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Revelação Divina, Dei Verbum, n. DV 4: AAS 58 (1966), pp. 818-819.


Para uma comunidade evangelizada e evangelizadora

13 Aqueles que acolhem com sinceridade a Boa Nova, por virtude desse acolhimento e da fé compartilhada, reúnem-se portanto em nome de Jesus para conjuntamente buscarem o reino, para o edificar e para o viver. Eles constituem uma comunidade também ela evangelizadora. A ordem dada aos doze, "Ide, pregai a Boa Nova", continua a ser válida, se bem que de maneira diferente, também para todos os cristãos. É precisamente por isso que São Pedro chama a estes últimos "povo de sua particular propriedade a fim de que proclameis as excelências daquele que vos chamou"; (32) aquelas mesmas maravilhas que cada um pode alguma vez escutar na sua própria língua.(33) A Boa Nova do reino que vem e que já começou, de resto, é para todos os homens de todos os tempos. Aqueles que a receberam, aqueles que ela congrega na comunidade da salvação, podem e devem comunicá-la e difundi-la ulteriormente.

32.
1P 2,9.
33. Cf. Ac 2,11.


Evangelização, vocação própria da Igreja

14 A Igreja sabe-o bem, ela tem consciência viva de que a palavra do Salvador, "Eu devo anunciar a Boa Nova do reino de Deus", (34) se lhe aplica com toda a verdade. Assim, ela acrescenta de bom grado com São Paulo: "Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho".(35) Foi com alegria e reconforto que nós ouvimos, no final da grande assembléia de outubro de 1974, estas luminosas palavras: "Nós queremos confirmar, uma vez mais ainda, que a tarefa de evangelizar todos os homens constitui a missão essencial da Igreja";(36) tarefa e missão, que as amplas e profundas mudanças da sociedade atual tornam ainda mais urgentes. Evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacrifício de Cristo na santa missa, que é o memorial da sua morte e gloriosa ressurreição.

34.
Lc 4,43.
35. 1Co 9,16.
36. Cf. Declaração dos Padres Sinodais, n. 4: L'Osservatore Romano, ed. 27 de outubro de 1974, p. 6.


Laços recíprocos entre a Igreja e a evangelização

15 Quem quer que releia no Novo Testamento as origens da Igreja e queira acompanhar passo a passo a sua história e, enfim, a examine em sua vida e ação, verá que ela se acha vinculada à evangelização naquilo que ela tem de mais íntimo.

A Igreja nasce da ação evangelizadora de Jesus e dos doze. Ela é o fruto normal, querido, o mais imediato e o mais visível dessa evangelização: "Ide, pois, ensinai todas as gentes".(37) Ora "aqueles que acolheram a sua Palavra, fizeram-se batizar. E acrescentaram-se a eles, naquele dia, cerca de três mil pessoas... E o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos".(38)

Nascida da missão, pois, a Igreja é por sua vez enviada por Jesus, a Igreja fica no mundo quando o Senhor da glória volta para o Pai. Ela fica aí como um sinal, a um tempo opaco e luminoso, de uma nova presença de Jesus, sacramento da sua partida e da sua permanência, Ela prolonga-o e continua-o. Ora, é exatamente toda a sua missão e a sua condição de evangelizado, antes de mais nada, que ela é chamada a continuar.(39) A comunidade dos cristãos, realmente, nunca é algo fechado sobre si mesmo. Nela, a vida íntima, vida de oração, ouvir a Palavra e o ensino dos apóstolos, caridade fraterna vivida e fração do pão, (40) não adquire todo o seu sentido senão quando ela se torna testemunho, a provocar a admiração e a conversão e se desenvolve na pregação e no anúncio da Boa Nova. Assim, é a Igreja toda que recebe a missão de evangelizar, e a atividade de cada um é importante para o todo.

Evangelizadora como é, a Igreja começa por se evangelizar a si mesma. Comunidade de crentes, comunidade de esperança vivida e comunicada, comunidade de amor fraterno, ela tem necessidade de ouvir sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões da sua esperança e o mandamento novo do amor. Povo de Deus imerso no mundo, e não raro tentado pelos ídolos, ela precisa de ouvir, incessantemente, proclamar as grandes obras de Deus,(41) que a converteram para o Senhor; precisa sempre ser convocada e reunida de novo por ele. Numa palavra, é o mesmo que dizer que ela tem sempre necessidade de ser evangelizada, se quiser conservar frescor, alento e força para anunciar o Evangelho. O Concílio Ecumênico Vaticano II recordou e depois o Sínodo de 1974 (42) retomou com vigor este mesmo tema: a Igreja que se evangeliza por uma conversão e uma renovação constantes, a fim de evangelizar o mundo com credibilidade.

A Igreja é depositária da Boa Nova que há de ser anunciada. As promessas da nova aliança em Jesus Cristo, os ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, a Palavra da vida, as fontes da graça e da benignidade de Deus, o caminho da salvação, tudo isto lhe foi confiado. É o conteúdo do Evangelho e, por conseguinte, da evangelização, que ela guarda como um depósito vivo e precioso, não para manter escondido, mas sim para o comunicar.

Enviada e evangelizadora, a Igreja envia também ela própria evangelizadores. É ela que coloca em seus lábios a Palavra que salva, que lhes explica a mensagem de que ela mesma é depositária, que lhes confere o mandato que ela própria recebeu e que, enfim, os envia a pregar. E a pregar, não as suas próprias pessoas ou as suas idéias pessoais, (43) mas sim um Evangelho do qual nem eles nem ela são senhores e proprietários absolutos, para dele disporem a seu bel-prazer, mas de que são os ministros para o transmitir com a máxima fidelidade.

37.
Mt 28,19.
38. Ac 2,41 Ac 2,47.
39. Cf Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, n. LG 8: AAS 57 (1965), p. 11; Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, n. AGD 5: AAS 58 (1966), pp. 951-952.
40. Cf. Ac 2,42-46 Ac 4,32-35 Ac 5,12-16.
41. Cf. 1P 2,9 Ac 2,11.
42. Cf. Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, nn. AGD 5 AGD 11-12; AAS 58 (1966), pp. 951-952, 959-961.
43. Cf. 2Co 4,5; S. Agostinho, Sermo XLVI, de Pastoribus: C.C.L., XLI, 529530.


A Igreja inseparável de Cristo

16 Existe, portanto, uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e a evangelização. Durante este "tempo da Igreja" é ela que tem a tarefa de evangelizar. E essa tarefa não se realiza sem ela e, menos ainda, contra ela.

Convém recordar aqui, de passagem, momentos em que acontece nós ouvirmos, não sem mágoa, algumas pessoas, cremos bem intencionadas, mas com certeza desorientadas no seu espírito, a repetir que pretendem amar a Cristo mas sem a Igreja, ouvir a Cristo mas não à Igreja, ser de Cristo mas fora da Igreja. O absurdo de uma semelhante dicotomia aparece com nitidez nesta palavra do Evangelho: "Quem vos rejeita é a mim que rejeita".(44) E como se poderia querer amar Cristo sem amar a Igreja, uma vez que o mais belo testemunho dado de Cristo é o que São Paulo exarou nestes termos: "Ele amou a Igreja e entregou-se a si mesmo por ela"? (45)

44.
Lc 10,16; cf. S. Cipriano, De unitate Ecclesiae 14; PL 4, 527; S. Agostinho, Enarrat. 88,Sermo, 2,14: PL 37,1140; S. João Crisóstomo, Hom. de capto Eutropio, 6: PG 52, 402.
45. Ep 5,25.


II. O QUE É EVANGELIZAR?


Complexidade da ação evangelizadora

17 Na ação evangelizadora da Igreja há certamente elementos e aspectos que se devem lembrar. Alguns deles são de tal maneira importantes que se verifica a tendência para os identificar simplesmente com a evangelização. Pode-se assim definir a evangelização em termos de anúncio de Cristo àqueles que o desconhecem, de pregação, de catequese, de batismo e de outros sacramentos que hão de ser conferidos.

Nenhuma definição parcial e fragmentária, porém, chegará a dar a razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar. E impossível captá-la se não se procurar abranger com uma visão de conjunto todos os seus elementos essenciais.

Tais elementos, acentuados com insistência no decorrer do mencionado Sínodo, são ainda agora aprofundados muitas vezes, sob a influência do trabalho sinodal. E nós regozijamo-nos pelo fato de eles se situarem, no fundo, na linha daqueles que o Concílio Ecumênico Vaticano II nos proporcionou, sobretudo nas Constituições Lumen Gentium e Gaudium et Spes e no Decreto Ad Gentes.


Renovação da humanidade

18 Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo seu influxo transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade: "Eis que faço de novo todas as coisas". (46) No entanto não haverá humanidade nova, se não houver em primeiro lugar homens novos, pela novidade do batismo (47) e da vida segundo o Evangelho.(48) A finalidade da evangelização, portanto, é precisamente esta mudança interior; e se fosse necessário traduzir isso em breves termos, o mais exato seria dizer que a Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem que proclama, (49) ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto que lhes são próprios.

46.
Ap 21,5 2Co 5,17 Ga 6,15.
47. Rm 6,4.
48. Cf. Ep 4,23-24 Col 3,9-10.
49. Cf. Rm 1,16 1Co 1,18 1Co 2,4.


Estratos da humanidade

19 Estratos da humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação,


Evangelização das culturas

20 Poder-se-ia exprimir tudo isto dizendo: importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes termos têm na Constituição Gaudium et Spes, (50) a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus.

O Evangelho, e conseqüentemente a evangelização, não se identificam por certo com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas. E no entanto, o reino que o Evangelho anuncia é vivido por homens profundamente ligados a uma determinada cultura, e a edificação do reino não pode deixar de servir-se de elementos da civilização e das culturas humanas. O Evangelho e a evangelização independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas.

A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a dar-se se a Boa Nova não for proclamada.

50. Cf. n.
GS 53: AAS 58: (1966), p.1075.


Importância primordial do testemunho da vida

21 E esta Boa Nova há de ser proclamada, antes de mais, pelo testemunho. Suponhamos um cristão ou punhado de cristãos que, no seio da comunidade humana em que vivem, manifestam a sua capacidade de compreensão e de acolhimento, a sua comunhão de vida e de destino com os demais, a sua solidariedade nos esforços de todos para tudo aquilo que é nobre e bom. Assim, eles irradiam, de um modo absolutamente simples e espontâneo, a sua fé em valores que estão para além dos valores correntes, e a sua esperança em qualquer coisa que se não vê e que não se seria capaz sequer de imaginar. Por força deste testemunho sem palavras, estes cristãos fazem aflorar no coração daqueles que os vêem viver, perguntas indeclináveis: Por que é que eles são assim? Por que é que eles vivem daquela maneira? O que é, ou quem é, que os inspira? Por que é que eles estão conosco?

Pois bem: um semelhante testemunho constitui já proclamação silenciosa, mas muito valiosa e eficaz da Boa Nova. Nisso há já um gesto inicial de evangelização. Daí as perguntas que talvez sejam as primeiras que se põem muitos não-cristãos, quer se trate de pessoas às quais Cristo nunca tinha sido anunciado, ou de batizados não praticantes, ou de pessoas que vivem em cristandades mas segundo princípios que não são nada cristãos. Quer se trate, enfim, de pessoas em atitudes de procurar, não sem sofrimento, alguma coisa ou Alguém que elas adivinham, sem conseguir dar-lhe o verdadeiro nome. E outras perguntas surgirão, depois, mais profundas e mais de molde a ditar um compromisso, provocadas pelo testemunho aludido, que comporta presença, participação e solidariedade e que é um elemento essencial, geralmente o primeiro de todos, na evangelização.(51)

Todos os cristãos são chamados a dar este testemunho e podem ser, sob este aspecto, verdadeiros evangelizadores. E aqui pensamos de modo especial na responsabilidade que se origina para os migrantes nos países que os recebem.

51. Cf. Tertuliano, Apologeticum, 39: C.C.L., I, pp. 150-153; Minúcio Félix, Octavius, 9, 31: C.S.L.P., Torino 1963, pp.11-13, 47-48.



Necessidade de um anúncio explícito

22 Entretanto isto permanecerá sempre insuficiente, pois ainda o mais belo testemunho virá a demonstrar-se impotente com o andar do tempo, se ele não vier a ser esclarecido, justificado, aquilo que São Pedro chamava dar "a razão da própria esperança", (52) explicitado por um anúncio claro e inelutável do Senhor Jesus. Por conseguinte, a Boa Nova proclamada pelo testemunho da vida deverá, mais tarde ou mais cedo, ser proclamada pela palavra da vida. Não haverá nunca evangelização verdadeira se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem anunciados.

A história da Igreja, a partir da pregação de Pedro na manhã do Pentecostes amalgama-se e confunde-se com a história de tal anúncio. Em cada nova fase da história humana, a Igreja, constantemente estimulada pelo desejo de evangelizar, não tem senão uma preocupação instigadora: Quem enviar a anunciar o mistério de Jesus? Com que linguagem anunciar um tal mistério? Como fazer para que ele ressoe e chegue a todos aqueles que o hão de ouvir? Este anúncio, kerigma, pregação ou catequese, ocupa um tal lugar na evangelização que, com freqüência, se tornou sinônimo dela. No entanto, ele não é senão um aspecto da evangelização.

52.
1P 3,15.


Para uma adesão viital numa comunidade eclesial

23 O anúncio, de fato, não adquire toda a sua dimensão, senão quando ele for ouvido, acolhido, assimilado e quando ele houver feito brotar naquele que assim o tiver recebido uma adesão do coração. Sim, adesão às verdades que o Senhor, por misericórdia, revelou. Mais ainda, adesão ao programa de vida, vida doravante transformada, que ele propõe; adesão, numa palavra, ao reino, o que é o mesmo que dizer, ao "mundo novo", ao novo estado de coisas, à nova maneira de ser, de viver, de estar junto com os outros, que o Evangelho inaugura. Uma tal adesão, que não pode permanecer abstrata e desencarnada, manifesta-se concretamente por uma entrada visível numa comunidade de fiéis.

Assim, aqueles cuja vida se transformou ingressam, portanto, numa comunidade que também ela própria é sinal da transformação e sinal da novidade de vida: é a Igreja, sacramento visível da salvação.(53) Mas, a entrada na comunidade eclesial, por sua vez, há de exprimir-se através de muitos outros sinais, que prolongam e desenvolvem o sinal da Igreja. No dinamismo da evangelização, aquele que acolhe o Evangelho como Palavra que salva, (54) normalmente, o traduz depois nestas atitudes sacramentais: adesão à Igreja, aceitação dos sacramentos que manifestam e sustentam essa adesão, pela graça que eles conferem.

53. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, nn.
LG 1 LG 9 LG 48: AAS 59 (1965), pp. 5,12-14, 53-54; Const. Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo,Gaudium et Spes, nn. GS 42 GS 45: AAS 58 (1966), pp. 1060-1061,1065-1066; Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, nn, AGD 1 AGD 5: AAS 58 (1966), pp. 947, 951-952.
54. Cf. Rm 1,16 1Co 1,18.


Causa de um novo apostolado

24 Finalmente, aquele que foi evangelizado, por sua vez, evangeliza. Está nisso o teste de verdade, a pedra-de-toque da evangelização: não se pode conceber uma pessoa que tenha acolhido a Palavra e se tenha entregado ao reino sem se tornar alguém que testemunha e, por seu turno, anuncia essa Palavra.

Ao terminar estas considerações sobre o sentido da evangelização, importa formular uma última observação, que consideramos esclarecedora para as reflexões que se seguem.

A evangelização, por tudo o que dissemos é uma diligência complexa, em que há variados elementos: renovação da humanidade, testemunho, anúncio explícito, adesão do coração, entrada na comunidade, aceitação dos sinais e iniciativas de apostolado.

Estes elementos, na aparência, podem afigurar-se contrastantes. Na realidade, porém, eles são complementares e reciprocamente enriquecedores uns dos outros. É necessário encarar sempre cada um deles na sua integração com os demais. Um dos méritos do recente Sínodo foi precisamente o de nos ter repetido constantemente o convite para congraçar estes mesmos elementos, em vez de os estar a opor entre si, a fim de se ter a plena compreensão da atividade evangelizadora da Igreja.

É esta visão global que nós intentamos apresentar seguidamente, examinando o conteúdo da evangelização, os meios para evangelizar e precisando a quem se destina o anúncio evangélico e a quem é que incumbe hoje esta tarefa de evangelizar.




III. O CONTEÚDO DA EVANGELIZAÇÃO


Conteúdo essencial e elementos secundários

25 Na mensagem que a Igreja anuncia, há certamente muitos elementos secundários. A sua apresentação depende, em larga escala, das circunstâncias mutáveis. Também eles mudam. Entretanto, permanece sempre o conteúdo essencial, a substância viva, que não se poderia modificar nem deixar em silêncio sem desnaturar gravemente a própria evangelização.


Testemunho dado do amor do Pai

26 Não é supérfluo, talvez, recordar o seguinte: evangelizar é, em primeiro lugar, dar testemunho, de maneira simples e direta, de Deus revelado por Jesus Cristo, no Espírito Santo. Dar testemunho de que no seu Filho ele amou o mundo; de que no seu Verbo Encarnado ele deu o ser a todas as coisas e chamou os homens para a vida eterna. Esta atestação de Deus proporcionará, para muitos talvez, o Deus desconhecido, (55) que eles adoram sem lhe dar um nome, ou que eles procuram por força de um apelo secreto do coração quando fazem a experiência da vacuidade de todos os ídolos. Mas ela é plenamente evangelizadora, ao manifestar que para o homem, o Criador já não é uma potência anônima e longínqua: ele é Pai.

"Vede que prova de amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus. E nós o somos"; (56) e portanto, nós somos irmãos uns dos outros em Deus.

55. Cf
Ac 17,22-23.
56. 1Jn 3,1; cf. Rm 8,14-17.



Evangelii nuntiandi PT