Evangelii nuntiandi PT 27

No centro da mensagem: a salvação em Jesus Cristo

27 A evangelização há de conter também sempre, ao mesmo tempo como base, centro e ápice do seu dinamismo, uma proclamação clara que, em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado, a salvação é oferecida a todos os homens, como dom da graça e da misericórdia do mesmo Deus.(57)

E não já uma salvação imanente ao mundo, limitada às necessidades materiais ou mesmo espirituais, e que se exaurisse no âmbito da existência temporal e se identificasse, em última análise, com as aspirações, com as esperanças, com as diligências e com os combates temporais; mas sim uma salvação que ultrapassa todos estes limites, para vir a ter a sua plena realização numa comunhão com o único Absoluto, que é o de Deus: salvação transcendente e escatológica, que já tem certamente o seu começo nesta vida, mas que terá realização completa na eternidade.

57. Cf.
Ep 2,8 Rm 1,16. Cf. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração para salvaguardar de alguns erros recentes a fé nos mistérios da Encarnação e da Santíssima Trindade (de 21 de fevereiro de 1972): ASS 64 (1972), pp. 237-241.


Sob o sinal da esperança

28 Por conseguinte, a evangelização não pode deixar de comportar o anúncio profético do além, vocação profunda e deiinitiva do homem, ao mesmo tempo em continuidade e em descontinuidade com a sua situação presente, para além do tempo e da história, para além da realidade deste mundo cujo cenário passa e das coisas deste mundo, de que um dia se manifestará uma dimensão escondida; para além do próprio homem, cujo destino verdadeiro não se limita à sua aparência temporal, mas que virá também ele a ser revelado na vida futura.(58) A evangelização contém, pois, também a pregação da esperança nas promessas feitas por Deus na Nova Aliança em Jesus Cristo: a pregação do amor de Deus para conosco e do nosso amor a Deus, a pregação do amor fraterno para com todos os homens, capacidade de doação e de perdão, de renúncia e de ajuda aos irmãos, que promana do amor de Deus e que é o núcleo do Evangelho; a pregação do mistério do mal e da busca ativa do bem. Pregação, igualmente, e esta sempre urgente, da busca do próprio Deus, através da oração, principalmente de adoração e de ação graças, assim como através da comunhão com o sinal visível do encontro com Deus que é a Igreja de Jesus Cristo.

Uma tal comunhão exprime-se, por sua vez, mediante a realização dos outros sinais de Cristo vivo e a agir na Igreja, quais são os sacramentos. Viver desta maneira os sacramentos, de molde a fazer com que a celebração dos mesmos atinja uma verdadeira plenitude, não é de modo algum, como às vezes se pretende, colocar um obstáculo ou aceitar um desvio da evangelização; é antes proporcionar-lhe a sua integridade. Efetivamente, a totalidade da evangelização para além da pregação de uma mensagem, consiste em implantar a Igreja, a qual não existe sem esta respiração, que é a vida sacramental a culminar na Eucaristia. (59)

58. Cf.
1Jn 3,2 Rm 8,29 Ph 3,20-21. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, nn. LG 48-51: AAS 57 (1965), pp. 53-58.
59. Cf. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração acerca da doutrina católica sobre a Igreja para a defender de alguns erros hodiernos (de 24 de junho de 1973): AAS 65 (1973), pp. 396-408.


Mensagem que interpela a vida toda

29 Mas a evangelização não seria completa se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos homens. E por isso que a evangelização comporta uma mensagem explícita, adaptada às diversas situações e continuamente atualizada: sobre os direitos e deveres de toda a pessoa humana e sobre a vida familiar, sem a qual o desabrochamento pessoal quase não é possível,(60) sobre a vida em comum na sociedade; sobre a vida internacional, a paz, a justiça e o desenvolvimento; uma mensagem sobremaneira vigorosa nos nossos dias, ainda, sobre a libertação.

60. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo,Gaudium et Spes, nn.
GS 47-52: AAS 58 (1966), pp. 1067-1074 Paulo PP VI, Enc. Humanae Vitae: AAS 60 (1968), pp. 481-503 HV 1.


Uma mensagem de libertação

30 São conhecidos os termos em que falaram de tudo isto, no recente Sínodo, numerosos Bispos de todas as partes da terra, sobretudo os do chamado "Terceiro Mundo", com uma acentuação pastoral em que se repercutia a voz de milhões de filhos da Igreja que formam esses povos, Povos comprometidos, como bem sabemos, com toda a sua energia no esforço e na luta por superar tudo aquilo que os condena a ficarem à margem da vida: carestias, doenças crônicas e endêmicas, analfabetismo, pauperismo, injustiças nas relações internacionais e especialmente nos intercâmbios comerciais, situações de neo-colonialismo econômico e cultural, por vezes tão cruel como o velho colonialismo político. A Igreja, repetiram-no os Bispos, tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, sendo muitos destes seus filhos espirituais; o dever de ajudar uma tal libertação nos seus começos, de dar testemunho em favor dela e de envidar esforços para que ela chegue a ser total. Isso não é alheio à evangelização.


Necessária ligação com a promoção humana

31 Entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento, libertação, existem de fato laços profundos: laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem? Nós próprios tivemos o cuidado de salientar isto mesmo, ao recordar que é impossível aceitar "que a obra da evangelização possa ou deva negligenciar os problemas extremamente graves, agitados sobremaneira hoje em dia, no que se refere à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo. Se isso porventura acontecesse, seria ignorar a doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em necessidade".(61)

Pois bem: aquelas mesmas vozes que, com zelo, inteligência e coragem, ventilaram este tema candente, no decorrer do referido Sínodo, com grande alegria nossa forneceram os princípios iluminadores para bem se captar o alcance e o sentido profundo da libertação, conforme ela foi anunciada e realizada por Jesus de Nazaré e conforme a Igreja a apregoa.

61. Paulo PP VI, Discurso na abertura da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos (em 27 de setembro de 1974): AAS 66 (1374), p. 562.



Sem confusão nem ambigüidade

32 Não devemos esconder, entretanto, que numerosos cristãos, generosos e sensíveis perante os problemas dramáticos que se apresentam quanto a este ponto da libertação, ao quererem atuar o empenho da Igreja no esforço de libertação, têm freqüentemente a tentação de reduzir a sua missão às dimensões de um projeto simplesmente temporal; os seus objetivos a uma visão antropocêntrica; a salvação, de que ela é mensageira e sacramento, a um bem-estar material; a sua atividade, a iniciativas de ordem política ou social esquecendo todas as preocupações espirituais e religiosas. No entanto, se fosse assim, a Igreja perderia o seu significado próprio. A sua mensagem de libertação já não teria originalidade alguma e ficaria prestes a ser monopolizada e manipulada por sistemas ideológicos e por partidos políticos. Ela já não teria autoridade para anunciar a libertação, como sendo da parte de Deus. Foi por tudo isso que nós quisemos acentuar bem na mesma alocução, quando da abertura da terceira Assembléia Geral do Sínodo, "a necessidade de ser reafirmada claramente a finalidade especificamente religiosa da evangelização. Esta última perderia a sua razão de ser se se apartasse do eixo religioso que a rege: o reino de Deus, antes de toda e qualquer outra coisa, no seu sentido plenamente teológico".(62)

62. Paulo PP VI, Discurso na abertura da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos(em 27 de setembro de 1974): AAS 66 (1974), p, 562.



A libertação evangélica

33 Acerca da libertação que a evangelização anuncia e se esforça por atuar, é necessário dizer antes o seguinte: ela não pode ser limitada à simples e restrita dimensão econômica, política, social e cultural; mas deve ter em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o absoluto, mesmo o absoluto de Deus; ela anda portanto coligada a uma determinada concepção do homem, a uma antropologia que ela jamais pode sacrificar às exigências de uma estratégia qualquer, ou de uma "práxis" ou, ainda, de uma efiicácia a curto prazo.


Libertação baseada no reino de Deus

34 Assim, ao pregar a libertação e ao associar-se àqueles que operam e sofrem com o sentido de a favorecer, a Igreja não admite circunscrever a sua missão apenas ao campo religioso, como se se desinteressasse dos problemas temporais do homem; mas reafirmando sempre o primado da sua vocação espiritual, ela recusa-se a substituir o anúncio do reino pela proclamação das libertações puramente humanas e afirma que a sua contribuição para a libertação ficaria incompleta se ela negligenciasse anunciar a salvação em Jesus Cristo.


Libertação com uma visão evangélica do homem

35 A Igreja relaciona, mas nunca identifica a libertação humana com a salvação em Jesus Cristo, porque ela sabe por revelação, por experiência histórica e por reflexão de fé que nem todas as noções de libertação são forçosamente coerentes e compatíveis com uma visão evangélica do homem, das coisas e dos acontecimentos; e sabe que não basta instaurar a libertação, criar o bem-estar e impulsionar o desenvolvimento, para se poder dizer que o reino de Deus chegou.

Mais ainda: a Igreja tem a firme convicção de que toda a libertação temporal, toda a libertação política, mesmo que ela porventura se esforçasse por encontrar numa ou noutra página do Antigo ou do Novo Testamento a própria justificação, mesmo que ela reclamasse para os seus postulados ideológicos e para as suas normas de ação a autoridade dos dados e das conclusões teológicas e mesmo que ela pretendesse ser a teologia para os dias de hoje, encerra em si mesma o gérmen da sua própria negação e desvia-se do ideal que se propõe, por isso mesmo que as suas motivações profundas não são as da justiça na caridade, e porque o impulso que a arrasta não tem dimensão verdadeiramente espiritual e a sua última finalidade não é a salvação e a beatitude em Deus.



Libertação que comporta necessariamente uma conversão

36 A Igreja tem certamente como algo importante e urgente que se construam estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos direitos da pessoa e menos opressivas e menos escravizadoras; mas ela continua a estar consciente de que ainda as melhores estruturas, ou os sistemas melhor idealizados depressa se tornam desumanos, se as tendências inumanas do coração do homem não se acharem purificadas, se não houver uma conversão do coração e do modo de encarar as coisas naqueles que vivem em tais estruturas ou que as comandam.


Libertação que exclui a violência

37 A Igreja não pode aceitar a violência, sobretudo a força das armas, de que se perde o domínio, uma vez desencadeada, e a morte de pessoas sem discriminação, como caminho para a libertação; ela sabe, efetivamente, que a violência provoca sempre a violência e gera irresistivelmente novas formas de opressão e de escravização, não raro bem mais pesadas do que aquelas que ela pretendia eliminar. Dizíamos quando da nossa viagem à Colômbia: "Exortamo-vos a não pôr a vossa confiança na violência, nem na revolução; tal atitude é contrária ao espírito cristão e pode também retardar, em vez de favorecer, a elevação social pela qual legitimamente aspirais", (63) E ainda: "Nós devemos reafirmar que a violência não é nem cristã nem evangélica e que as mudanças bruscas ou violentas das estruturas seriam falazes e ineficazes em si mesmas e, por certo, não conformes à dignidade dos povos".(64)

63. Paulo PP. VI, Discurso aos Agricultores ("Campesinos") da Colômbia (em 23 de agosto de 1968): AAS 60 (1968), p. 623.
64. Paulo PP. VI, Discurso no "Dia do Desenvolvimento", em Bogotá (em 23 de agosto de 1968): AAS 60 (1968), p. 627; cf. S. Agostinho, Epistola 229, 2: PL 33,1020.



Contribuição específica da Igreja

38 Dito isto, nós regozijamo-nos de que a Igreja tome uma consciência cada dia mais viva do modo próprio, genuinamente evangélico, que ela tem para colaborar na libertação dos homens. E o que faz ela, então? Ela procura suscitar cada vez mais nos ânimos de numerosos cristãos a generosidade para se dedicarem à libertação dos outros. Ela dá a estes cristãos "libertadores" uma inspiração de fé e uma motivação de amor fraterno, uma doutrina social a que o verdadeiro cristão não pode deixar de estar atento, mas que deve tomar como base da própria prudência e da própria experiência, a fim de a traduzir concretamente em categorias de ação, de participação e de compromisso. Tudo isto, sem se confundir com atitudes táticas nem com o serviço de um sistema político, deve caraterizar a coragem do cristão comprometido. A Igreja esforça-se por inserir sempre a luta cristã em favor da libertação do desígnio global da salvação, que ela própria anuncia.

O que acabamos de recordar aqui emerge por mais de uma vez dos debates do Sínodo. Nós próprios, aliás, também quisemos dedicar a este mesmo tema algumas palavras de esclarecimento na alocução que dirigimos aos Padres sinodais no final da Assembléia.(65)

Todas estas considerações deveriam contribuir, ao menos é de esperar que assim suceda, para evitar a ambigüidade de que se reveste freqüentemente a palavra "libertação", nas ideologias, nos sistemas ou nos grupos políticos. A libertação que a evangelização proclama e prepara é aquela mesma que o próprio Jesus Cristo anunciou e proporcionou aos homens pelo seu sacrifício.

65. Paulo PP. VI, Discurso por ocasião do encerramento da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos (26 de outubro de 1974): AAS 66 (1974), p. 637.



A liberdade religiosa

39 Desta justa libertação, ligada à evangelização e que visa alcançar o estabelecimento de estruturas que salvaguardem as liberdades humanas, não pode ser separada a necessidade de garantir todos os direitos fundamentais do homem, entre os quais a liberdade religiosa ocupa um lugar de primária importância. Tivemos ocasião de falar, ainda há pouco, da atualidade deste problema, pondo em relevo que há "muitos cristãos, ainda hoje, que vivem sufocados por uma opressão sistemática, pelo fato de serem cristãos, pelo fato de serem católicos! O drama da fidelidade a Cristo e da liberdade de religião, se bem que dissimulado por declarações categóricas em favor dos direitos da pessoa e das relações humanas em sociedade, é um drama que continua!"(66)

66. Paulo PP VI, Discurso na Audiência geral de 15 de outubro de 1975; cf. L'Osservatore Romano de 17 de outubro de 1995, p.1,



IV. AS VIAS DE EVANGELIZAÇÃO


A busca de meios adaptados

40 A evidente importância do conteúdo da evangelização não deve esconder a importância das vias e dos meios da mesma evangelização.

Este problema do "como evangelizar" apresenta-se sempre atual, porque as maneiras de o fazer variam em conformidade com as diversas circunstâncias de tempo, de lugar e de cultura, e lançam, por isso mesmo, um desafio em certo modo à nossa capacidade de descobrir e de adaptar.

A nós especialmente, Pastores da Igreja, incumbe o cuidado de remodelar com ousadia e com prudência e numa fidelidade total ao seu conteúdo, os processos, tornando-os o mais possível adaptados e eficazes, para comunicar a mensagem evangélica aos homens do nosso tempo. Limitar-nos-emos, nesta reflexão, a recordar algumas vias que, por um motivo ou por outro, se revestem de uma importância fundamental.



O testemunho da vida

41 E antes de mais nada, sem querermos estar a repetir tudo aquilo já recordado anteriormente, é conveniente realçar isto; para a Igreja, o testemunho de uma vida autenticamente cristã, entregue nas mãos de Deus, numa comunhão que nada deverá interromper, e dedicada ao próximo com um zelo sem limites, é o primeiro meio de evangelização. "O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas".(67) São Pedro exprimia isto mesmo muito bem, quando evocava o espetáculo de uma vida pura e respeitável, "para que, se alguns não obedecem à Palavra, venham a ser conquistados sem palavras, pelo procedimento".(68) Será pois, pelo seu comportamento, pela sua vida, que a Igreja há de, antes de mais nada, evangelizar este mundo; ou seja, pelo seu testemunho vivido com fidelidade ao Senhor Jesus, testemunho de pobreza, de desapego e de liberdade frente aos poderes deste mundo; numa palavra, testemunho de santidade.

67. Paulo PP VI, Discurso aos Membros do "Consilium de Laicis" (em 2 de outubro de1974): AAS 66 (1974), p. 568.
68. Cf.
1P 3,1.


Uma pregação viva

42 Não será nunca demasiado acentuar, depois, o alcance e a necessidade da pregação. "Como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? ...Pois a fé vem da pregação, e a pregação é pela palavra de Cristo".(69) Esta lei, estabelecida outrora pelo Apóstolo Paulo, conserva ainda hoje todo o seu vigor,

Sim: a pregação, a proclamação verbal de uma mensagem, permanece sempre como algo indispensável. Nós sabemos bem que o homem moderno, saturado de discursos, se demonstra muitas vezes cansado de ouvir e, pior ainda, como que imunizado contra a palavra. Conhecemos também as opiniões de numerosos psicólogos e sociólogos, que afirmam ter o homem moderno ultrapassado já a civilização da palavra, que se tornou praticamente ineficaz e inútil, e estar a viver, hoje em dia, na civilização da imagem. Estes fatos deveriam levar-nos, como é óbvio, a pôr em prática na transmissão da mensagem evangélica os meios modernos criados por esta civilização. Já foram feitos, de resto, esforços muito válidos neste sentido. Nós não temos senão que louvar as iniciativas tomadas e encorajá-las para que se desenvolvam ainda mais. O cansaço que hoje provocam tantos discursos vazios, e a atualidade de muitas outras formas de comunicação não devem no entanto diminuir a permanente validade da palavra, nem levar a perder a confiança nela, A palavra continua a ser sempre atual, sobretudo quando ela for portadora da força divina. (70) É por este motivo que permanece também com atualidade o axioma de São Paulo: "A fé vem da pregação",(71) é a Palavra ouvida que leva a acreditar.

69.
Rm 10,14 Rm 10,17.
70. Cf. 1Co 2,1-5.
71. Rm 10,17.


Liturgia da Palavra

43 Uma tal pregação evangelizadora poderá revestir-se de numerosas formas que o zelo inspirará serem recriadas quase até ao infinito. São inumeráveis, realmente, os acontecimentos da vida e as situações humanas que proporcionam a ocasião para um anúncio, discreto mas incisivo, daquilo que o Senhor tem a dizer nessas circunstâncias. Basta ter uma verdadeira sensibilidade espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem de Deus. Depois, numa altura em que a liturgia renovada pelo último Concílio valorizou tanto a Liturgia da Palavra, seria um erro não ver na homilia um instrumento valioso e muito adaptado para a evangelização. É preciso, naturalmente, conhecer as exigências e tirar rendimento das possibilidades da homilia, a fim de ela alcançar toda a sua eficácia pastoral. E é sobretudo necessário estar-se convencido e dedicar-se à mesma homilia com amor.

Esta pregação, singularmente inserida na celebração eucarística, da qual recebe força e vigor particulares, tem certamente um papel especial na evangelização, na medida em que ela exprime a fé profunda do ministro sagrado e em que ela estiver impregnada de amor. Os fiéis congregados para formar uma Igreja pascal, a celebrar a festa do Senhor presente no meio deles, esperam muito desta pregação e dela poderão tirar fruto abundante, contanto que ela seja simples, clara, direta, adaptada, profundamente aderente ao ensinamento evangélico e fiel ao magistério da Igreja, animada por um ardor apostólico equilibrado que lhe advém do seu caráter próprio, cheia de esperança, nutriente para a fé e geradora de paz e de unidade. Muitas comunidades paroquiais ou de outro tipo vivem e consolidam-se graças à homilia de cada domingo, quando ela tem as qualidades apontadas.

Acrescentamos ainda que, graças à mesma renovação da liturgia, a celebração eucarística não é o único momento apropriado para a homilia. Esta tem o seu cabimento e não deve ser descurada na celebração de todos os sacramentos, como também no decorrer das paraliturgias, ou ainda por ocasião de certas assembléias de fiéis. Ela será sempre uma oportunidade privilegiada para comunicar a Palavra do Senhor.


A catequese

44 Uma via que não há de ser descurada na evangelização é a do ensino catequético. A inteligência nomeadamente a inteligência das crianças e a dos adolescentes, tem necessidade de aprender, mediante um sistemático ensino religioso, os dados fundamentais, o conteúdo vivo da verdade que Deus nos quis transmitir, e que a Igreja procurou exprimir de maneira cada vez mais rica, no decurso da sua história. Depois, que um semelhante ensino deva ser ministrado para educar hábitos de vida religiosa e não para permanecer apenas intelectual, ninguém o negará. E fora de dúvida que o esforço de evangelização poderá tirar um grande proveito deste meio do ensino catequético, feito na igreja, ou nas escolas onde isso é possível, e sempre nos lares cristãos; isso, porém, se os catequistas dispuserem de textos apropriados e atualizados com prudência e com competência, sob a autoridade dos Bispos. Os métodos, obviamente, hão de ser adaptados à idade, à cultura e à capacidade das pessoas, procurando sempre fazer com que elas retenham na memória, na inteligência e no coração, aquelas verdades essenciais que deverão depois impregnar toda a sua vida. Importa sobretudo preparar bons catequistas, catequistas paroquiais, mestres e pais, que se demonstrem cuidadosos em se aperfeiçoar constantemente nesta arte superior, indispensável e exigente do ensino religioso, Além disso, sem minimamente negligenciar, seja em que aspecto for, a formação religiosa das crianças, verifica-se que as condições do mundo atual tornam cada vez mais urgente o ensino catequético, sob a forma de um catecumenato, para numerosos jovens e adultos que, tocados pela graça, descobrem pouco a pouco o rosto de Cristo e experimentam a necessidade de a ele se entregar.


Utilização dos "mass media"

45 No nosso século tão marcado pelos "mass media" ou meios de comunicação social, o primeiro anúncio, a catequese ou o aprofundamento ulterior da fé, não podem deixar de se servir destes meios conforme já tivemos ocasião de acentuar.

Postos ao serviço do Evangelho, tais meios são susceptíveis de ampliar, quase até ao infinito, o campo para poder ser ouvida a Palavra de Deus e fazem com que a Boa Nova chegue a milhões de pessoas. A Igreja viria a sentir-se culpável diante do seu Senhor, se ela não lançasse mão destes meios potentes que a inteligência humana torna cada dia mais aperfeiçoados. É servindo-se deles que ela "proclama sobre os telhados",(72) a mensagem de que é depositária. Neles encontra uma versão moderna e eficaz do púlpito. Graças a eles consegue falar às multidões.

Entretanto, o uso dos meios de comunicação social para a evangelização comporta uma exigência a ser atendida: é que a mensagem evangélica, através deles, deverá chegar sim às multidões de homens, mas com a capacidade de penetrar na consciência de cada um desses homens, de se depositar nos corações de cada um deles, como se cada um fosse de fato o único, com tudo aquilo que tem de mais singular e pessoal, a atingir com tal mensagem e do qual obter para esta uma adesão, um compromisso realmente pessoal.

72. Cf
Mt 10,27 Lc 12,3.


Indispensáuel contato pessoal

46 E é por isto que, ao lado da proclamação geral para todos do Evangelho, uma outra forma da sua transmissão, de pessoa a pessoa, continua a ser válida e importante. O mesmo Senhor a pôs em prática muitas vezes, por exemplo as conversas com Nicodemos, com Zaqueu, com a Samaritana, com Simão, o fariseu, e com outros, atestam-no bem, assim como os apóstolos. E vistas bem as coisas, haveria uma outra forma melhor de transmitir o Evangelho, para além da que consiste em comunicar a outrem a sua própria experiência de fé? Importaria, pois, que a urgência de anunciar a Boa Nova às multidões de homens, nunca fizesse esquecer esta forma de anúncio, pela qual a consciência pessoal de um homem é atingida, tocada por uma palavra realmente extraordinária que ele recebe de outro. Nós não poderíamos dizer nunca e enaltecer bastante todo o bem que fazem os sacerdotes que, através do sacramento da Penitência ou através do diálogo pastoral, se demonstram dispostos a orientar as pessoas pelas sendas do Evangelho, a ajudá-las a firmarem-se nos seus esforços, a auxiliá-las a reerguer-se se porventura caíram, enfim, a assisti-las continuamente, com discernimento e com disponibilidade.


O papel dos sacramentos

47 Depois, nunca será demasiado insistir no fato de a evangelização não se esgotar com a pregação ou com o ensino de uma doutrina. A evangelização deve atingir a vida: a vida natural, a que ela confere um sentido novo, graças às perspectivas evangélicas que lhe abre; e a vida sobrenatural, que não é a negação, mas sim a purificação e a elevação da vida natural. Esta vida sobrenatural encontra a expressão viva nos sete sacramentos e na admirável irradiação de graça e de santidade de que eles são fonte.

A evangelização exprime assim toda a sua riqueza, quando ela realiza uma ligação o mais íntima possível, e melhor ainda, uma intercomunicação que nunca se interrompe, entre a Palavra e os sacramentos. Num certo sentido há um equívoco em contrapor, como já algumas vezes se fez, a evangelização à sacramentalização. É bem verdade que uma certa maneira de administrar os sacramentos, sem um apoio sólido na catequese destes mesmos sacramentos e numa catequese global, acabaria por privá-los, em grande parte, da sua eficácia. O papel da evangelização é precisamente o de educar de tal modo para a fé, que esta depois leve cada um dos cristãos a viver, e a não se limitar a receber passivamente, ou a suportar os sacramentos como eles realmente são, verdadeiros sacramentos da fé.



Religiosidade popular

48 Neste ponto, tocamos um aspeto da evangelização a que não se pode ser indiferente. Queremos referir-nos àquela realidade que com freqüência vai sendo designada nos nossos dias com os termos religiosidade popular. É um fato que, tanto nas regiões onde a Igreja se acha implantada de há séculos quanto nos lugares onde ela se encontra em vias de implantação, subsistem expressões particulares da busca de Deus e da fé. Encaradas durante muito tempo como menos puras, algumas vezes desdenhadas, essas expressões assim constituem hoje em dia, mais ou menos por toda a parte, o objeto de uma redescoberta. Os Bispos aprofundaram o seu significado, no decorrer do recente Sínodo, com um realismo e um zelo pastoral que são de assinalar.

A religiosidade popular, pode-se dizer, tem sem dúvida as suas limitações. Ela acha-se freqüentemente aberta à penetração de muitas deformações da religiáo, como sejam, por exemplo, as superstições. Depois, ela permanece com freqüência apenas a um nível de manifestações cultuais, sem expressar ou determinar uma verdadeira adesão de fé. Ela pode, ainda, levar à formação de seitas e pôr em perigo a verdadeira comunidade eclesial.

Se essa religiosidade popular, porém, for bem orientada, sobretudo mediante uma pedagogia da evangelização, ela é algo rico de valores. Assim ela traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé; ela comporta um apurado sentido dos atributos profundos de Deus: a paternidade, a providência, a presença amorosa e constante, etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que raramente se observam alhures no mesmo grau: paciência, sentido da cruz na vida cotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção, etc. Em virtude destes aspectos, nós chamamos-lhe de bom grado "piedade popular", no sentido religião do povo, em vez de religiosidade.

A caridade pastoral há de ditar, a todos aqueles que o Senhor colocou como chefes de comunidades eclesiais, as normas de procedimento em relação a esta realidade, ao mesmo tempo tão rica e tão vulnerável. Antes de mais, importa ser sensível em relação a ela, saber aperceber-se das suas dimensões interiores e dos seus inegáveis valores, estar-se disposto a ajudá-la a superar os seus perigos de desvio. Bem orientada, esta religiosidade popular, pode vir a ser cada vez mais, para as nossas massas populares, um verdadeiro encontro com Deus em Jesus Cristo.




V. OS DESTINATARIOS DA EVANGELIZAÇÃO


Destinação universal

49 As últimas palavras de Jesus no Evangelho de São Marcos conferem à evangelização, de que o Senhor incumbe os apóstolos, uma universalidade sem fronteiras: "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura".(73)

Os doze e a primeira geração dos cristãos captaram bem a lição deste texto e de outros semelhantes; e assim, fizeram deles um programa de ação. A própria perseguição, ao dispersar os apóstolos, contribuiu para a difusão da Palavra e para que se implantasse a Igreja em muitas regiões, ainda as mais longínquas. A admissão de Paulo nas fileiras dos apóstolos e o seu carisma de pregador da vinda de Jesus Cristo aos pagãos acentuou também essa mesma universalidade.

73.
Mc 16,15.


Apesar de todos os obstáculos

50 Ao longo de vinte séculos de história, as gerações cristãs tiveram de enfrentar periodicamente diversos obstáculos que se opuseram a esta missão universalista. Por um lado, a tentação da parte dos mesmos evangelizadores, para restringir, sob variados pretextos, o seu campo de atividade missionária. E por outro lado, a resistência muitas vezes humanamente invencível da parte daqueles a quem se dirige o evangelizador. E temos de verificar com mágoa que a obra evangelizadora da Igreja tem sido contrastada, se não mesmo impedida, pelos poderes públicos. Sucede, ainda nos nossos dias, que os anunciadores da Palavra de Deus são privados dos seus direitos, perseguidos, ameaçados e eliminados mesmo, só pelo fato de pregarem Jesus Cristo e o seu Evangelho. No entanto, nós temos confiança de que, apesar destas dolorosas provações, a obra desses apóstolos finalmente não virá a faltar em qualquer região do mundo.

A despeito de tais adversidades, a Igreja reanima-se constantemente com a sua inspiração mais profunda, aquela que lhe provém diretamente do Senhor: por todo o mundo! A toda a criatura! Até as extremidades da terra! Ela fez isso, ainda uma vez, no recente Sínodo, como um apelo para não se deter o anúncio evangélico, delimitando-o a um setor da humanidade, ou a uma classe de homens, ou, ainda, a um só tipo de cultura. Alguns exemplos, quanto a este ponto, poderão ser elucidativos.




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