Evangelii nuntiandi PT 51

Primeiro anúncio aos que estão longe

51 Dar a conhecer Jesus Cristo e o seu Evangelho àqueles que não os conhecem, é precisamente, a partir da manhã do Pentecostes, o programa fundamental que a Igreja assumiu como algo recebido do seu Fundador. Todo o Novo Testamento, e duma maneira especial os Atos dos Apóstolos, dão testemunho de um momento privilegiado e, de algum modo, exemplar, desse esforço missionário, que viria em seguida a assinalar toda a história da Igreja.

Esse primeiro anúncio de Jesus Cristo efetua-o a Igreja por meio de uma atividade complexa e diversificada, que algumas vezes se designa com o nome de "pré-evangelização", mas que, a bem dizer, já é evangelização, embora no seu estádio inicial e ainda incompleto. Uma gama quase infinita de meios, a começar da pregação explícita, como é óbvio, mas passando também pela arte, pelos contatos e interesse no campo científico e no campo das pesquisas filosóficas, até ao recurso legítimo aos sentimentos do coração do homem, podem ser postos em prática para se alcançar tal objetivo.



Anúncio ao mundo descristianizado

52 Se é verdade que este primeiro anúncio se destina especialmente àqueles que nunca ouviram a Boa Nova de Jesus e às crianças, é verdade também que ele se demonstra cada dia mais necessário, e isto por causa das situações de descristianização freqüentes nos nossos dias, igualmente para multidões de homens que receberam o batismo, mas vivem fora de toda a vida cristã, para as pessoas simples que, tendo embora uma certa fé, conhecem mal os fundamentos dessa mesma fé, para intelectuais que sentem a falta de um conhecimento de Jesus Cristo sob uma luz diversa da dos ensinamentos recebidos na sua infância, e para muitos outros ainda.


As religiões não cristãs

53 Um tal anúncio destina-se também a porções imensas da humanidade que praticam religiões não cristãs que a Igreja respeita e estima, porque elas são a expressão viva da alma de vastos grupos humanos. Elas comportam em si mesmas o eco de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com sinceridade e retidão de coração. Elas possuem um patrimônio impressionante de textos profundamente religiosos; ensinaram gerações de pessoas a orar; e, ainda, acham-se permeadas de inumeráveis "sementes da Palavra"(74) e podem constituir uma autêntica "preparação evangélica", (75) para usarmos a palavra feliz do Concílio Ecumênico Vaticano II, assumida, aliás, de Eusébio de Cesaréia.

Uma situação assim levanta, certamente, problemas complexos e delicados, que é conveniente estudar, à luz da tradição cristã e do magistério da Igreja, de molde a poder proporcionar aos missionários do presente e do futuro novos horizontes nos seus contatos com as religiões não cristãs. Nós queremos acentuar, sobretudo hoje, que nem o respeito e a estima para com essas religiões, nem a complexidade dos problemas levantados são para a Igreja motivo para ela calar, diante dos não-cristãos, o anúncio de Jesus Cristo. Pelo contrário, ela pensa que essas multidões têm o direito de conhecer as riquezas do mistério de Cristo,(76) nas quais nós acreditamos que toda a humanidade pode encontrar, numa plenitude inimaginável, tudo aquilo que ela procura às apalpadelas a respeito de Deus, do homem, do seu destino, da vida e da morte e da verdade. Mesmo perante as expressões religiosas naturais mais merecedoras de estima, a Igreja apóia-se sobre o fato que a religião de Jesus, que ela anuncia através da evangelização, põe o homem objetivamente em relação com o plano de Deus, com a sua presença viva e com a sua ação; ela leva-o, assim, a encontrar o mistério da paternidade divina que se debruça sobre a humanidade; por outras palavras, a nossa religião instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus, que as outras religiões não conseguem estabelecer, se bem que elas tenham, por assim dizer, os seus braços estendidos para o céu.

É por isso que a Igreja conserva bem vivo o seu espírito missionário e deseja mesmo que ele se intensifique neste momento histórico que nos foi dado viver. Ela sente-se responsável perante povos inteiros. Ela não descansa enquanto não tiver feito o seu melhor para proclamar a Boa Nova de Jesus Salvador. Ela prepara continuamente novas gerações de apóstolos. E verificamos com alegria tudo isto, numa altura em que não falta quem pense e mesmo quem diga que o ardor e o espírito apostólico se esgotaram, e que a época para enviar missionários já passou. O Sínodo, em 1974, deu uma resposta a isso, ao dizer que o anúncio missionário não se esgota e que a Igreja estará sempre aplicada em atuar esse mesmo anúncio.

74. Cf. S. Justino,1 Apologia, 46,1-4;11 Apologia, 7 (8) 1-4;13,3-4; Florilegium Patristicum11, Bonn 1911, pp. 81, 125, 129, 133; Clemente de Alexandria, Stromata I,19, 91-94; S. Ch. 30, pp.117-118;119-120; Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, n.
AGD 11: AAS 58 (1966), p. 960; cf. Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, n. LG 17: AAS 57 (1965), p. 21.
75. Eusébio de Cesaréia, Praeparatio evangelica,1,1; PG 21, 28- cf. II Conc. Ecum. do Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, n. LG 16; AAS 57 (1965), p. 20.
76. Cf. Ep 3,8.


Sustentáculo da fé dos fiéis

54 Entretanto, a Igreja não se sente dispensada de prestar uma atenção diligente, de igual modo, àqueles que receberam a fé e que, muitas vezes passadas algumas gerações, voltam a ter contato com o Evangelho. Ela procura desta maneira aprofundar, consolidar, alimentar e tornar cada dia mais amadurecida a fé daqueles que se dizem já fiéis ou crentes, afim de que o sejam cada vez mais.

Esta fé, hoje confrontada com o secularismo, ou antes, podemos mesmo dizer, com o ateísmo militante, é quase sempre uma fé exposta a provações e ameaçada, e mais ainda, uma fé assediada e combatida. Ela corre o risco de morrer de asfixia ou de inanição, se ela não for alimentada e amparada todos os dias. Evangelizar há de ser, muito freqüentemente, comunicar à fé dos fiéis, em particular, mediante uma catequese cheia de substância evangélica e servida por uma linguagem adaptada ao tempo e às pessoas, esse alimento e esse amparo de que ela precisa.

A Igreja católica mantém igualmente uma viva solicitude em relação aos cristãos que não estão em plena comunhão com ela: se bem que se ache já empenhada em preparar juntamente com eles a unidade querida por Cristo, e precisamente em vista de realizar a unidade na verdade, ela tem a consciência de que faltaria gravemente ao seu dever, se ela não desse testemunho, também junto deles, da plenitude da revelação de que ela conserva o depósito.



Não crentes

55 Significativa é também aquela preocupação, que e teve presente no Sínodo e diz respeito a duas esferas muito diferentes uma da outra e, no entanto, muito aproximadas por aquele desafio que, cada uma a seu modo lança à evangelização.

A primeira dessas esferas é aquilo que se pode chamar, o crescer da incredulidade no mundo moderno. O mesmo Sínodo aplicou-se a descrever este mundo moderno: sob tal nome genérico, quantas correntes de pensamento, quantos valores e contravalores, quantas aspirações latentes, quantos gérmens de destruição, quantas convicções antigas que desaparecem e quantas outras convicções novas que se impõem! Sob o ponto de vista espiritual, este mundo moderno parece que continua a debater-se sempre com aquilo que um autor dos nossoa dias chamava "o drama do humanismo ateu".(77)

Por um lado, é-se obrigado a verificar no âmago deste mesmo mundo contemporâneo o fenômeno que se torna quase a sua nota mais surpreendente: o secularismo. Nós não falamos da secularização, que é o esforço, em si mesmo justo e legítimo, e não absolutamente incompatível com a fé ou com a religião, para descobrir na criação, em cada coisa ou em cada acontecimento do universo, as leis que os regem com uma certa autonomia, com a convicção interior de que o Criador aí pôs tais leis. Quanto a este ponto, o recente Concílio reafirmou a autonomia legítima da cultura e particularmente das ciências.(78) Aqui, temos em vista um verdadeiro secularismo: uma concepção do mundo, segundo a qual esse mundo se explicaria por si mesmo, sem ser necessário recorrer a Deus; de tal sorte que Deus se tornou supérfluo e embaraçante. Um secularismo deste gênero, para reconhecer o poder do homem, acaba por privar-se de Deus e mesmo por renegá-lo.

Daqui parecem derivar novas formas de ateísmo: um ateísmo antropocêntrico, que já não é abstrato e metafísico, mas sim pragmático, programático e militante. Em conexão com este secularismo ateu, propõem-se-nos todos os dias, sob as formas mais diversas, uma civilização de consumo, o hedonismo erigido em valor supremo, uma ambição de poder e de predomínio, discriminações de todo o gênero, enfim, uma série de coisas que são outras tantas tendências inumanas desse "humanismo".

Por outro lado e paradoxalmente, neste mesmo mundo moderno não se pode negar a existência de verdadeiras pedras de junção cristãs, valores cristãos pelo menos sob a forma de um vazio ou de uma nostalgia. Não seria exagerar o falar-se de um potente e trágico apelo para ser evangelizado.

77. Cf. Henri de Lubac, Le drame de l'humanisme athée, Ed. Spes, Paris 1945.
78. Cf. Const. Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, n.
GS 59: AAS 58 (1966), p.1080.


Não praticantes

56 Uma segunda esfera é a dos não praticantes: hoje em dia um bom número de batizados que, em larga medida, nunca renegaram formalmente o próprio batismo mas que se acham totalmente à margem do mesmo e que o não vivem. O fenômeno dos não praticantes é muito antigo na história do cristianismo e anda ligado a uma fraqueza natural, a uma incoerência profunda que nós, por nosso mal, trazemos no fundo de nós próprios. No entanto, nos tempos atuais, ele apresenta caraterísticas novas e explica-se freqüentemente pelos desenraizamentos típicos da nossa época. Ele nasce também do fato de os cristãos hoje viverem lado a lado com os não-crentes e de receberem constantemente o contra-choque da incredulidade. Além disso, os não praticantes contemporâneos, mais do que os de outras épocas, procuram explicar e justificar a própria posição em nome de uma religião interior, da autonomia ou da autenticidade pessoal.

Ateus e incrédulos por um lado, e não praticantes pelo outro, opõem, assim, resistências à evangelização que não são para menosprezar. Os primeiros, a resistência de uma certa recusa, a incapacidade para aceitar a nova ordem das coisas, o sentido novo do mundo, da vida, da história, que não é possível se não se parte do Absoluto de Deus. Os segundos, a resistência da inércia, a atitude um tanto hostil da parte de alguns que se sentem de casa, que afirmam já saber tudo, já haver experimentado tudo e já não acreditarem em nada.

Secularismo ateu e ausência de prática religiosa encontram-se entre os adultos e entre os jovens, nas elites e nas massas, em todos os setores culturais, no seio das antigas e das jovens Igrejas. A ação evangelizadora da Igreja, que não pode ignorar estes dois mundos nem ficar parada diante deles, tem de procurar constantemente os meios e a linguagem adequados para lhes propor a revelação de Deus e a fé em Jesus Cristo.



No coração das massas

57 Como Cristo durante o tempo da sua pregação, como os doze na manhã do Pentecostes, também a Igreja vê diante dela uma imensa multidão humana que precisa do Evangelho e a ele tem direito, uma vez que Deus "quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade".(79)

Consciente do seu dever de pregar a todos a salvação e sabendo que a mensagem evangélica não é reservada a um pequeno grupo de iniciados, de privilegiados ou de eleitos, mas destinada a todos, a Igreja assume como sua própria a angústia de Cristo diante das multidões errantes e prostradas "como ovelhas sem pastor" e repete muitas vezes a sua mesma palavra: "Tenho compaixão desta multidáo".(80) Mas a Igreja, entretanto, também está consciente de que, para a eficácia da pregação evangélica no coração das massas, ela deve dirigir a sua mensagem a comunidades de fiéis cuja ação, por sua vez, pode e deve ir atingir outros.

79.
1Tm 2,4,
80. Mt 9,36 Mt 15,32.


Comunidades eclesiais de base

58 O Sínodo ocupou-se largamente destas "pequenas comunidades" ou "comunidades de base", dado que, na Igreja de hoje, elas são freqüentemente mencionadas. O que vêm a ser tais "comunidades" e por que é que elas hão de ser destinatárias especiais da evangelização e ao mesmo tempo evangelizadoras?

Florescentes mais ou menos por toda a parte na Igreja, a ater-nos ao que sobre isso se disse em vários testemunhos ouvidos durante as sessões do último Sínodo, essas comunidades diferem bastante entre si, mesmo dentro duma só região, e, mais ainda, de umas regiões para outras.

Assim, nalgumas regiões, elas brotam e desenvolvem-se, salvo algumas exceções, no interior da Igreja, e são solidárias com a vida da mesma Igreja e alimentadas pela sua doutrina e conservam-se unidas aos seus pastores. Nesses casos assim, elas nascem da necessidade de viver mais intensamente ainda a vida da Igreja; ou então do desejo e da busca de uma dimensão mais humana do que aquela que as comunidades eclesiais mais amplas dificilmente poderão revestir, sobretudo nas grandes metrópoles urbanas contemporâneas, onde é mais favorecida a vida de massa e o anonimato ao mesmo tempo. Elas poderão muito simplesmente prolongar, a seu modo, no plano espiritual e religioso o culto, o aprofundamento da fé, a caridade fraterna, a oração, comunhão com os Pastores e a pequena comunidade sociológica, a aldeia, ou outras similares. Ou então elas intentarão congregar para ouvir e meditar a Palavra, para os sacramentos e para o vínculo da ágape, alguns grupos que a idade, a cultura, o estado civil ou a situação social tornam mais ou menos homogêneos, como por exemplo casais, jovens, profissionais e outros; ou ainda, pessoas que a vida faz encontrarem-se já reunidas nas lutas pela justiça, pela ajuda aos irmãos pobres, pela promoção humana etc. Ou, finalmente, elas reúnem os cristãos naqueles lugares em que a escassez de sacerdotes não favorece a vida ordinária de uma comunidade paroquial. Tudo isto, porém, é suposto no interior de comunidades constituídas da Igreja, sobretudo das Igrejas particulares e das paróquias.

Noutras regiões, ao contrário, agrupam-se comunidades de base com um espírito de crítica acerba em relaçáo à Igreja, que elas estigmatizam muito facilmente como "institucional" e à qual elas se contrapõem como comunidades carismáticas, libertas de estruturas e inspiradas somente no Evangelho. Estas têm, portanto, como sua característica uma evidente atitude de censura e de rejeição em relação às expressões da Igreja, quais são a sua hierarquia e os seus sinais, Elas contestam radicalmente esta Igreja. Nesta linha, a sua inspiração principal bem depressa se torna ideológica e é raro que elas não sejam muito em breve a presa de uma opção política, de uma corrente e, depois, de um sistema, ou talvez mesmo de um partido, com todos os riscos que isso acarreta de se tornarem instrumentos dos mesmos.

A diferença é já notável: as comunidades que pelo seu espírito de contestação se separam da Igreja, da qual prejudicam a unidade, podem muito bem denominar-se "comunidades de base", mas em tais casos há nesta terminologia uma designação puramente sociológica. Elas não poderiam, sem se dar um abuso de linguagem, intitular-se comunidades eclesiais de base, mesmo que elas, sendo hostis à hierarquia, porventura tivessem a pretensão de perseverar na unidade da Igreja. Essa designação pertence às outras, ou seja, àquelas que se reúnem em Igreja, para se unir à Igreja e para fazer aumentar a Igreja.

Estas últimas comunidades, sim, serão um lugar de evangelização, para benefício das comunidades mais amplas, especialmente das Igrejas particulares, e serão uma esperança para a Igreja universal, como nós tivemos ocasião de dizer ao terminar o Sínodo, à medida que: que elas procurem o seu alimento na Palavra de Deus e não se deixem enredar pela polarização política ou pelas ideologias que estejam na moda, prestes para explorar o seu imenso potencial humano evitem a tentação sempre ameaçadora da contestação sistemática e do espírito hipercrítico, sob pretexto de autenticidade e de espírito de colaboração; permaneçam firmemente ligadas à Igreja local em que se inserem, e à Igreja universal, evitando assim o perigo, por demais real, de se isolarem em si mesmas, e depois de se crerem a única autêntica Igreja de Cristo e, por conseqüência, perigo de anatematizarem as outras comunidades eclesiais; mantenham uma comunhão sincera com os Pastores que o Senhor dá à sua Igreja, e também com o Magistério que o Espírito de Cristo lhes confiou; jamais se considerem como o destinatário único ou como o único agente da evangelização, ou por outra, como o único depositário do Evangelho; mas, conscientes de que a Igreja é muito mais vasta e diversificada, aceitem que esta Igreja se encarna de outras maneiras, que não só através delas; elas progridam cada dia na consciência do dever missionário e em zelo, aplicação e irradiação neste aspecto; elas se demonstrem em tudo universalistas e nunca sectárias.

Com estas condições assim, exigentes sem dúvida alguma, mas exaltantes, as comunidades eclesiais de base corresponderão à sua vocação mais fundamental; de ouvintes do Evangelho que lhes é anunciado e de destinatárias privilegiadas da evangelização, próprias se tornarão sem tardança anunciadoras do Evangelho.




VI. OS OBREIROS DA EVANGELIZAÇÃO


A Igreja toda missionária

59 Se há homens que proclamam no mundo o Evangelho da salvação, fazem-no por ordem, em nome e com a graça de Cristo Salvador. "E como podem pregar, se não forem enviados? (81) escrevia aquele que foi, sem dúvida alguma, um dos maiores evangelizadores. Ninguém, pois, pode fazer isso se não for enviado.

Mas, então quem é que tem a missão de evangelizar? O Concílio Ecumênico Vaticano II respondeu claramente a esta pergunta: "Por mandato divino, incumbe à Igreja o dever de ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a toda a criatura", (82) E noutro texto o mesmo Concílio diz ainda: "Toda a Igreja é missionária, a obra da evangelização é um dever fundamental do povo de Deus".(83)

Já recordamos esta ligação íntima entre a Igreja e a evangelização. Quando a Igreja anuncia o reino de Deus e o edifica, insere-se a si própria no âmago do mundo, como sinal e instrumento desse reino que já é e que já vem. O mesmo Concílio referiu com justeza, as palavras bem significativas de Santo Agostinho, sobre a ação missionária dos doze: "pregaram a palavra da verdade e geraram as Igrejas".(84)

81.
Rm 10,15.
82. Decl. sobre a Liberdade Religiosa, Dignitatis Humanae, n. DH 13: AAS 58 (1966), p. 939; Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, n. LG 5: AAS 5 (1965), pp, 9-8; Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, n. AGD 1: AAS 58 (1966), p. 947.
83. Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, n. AGD 35: AAS 58 (1966), p. 983.
84. S. Agostinho, Enarrat. in Ps 44, 23: C.C.L. XXXVIII, p. 510; cf. Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, n. AGD 1: AAS 58 (1966), p. 947.


Um ato eclesial

60 O fato de a Igreja ser enviada e mandada para a evangelização do mundo, é uma observação que deveria despertar em nós uma dupla convicção.

A primeira é a seguinte: evangelizar não é para quem quer que seja um ato individual e isolado, mas profundamente eclesial. Assim, quando o mais obscuro dos pregadores, dos catequistas ou dos pastores, no rincão mais remoto, prega o Evangelho, reúne a sua pequena comunidade, ou administra um sacramento, mesmo sozinho, ele perfaz um ato de Igreja e o seu gesto está certamente conexo, por relações institucionais, como também por vínculos invisíveis e por raízes recônditas da ordem da graça, à atividade evangelizadora de toda a Igreja. Isto pressupõe, porém, que ele age, não por uma missão pessoal

que se atribuísse a si próprio, ou por uma inspiração pessoal, mas em união com a missão da Igreja e em nome da mesma.

Donde, a segunda convicção: se cada um evangeliza em nome da Igreja, o que ela mesma faz em virtude de um mandato do Senhor, nenhum evangelizador é o senhor absoluto da sua ação evangelizadora, dotado de um poder discricionário para realizar segundo critérios e perspectivas individualistas tal obra, mas em comunhão com a Igreja e com os seus Pastores.

A Igreja é ela toda inteiramente evangelizadora, como frisamos acima. Ora isso quer dizer que, para com o conjunto do mundo e para com cada parcela do mundo onde ela se encontra, a Igreja se sente responsável pela missão de difundir o Evangelho.



Na perspectiva da Igreja universal

61 Chegados a este ponto da nossa reflexão, queremos deter-nos um pouco, convosco, Irmãos e Filhos, sobre uma questão particularmente importante nos nossos dias.

Nas suas celebrações litúrgicas, no seu testemunho diante dos juízes e dos carrascos e nos seus escritos apologéticos, os primeiros cristãos exprimiam de boa mente a sua fé profunda na Igreja e designavam-na como espalhada por todo o universo. E que eles tinham a consciência plena de fazer parte de uma grande comunidade que nem o espaço nem o tempo poderiam delimitar: "Desde o justo Abel até o último dos eleitos",(85) "até as extremidades da terra",(86) "até ao fim do mundo".(87)

Foi assim que o Senhor quis a sua Igreja: universal, uma grande árvore de modo que as aves do céu venham abrigar-se sob os seus ramos,(88) rede que recolhe toda a espécie de peixes (89) ou que Pedro retira cheia com cento e cinqüenta e três grandes peixes,(90) rebanho que um só pastor apascenta; (91) Igreja universal, sem limites nem fronteiras, a não ser, infelizmente, as do coração e do espírito do homem pecador.

85. S. Gregório Magno, Hom. in Evang. 19,1: PL 96,1154.
86.
Ac 1,8; cf. Didakè, 9,1: Funk, Patres Apostolici,1,22.
87. Mt 28,20.
88. Cf. Mt 13,32.
89. Cf. Mt 13,47.
90. Cf. Jn 21,11.
91. Cf. Jn 10,1-16.


Perspectiva da Igreja particular

62 Entretanto, esta Igreja universal encarna-se de fato nas Igrejas particulares; e estas são constituídas por tal ou tal porção da humanidade em concreto, que fala uma determinada linguagem e é tributária de uma certa herança cultural, de uma visão do mundo, de um passado histórico e, enfim, de um substrato humano específïco. A abertura para as riquezas da Igreja particular corresponde a uma sensibilidade especial do homem contemporâneo.

Guardemo-nos bem, no entanto, de conceber a Igreja universal como sendo o somatório, ou, se se preferir dizê-lo, a federação mais ou menos anômala de Igrejas particulares essencialmente diversas. No pensamento do Senhor é a Igreja, universal por vocação e por missão, que, ao lançar as suas raízes na variedade dos terrenos culturais, sociais e humanos, se reveste em cada parte do mundo de aspectos e de expressões exteriores diversas.

Assim, toda a Igreja particular que se separasse voluntariamente da Igreja universal perderia a sua referência ao desígnio de Deus e empobrecer-se-ia na sua dimensão eclesial. Mas, por outro lado, uma Igreja "toto urbe diffusa" (espalhada por todo o mundo) tornar-se-ia uma abstração se ela não tomasse corpo e vida precisamente através das Igrejas particulares. Só uma atenção constante aos dois polos da Igreja nos permitirá aperceber-nos da riqueza desta relação entre Igreja universal e Igrejas particulares.



Adaptação e fidelidade da linguagem

63 As Igrejas particulares profundamente amalgamadas não apenas com as pessoas, como também com as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou aquele aglomerado humano, tem o papel de assimilar o essencial da mensagem evangélica, de a transpor, sem a mínima traição à sua verdade essencial, para a linguagem que esses homens compreendam e, em seguida, de a anunciar nessa mesma linguagem.

Uma tal transposição há de ser feita com o discernimento, a seriedade, o respeito e a competência que a matéria exige, no campo das expressões litúrgicas, (92) como de igual modo no que se refere à catequese, à formulação teológica, às estruturas eclesiais secundárias e aos ministérios.

E aqui linguagem deve ser entendida menos sob o aspecto semântico ou literário do que sob aquele aspecto que se pode chamar antropológico e cultural.

O problema é sem dúvida delicado. A evangelização perderia algo da sua força e da sua eficácia se ela porventura não tomasse em consideração o povo concreto a que ela se dirige, não utilizasse a sua língua, os seus sinais e símbolos; depois, não responderia também aos problemas que esse povo apresenta, nem atingiria a sua vida real. De outro lado, a evangelização correria o risco de perder a sua alma e de se esvaecer se fosse despojada ou fosse desnaturada quanto ao seu conteúdo, sob o pretexto de a traduzir melhor; o mesmo sucederia, se ao querer adaptar uma realidade universal a um espaço localizado, se sacrificasse essa realidade ou se destruísse a unidade, sem a qual já não subsiste a universalidade. Ora, sendo assim, só uma Igreja que conserva a consciência da sua universalidade e demonstra de fato ser universal, pode ter uma mensagem capaz de ser entendida por todos, passando por cima de demarcações regionais.

Uma legítima atenção para com as Igrejas particulares não pode senão vir a enriquecer a Igreja. Tal atenção, aliás, é indispensável e urgente. Ela corresponde às aspirações mais profundas dos povos e das comunidades humanas, a descobrirem cada vez mais a sua fisionomia própria.

92. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum, Concilium, nn.
SC 37-38: AAS 56 (1964), p. 110. E cf. também os Livros Litúrgicos e os outros Documentos emanados pela Santa Sé para a atuação da reforma litúrgica desejada pelo mesmo Concílio.


Abertura para a Igreja universal

64 Esse enriquecimento, porém, exige que as Igrejas particulares mantenham a sua abertura profunda para a Igreja universal. É bem que seja realçado, de resto, que os cristãos mais simples, mais fiéis ao Evangelho e mais abertos ao verdadeiro sentido da Igreja, são aqueles que têm uma sensibilidade absolutamente espontânea em relação a esta dimensão universal; eles sentem, instintiva e vigorosamente, a necessidade dela; reconhecem-se nela com facilidade, vibram com ela e sofrem no mais íntimo do seu ser quando, em nome de teorias que eles não compreendem, se vêem constrangidos numa Igreja desprovida dessa universalidade, Igreja regionalista e sem horizontes.

Conforme a história demonstra, aliás, sempre que tal ou tal Igreja particular, algumas vezes com as melhores intenções e baseando-se em argumentos teológicos, sociológicos, políticos ou pastorais, ou mesmo no desejo de uma certa liberdade de movimentos ou de ação, se desligou da Igreja universal e do seu centro vivo e visível, essa Igreja só muito dificilmente escapou, se é que escapou, a dois perigos igualmente graves: o perigo, de um lado, do isolacionismo estiolante, e depois, em breve tempo, da desagregação, com cada uma das suas células a separar-se dela, como ela própria se separou do núcleo central; e de outro lado, o perigo de perder a sua liberdade, uma vez que, desligada do centro e das outras Igrejas que lhe comunicavam vigor e energia, ela se veio a encontrar sozinha, à mercê das mais variadas forças de escravização e de exploração.

Quanto mais uma Igreja particular estiver ligada, por vínculos sólidos de comunhão, à Igreja universal, na caridade e na lealdade, na abertura para o magistério de Pedro, na unidade da "lex orandi" (norma da oração), que é também a "lex credendi" (norma para crer), e no cuidado pela unidade com todas as demais Igrejas que compãem a universalidade, tanto mais essa Igreja estará em condições de traduzir o tesouro da fé na legítima variedade das expressões da profissão de fé, da oração e do culto, da vida e do comportamento cristão e do influxo irradiante do povo em que a mesma fé se acha inserida. E, a par disto, mais ela será verdadeiramente evangelizadora, ou seja, capaz de ir beber no patrimônio universal para fazer com que dele aproveite esse seu povo; e, depois, capaz de comungar com a Igreja universal a experiência e a vida desse mesmo povo, para benefício de todos.



Inalterável conteúdo da fé

65 Neste sentido, precisamente, houvemos por bem dizer uma palavra clara e repassada de afeto paterno, na altura do encerramento das sessões do Sínodo, insistindo sobre a função do sucessor de São Pedro como princípio visível, vivo e dinâmico da unidade entre as Igrejas e, por conseguinte, da universalidade da única Igreja. (93) Insistíamos também na mesma ocasião na grave responsabilidade que sobre nós incumbe, mas que nós compartilhamos com os nossos Irmãos no Episcopado, de manter inalterável o conteúdo da fé católica que o Senhor confiou aos Apóstolos: traduzido em todas as linguagens, este conteúdo nunca há de sofrer amputações ou ser mutilado; mas sim, revestido pelos símbolos próprios de cada povo, explicitado com as expressões teológicas que têm em conta os meios culturais, sociais e até mesmo raciais diversos, ele deve permanecer o conteúdo da fé católica tal como o magistério eclesial o recebeu e o transmite.

93. Paulo PP. VI, Discurso por ocasião do encerramento da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos (em 26 de outubro de 1974): AAS 66 (1974), p. 636.



Tarefas diversificadas

66 Toda a Igreja, portanto, é chamada para evangelizar; no seu grêmio, porém, existem diferentes tarefas evangelizadoras que hão de ser desempenhadas. Tal diversidade de serviços na unidade da mesma missão é que constitui a riqueza e a beleza da evangelização. Passamos a recordar, em breves palavras, essas tarefas.

Queremos, antes de mais nada, assinalar nas páginas do Evangelho o encarecimento com que o Senhor confia aos apóstolos a função de anunciar a Palavra. Ele próprio os escolheu, (94) formou-os durante os diversos anos de familiaridade, (95) constituiu-os (96) e deu-lhes o mandato (97) para serem testemunhas e mestres autorizados da mensagem da salvação. E os doze, por seu turno, enviaram os seus sucessores que continuam a pregar a Boa Nova, atendo-se à linha apostólica.

94. Cf.
Jn 15,16 Mc 3,13-19 Lc 6,13-16.
95. Cf. Ac 1,21-22.
96. Cf. Mc 3,14.
97. Cf. Mc 3,14-15 Lc 9,2.


O sucessor de Pedro

67 O sucessor de Pedro é assim, pela vontade de Cristo, encarregado do ministério preeminente de ensinar a verdade revelada. O Novo Testamento apresenta-nos por várias vezes Pedro "cheio do Espírito Santo" a tomar a palavra em nome de todos.(98) É precisamente por isso que São Leão Magno fala dele como sendo aquele que mereceu ter o primado do apostolado.(99) É por isso, ainda, que a voz da Igreja nos mostra o Papa "no vértice - in apice, in specula - do apostolado".(100) O Concílio Ecumênico Vaticano II houve por bem reaf'irmar isso mesmo, quando declarou que "o mandamento de Cristo de pregar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc. Mc 16,15) impende primária e imediatamente aos Bispos, com Pedro e sob Pedro".(101)

O poder pleno, supremo e universal (102) que Cristo confia ao seu Vigário para o governo pastoral da sua Igreja, acha-se especialmente, portanto, na atividade de pregar e de mandar pregar a Boa Nova da salvação, que o Papa exerce.

98. Ac 4,8; cf. Ac 2,14 Ac 3,12.
99. S. Leão Magno, Sermo 69,3; Sermo 70,1-3; Sermo 94,3; Sermo 95,2: S. Ch. 200, pp. 50-52; 58-66; 258-260; 268.
100. Cf. I Conc. Ecum. de Lião, Const. Ad apostolicae dignitatis: Conciliorum Ecumenicorum Decreta, Ed. Istituto per le Scienze Religiose, Bolonha 1973, p. 278; Conc. Ecum. de Viena, Const. Ad providam Christi, ed. cit., p. 343; V Conc. Ecum. de Latrão, Const. In apostolici culminis, ed. cit., p. 608; Const. Postquam ad universalis, ed. cit., p. 609; Const. Supernae dispositionis, ed. cit., p. 614; Const. Divina disponente clementia, ed. cit., p. 638.
101. Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, n. AGD 38: AAS 58 (1966), p. 985.
102. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, n. LG 22: AAS 57 (1965), p. 26.



Evangelii nuntiandi PT 51