Ecclesiam suam PT 18


II. A RENOVAÇÃO



19 Mais, é grande em nós o desejo de que a Igreja de Deus seja qual Jesus a quer: una, santa, toda encaminhada à perfeição a que Ele a chamou e de que a tornou capaz. Perfeita no seu conceito ideal, no desígnio de Deus, a Igreja deve-se ir aperfeiçoando sempre na expressão real, na sua existência terrestre. É este o grande problema moral que domina a sua vida, a caracteriza, a estimula, a acusa, a sustenta e a enche de gemidos e de orações, de arrependimentos e de esperanças, de esforço e de confiança, de responsabilidades e de méritos. É problema inerente às realidades teológicas de que depende a vida humana. Não podemos ajuizar sobre o homem, a sua natureza e a sua perfeição original, sobre as conseqüências ruinosas do pecado original, capacidades do homem para o bem e auxílio de que precisa para o desejar e realizar, sobre o sentido da vida presente e das suas finalidades, os valores que o homem deseja ou de que pode dispor, sobre o critério de perfeição e de santidade, e sobre os meios e modos para dar à vida o seu grau mais alto de beleza e plenitude, não podemos fazer nada disto sem nos referirmos ao ensino doutrinal de Cristo e do magistério eclesiástico dele derivado. A ambição de conhecer os caminhos do Senhor é e deve ser constante na Igreja, e a discussão que se vai mantendo, de século em século no seio da Igreja, sobre as questões, de perfeição, sendo tão fecunda e variada, bem queríamos que tornasse a despertar o interesse máximo a que tem direito. E isto no tanto para elaborar novas teorias, quanto para gerar energias novas, que levem àquela santidade que Jesus Cristo nos ensinou e nos possibilita conhecer, desejar e conseguir. Para isso nos dá o seu exemplo, a sua palavra, a sua graça, a sua escola baseada na tradição eclesiástica, fortificada pela ação comunitária, ilustrada pelas figuras singulares dos Santos.

Perfectibilidade dos cristãos


20 Este afã de aperfeiçoamento espiritual e moral é também estimulado exteriormente pelas condições em que a Igreja vai vivendo. Não pode ficar imóvel e indiferente entre as mudanças do mundo que a cerca. Este, por mil caminhos, influencia e condiciona a atitude prática da Igreja. Como todos sabem, ela não está separada do mundo, vive nele. Por isso, os membros da Igreja estão sujeitos à influência do mundo, de que respiram a cultura, aceitam as leis e absorvem os costumes. Este contacto permanente, que a Igreja tem com a sociedade temporal, impõe-lhe uma problemática contínua, hoje dificílima. Por um lado, a vida cristã, como a Igreja a defende e promove, deve com perseverança e tenacidade preservar-se de tudo quanto pode enganá-la, profaná-la e sufocá-la, procurando imunizar-se do contágio do erro e do mal; por outro, a vida cristã deve não só adaptar-se às formas do pensamento e da moral, que o ambiente terreno lhe oferece e impõe, quando elas forem compatíveis com as exigências essenciais do seu programa religioso e moral, mas deve procurar aproximá-las de si, purificá-las, nobilitá-las, vivificá-las e santificá-las: nova missão, que impõe à Igreja um exame constante de vigilância moral, reclamado hoje com particular urgência e gravidade.


21 Também para este exame, é providencial a celebração do Concílio. O caráter pastoral que ele se propôs, as finalidades práticas de "atualização" da disciplina canônica, o desejo de tornar o exercício da vida cristã o mais fácil que seja possível, sem renunciar ao caráter sobrenatural que lhe é próprio, conferem ao Concílio um mérito particular já neste momento, apesar de não possuirmos ainda a maioria das deliberações que dele esperamos. Na verdade, ele desperta, tanto nos Pastores como nos fiéis, o desejo de conservar e robustecer na vida cristã o seu caráter de autenticidade sobrenatural, e recorda a todos o dever de imprimir este caráter de maneira positiva e enérgica no proceder de cada um: leva os fracos a serem bons, os bons a serem melhores, os melhores a serem generosos e os generosos a fazerem-se santos. Abre à santidade novos caminhos, incita o amor a tornar-se fecundo, e provoca novas arrancadas de virtude e de heroísmo cristão.

Em que sentido deve-se entender a reforma


22 Naturalmente, tocará ao Concílio sugerir as reformas na legislação da Igreja. E as Comissões pós-conciliares, especialmente a instituída para a revisão do Código do Direito Canônico, desde já designada por nós, procurarão formular em termos concretos as deliberações do Sínodo Ecumênico. A vós, Veneráveis Irmãos, pertencerá indicar-nos as medidas para purificar e rejuvenescer a face da santa Igreja. Mas novamente vos manifestamos o nosso propósito de favorecer tal reforma: quantas vezes nos séculos passados este intento aparece associado à história dos Concílios! Pois seja-o uma vez mais, e desta não já para extirpar na Igreja determinadas heresias e desordens gerais que, graças a Deus, agora não existem, mas para infundir novo vigor espiritual ao Corpo Místico de Cristo, como organização visível, purificando-o dos defeitos de muitos dos seus membros e estimulando-o a novas virtudes.

Para que isto aconteça, suposto o divino auxílio, seja-nos permitido apresentar-vos aqui algumas considerações prévias que podem facilitar a obra de renovação, infundir-lhe o necessário vigor, - não é sem algum sacrifício que ela se pode obter! -, e traçar algumas linhas, que parecem facilitar a sua realização.


23 Deveremos recordar primeiramente alguns critérios que nos mostram em que sentido esta reforma se há de promover. Não pode abarcar nem o conceito essencial nem as estruturas fundamentais da Igreja católica. A palavra reforma seria mal usada se a empregássemos nesta acepção. Não podemos acusar de infidelidade esta nossa amada e santa Igreja de Deus, pertencer à qual temos como a maior das graças. Ela dá ao nosso espírito o testemunho de "que somos filhos de Deus" (Rm 8,16). Não é orgulho, não é presunção, não é obstinação nem loucura, mas certeza luminosa, convicção alegre esta nossa: a de termos sido constituídos membros vivos e genuínos do Corpo de Cristo, de sermos autênticos herdeiros do seu Evangelho e verdadeiros continuadores dos Apóstolos, de possuirmos a herança intacta e viva da tradição original apostólica, no grande patrimônio doutrinal e moral característico da Igreja católica, qual ela existe hoje. Se isto forma o nosso orgulho, ou melhor o motivo pelo qual devemos "dar sempre graças à Deus" (Ep 5,20), constitui igualmente para nós responsabilidade: diante de Deus, a quem temos de dar contas de tão grande benefício; diante da Igreja, a quem devemos infundir, juntamente com a certeza, o desejo, o propósito de conservar o tesouro, o depósito de que fala São Paulo (1Tm 6,20), diante dos Irmãos ainda de nós separados e diante do mundo inteiro para que todos venham participar conosco no dom de Deus.


24 Se, neste particular, podemos falar de reforma, não devemos tomá-la como mudança, mas sim como confirmação no esforço para mantermos na Igreja a fisionomia que lhe imprimiu Cristo, mais ainda, no esforço para a reconduzir sempre à sua forma perfeita, correspondente por um lado ao desígnio primitivo do Fundador, e por outro reconhecida como conseqüente e legítima no progresso necessário. Como da semente se origina a árvore, assim daquele desígnio vem à Igreja a sua forma legítima, histórica e concreta. Não nos iluda o critério de reduzir o edifício da Igreja, que se tornou amplo e majestoso para a glória de Deus, como templo seu magnífico, de o reduzir às suas proporçôes iniciais e mínimas, como se estas fossem as únicas verdadeiras e justas. Nem nos fascine a ambição de renovar a estrutura da Igreja por via carismática, como se fosse nova e verdadeira a expressão eclesial nascida de idéias meramente particulares, embora fervorosas e atribuídas talvez à divina inspiração. Por este caminho se introduziriam sonhos arbitrários de renovações artificiosas no plano constitutivo da Igreja. Como ela é, devemo-la servir e amar, com sentido inteligente da história e buscando humildemente a vontade de Deus, que a assiste e guia, mesmo quando permite que a fraqueza humana lhe empane algum tanto a pureza das linhas e a elegância da ação. Esta pureza e esta elegância é que nós andamos procurando e queremos promover.

Prejuízos e perigos que emanam da concepção profana da vida


25 Urge confirmarmo-nos nestas convicções, para fugir a outro perigo que o desejo de reforma poderia originar, não tanto em nós, Pastores, defendidos por um vigilante sentido de responsabilidade, quanto na opinião de muitos fiéis. Pensam estes que a renovação da Igreja deve consistir principalmente na adaptação dos seus sentimentos e costumes aos do mundo. A fascinação da vida profana é hoje violentíssima. O conformismo parece a muitos necessário e justificado. Quem não está bem firme na fé e na prática da lei eclesiástica, facilmente pensará ter chegado o momento de nos adaptarmos à concepção profana da vida, como se esta fosse a melhor, a que o cristão pode e deve tomar para si. Fenômeno de adaptação que se manifesta no campo filosófico (qual é a força da moda, até mesmo no reino do pensamento, que deveria ser autônomo e livre, apenas receptivo e dócil perante a verdade e a autoridade de mestres provados!), e que se apresenta também no campo prático, em que se torna cada dia mais incerto e difícil marcar a linha da retidão moral.


26 O naturalismo ameaça esvaziar a noção original da mensagem cristã. O relativismo, tudo justificando, e afirmando que tudo é do mesmo valor, impugna o caráter absoluto dos princípios cristãos. O hábito de excluir qualquer esforço, qualquer incômodo, da prática ordinária da vida, acusa de inutilidade enfadonha a disciplina e a ascese cristã. Às vezes, até o desejo apostólico de entrar em ambientes profanos e de conseguir boa aceitação nos espíritos modernos sobretudo juvenis, traduz-se em renúncia às formas próprias da vida cristã e mesmo àquele estilo de domínio próprio, que deve dar sentido e vigor ao desejo de aproximação e de influxo para o bem. Não é verdade, porventura, que muitas vezes o Clero novo, ou até alguns Religiosos zelantes, guiados pela boa intenção de penetrar nas massas populares e noutros meios, procuram confundir-se em vez de distinguir-se, renunciando assim com inútil mimetismo à eficácia genuína do seu apostolado? O grande princípio, enunciado por Cristo, volta a apresentar-se na sua atualidade e também na sua dificuldade: estar no mundo, mas não ser do mundo. Felizes de nós porque a altíssima e oportuníssima oração, daquele "que sempre vive para interceder por nós" (He 7,25), ainda hoje é repetida diante do Pai do céu: "Não peço que os tires do mundo, mas que os defendas do mal" (Jn 17,15).

Não imobilidade, mas "atualização"


27 O dito não significa que seja intenção nossa ver a perfeição na imobilidade dessas formas que a Igreja foi revestindo através dos séculos; ou julgar que ela consiste em tornarmo-nos refratários a qualquer aproximação nossa às formas hoje comuns e aceitáveis nos costumes e na índole do nosso tempo. A palavra, hoje famosa, do nosso venerado predecessor João XXIII de feliz memória, a palavra "atualização", sempre a teremos presente como orientação programática; confirmamo-la como critério diretivo do Concílio Ecumênico e continuaremos a recordá-la como estímulo à vitalidade sempre renascente da Igreja, à sua capacidade sempre atenta a descobrir os sinais dos tempos, e à sua agilidade sempre juvenil de sempre e em toda a parte "tudo provar e de tomar para si o que é bom" (1Th 5,21).

Obediência, energias morais, sacrifício


28 Mas, para lição proveitosa de todos nós, ouçamos uma vez mais esta advertência: a Igreja renovará a sua juventude não tanto mudando as suas leis exteriores, quanto dispondo interiormente o espírito dos seus para obedecer a Cristo, e por isso para observar aquelas leis que a Igreja, com a intenção de seguir o caminho de Cristo, estabelece. Aqui está o segredo da sua renovação, aqui a sua "metánoia", aqui o seu exercício de perfeição. As normas eclesiásticas poder-se-ão tornar mais praticáveis pela simplificação dalguns preceitos e pela maior confiança que ela mostre na liberdade do cristão de hoje, mais instruído nos seus deveres, mais adulto e mais ponderado na escolha dos meios para os cumprir. Mas não podem deixar de manter-se na sua exigência essencial. Sempre a vida cristã, como a Igreja a vai interpretando e codificando em prudentes disposições, exigirá fidelidade, esforço, mortificação e sacrifício. Será sempre o "caminho estreito", de que Nosso Senhor nos fala (cf. Mt 7,13ss). De nós, cristãos modernos, não exigirá menores energias morais, talvez até maiores do que exigiu dos cristãos de ontem: uma prontidão na obediência, hoje não menos necessária que no passado e talvez mais difícil, sem dúvida mais meritória, devendo guiar-se mais por motivos sobrenaturais do que naturais. Não é conformidade com o espírito do mundo, não é subtração à disciplina duma ascética razoável, não é indiferença perante os costumes livres do nosso tempo, não é emancipação da autoridade de prudentes e legítimos Superiores, não é apatia diante das formas contraditórias do pensamento moderno. Nada disto pode dar vigor à Igreja, dispô-la para receber o influxo dos dons do Espírito Santo, dar-lhe autenticidade no seguimento de Cristo Senhor Nosso, comunicar-lhe o ardor da caridade fraterna e a capacidade de transmitir a sua mensagem de salvação. Mas tudo lhe há de vir da correspondência à graça divina, da fidelidade ao Evangelho do Senhor, da sua coesão hierárquica e comunitária. O Cristão não é mole e cobarde, é forte e fiel.


29 Sabemos quanto se alongaria o nosso discurso, se quiséssemos traçar, mesmo só em linhas gerais, o programa moderno da vida cristã. Não o pretendemos agora. Vós, aliás, conheceis as necessidades morais do nosso tempo, e não vos cansareis de levar os féis a compreender o prestígio, pureza e austeridade da vida cristã, como não vos furtareis a denunciar, da melhor maneira possível e até publicamente, os perigos morais e os vícios de que sofre o nosso tempo. Todos nós recordamos as palavras solenes que a Sagrada Escritura nos propõe: "Conheço as tuas obras e o teu trabalho e a tua paciência, e que não podes suportar os maus" (Ap 2,2). E todos procuraremos ser Pastores vigilantes e ativos. Também a nós há de o Concílio Ecumênico dar normas novas e salutares, e todos nos devemos certamente dispor desde já para as ouvirmos e cumprirmos.

O espírito de pobreza


30 Mas não queremos renunciar a duas alusões em particular, que nos parecem referir-se a necessidades e deveres primordiais, e podem oferecer orientações gerais para a renovação eficaz da vida eclesial.

Aludimos primeiramente ao espírito de pobreza. Pensamos que ele é tantas vezes proposto no Sagrado Evangelho, e que tão intimamente se integra no plano do nosso destino para o reino de Deus, que é tão ameaçado pela apreciação dos bens hoje, predominante na mentalidade moderna, e tão necessário para nos fazer entender tantas fraquezas e ruínas do tempo passado e para nos levar igualmente a compreender qual deve ser o nosso teor de vida e qual o melhor método para anunciar às almas a religião de Cristo, e, por fim, tão difícil de praticar como é devido, que nos atrevemos a mencioná-lo explicitamente nesta nossa mensagem, não por termos o propósito de publicar especiais medidas canônicas a este respeito, mas antes para vos pedirmos, Veneráveis Irmãos, o conforto da vossa concordância, do vosso conselho e do vosso exemplo. Esperamos que vós, autorizada expresso dos melhores impulsos do Espírito de Cristo comunicados à santa Igreja, manifesteis como devem os Pastores e os fiéis adaptar hoje à pobreza a linguagem e a prática da vida. "Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus" (
Ph 2,5), recomenda-nos o Apóstolo; esperamos também que indiqueis como devemos propor à vida da Igreja os critérios diretivos que devem fundar a nossa confiança mais na ajuda de Deus e nos bens do espírito, do que nos meios temporais. Eles devem recordar-nos a nós, e ensinar ao mundo, a sua primazia sobre os bens econômicos; e também que devemos limitar e subordinar a posse e uso destes ao que for útil para o conveniente exercício da nossa missão apostólica.


31 A brevidade desta alusão ao valor e obrigação do espírito de pobreza, nota característica do Evangelho de Cristo, não nos dispensa de recordar que esse espírito não nos impede compreender e utilizar devidamente a realidade econômica, que se tornou gigantesca e fundamental no progresso da civilização moderna, especialmente em todos os seus reflexos humanos e sociais. Julgamos até que a libertação interior, produzida pelo espírito de pobreza evangélica, aumenta a nossa sensibilidade e capacidade para compreendermos os fenômenos relacionados com os fatores econômicos.

Essa libertação ensinar-nos-á a apreciar a riqueza e o progresso, que dela podem originar-se, de maneira exata, embora muitas vezes severa mas justificada; inspirar-nos-á o mais vivo e generoso interesse pela indigência e também o desejo de que os bens econômicos não sejam fonte de lutas, de egoísmos e de orgulho entre os homens, mas, pela justiça e pela eqüidade, sirvam o bem comum, sendo cada vez mais bem distribuídos. O discípulo do Evangelho é capaz de apreciar acertadamente e de cooperar com dedicação em tudo quanto se refere a estes bens econômicos, inferiores aos espirituais e eternos, mas necessários à vida presente: a ciência, a técnica e sobretudo o trabalho tornam-se para nós objeto de interesse vivíssimo; e o pão que produzem torna-se sagrado para a mesa e para o altar. Os ensinamentos sociais da Igreja não deixam dúvidas sobre este ponto; e aproveitamos com gosto esta ocasião para reafirmar a nossa adesão a essa doutrina salutar.

A hora da caridade


32 A segunda alusão, que desejamos fazer, é ao espírito de caridade. Mas este tema não o tendes vós já muito presente? Não constitui a caridade o ponto focal da economia religiosa do Antigo e do Novo Testamento? Não se dirigem à caridade os passos da experiência espiritual da Igreja? Não é a caridade a descoberta constante, mas cada vez mais luminosa e agradável, que a teologia e a piedade vão fazendo, na meditação incessante dos tesouros escriturísticos e sacramentais, de que a Igreja é herdeira, guarda, mestra e distribuidora? Com os nossos predecessores, com a coroa de Santos que o nosso tempo deu à Igreja celeste e terrestre, e com o pressentimento devoto do povo fiel, nós julgamos que é necessário dar finalmente à caridade o lugar que lhe compete: o primeiro, o mais alto na escala dos valores religiosos e morais, não só na estimativa mas também na prática da vida cristã. Isto vale tanto da caridade para com Deus, que o seu Amor derramou sobre nós, como da caridade, que, por reflexo, nós devemos efundir sobre o nosso próximo, isto é, sobre todo o gênero humano. A caridade tudo explica, tudo inspira, tudo torna possível e tudo renova. A caridade "tudo sofre, tudo acredita, tudo espera, tudo suporta" (lCor 13,7). Quem dentre nós ignora estas coisas? E se as conhecemos, não é esta a hora da caridade?

Culto a Maria


33 Este ideal de humilde e profunda plenitude cristã levanta o nosso pensamento até Maria Santíssima, aquela que perfeita e maravilhosamente o refletiu em si, o integrou na sua vida terrena, e agora, em conseqüência, goza no céu a luz plena e a bem-aventurança. Floresce hoje na Igreja, graças a Deus, o culto de Nossa Senhora; e nós nesta ocasião pensamos nele, admirando, na Virgem Santíssima, Mãe de Cristo, e por isso Mãe de Deus e Mãe nossa, o modelo da perfeição cristã, o espelho das virtudes sinceras e a maravilha mais sublime da humanidade. O culto de Maria é fonte de ensinamentos evangélicos: sendo ela a criatura mais abençoada, mais doce e mais humilde, a imaculada, a quem tocou o privilégio de oferecer ao Verbo de Deus um corpo humano na sua primitiva e inocente beleza, nós quisemos, na nossa peregrinação à Terra Santa, que Ela nos ensinasse a autenticidade cristã, e agora de novo lhe dirigimos os olhares suplicantes, como amorosa mestra de vida, no momento em que estamos tratando convosco, Venerados irmãos, da regeneração espiritual e moral da vida da Santa Igreja.


III. O DIÁLOGO



34 Há uma terceira atitude, que a Igreja Católica deve tomar neste momento da história do mundo. Referimo-nos ao estudo sobre os contactos que ela há de manter com a humanidade. Se a Igreja adquire cada vez mais clara consciência de si e procura modelar-se em conformidade com o tipo proposto por Cristo, não poderá deixar de distinguir-se profundamente do ambiente humano, em que afinal vive ou do qual se aproxima. O Evangelho põe-nos diante dos olhos esta distinção quando nos fala do "mundo", isto é, da humanidade como oposta à luz da fé e ao dom da graça; da humanidade, que se exalta num ingênuo otimismo, julgando que lhe bastam as próprias forças para se realizar com plenitude, estabilidade e proveito; ou ainda da humanidade que se deprime num pessimismo cruel, declarando fatais, incuráveis e mesmo talvez apetecíveis, como manifestações de liberdade e autenticidade - os próprios vícios, fraquezas e doenças morais. O Evangelho, que conhece, denuncia, faz suas e cura as misérias humanas com penetrante e pungente sinceridade, não cede todavia nem a ilusões sobre a bondade natural do homem, considerado auto-suficiente e com a exigência única de que o deixem expandir-se em plena liberdade, nem, por outro lado, à desesperada resignação diante duma natureza corrompida e sem cura. O Evangelho é luz, é novidade, é energia, é renascimento, é salvação. Por isso gera e carateriza uma forma de vida nova, de que o Novo Testamento nos dá lição contínua e admirável: "Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito" (Rm 12,2). Assim nos exorta São Paulo.

Esta diversidade, entre a vida cristã e a vida profana, deriva também da justificação real, efetiva, e da consciência que dela adquirimos. Somos justificados pela nossa participação ao mistério pascal, que primeiramente nos é dada no santo batismo, como dizíamos acima, o qual é e deve considerar-se verdadeira regeneração. Também no-lo recorda So Paulo: "...todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados. Portanto pelo batismo nós fomos sepultados com Ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova" (Rm 6,3-4).

Viver no mundo, mas não ser do mundo


35 Muito útil será que também o cristão de hoje tenha sempre presente esta sua forma de vida, original e admirável, que o manterá no gozo da sua dignidade e o imunizará do contágio da miséria humana ou da sedução do brilho humano que o rodeiam.

Eis como São Paulo educava os fiéis da primeira geração: "Não formeis parelha incoerente com os incrédulos. Que afinidade pode haver entre a justiça e a impiedade? Que comunhão pode haver entre a luz e as trevas? ...Que relação entre o fiel e o incrédulo? (
2Co 6,14-15). A pedagogia cristã deverá recordar sempre ao discípulo dos nossos tempos, esta sua condição privilegiada e o conseqüente dever de estar no mundo sem ser do mundo, segundo a oração de Jesus pelos seus discípulos, acima recordada: "Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo como Eu não sou do mundo" (Jn 17,15-16). É voto que a Igreja faz seu.


36 Mas distinção não é separação. Nem é indiferença, temor ou desprezo. Quando a Igreja afirma a sua distinção da humanidade, não se opõe, aproxima-se dela. Como o médico, ao ver as ameaças da epidemia, procura preservar-se da infecção a si e aos outros, sem deixar de atender aos já contagiados, assim a Igreja não considera privilégio exclusivo a misericórdia, que lhe concede a bondade divina, não faz da própria felicidade razão para desinteressar-se de quem a não conseguiu ainda; bem ao contrário, esse mesmo tesouro de salvação, que possui, é para ela fonte de interesse e de amor por todos os que lhe esto perto. O mesmo faz com todos que pode abranger num esforço comunicativo universal.

Missão a cumprir, mensagem para propagar


37 Se a Igreja, como dizíamos, tem consciência do que o Senhor quer que ela seja, surge nela uma plenitude única e a necessidade de efusão, adverte claramente uma missão que a transcende e um anúncio que deve espalhar. É o dever da evangelização, é o mandato missionário, é o dever de apostolado. Não lhe basta uma atitude de conservantismo. É certo que o tesouro de verdade e de graça, que nos veio em herança da tradição cristã, o devemos guardar e o devemos até defender. "Guarda o depósito", manda São Paulo (1Tm 6,20). Mas nem a guarda nem a defesa são os únicos deveres da Igreja quanto aos dons que possui. Dever seu, inerente ao patrimônio recebido de Cristo, é também a difuso, a oferta, o anúncio: "Ide, pois, ensinar todos os povos" (Mt 28,19). Foi a última ordem de Cristo aos seus Apóstolos. Estes, já com o simples nome de Apóstolos, definem a própria missão indeclinável. A este interior impulso da caridade, que tende a fazer-se dom exterior, daremos o nome, hoje comum, de diálogo.

O diálogo


38 A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio.

Este aspecto capital da vida hodierna da Igreja será objeto de estudo especial e amplo do Concílio Ecumênico, como todos sabem. Nós não queremos entrar no exame concreto dos temas que esse estudo apresenta, para deixarmos aos Padres conciliares a missão de os tratar com toda a liberdade. Queremos só convidar-vos, Veneráveis Irmãos, a antepor a esse estudo algumas considerações, para ficarmos a conhecer mais claramente os motivos que levam a Igreja ao diálogo, os métodos mais aconselháveis e os objetivos em vista. Queremos dispor os ânimos, não tratar as matérias.


39 Nem podemos desinteressar-nos deste assunto, convencidos como estamos que o diálogo deve caracterizar o nosso cargo apostólico. Somos herdeiros do estilo e da diretriz pastoral, que nos foram legados pelos nossos predecessores do último século a partir do grande e sábio Leão XIII. Este Papa, quase personificando a figura evangélica do escriba prudente, que, "...como pai de família, tira do seu tesouro coisas antigas e coisas novas" (Mt 13,52), exerceu com autoridade o magistério católico, tomando por objeto das suas lições substanciosas os problemas do nosso tempo, considerados à luz da palavra de Cristo. E o mesmo fizeram os que lhe sucederam, como sabeis. Não é magnífico e opulento o patrimônio doutrinal que nos deixaram os nossos imediatos predecessores, especialmente os Papas Pio XI e Pio XII? É doutrina elaborada com o intento amoroso e clarividente de unir o pensamento divino ao pensamento humano, este considerado não em abstrato mas na linguagem concreta do homem moderno. Ora essa tentativa apostólica que é senão diálogo? E João XXIII nosso imediato predecessor de venerada memória, não deu ao seu ensinamento uma direção ainda mais acentuada no mesmo sentido? Pretendeu aproximá-lo quanto possível da experiência e capacidade de compreensão do mundo contemporâneo. E ao próprio Concílio não se quis dar, e com razão, orientação pastoral, toda destinada a inserir a mensagem cristã no círculo do pensamento, palavra, cultura, dos hábitos e tendências da humanidade, como ela vive hoje e se agita sobre a face da terra? Antes de convertermos o mundo, e precisamente para o convertermos, é necessário que nos acerquemos e lhe falemos.


40 No que diz respeito à nossa humilde pessoa, ainda que não desejamos falar dela nem atrair as atenções, não podemos, nesta nossa espontânea apresentação ao colégio episcopal e ao povo cristão, passar em silêncio o nosso propósito de perseverar, quanto as nossas débeis forças no-lo permitirem e, sobretudo, quanto no-lo tornar possível a divina graça, de perseverar na mesma linha, no mesmo esforço de nos aproximarmos do mundo, em que a divina Providência nos destinou a viver. Dele nos aproximaremos com toda a reverência, cuidado e amor, para o compreendermos, para lhe oferecermos os dons de verdade e de graça de que Jesus Cristo nos constituiu depositário. Comunicar-lhe-emos a nossa missão maravilhosa de redenção e de esperança. Profundamente gravadas no nosso espírito estão as palavras de Cristo que desejamos fazer nossas com humildade e perseverança: "Pois Deus no enviou o seu Filho ao mundo, para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele" (Jn 3,17).

A religião: diálogo entre Deus e o homem


41 Eis, Veneráveis Irmãos, a origem transcendente do diálogo. Está no plano de Deus. A religião é, de sua natureza, enlace entre Deus e o homem, e a oração exprime em diálogo este enlace. A revelação, quer dizer a relação sobrenatural que Deus tomou a iniciativa de renovar com a humanidade, podemo-la imaginar como diálogo, em que o Verbo de Deus se exprime a si mesmo na Encarnação e depois no Evangelho. Esse colóquio paternal e santo, interrompido entre Deus e o homem pelo pecado original, é maravilhosamente reatado no decurso dos tempos. A história da salvação narra este diálogo longo e variado, a partir de Deus e a travar conversação com o homem, variada e admirável. É nesta conversação de Cristo entre os homens (cf. Br Ba 3,38) que Deus dá a entender alguma coisa mais de si, o mistério da sua vida, admiravelmente una na essência e trina nas pessoas, e diz, em resumo, como quer ser conhecido: Ele é Amor, e como quer ser honrado e servido por nós: amor é o mandamento supremo que nos impõe. O diálogo torna-se pleno e confiado; é convite para a criança, o místico se exaure plenamente nele.

Características do diálogo da salvação


42 É preciso que tenhamos sempre presente esta inefável e realíssima relação de diálogo, que Deus Pai nos propõe e estabelece conosco por meio de Cristo no Espírito Santo, para entendermos a relação que nós, isto é a Igreja, devemos procurar restabelecer e promover com a humanidade.

O diálogo da salvação foi aberto espontaneamente por iniciativa divina: "Ele [Deus] foi o primeiro a amarnos" ( 1Jo
1Jn 4,10). A nós tocará outra iniciativa, a de prolongarmos até aos homens esse diálogo, sem esperar que nos chamem.

O diálogo da salvação partiu da caridade, da bondade divina: "Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho Unigênito" (Jn 3,16). Nada, senão o amor fervoroso e desinteressado, deve despertar o nosso.

O diálogo da salvação não se proporcionou aos méritos dos interlocutores convidados, nem aos resultados que iria conseguir ou que teriam faltado: "Os sãos não precisam de médico" (Lc 5,31). Também o nosso diálogo deve ser sem limites nem cálculos.


43 O diálogo da salvação não obrigou fisicamente ninguém a responder: foi pedido insistente de amor que, se constituiu responsabilidade tremenda naqueles a quem foi dirigido (cf. Mt Mt 11,21), contudo deixou-os livres para corresponder ou fechar os ouvidos, adaptou até o número e a força probante dos sinais (cf. Mt 12,38ss), às exigências e disposições espirituais dos homens (cf. Mt 13,13ss), facilitou assim aos ouvintes o consentimento livre à revelação divina, sem perda do mérito por este assentimento. Assim também a nossa missão, ainda que seja anúncio de verdade indiscutível e de salvação necessária, não se apresentará armada de coação externa, mas oferecerá o seu dom salvífico só pelas vias legítimas da educação humana, da persuasão interior e do trato ordinário, respeitando sempre a liberdade pessoal e civil.


44 O diálogo da salvação ficou ao alcance de todos; foi destinado a todos sem qualquer discriminação (cf. Cl CL 3,11). Também o nosso deve ser, em princípio, universal, isto é, católico, e capaz de entabular-se seja com quem for, a não ser que o homem o recuse em toda a linha ou finja recebê-lo sem sinceridade.

O diálogo da salvação conheceu ordinariamente graus, progressos sucessivos, humildes princípios antes do resultado pleno (cf. Mt Mt 13,31). Também o nosso atenderá às lentidões da maturação psicológica e histórica, e esperará a hora da eficácia que lhe vem de Deus. Mas, nem por isso, o nosso diálogo deixará para amanhã o que pode conseguir hoje; deve ter a preocupação da hora oportuna e o sentido do valor do tempo (cf. Ef Ep 4,16). Deve recomeçar cada dia; e recomeçar do nosso lado, não do outro a que se dirige.


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