Ecclesiam suam PT 45

Mensagem cristã no viver humano


45 É claro que as relações entre a Igreja e o mundo podem assumir muitos e diversos aspectos. Teoricamente, seria possível à Igreja propor-se a redução ao mínimo de tais relações, procurando isolar-se do contacto com a sociedade profana; como poderia também propor-se assinalar os males que nela venha a encontrar, anatematizando-os e pregando cruzadas contra eles. E poderia, ao contrário, aproximar-se da sociedade profana até conseguir influxo preponderante ou domínio teocrático. Outras atitudes se podem imaginar ainda. Parece-nos, porém, que a relação da Igreja com o mundo, sem excluir outras formas legítimas, se representa melhor pelo diálogo, embora não necessariamente com palavras que tenham para os dois interlocutores o mesmo sentido. É necessário atender ao que é diverso nas mentalidades e nas circunstâncias de fato: um é o diálogo com a criança, outro com o adulto; um com o crente e outro com o incrédulo. Conceber essa relação como diálogo é o que nos sugerem o hábito agora muito espalhado de assim representar as relações entre o sacro e o profano; o dinamismo transformador da sociedade moderna; o pluralismo das suas manifestações; e também a maturidade do homem, tanto religioso como não religioso, habilitado pela educação profana a pensar, falar e manter com dignidade o diálogo.


46 Esta forma de relação indica, por parte de quem a inicia, um propósito de urbanidade, de estima, de simpatia e de bondade; exclui a condenação apriorística, a polêmica ofensiva e habitual, o prurido de falar por falar. Se é certo que não visa a obter sem demoras a converso do interlocutor, porque lhe respeita a dignidade e liberdade, sempre visa ao bem dele e procura dispo-lo à comunhão mais plena de sentimentos e convicções.

O diálogo supõe em nós, que pretendemos iniciá-lo e continuá-lo com todos os que nos circundam, um estado de alma característico: o de quem experimenta a responsabilidade do mandato apostólico, vê que já não pode separar a própria salvação do trabalho pela salvação alheia, de quem se esforça por introduzir continuamente, no viver humano, a mensagem de que é depositário.

Clareza, mansidão, confiança, prudência


47 O colóquio é, portanto, modo de exercer a missão apostólica, arte de comunicação espiritual. Os seus caracteres são os seguintes: l) Primeiro que tudo, a clareza. O diálogo supõe e exige compreensibilidade, é transfusão do pensamento, é estímulo do exercício das faculdades superiores do homem. Bastaria este seu título para o classificar entre os mais altos fenômenos da atividade e da cultura humana; e basta, esta sua exigência inicial, para levar o nosso zelo apostólico a rever todas as formas da nossa linguagem: para examinar se ela é compreensível, popular e digna. 2) Outro caráter é a mansidão, aprendida na escola de Cristo, como Ele nos recomendou: "aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (Mt 11,29). O diálogo não é orgulhoso, não é pungente, não é ofensivo. A autoridade vem-lhe da verdade que expõe, da caridade que difunde, do exemplo que propõe; não é comando, não é imposiço. O diálogo é pacífico, evita os modos violentos, é paciente e é generoso. 3) Outra característica é a confiança, tanto na eficácia da palavra-convite, como na receptividade do interlocutor. Produz confidências e amizade, enlaça os espíritos numa adesão mútua ao Bem, que exclui qualquer interesse egoísta. 4) E o último caráter é a prudência pedagógica, que atende muito às condições psicológicas e morais de quem ouve (cf: Mt 7,6): se criança, se inculto, indisposto, desconfiado e mesmo hostil. Essa prudência leva a tomarmos o pulso à sensibilidade alheia e a modificarmos as nossas pessoas e modos, para não sermos desagradáveis nem incompreensíveis.

No diálogo, assim entabulado, realiza-se a união da verdade e da caridade, da inteligência e do amor.

Dialética de autêntica sabedoria


48 Descobre-se no diálogo como são diversas as vias que levam à luz da fé, mas como apesar disso é possível fazê-las convergir para o mesmo fim. Ainda que sejam divergentes, podem tornar-se complementares, levando o nosso raciocínio para fora das sendas comuns e obrigando-o a aprofundar as investigações e a renovar os modos de expressão. A dialética deste exercício de pensamento e de paciência far-nos-á descobrir elementos de verdade mesmo nas opiniões alheias, obrigar-nos-á a exprimir com grande lealdade a nossa doutrina, e tornar-nos-á merecedores, já só pelo que nos custou expô-la às objeções e à assimilação lenta de quem nos ouve. Tornar-nos-á sábios, far-nos-á mestres.

Mas quais as formas com que apresentaremos o diálogo da salvação?

São múltiplas as formas do diálogo da salvação. Obedece a exigências ensinadas pela experiência, escolhe os meios convenientes, não se prende a vãos apriorismos nem se fixa em expressões imóveis, quando estas tenham perdido o poder de interessar e mover os homens.

Como achegar-se aos irmãos na inteireza da verdade


49 Apresenta-se nesta altura uma questão espinhosa: a adaptabilidade da missão da Igreja à vida dos homens num dado momento, ou lugar, numa dada cultura e situação social.

Até que ponto deve a Igreja adaptar-se às circunstncias históricas e locais em que desempenha a sua missão? Como deve premunir-se contra o perigo dum relativismo que ofende a sua fidelidade dogmática e moral? Mas, ao mesmo tempo, como lhe será possível abeirar-se de todos para todos salvar, segundo o exemplo do Apóstolo: "Fiz-me tudo para todos, para salvar a todos" (lCor 9,22). Não é de fora que salvamos o mundo; assim como o Verbo de Deus se fez homem, assim é necessário que nós nos identifiquemos, até certo ponto, com as formas de vida daqueles a quem desejamos levar a mensagem de Cristo, é preciso tomarmos, sem distância de privilégios ou diafragmas de linguagem incompreensível, os hábitos comuns, contanto que estes sejam humanos e honestos, sobretudo os hábitos dos mais pequenos, se queremos ser ouvidos e compreendidos. É necessário, ainda antes de falar, auscultar a voz e mesmo o coração do homem, compreendê-lo e, na medida do possível, respeitá-lo. E quando merece, devemos fazer-lhe a vontade. Temos de nos mostrar irmãos dos homens, se queremos ser pastores, pais e mestres. O clima do diálogo é a amizade; melhor, o serviço. Tudo isto devemos recordar e esforçar-nos por praticar, segundo o exemplo e o preceito que Cristo nos deixou (cf. Jo
Jn 13,14-17).


50 Um perigo subsiste porém. A arte do apóstolo tem seus riscos. O desejo de nos aproximarmos dos nossos irmãos não deve traduzir-se numa atenuação ou diminuição da verdade. O nosso diálogo não pode ser fraqueza nos compromissos com a nossa fé. O apostolado não pode transigir com meias atitudes, ambíguas, quanto aos princípios teóricos e práticos característicos da nossa procissão cristã. O irenismo e o sincretismo são, no fim de contas, formas de cepticismo a respeito da força e do conteúdo da Palavra de Deus, que desejamos pregar. Só quem é de todo fiel à doutrina de Cristo pode ser apóstolo eficaz. E só quem vive em plenitude a vocação cristã pode imunizar-se do contágio dos erros com que entra em contacto.

Supremacia insubstituível da pregação


51 Julgamos que a voz do Concílio, ao tratar das questões relativas à ação da Igreja no mundo moderno, indicará alguns critérios teóricos e práticos, que servirão de guia para bem orientarmos o diálogo com os homens do nosso tempo. Tratando-se de questão que diz respeito, por um lado, à missão propriamente apostólica da Igreja e, por outro, às circunstâncias várias e mutáveis em que ela se exerce, julgamos igualmente que o prudente e operante governo da Igreja traçará vez por vez limites, formas e caminhos, para manter animado um diálogo benéfico.

Deixamos por isso este tema para nos limitarmos a recordar, uma vez mais, a suma importância, que a pregação cristã conserva, e hoje desempenha de maneira especial no quadro do apostolado católico e do diálogo, que é o que nos interessa por agora. Nenhuma forma difusora do pensamento a substitui, nem mesmo às dotadas tecnicamente de extraordinária potência, como são a imprensa e os meios audiovisivos. Apostolado e pregação, equivalem-se em certo sentido. A pregação é o primeiro apostolado. O nosso, Veneráveis Irmãos, é, primeiro que tudo, ministério da Palavra. Sabemos muito bem estas coisas, mas parece-nos conveniente recordá-las agora, para a nossa ação pastoral tomar a direção justa. Devemos voltar ao estudo, não já da eloqüência humana ou da retórica vã, mas sim da arte genuína da palavra sagrada.


52 Devemos procurar as leis da sua simplicidade, limpidez e força, e também da sua autoridade para vencermos a imperícia natural no emprego de tão alto e misterioso instrumento espiritual como é a palavra, e para emularmos nobremente todos os que hoje exercem por meio dela notável influxo, subindo às tribunas da opinião pública. Devemos pedir ao Senhor este carisma essencial e inebriante (cf. Jr Jr 1,6), para sermos dignos de dar à fé o seu princípio prático e eficaz (cf. Rm Rm 10,17) e dignos de fazer chegar a nossa mensagem aos últimos confins da terra (cf. Sl Ps 18,5 Rm 10,18). As prescrições da Constituição conciliar "De Sacra Liturgia" sobre o ministério da palavra encontrem em nós zelosos e hábeis executores. A catequese ao povo cristão, e a toda a demais gente que seja possível atingir, use sempre linguagem oportuna e método acomodado, seja freqüente, recomende-se pelo testemunho de virtudes pessoais e tenda sempre a novos progressos. Deste modo, levará os ouvintes à firmeza da fé, à descoberta de a Palavra divina ser vida, e ainda ao antegozo do Deus vivo.

Deveremos aludir por fim aos ouvintes do nosso diálogo. Mas, também neste particular, não queremos antecipar-nos à voz do Concílio, que em breve se fará ouvir, se Deus quiser.

Com quem dialogar


53 Falando em geral desta posição de diálogo, que a Igreja católica deve hoje assumir com renovado fervor, queremos simplesmente indicar de fugida que ela deve estar pronta a manter contacto com todos os homens de boa vontade, dentro e fora do seu âmbito próprio.

Ninguém é estranho ao seu coração materno. Ninguém é indiferente ao seu ministério. Ninguém, se não quer, é seu inimigo. Não é em vão que a Igreja se diz católica. Não é em vão que está encarregada de promover no mundo a unidade, o amor e a paz.

A Igreja não ignora as dimensões formidáveis da sua missão; conhece a desproporção estatística dos seus membros com a totalidade dos habitantes da terra; conhece o limite das suas forças; conhece até as suas fraquezas humanas, os seus erros; sabe também que a aceitação do Evangelho não depende, em última análise, de algum esforço apostólico seu, de alguma circunstância favorável de ordem temporal. A fé é dom de Deus, e só Deus marca no mundo os caminhos e as horas da salvação. Mas ela sabe, por outro lado, que é semente, fermento, sal e luz do mundo. Dá-se conta da surpreendente novidade dos tempos modernos; mas com ingênua confiança debruça-se sobre os caminhos da história, e diz aos homens: eu tenho aquilo que vós procurais, aquilo de que sentis falta. Não promete a felicidade na terra, mas oferece alguma coisa, a sua luz e a sua graça, para a conseguirmos, no que é possível.

Depois, aponta aos homens o destino transcendente, ao lhes falar de verdade, justiça, liberdade, progresso, concórdia, paz e civilização. Palavras estas, de que a Igreja conhece o segredo; confiou-lho Cristo. Por isso a Igreja tem uma mensagem especial para cada categoria de homens: para as crianças, a juventude, os homens de ciência e de pensamento, o mundo do trabalho e as várias classes sociais, os artistas, os políticos e os governantes; especialmente para os pobres, os deserdados, os que sofrem, e até para os moribundos; para todos.

Poderá parecer que, falando assim, nos deixamos transportar de entusiasmo pela nossa missão e que não consideramos as posições concretas, que a humanidade toma diante da Igreja Católica. Mas não é verdade, porque vemos muito bem quais são essas posições concretas; e para as descrevermos de maneira sumária, parece-nos que as devemos classificar à maneira de círculos concêntricos, em que a mão de Deus nos colocou.

Primeiro círculo: tudo o que é humano


54 Existe um primeiro, imenso círculo, de que não conseguimos descortinar os limites, pois se confundem com o horizonte. Dentro, está a humanidade toda, o mundo.

Medimos a distância entre nós e ele, mas de nenhum modo nos sentimos desinteressados. Tudo o que é humano, nos diz respeito. Temos, de comum com a humanidade inteira, a natureza, isto é a vida, com todos os seus dons e problemas. Comungamos de bom grado nesta primeira universalidade, aceitamos as exigências profundas das suas necessidades fundamentais, aplaudimos as afirmações novas e por vezes sublimes do seu gênio. Possuímos verdades morais, vitais, que se hão de por em evidência e revigorar na consciência humana; são benéficas para todos. Em qualquer esforço que o homem faça para se compreender a si mesmo e ao mundo, pode contar com a nossa simpatia; onde quer que as assembléias dos povos se reúnam para determinar os direitos e os deveres do homem, sentimo-nos honrados, quando no-lo permitem, tomando lugar nelas. Uma vez que existe no homem uma "alma naturalmente cristã", queremos honrá-la mostrando-lhe estima e dirigindo-lhe a palavra.

Poderemos recordar a nós próprio, e a todos, como a nossa atitude é, por um lado, completamente desinteressada, não temos nenhuma ambição política e temporal, e, por outro, toda empenhada em assumir, isto é, elevar a nível sobrenatural e cristão, qualquer valor honesto, humano e terreno; não somos a civilização, mas promotor dela.

A negação de Deus: obstáculo ao diálogo


55 Sabemos, porém, que neste círculo ilimitado há muita, muitíssima gente por desgraça, que não professa nenhuma religião, sabemos até que muitos se dizem ateus, em variadíssimas formas. E sabemos que existem alguns que fazem profissão clara da sua impiedade e a defendem como programa de educação humana e de atividade política, na ingênua mas fatal persuasão de irem libertar o homem de concepções velhas e falsas sobre a vida e o mundo, para as substituírem, segundo dizem, por uma concepção científica, conforme as exigências do progresso moderno.

É o fenômeno mais grave do nosso tempo. Estamos fïrmemente convencidos que a teoria, sobre a qual se funda a negação de Deus, está fundamentalmente errada, não corresponde às exigências últimas e inderrogáveis do pensamento, subtrai à ordem racional do mundo as suas bases autênticas e fecundas, introduz na vida humana não uma fórmula de solução mas um dogma cego, que a degrada e desola, e arruina pela raiz todos os sistemas sociais que nele pretendem fundar-se. Não é libertação, mas drama que tenta apagar a luz do Deus vivo. Por isso resistiremos nós, com todas as forças, a esta negação avassaladora, pelo amor supremo da verdade, pelo compromisso sacrossanto de confessarmos Cristo e o seu Evangelho, com a maior fidelidade pelo amor apaixonado, irrenunciável, à sorte da humanidade, e na esperança invencível de o homem moderno vir ainda a descobrir, na mensagem religiosa do catolicismo, que é chamado a uma civilização imortal mas sempre em progresso, a caminho da perfeição natural e sobrenatural do homem. A graça de Deus torna-o capaz de possuir pacífica e honestamente os bens temporais e abre-o à esperança dos bens eternos.


56 Estas razões que nos obrigam, como obrigaram os nossos Predecessores e com eles todos quantos têm a peito os valores religiosos, a condenar os sistemas ideológicos negadores de Deus e opressores da Igreja, sistemas muitas vezes identificados com regimes econômicos, sociais e políticos, e entre estes de maneira especial o comunismo ateu. Poder-se-ia dizer que, rigorosamente, não somos nós que os condenamos, mas que esses sistemas e os regimes que os personificam se colocam em oposição radical de idéias conosco e praticam atos de opressão. A nossa queixa é, afinal, mais que sentença de juiz, lamentação de vítima.

Em tais condições, a hipótese de diálogo torna-se bastante difícil, para não dizer impossível, ainda que mesmo hoje não temos nenhum propósito de afastar de nós as pessoas que seguem os sobreditos sistemas e apóiam esses regimes. Para quem ama a verdade, a discussão é sempre possível. Obstáculos, porém, de índole moral dificultam-na muitíssimo, por falta de liberdade suficiente de juízo e de ação, e por abuso dialético da palavra, que deixa de ser expressão da verdade objetiva para se por ao serviço de fins utilitários pré-estabelecidos.

Também no silêncio o testemunho do amor


57 É por isto que o diálogo cessa. A Igreja do silêncio, por exemplo, cala-se falando apenas com o seu sofrimento; e faz-lhe companhia a amargura de uma sociedade inteira, deprimida e aviltada, em que os direitos do espírito são dominados pelos direitos dos que discricionariamente lhe impõem a sorte. Supondo mesmo que principiávamos o nosso discurso, como poderia ele abrir diálogo nestas circunstâncias? Teria necessariamente de ser "voz que brada no deserto" (Mc 1,3). Silêncio, brado, paciência, amor apesar de tudo, tornam-se neste caso o testemunho único que a Igreja pode dar, que nem a morte pode extinguir.

Mas se firme e franca deve ser a afirmação e defesa da religião e dos valores humanos que ela proclama e defende, não está isento de intenção pastoral o esforço por descobrir, no íntimo do ateu moderno, os motivos da sua perturbação e das suas negações. Reconhecemos que são complexos e múltiplos; daí a necessidade de sermos cautos em julgar e eficazes em refutar. Vemos nascer esses motivos, às vêzes da exigência de uma apresentação do mundo divino mais elevada e pura do que a predominante talvez em certas formas imperfeitas de linguagem e de culto, que deveríamos procurar tornar quanto possível límpidas e transparentes, a fim de exprimirem melhor os conceitos sagrados que representam.


58 Uma inquietação os domina, muitas vezes generosa mas não isenta de paixão e de utopia, um sonho de justiça e de progresso a serviço de finalidades sociais divinizadas. Tomam estas o lugar do Absoluto e do Necessário, são manifestações da necessidade indestrutível do Princípio e do Fim divino, cuja transcendência e imanência tocará ao nosso paciente e esclarecido magistério desvelar. Vemo-los valer-se, por vezes com entusiasmo ingênuo, dum recurso escrupuloso à racionalidade humana, com o intuito de apresentar uma concepção científica do universo. Recurso este tanto menos discutível, quanto mais fundado na lógica do pensamento muitas vezes no diferente da que nós temos na escolástica. Recurso que, pelo seu valor intrínseco, leva em última análise (bem contra a vontade dos que pensam descobrir nele uma arma inexpugnável em favor do ateísmo!), a uma armação nova e final, tanto metafísica como lógica, do Deus supremo. Não haverá entre nós quem ajude este processo obrigatório do pensamento, que o cientista político ateu interrompe voluntariamente num dado ponto, apagando a luz mais clara que faz compreender o universo, a chegar à concepção da realidade objetiva do universo cósmico, a qual restitui ao espírito o sentido da presença divina, e aos lábios as humildes e balbuciantes sílabas duma oração pacificante? Vemo-los também movidos, às vezes, de nobres sentimentos, desprezando a mediocridade e o egoísmo de tantos ambientes sociais contemporâneos, e prontos a vir buscar ao nosso Evangelho formas e linguagem de solidariedade e de compreensão humana. Não seremos capazes um dia de reconduzir às fontes, que são cristãs, essas expressões de valores morais?

Recordando que o nosso predecessor, de venerada memória, o Papa João XXIII, escreveu na Encíclica "Pacem in Terris", que as doutrinas de tais movimentos, uma vez elaboradas e definidas, se mantêm sempre as mesmas, mas que os movimentos não podem deixar de evoluir nem de subtrair-se a mudanças mesmo profundas (cf. AAS 55,1963, p. 300), não perdemos a esperança de que eles venham um dia a entabular com a Igreja um colóquio positivo, diferente do que ele poderia ser atualmente para nós. Agora só daria lugar a lástimas e a gemidos irreprimíveis.

O diálogo pela paz


59 Mas não podemos apartar os nossos olhos do panorama do mundo contemporâneo sem formular um voto de felicidade: o de que o nosso propósito de cultivar e aperfeiçoar o nosso diálogo, nas várias e mudáveis facetas que ele apresenta, venha a contribuir para a causa da paz entre os homens, isto, como método que procura regular as relações humanas à luz nobre da linguagem razoável e sincera, e como contribuição de experiência e de sabedoria, que pode reavivar em todos a consideração dos valores supremos. A abertura dum diálogo, tal como deseja ser o nosso, desinteressado, objetivo e leal, pesa já por si em favor duma paz livre e honesta; exclui fingimentos, rivalidades, enganos e traições; não pode deixar de proclamar, como delito e como ruína, a guerra de agressão, de conquista e de predomínio, nem pode excluir, para além das relações entre os vértices das nações como hoje se diz, as existentes no interior das mesmas e as suas bases tanto sociais como familiares e individuais. Assim se difundirão em todas as instituições e em todos os espíritos o sentido, o gosto e o dever da paz.

Segundo círculo: os crentes em Deus


60 Depois, vemos desenhar-se a nossa volta outro círculo também imenso, contudo mais próximo de nós. Ocupam-no primeiramente os homens que adoram o mesmo Deus único e supremo que nós adoramos, aludimos aos filhos do povo hebraico, dignos do nosso respeito afetuoso, fiéis à religião que nós chamamos do Antigo Testamento. E depois os adoradores de Deus segundo o conceito da religião monoteísta, especialmente da muçulmana, dignos de admiração pelo que há de verdadeiro e de bom no culto que prestam a Deus. Seguem-se os adeptos das grandes religiões afro-asiáticas. Não podemos, é claro, compartilhar essas várias expressões religiosas, nem podemos diante delas ficar indiferentes, como se todas, equivalendo-se mais ou menos, dispensassem os seus fiéis de investigar se Deus revelou a forma, infalível, perfeita e definitiva, como quer ser conhecido, amado e servido. E, por dever de lealdade, devemos manifestar que estamos certíssimos que uma só é a religião verdadeira, a cristã; alimentamos a esperança de que a venham a reconhecer como tal, todos os que procuram e adoram a Deus.

Não queremos deixar de reconhecer desde já com respeito os valores espirituais e morais das várias confissões religiosas não cristãs; queremos promover e defender, juntamente com elas, os ideais que nos podem ser comuns, no campo da liberdade religiosa, da fraternidade humana, da sã cultura, da beneficência social e da ordem civil. Baseado nestes ideais comuns, o diálogo é possível do nosso lado; e no deixaremos de o propor, sempre que haja de ser bem aceito, num clima de respeito recíproco e leal.

Terceiro círculo: os cristãos, irmãos separados


61 Eis por fim o círculo, mais perto ainda de nós, do mundo que se intitula cristão. Neste campo o diálogo, que se chamou ecumênico, já está aberto, nalguns setores, está até em fase de realização inicial e positiva. Muita coisa poderíamos dizer sobre tema tão complexo e delicado. Mas o nosso discurso não abarca tudo. Limita-se a poucas alusões, no novas aliás. Com prazer fazemos nossa esta máxima: Ponhamos em evidência primeiramente o que nos é comum, antes de insistirmos no que nos divide. Boa e fecunda orientação para o nosso diálogo. Estamos dispostos a prossegui-lo cordialmente. Diremos mais: sobre tantos pontos de diferença quanto aos usos, à espiritualidade, às leis canônicas e ao culto, queremos estudar como se poderão satisfazer os legítimos desejos dos Irmãos cristãos ainda de nós separados. Nada desejamos tanto como abraçá-los numa perfeita união de fé e de caridade. Mas devemos também dizer que não podemos transigir sobre a integridade da fé e as exigências da caridade. Entrevemos desconfianças e resistências. Mas tendo a Igreja Católica tomado a iniciativa de refazer o redil único de Cristo, não deixará de proceder com toda paciência e toda delicadeza; não deixará de mostrar como as suas prerrogativas, que ainda mantêm longe dela os Irmãos separados, não são fruto de ambição histórica ou de especulação teológica fantasiosa, mas derivam da vontade de Cristo; e mostrará também que elas, compreendidas no seu verdadeiro significado, são para bem de todos, levam à unidade e liberdade comuns e à plenitude cristã também comum; a Igreja Católica não deixará, na oração e na penitência, de tornar-se idônea e digna para a desejada reconciliação.


62 Um pensamento, a esse respeito, nos aflige e é este: nós, fautor de tal reconciliação, somos considerados por muitos Irmãos separados como obstáculo à reconciliação; isto, por causa do primado de honra e de jurisdição, entregue por Cristo ao Apóstolo So Pedro e herança nossa dele recebida. Não dizem alguns que, se desaparecesse o primado do Papa, a unificação das igrejas separadas com a Igreja Católica seria mais fácil? Queremos pedir aos Irmãos separados que ponderem a inconsistência desta hipótese; e não só porque, sem Papa, a Igreja Católica não seria o que é, mas porque, faltando na Igreja de Cristo a autoridade pastoral suprema, eficaz e decisiva de Pedro, a unidade se arruinaria, e em vão se procuraria depois refazê-la segundo critérios que substituíssem o autêntico, que vem do próprio Cristo. "Haveria na Igreja tantos cismas como sacerdotes", escreve com razão São Jerônimo (Diál. contra Luciferiamos, n. 9). E queiram também considerar que este eixo central, na construção da santa Igreja, não quer constituir supremacia de orgulho espiritual e domínio humano, mas primado de serviço, de ministério e de amor. Não é retórica vã atribuir ao Vigário de Cristo o título de "servo dos servos de Deus".

Nestas disposições nossas germina o diálogo, que antes de se desenvolver em conversas fraternais, já é colóquio com o Pai celeste, expresso em súplica fundada na esperança.

Augúrios e esperanças


63 Devemos notar com alegria e confiança, Veneráveis Irmãos, que este variado e extensíssimo setor dos Cristos separados está todo embebido de fermentos espirituais, que parecem anunciar futuros e consoladores progressos na causa da inserção dos mesmos na única Igreja de Cristo. Queremos implorar a inspiração do Espírito Santo sobre o "movimento ecumênico". Queremos tornar a exprimir a nossa comoção e a nossa alegria pelo encontro, cheio de caridade e não menos de novas esperanças, que tivemos em Jerusalém com o Patriarca Atenágoras. Queremos saudar com respeito e reconhecimento a presença de tantos Representantes das Igrejas separadas no Concílio Ecumênico Vaticano II. Queremos garantir mais uma vez que observamos, com interesse atento e sagrado, os fenômenos espirituais relativos ao problema da unidade, que agitam pessoas, grupos e comunidades, que domina vivo e nobre religiosismo. Com amor e com reverência, saudamos todos estes Cristãos, esperando que, no diálogo da sinceridade e do amor, nos seja dado promover, juntamente com eles, a causa de Cristo e da unidade que Ele desejou para a sua Igreja.

O diálogo na Igreja Católica


64 Finalmente o nosso diálogo convida os Filhos da Casa de Deus, a Igreja una, santa, católica e apostólica, de que esta romana é "mãe e cabeça". Quanto prazer nos trará este diálogo doméstico, em plenitude de fé, de caridade e de obras! Quão intenso e familiar o desejamos! Quanto ambicionamos que tenha conta de todas as verdades, de todas as virtudes e de todas as realidades do nosso patrimônio doutrinal e espiritual! Quão sincero e comovido o pretendemos, na sua genuína espiritualidade! Quão pronto a recolher as vozes múltiplas do mundo contemporâneo! Quão apto a transformar os católicos em homens verdadeiramente bons, prudentes, livres, serenos e fortes!

Caridade e obediência


65 Este desejo de que as relações interiores da Igreja se caracterizem pelo tom próprio do diálogo, entre membros de um corpo cujo princípio constitutivo é a caridade, não dispensa da prática da virtude da obediência, quando a ordem que tem de haver em toda a sociedade bem unida, e sobretudo a constituição hierárquica da Igreja reclamam, por um lado, a função própria da autoridade, e, por outro, a submissão. A autoridade da Igreja é instituição de Cristo, representa-O, é transmissora autorizada da sua palavra e da sua caridade pastoral. Deste modo, a obediência procede do motivo de fé, torna-se escola de humildade evangélica, associa o obediente à sabedoria, à unidade, à educação e à caridade que regem o corpo eclesiástico, e confere, a quem se conforma com ela, o mérito da imitação de Cristo: "feito obediente até a morte" (Ph 2,8).


66 Por obediência, expressa em forma de diálogo, entendemos, portanto, o exercício da autoridade, bem penetrado da convicção de tratar-se de um serviço e ministério da verdade e da caridade; e entendemos também a observância das normas canônicas e a reverência ao governo do superior legítimo, ambas com prontidão e serenidade, como convém a filhos livres e afetuosos. O espírito de independência, de crítica e rebelião concorda mal com o amor que anima a solidariedade, a concórdia e a paz na Igreja. Esse espírito transforma facilmente o diálogo em discussão, rixa ou desavença: coisa desagradabilíssima, com que infelizmente sempre se deve contar. Por isso nos acautelava o Apóstolo São Paulo: "Não haja entre vós divisões" (lCor 1,10).

Fervor de sentimentos e obras


67 Muito desejamos que o diálogo interior, isto é, dentro da comunidade eclesiástica, desperte novo entusiasmo, multiplique assuntos e interlocutores, de modo que aumentem o vigor e a santidade do Corpo Místico, terreno, de Cristo. Muito apreciamos e fomentamos tudo quanto propaga os ensinamentos, de que a Igreja é depositária e distribuidora. Já mencionamos a vida litúrgica e interior, e a pregação. Podemos agora acrescentar: a escola, a imprensa, o apostolado social, as missões e o exercício da caridade. Constituem também assuntos que nos fará considerar o Concílio. E, desde agora, animamos e abençoamos todos aqueles que, dirigidos pela autoridade competente, participam no diálogo vivificador da Igreja: os Sacerdotes de modo especial, os Religiosos, os muito estimados Leigos militantes por Cristo tanto na Ação Católica como em tantas outras associações e atividades.

A Igreja está hoje mais do que nunca viva!


68 Alegramo-nos e sentimo-nos confortados ao observar que o diálogo no interior da Igreja, e com os de fora que lhe estão mais próximos, se vai já praticando: a Igreja está hoje mais do que nunca viva! Mas, reparando bem, parece que tudo está ainda por fazer, o trabalho começa hoje e não acaba nunca. É lei da nossa peregrinação na terra e no tempo. É este, Veneráveis Irmãos, o múnus habitual do nosso ministério: tudo o estimula hoje a renovar-se, a tornar-se vigilante e operoso.

Pela nossa parte, enquanto assim vos falamos, apraz-nos contar na vossa colaboração, oferecendo-vos a nossa. Esta comunhão de intenções e atividades pedimo-la e damo-la nós, elevado recentemente à cátedra do Apóstolo São Pedro, com o nome e, queira Deus, com alguma coisa do espírito do Apóstolo das gentes. Celebrando assim a unidade de Cristo entre nós, enviamo-vos com esta nossa Carta inicial, em nome do Senhor, a nossa fraterna e paternal bênção apostólica, que de bom grado tornamos extensiva a toda a Igreja e à humanidade inteira.

Dado em Roma, junto de S. Pedro, aos 6 de agosto de 1964, na Festa da Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo.



PAULUS PP. VI






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