Evangelii gaudium PT 98

Não à guerra entre nós

98 Dentro do povo de Deus e nas diferentes comunidades, quantas guerras! No bairro, no local de trabalho, quantas guerras por invejas e ciúmes, mesmo entre cristãos! O mundanismo espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica. Além disso, alguns deixam de viver uma adesão cordial à Igreja por alimentar um espírito de contenda. Mais do que pertencer à Igreja inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este ou àquele grupo que se sente diferente ou especial.


99 O mundo está dilacerado pelas guerras e a violência, ou ferido por um generalizado individualismo que divide os seres humanos e põe-nos uns contra os outros visando o próprio bem-estar. Em vários países, ressurgem conflitos e antigas divisões que se pensavam em parte superados. Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero pedir-lhes de modo especial um testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e resplandecente. Que todos possam admirar como vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais, animais e ajudais: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jn 13,35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração, pediu ao Pai: «Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia» (Jn 17,21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e vamos para o mesmo porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os frutos alheios, que são de todos.


100 Para quantos estão feridos por antigas divisões, resulta difícil aceitar que os exortemos ao perdão e à reconciliação, porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos fazer-lhes perder a memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai. Por isso me dói muito comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas, se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, a desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?


101 Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que bom é termos esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de tudo! A cada um de nós é dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12,21). E ainda: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Ga 6,9). Todos nós provamos simpatias e antipatias, e talvez neste momento estejamos chateados com alguém. Pelo menos digamos ao Senhor: «Senhor, estou chateado com este, com aquela. Peço-Vos por ele e por ela». Rezar pela pessoa com quem estamos irritados é um belo passo rumo ao amor, e é um acto de evangelização. Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!


Outros desafios eclesiais

102 A imensa maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Ao seu serviço, está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência da identidade e da missão dos leigos na Igreja. Embora não suficiente, pode-se contar com um numeroso laicado, dotado de um arreigado sentido de comunidade e uma grande fidelidade ao compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas, a tomada de consciência desta responsabilidade laical que nasce do Baptismo e da Confirmação não se manifesta de igual modo em toda a parte; nalguns casos, porque não se formaram para assumir responsabilidades importantes, noutros por não encontrar espaço nas suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e agir por causa dum excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões. Apesar de se notar uma maior participação de muitos nos ministérios laicais, este compromisso não se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo social, político e económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação da sociedade. A formação dos leigos e a evangelização das categorias profissionais e intelectuais constituem um importante desafio pastoral.


103 A Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos outros, que se exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho»[72] e nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.

[72]Pont. Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 295.

104 As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental com o poder. Não se esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal, «estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade».[73] O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível a todos. A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte principal da graça – não comporta uma exaltação que o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação à superioridade de uns sobre os outros».[74] Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que os Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada «hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo».[75] A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido como domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia; daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja.

[73]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988),
CL 51: AAS 81 (1989), 493.
[74]Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial Inter Insigniores (15 de Outubro de 1976), VI: AAS 69 (1977), 115, citado por João Paulo II na Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 51 (nota 190): AAS 81 (1989), 493.
[75]João Paulo II, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), MD 27: AAS 80 (1988), 1718.

105 A pastoral juvenil, tal como estávamos habituados a desenvolvê-la, sofreu o impacto das mudanças sociais. Nas estruturas ordinárias, os jovens habitualmente não encontram respostas para as suas preocupações, necessidades, problemas e feridas. A nós, adultos, custa-nos a ouvi-los com paciência, compreender as suas preocupações ou as suas reivindicações, e aprender a falar-lhes na linguagem que eles entendem. Pela mesma razão, as propostas educacionais não produzem os frutos esperados. A proliferação e o crescimento de associações e movimentos predominantemente juvenis podem ser interpretados como uma acção do Espírito que abre caminhos novos em sintonia com as suas expectativas e a busca de espiritualidade profunda e dum sentido mais concreto de pertença. Todavia é necessário tornar mais estável a participação destas agregações no âmbito da pastoral de conjunto da Igreja.[76]

[76]Cf. Propositio 51.

106 Embora nem sempre seja fácil abordar os jovens, houve crescimento em dois aspectos: a consciência de que toda a comunidade os evangeliza e educa, e a urgência de que eles tenham um protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto de crise do compromisso e dos laços comunitários, são muitos os jovens que se solidarizam contra os males do mundo, aderindo a várias formas de militância e voluntariado. Alguns participam na vida da Igreja, integram grupos de serviço e diferentes iniciativas missionárias nas suas próprias dioceses ou noutros lugares. Como é bom que os jovens sejam «caminheiros da fé», felizes por levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra!


107 Em muitos lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de ardor apostólico contagioso nas comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor, paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa da comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a Deus e à evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens um caminho de especial consagração. Por outro lado, apesar da escassez vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade de uma melhor selecção dos candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários com qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão relacionadas com insegurança afectiva, busca de formas de poder, glória humana ou bem-estar económico.


108 Como já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas convido as comunidades a completarem e a enriquecerem estas perspectivas a partir da consciência dos desafios próprios e das comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que, todas as vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade actual, é conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a esperança dos povos. Os idosos fornecem a memória e a sabedoria da experiência, que convida a não repetir tontamente os mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são fonte de vida no mundo actual.


109 Os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança. Não deixemos que nos roubem a força missionária!


Capítulo III - O ANÚNCIO DO EVANGELHO

110 Depois de considerar alguns desafios da realidade actual, quero agora recordar o dever que incumbe sobre nós em toda e qualquer época e lugar, porque «não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor» e sem existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de evangelização».[77] Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos, João Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino providencial, então uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e progressivo anúncio da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser a vossa prioridade absoluta».[78] Isto é válido para todos.

[77]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Asia (6 de Novembro de 1999), : AAS 92 (2000), 478.
[78]Ibid., : o. c., 451.


I. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho

111 A evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus. Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade, mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de compreender a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus.


Um povo para todos

112 A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não há acção humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si.[79] Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus filhos, para nos transformar e tornar capazes de responder com a nossa vida ao seu amor. A Igreja é enviada por Jesus Cristo como sacramento da salvação oferecida por Deus.[80] Através da sua acção evangelizadora, ela colabora como instrumento da graça divina, que opera incessantemente para além de toda e qualquer possível supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões do Sínodo: «É sempre importante saber que a primeira palavra, a iniciativa verdadeira, a actividade verdadeira vem de Deus e só inserindo-nos nesta iniciativa divina, só implorando esta iniciativa divina, nos podemos tornar também – com Ele e n’Ele – evangelizadores».[81] O princípio da primazia da graça deve ser um farol que ilumine constantemente as nossas reflexões sobre a evangelização.

[79]Cf. Propositio 4.
[80]Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium,
LG 1.
[81]Meditação na primeira Congregação geral da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (8 de Outubro de 2012):AAS 104 (2012), 897.

113 Esta salvação, que Deus realiza e a Igreja jubilosamente anuncia, é para todos,[82] e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos de todos os tempos. Escolheu convocá-los como povo, e não como seres isolados.[83] Ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe. Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é a Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt 28,19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há judeu nem grego (...), porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Ga 3,28). Eu gostaria de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu povo, e fá-lo com grande respeito e amor!

[82]Cf. Propositio6; Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 22.
[83]Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 9.

114 Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande projecto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, dêem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho.


Um povo com muitos rostos

115 Este povo de Deus encarna-se nos povos da Terra, cada um dos quais tem a sua cultura própria. A noção de cultura é um instrumento precioso para compreender as diversas expressões da vida cristã que existem no povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus. Assim entendida, a cultura abrange a totalidade da vida dum povo.[84] Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura com legítima autonomia.[85] Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana, «por sua natureza, necessita absolutamente da vida social»[86] e mantém contínua referência à sociedade, na qual vive uma maneira concreta de se relacionar com a realidade. O ser humano está sempre culturalmente situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas».[87] A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.

[84]Cf. III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Puebla (23 de Março de 1979), 386-387.
[85]Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
GS 36.
[86]Ibid., GS 25.
[87]Ibid., GS 53.

116 Ao longo destes dois milénios de cristianismo, uma quantidade inumerável de povos recebeu a graça da fé, fê-la florir na sua vida diária e transmitiu-a segundo as próprias modalidades culturais. Quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas «permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar».[88] Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto pluriforme».[89] Através das manifestações cristãs dum povo evangelizado, o Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade»,[90] porque «cada cultura oferece formas e valores positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho é pregado, compreendido e vivido».[91] Assim, «a Igreja, assumindo os valores das diversas culturas, torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna com suas jóias (cf. Is 61,10)».[92]

[88]João Paulo II, Carta ap. Novo Millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), NM 40: AAS 93 (2001), 294-295.
[89]Ibid., NM 40: o. c., 295.
[90]João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 52: AAS 83 (1991), 300.Cf.Exort. ap. Catechesi tradendae (16 de Outubro de 1979), CTR 53: AAS 71 (1979), 1321.
[91]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Oceania (22 de Novembro de 2001), 16: AAS 94 (2002), 384.
[92]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), : AAS 88 (1996), 39.

117 Se for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os nossos corações e nos torna capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua unidade. O Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal como é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho.[93] É Ele que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai. A evangelização reconhece com alegria estas múltiplas riquezas que o Espírito gera na Igreja. Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na evangelização de novas culturas ou de culturas que não acolheram a pregação cristã, não é indispensável impor uma determinada forma cultural, por mais bela e antiga que seja, juntamente com a proposta do Evangelho. A mensagem, que anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.

[93]«Excluído o Espírito Santo, que é o vínculo de ambos, não se pode entender a concórdia da unidade entre o Pai e o Filho» (São Tomás de Aquino, Summa theologiae,
I 39,8 cons. 2; veja-se também ibid., I 37,1, ad 3).

118 Os Bispos da Oceânia pediram que a Igreja neste continente «desenvolva uma compreensão e exposição da verdade de Cristo partindo das tradições e culturas locais», e instaram todos os missionários «a trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas e apropriadas a cada cultura».[94] Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão duma cultura.[95] É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo.

[94]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Oceania (22 de Novembro de 2001), 17: AAS 94 (2002), 385.
[95]Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Asia (6 de Novembro de 1999), : AAS 92 (2000), 478-482.

Todos somos discípulos missionários

119 Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o torna infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na verdade e condu-lo à salvação.[96] Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.

[96]Cf. Conc. Ecum. Vat.II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium,
LG 12.

120 Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28,19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas acções. A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso de evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe dêem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas sempre que somos «discípulos missionários». Se não estivermos convencidos disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria: «Encontrámos o Messias» (Jn 1,41). A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido às palavras da mulher» (Jn 4,39). Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo, «começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de Deus» (Ac 9,20). Porque esperamos nós?


121 Certamente todos somos chamados a crescer como evangelizadores. Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho. Neste sentido, todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente; isto não significa que devemos renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que corresponda à situação em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho de fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço, (…) lançando-me para o que vem à frente» (Ph 3,12-13).


A força evangelizadora da piedade popular

122 Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano «é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido».[97] Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo».[98] Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da actividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo.[99]

[97]João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998),
FR 71: AAS 91 (1999), 60.
[98]III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Puebla (23 de Março de 1979), 450; cf. V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 264.
[99]Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Asia (6 de Novembro de 1999), : AAS 92 (2000), 482-484.

123 Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé recebida se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança, a piedade popular foi objecto de revalorização nas décadas posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso decisivo nesta direcção, foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi. Nela explica que a piedade popular «traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar»[100] e «torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé».[101] Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina, assinalou que se trata de um «precioso tesouro da Igreja Católica» e que nela «aparece a alma dos povos latino-americanos».[102]

[100]N.º
EN 48: AAS 68 (1976), 38.
[101]Ibid., EN 48: o. c., 38.
[102]Discurso na Sessão inaugural da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (13 de Maio de 2007), 1:AAS 99 (2007), 446-447.

124 No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo explicita na piedade popular por sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente, onde uma multidão imensa de cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» ou «mística popular».[103] Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples».[104] Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé, acentua mais o credere in Deum que o credere Deum.[105] É «uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários»;[106] comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do peregrinar: «O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador».[107] Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força missionária!

[103]V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 262.
[104]Ibid., 263.
[105]Cf. São Tomás de Aquino, Summa theologiae
II-II 2,2.
[106]V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 264.
[107]Ibid., 264.

125 Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não pode ver estas acções unicamente como uma busca natural da divindade; são a manifestação duma vida teologal animada pela acção do Espírito Santo, que foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5,5).


126Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado, subjaz uma força activamente evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar a obra do Espírito Santo. Ao contrário, somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar o processo de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção particularmente na hora de pensar a nova evangelização.


De pessoa a pessoa

127 Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho.


128 Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois desta conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela leitura de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre recordando o anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem, entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua amizade. É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através dum testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer prudente e houver condições, é bom que este encontro fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se relacione com as preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente que foi ouvida e interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a Palavra de Deus fala realmente à sua própria vida.


129 Contudo não se deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o povo de Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por conseguinte, se o Evangelho se encarnou numa cultura, já não se comunica apenas através do anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos países onde o cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar o Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente formas, pelo menos incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da cultura onde é anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura. Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.



Evangelii gaudium PT 98