Evangelium vitae PT 27


27 Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas, aqui e além concretizadas, de legalizar a eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos e iniciativas de sensibilização social a favor da vida. Quando estes movimentos, de acordo com a sua inspiração autêntica, agem com determinada firmeza mas sem recorrer à violência, então eles favorecem uma tomada de consciência mais ampla e profunda do valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho mais decisivo em sua defesa.

Como não recordar, além disso, todos aqueles gestos diários de acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que um número incalculável de pessoas realiza com amor nas famílias, nos hospitais, nos orfanatos, nos lares da terceira idade, e noutros centros ou comunidades em defesa da vida? A Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de Jesus, « bom samaritano » (cf. Lc
Lc 10,29-37), e sustentada pela sua força, sempre esteve em primeira fila nestes confins da caridade: muitos dos seus filhos e filhas, especialmente religiosas e religiosos, em formas antigas e novas, consagraram e continuam a consagrar a sua vida a Deus, dando-a por amor do próximo mais débil e necessitado.

Estes gestos constroem em profundidade aquela « civilização do amor e da vida », sem a qual a existência das pessoas e da sociedade perde o seu significado humano mais autêntico. Ainda que ninguém os notasse, e ficassem escondidos aos olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, « que vê no segredo » (Mt 6,4), saberá não só recompensá-los, mas também torná-los desde já fecundos de frutos duradouros para todos.

Entre os sinais de esperança, há que incluir ainda o crescimento, em muitos estratos da opinião pública, de uma nova sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como instrumento de solução dos conflitos entre os povos, e sempre mais inclinada à busca de instrumentos eficazes, mas « não violentos », para bloquear o agressor armado. No mesmo horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte — mesmo vista só como instrumento de « legítima defesa » social —, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir.

Também ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à qualidade de vida e à ecologia, que se regista sobretudo nas sociedades mais avançadas, nas quais os anseios das pessoas já não estão concentrados tanto sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na procura de um melhoramento global das condições de vida. Particularmente significativo é o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e o desenvolvimento cada vez maior da bioética favoreceu a reflexão e o diálogo — entre crentes e não crentes, como também entre crentes de diversas religiões — sobre problemas éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do homem.


28 Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos, plenamente conscientes de que nos encontramos perante um combate gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte e a vida, a « cultura da morte » e a « cultura da vida ». Encontramo-nos não só « diante », mas necessariamente « no meio » de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida.

Também para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés: « Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; do outro, a morte e o mal. (...) Coloco diante de ti a vida e a morte, a felicidade e a maldição. Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade » (
Dt 30,15 Dt 30,19). É um convite muito apropriado para nós, chamados cada dia a ter de escolher entre a « cultura da vida » e a « cultura da morte ». Mas o apelo do Deuteronómio é ainda mais profundo, porque nos chama a uma opção especificamente religiosa e moral. Trata-se de dar à própria existência uma orientação fundamental, vivendo com fidelidade e coerência a Lei do Senhor: « Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. (...) Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade. Ama o Senhor, teu Deus, escuta a sua voz e permanece-Lhe fiel, porque é Ele a tua vida e a longevidade dos teus dias » (30, 16.19-20).

A decisão incondicional a favor da vida atinge em plenitude o seu significado religioso e moral, quando brota, é plasmada e alimentada pela fé em Cristo. Nada ajuda tanto a enfrentar positivamente o conflito entre a morte e a vida, no qual estamos imersos, como a fé no Filho de Deus que Se fez homem e veio habitar entre os homens, « para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jn 10,10): é a fé no Ressuscitado, que venceu a morte; é a fé no sangue de Cristo « que fala melhor do que o de Abel » (He 12,24).

Assim, com a luz e a força desta fé, perante os desafios da situação actual, a Igreja toma consciência mais viva da graça e da responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida.



CAPÍTULO II

VIM PARA QUE TENHAM VIDA


A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA

« A vida manifestou-se, nós vimo-la »: o olhar voltado para Cristo, « o Verbo da vida »

29 (1Jn 1,2)
Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um sentido de impotência insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal!

Este é o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é chamado a professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, « o Verbo da vida » (1Jn 1,1). O Evangelho da vida não é uma simples reflexão, mesmo se original e profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um preceito destinado a sensibilizar a consciência e provocar mudanças significativas na sociedade; tampouco é a ilusória promessa de um futuro melhor. O Evangelho da vida é uma realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com estas palavras: « Eu sou o caminho, a verdade e a vida » (Jn 14,6). A mesma identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro: « Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais » (Jn 11,25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade, recebe a vida do Pai (cf. Jo Jn 5,26) e veio estar com os homens, para os tornar participantes deste dom: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jn 10,10).

Deste modo, a possibilidade de « conhecer » a verdade plena sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela palavra, a acção e a própria pessoa de Jesus; e desta « fonte », vem-lhe, de forma especial, a capacidade de « praticar » perfeitamente tal verdade (cf. Jo Jn 3,21), ou seja, a capacidade de assumir e realizar em plenitude a responsabilidade de amar e servir, de defender e promover a vida humana.

Em Cristo, de facto, é anunciado definitivamente e concedido plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido já na Revelação do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum modo escrito no próprio coração de cada homem e mulher, ressoa em toda a consciência « desde o princípio », ou seja, desde a própria criação, de tal modo que, não obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão humana. Como escreve o Concílio Vaticano II, Cristo « com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito da verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna ». 22

22. Const. dogm. Dei Verbum, sobre la divina Revelación, DV 4.



30 É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente escutar d'Ele « as palavras de Deus » (Jn 3,34) e meditar o Evangelho da vida. O sentido mais profundo e original desta meditação sobre a mensagem revelada relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve, no início da sua Primeira Carta: « O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, — porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada — o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco » (1, 1-3).

Então, a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em Jesus, « Verbo da vida ». Graças a este anúncio e a este dom, a vida física e espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena, adquire plenitude de valor e significado: com efeito, a vida divina e eterna é o fim, para o qual está orientado e chamado o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a razão humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e condu-lo à sua plena realização.


« O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me salvou »: a vida é sempre um bem

31 (Ex 15,2)
Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora preparada já no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo, fulcro da experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é aos olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado que sobre todos os seus recém-nascidos do sexo masculino grava a ameaça de morte (cf. Ex Ex 1,15-22), o Senhor revela-Se-lhes como salvador, capaz de assegurar um futuro a quem vive sem esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a sua vida não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico arbítrio; mas, ao contrário, é objecto de um terno e intenso amor da parte de Deus.

A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o reconhecimento de uma dignidade indelével e o início de uma história nova, na qual caminham lado a lado a descoberta de Deus e a descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo é constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas as vezes que estiver ameaçado na sua existência, terá apenas de recorrer a Deus com renovada confiança para encontrar n'Ele eficaz assistência: « Formei-te, tu és meu servo; Israel, não te posso esquecer » (Is 44,21).

Assim, enquanto reconhece o valor da própria existência como povo, Israel avança também na percepção do sentido e valor da vida como tal. É uma reflexão que se desenvolve particularmente nos Livros Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da precariedade da vida e da consciência das ameaças que a tramam. Diante das contradições da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.

É sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à prova. Como não identificar o gemido universal do homem na meditação do Livro de Job? O inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente levado a interrogar-se: « Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida àquele cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela venha e a procuram com mais ardor que um tesouro? » (Jb 3,20-21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a fé encaminha para o reconhecimento confiante e adorador do « mistério »: « Sei que podes tudo e que nada Te é impossível » (Jb 42,2).

Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior, o germe de vida imortal posto pelo Criador no coração dos homens: « Todas as coisas que Deus fez são boas no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro » (Qo 3,11). Este germe de totalidade e plenitude anseia por se manifestar no amor e realizar-se, por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna.


« Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças » : na precariedade da existência humana, Jesus realiza plenamente o sentido da vida

32 (Ac 3,16)
A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os « pobres » que encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, « amante da vida » (Sg 11,26), já tinha tranquilizado Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor.

« Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada aos pobres » (Lc 7,22). Com estas palavras do profeta Isaías (Is 35,5-6 Is 61,1), Jesus apresenta o significado da sua própria missão: deste modo, aqueles que sofrem por causa de uma existência de qualquer modo « limitada » ouvem d'Ele a boa nova do interesse que Deus nutre por eles e têm a confirmação de que também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas mãos do Pai (cf. Mt Mt 6,25-34).

Quem se sente particularmente interpelado pela pregação e acção de Jesus, são os « pobres ». As multidões de doentes e marginalizados, que O seguem e procuram (cf. Mt Mt 4,23-25), encontram na sua palavra e nos seus gestos a revelação do valor imenso da vida deles e de quão fundados sejam os seus anseios de salvação.

Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas origens. Ao anunciar Jesus como Aquele que « andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele » (Ac 10,38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação que ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria e pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que estava colocado diariamente junto da porta « Formosa » do templo de Jerusalém a pedir esmola: « Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda! » (Ac 3,6). Pela fé em Jesus, « Príncipe da vida » (Ac 3,15), a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra a consciência de si mesma e a sua plena dignidade.

A palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem respeito apenas a quem está enfermo, aflito pela provação, ou é vítima das diversas formas de marginalização social. Vão mais fundo, tocando o próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões morais e espirituais. Só quem reconhece que a própria vida está tocada pelas mazelas do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da própria existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras: « Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento » (Lc 5,31-32).

Pelo contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola evangélica julga poder assegurar a própria vida com a posse de simples bens materiais, na realidade engana-se. A vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará privado dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: « Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para quem será? » (Lc 12,20).


33 Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta « dialéctica » singular entre a experiência da contingência da vida humana e a afirmação do seu valor. De facto, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos justos, que se unem ao « sim » pronto e feliz de Maria (cf. Lc Lc 1,38). Mas logo aparece também a rejeição por parte de um mundo que se torna hostil e procura o Menino « para O matar » (Mt 2,13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do mistério desta vida que entra no mundo: « não havia para eles lugar na hospedaria » (Lc 2,7). Exactamente por este contraste — as ameaças e inseguranças, por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo outro — resplandece com maior força a glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de Belém: esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc Lc 2,10-11).

As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus: « sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza » (2Co 8,9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas despojamento dos privilégios divinos, mas também partilha das condições mais humildes e precárias da vida humana (cf. Fil Ph 2,6-7). Jesus vive esta pobreza ao longo de toda a sua vida até ao momento culminante da cruz: « Humilhou-Se a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome » (Ph 2,8-9). É precisamente na sua morte que Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua doação na cruz se torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo Jn 12,32). Neste peregrinar por entre as contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado pela certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer-Lhe: « Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito » (Lc 23,46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o valor da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade inteira!


« Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho »: a glória de Deus resplandece no rosto do homem

34 (Rm 8,28-29)
A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a compreender.

Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn Gn 2,7 Gn 3,19 Jb 34,15 Ps 103 Ps 102,14 Ps 104 Ps 103,29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença, vestígio da sua glória (cf. Gn Gn 1,26-27 Ps 8,6). Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: « A glória de Deus é o homem vivo ». 23 Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de Deus.

Afirma-o o Livro do Génesis, na primeira narração das origens, ao colocar o homem no vértice da actividade criadora de Deus, como seu coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem e tudo lhe fica submetido: « Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os animais que se movem na terra » (1, 28) — ordena Deus ao homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das origens: « O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o guardar » (Gn 2,15). Confirma- -se assim o primado do homem sobre as coisas: estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto de coisa.

Na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais criaturas é evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de uma deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular e específica com o Criador: « Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança » (Gn 1,26). A vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura.

Israel interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação particular e específica do homem com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, « revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem » (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o mundo, mas também as faculdades espirituais mais específicas do homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre: « Encheu-os de saber e inteligência, e mostrou-lhes o bem e o mal » (Si 17,7). A capacidade de alcançar a verdade e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt Dt 32,4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é « capaz de conhecer e amar o seu Criador ». 24 A vida que Deus dá ao homem, é muito mais do que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de vida; é germe de uma existência que ultrapassa os próprios limites do tempo: « Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria natureza » (Sg 2,23).

23. « Gloria Dei vivens homo »: Contra las herejías, IV, 20, 7: SCh 100/2, 648-649.
24. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, sobre la Iglesia en el mundo actual, GS 12.


35 Também o relato jahvista das origens exprime a mesma convicção. Esta antiga narração fala de um sopro divino que éinsuflado no homem, para que este dê entrada na vida: « O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo » (Gn 2,7).

A origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: « Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós ». 25

Como é eloquente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn Gn 2,20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn Gn 2,23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa.

« Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes? » — interroga-se o Salmista (Ps 8,5). Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é precisamente este contraste que faz sobressair a sua grandeza: « Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes » (Ps 8,6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio: « Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado. Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do homem, repousou-Se na sua mente e no seu pensamento; de facto, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?" (Is 66,1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu repouso ». 26

25. Confesiones, I, 1: CCL 27, 1.
26 Exameron, VI, 75-76: CSEL 32, 260-261.



36 Infelizmente, este projecto maravilhoso de Deus ficou ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado, o homem revolta-se contra o Criador, acabando por idolatrar as criaturas: « Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao Criador » (Rm 1,25). Deste modo, o ser humano não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas é tentado a ofendê-la também nos outros, substituindo as relações de comunhão por atitudes de desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio homicida. Quando não se reconhece Deus como tal, atraiçoa-se o sentido profundo do homem e prejudica-se a comunhão entre os homens.

Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: « Ele é a imagem do Deus invisível » (Col 1,15), « o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância » (He 1,3). Ele é a imagem perfeita do Pai.

O projecto de vida confiado ao primeiro Adão encontra finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do reino da vida (cf. Rm Rm 5,12-21). Afirma o apóstolo Paulo: « O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante » (1Co 15,45).

A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem-se « conformes à imagem do seu Filho » (Rm 8,29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua identidade.


« Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá »: o dom da vida eterna

37 (Jn 11,26)
A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se reduz meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre está « n'Ele » e constitui « a luz dos homens » (Jn 1,4), consiste em ser gerados por Deus e participar na plenitude do seu amor: « A todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim de Deus » (Jn 1,12-13).

Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar, simplesmente como « a vida »; e apresenta o ser gerado por Deus como condição necessária para poder alcançar o fim para o qual o homem foi criado: « Quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus » (Jn 3,3). O dom desta vida constitui o objecto próprio da missão de Jesus; Ele « é Aquele que desce do Céu e dá a vida ao mundo » (Jn 6,33), de tal modo que pode afirmar com toda a verdade: « Quem Me segue (...) terá a luz da vida » (Jn 8,12).

Outras vezes, Jesus fala de « vida eterna », sem querer com o adjectivo aludir apenas a uma perspectiva supratemporal. « Eterna » é a vida que Jesus promete e dá, porque é plenitude de participação na vida do « Eterno ». Todo aquele que crê em Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo Jn 3,15 Jn 6,40), porque d'Ele escuta as únicas palavras que revelam e infundem plenitude de vida à sua existência; são as « palavras de vida eterna », que Pedro reconhece na sua confissão de fé: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus » (Jn 6,68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus quando se dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: « A vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste » (Jn 17,3). Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da comunhão de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à vida eterna pela participação na vida divina.

38 Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro incessante e uma gratidão sem limites não podem deixar de se apoderar do crente diante desta inesperada e inefável verdade que nos vem de Deus em Cristo. O crente faz suas as palavras do apóstolo João: « Vede com que amor nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo-lo de facto! (...) Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos, porém, que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é » (1Jn 3,1-2).

Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor d'Ele. É à luz desta verdade que Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: « glória de Deus » é, sim, « o homem vivo », mas « a vida do homem consiste na visão de Deus ». 27

Daqui resultam consequências imediatas para a vida humana em sua própria condição terrena, na qual já germinou e está a crescer a vida eterna. Se o homem ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e profundidade nas dimensões divinas desse bem. Em semelhante perspectiva, o amor que cada ser humano tem pela vida não se reduz à simples busca de um espaço onde poder exprimir-se a si mesmo e entrar em relação com os outros, mas evolui até à certeza feliz de poder fazer da própria existência o « lugar » da manifestação de Deus, do encontro e comunhão com Ele. A vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa existência no tempo, mas assume-a e condu-la ao seu último destino: « Eu sou a ressurreição e a vida; (...) todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais » (Jn 11,25 Jn 11,26).

27. « Vita autem hominis visio Dei »: Contra las herejías, IV, 20, 7. SCh 100/2, 648-649.


« A cada um, pedirei contas do seu irmão » : veneração e amor pela vida dos outros

39 (cf. Gn 9,5)
A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura d'Ele, participação do seu sopro vital. Desta vida, portanto, Deus é o único senhor: o homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé, depois do dilúvio: « Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão » (Gn 9,5). E o texto bíblico preocupa-se em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu fundamento em Deus e na sua acção criadora: « Porque Deus fez o homem à sua imagem » (Gn 9,6).

Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus, em seu poder: « Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro de vida de todos os homens » — exclama Job (12, 10). « O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à habitação dos mortos e retira de lá » (1S 2,6). Apenas Ele pode afirmar: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32,39).

Mas Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim, como cuidado e solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se é verdade que a vida do homem está nas mãos de Deus, não o é menos que estas são mãos amorosas como as de uma mãe que acolhe, nutre e toma conta do seu filho: « Fico sossegado e tranquilo como criança deitada nos braços de sua mãe, como um menino deitado é a minha alma » (Ps 131 Ps 130,2 cf. Is Is 49,15 Is 66,12-13 Os 11,4). Assim nas vicissitudes dos povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o fruto de pura casualidade ou de um destino cego, mas o resultado de um desígnio de amor, pelo qual Deus resguarda todas as potencialidades da vida e se contrapõe às forças de morte que nascem do pecado: « Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência » (Sg 1,13-14).


40 Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as origens no coração do homem, na sua consciência. A pergunta « que fizeste? » (Gn 4,10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida — a própria e a alheia —, como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador e Pai.

O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro dos « dez mandamentos » na aliança do Sinai (cf. Ex Ex 34,28). Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: « Não matarás » (Ex 20,13), « não causarás a morte do inocente e do justo » (Ex 23,7); mas proíbe também — como se explicita na legislação posterior de Israel — qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex Ex 21,12-27). Tem-se de reconhecer que esta sensibilidade pelo valor da vida no Antigo Testamento, apesar de já tão notável, não alcança ainda a perfeição do Sermão da Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação penal então vigente, que previa castigos corporais pesados e até mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta mensagem, que o Novo Testamento levará à perfeição, é já um forte apelo ao respeito pela inviolabilidade da vida física e da integridade pessoal, e tem o seu ápice no mandamento positivo que obriga a cuidar do próximo como de si mesmo: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19,18).


Evangelium vitae PT 27