Evangelium vitae PT 64

« Só Eu é que dou a vida e dou a morte » : o drama da eutanásia

64 (Dt 32,39)
No outro topo da existência, o homem encontra-se diante do mistério da morte. Hoje, na sequência dos progressos da medicina e num contexto cultural frequentemente fechado à transcendência, a experiência do morrer apresenta-se com algumas características novas. Com efeito, quando prevalece a tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso libertar-se a todo o custo. A morte, considerada como « absurda » quando interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo contrário, uma « libertação reivindicada », quando a existência é tida como já privada de sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre mais intenso.

Além disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento fundamental com Deus, o homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga que tem inclusive o direito de pedir à sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de decidir da própria vida com plena e total autonomia. Em particular, o homem que vive nos países desenvolvidos é que assim se comporta: a tal se sente impelido, entre outras coisas, pelos contínuos progressos da medicina e das suas técnicas cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como também de sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade extrema, de reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para transplante.

Num tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação daeutanásia, isto é, de apoderar-se da morte, provocando-a antes do tempo e, deste modo, pondo fim « docemente » à vida própria ou alheia. Na realidade, aquilo que poderia parecer lógico e humano, quando visto em profundidade, apresenta-se absurdo e desumano. Estamos aqui perante um dos sintomas mais alarmantes da « cultura de morte » que avança sobretudo nas sociedades do bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade eficientista que faz aparecer demasiadamente gravoso e insuportável o número crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita frequência, estas acabam por ser isoladas da família e da sociedade, organizada quase exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência produtiva, segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer valor.



65 Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. « A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues ». 76

Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência « renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes ». 77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte. 78

Na medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados « cuidados paliativos », destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto, entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento « heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, « se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ». 79 É que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, « não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave »: 80 quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.

Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal. 82

A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio.

76. Congregación para la Doctrina de la Fe, Decl. Iura et bona, sobre la eutanasia (5 mayo 1980), II: AAS 72 (1980), 546.
77. Ibid., IV, l.c., 551.
78. Cf. Ibid.
79. Discurso a un grupo internacional de médicos (24 febrero 1957), III; AAS 49 (1957), 147; Cf.. Congregación para la Doctrina de la Fe, Decl. Iura et bona, sobre la eutanasia, III: AAS 72 (1980), 547-548.
80. Pío XII, Discurso a un grupo internacional de médicos (24 febrero 1957), III: AAS 49 (1957), 145.
81. Cf. Pío XII, Discurso a un grupo internacional de médicos (24 febrero 1957): AAS 49 (1957), 129-147; Congregación del San Oficio, Decretum de directa insontium occisione (2 diciembre 1940): AAS 32 ( 1940), 553-554; Pablo VI, Mensaje a la televisión francesa: « Toda vida es sagrada » (27 enero 1971): Insegnamenti IX 1971), 57-58; Discurso al International College of Surgeons (1 junio 1972): AAS 64 (1972), 432-436; Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, sobre la Iglesia en el mundo actual,
GS 27.
82. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, sobre la Iglesia, LG 25.



66 Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente má. 83 Embora certos condicionalismos psicológicos, culturais e sociais possam levar a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjectiva, o suicídio, sob o perfil objectivo, é um acto gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto. 84 No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração do antigo Sábio de Israel: « Vós, Senhor, tendes o poder da vida e da morte, e conduzis os fortes à porta do Hades e de lá os tirais » (Sg 16,13 cf. Tb 13,2).

Compartilhar a intenção suicida de outrem e ajudar a realizá-la mediante o chamado « suicídio assistido », significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer quando requerida. « Nunca é lícito — escreve com admirável actualidade Santo Agostinho — matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque, suspenso entre a vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma que luta contra os laços do corpo e deseja desprender-se; nem é lícito sequer quando o doente já não estivesse em condições de sobreviver ». 85 Mesmo quando não é motivada pela recusa egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a eutanásia deve designar-se uma falsa compaixão, antes uma preocupante « perversão » da mesma: a verdadeira « compaixão », de facto, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto da eutanásia, quando é realizado por aqueles que — como os parentes — deveriam assistir com paciência e amor o seu familiar, ou por quantos — como os médicos —, pela sua específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive nas condições terminais mais penosas.

A decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se configura como um homicídio, que os outros praticam sobre uma pessoa que não a pediu de modo algum nem deu nunca qualquer consentimento para a mesma. Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça, quando alguns, médicos ou legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden: tornar-se como Deus « conhecendo o bem e o mal » (cf. Gn Gn 3,5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de fazer viver: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32,39 cf. 2R 5,7 1S 2,6). Ele exerce o seu poder sempre e apenas segundo um desígnio de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica insensata e egoísta, usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte. Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do mais forte; na sociedade, perde-se o sentido da justiça e fica minada pela raiz a confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica entre as pessoas.

83. Cf. S. Agustín, De Civitate Dei I, 20: CCL 47, 22; S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II 6,5.
84. Cf. Congregación para la Doctrina de la Fe, Decl. Iura et bona, sobre la eutanasia (5 mayo 1980), I: AAS 72 (1980), 545; Catecismo de la Iglesia Católica, CEC 2281-2283.
85. Epistula 204, 5: CSEL 57, 320.


67 Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira compaixão, que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Redentor, morto e ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos recordou o Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa » para o homem; e, todavia, « a intuição do próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte ». 86

Esta repugnância natural da morte e este germe de esperança na imortalidade são iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que promete e oferece a participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que, pela sua morte redentora, libertou o homem da morte, « salário do pecado » (
Rm 6,23), e lhe deu o Espírito, penhor de ressurreição e de vida (cf. Rm Rm 8,11). A certeza da imortalidade futura e a esperança na ressurreição prometida projectam uma luz nova sobre o mistério do sofrimento e da morte e infundem no crente uma força extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus.

O apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total ao Senhor que abraça qualquer condição humana: « Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor » (Rm 14,7-8). Morrer para o Senhor significa viver a própria morte como acto supremo de obediência ao Pai (cf. Fil Ph 2,8), aceitando encontrá-la na « hora » querida e escolhida por Ele (cf. Jo Jn 13,1), o único que pode dizer quando está cumprido o caminho terreno. Viver para o Senhor significa também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem. E torna-se tal se é vivido por amor e com amor, na participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção pessoal, no próprio sofrimento de Cristo crucificado. Deste modo, quem vive o seu sofrimento no Senhor fica mais plenamente configurado com Ele (cf. Fil Ph 3,10 1P 2,21) e intimamente associado à sua obra redentora a favor da Igreja e da humanidade. 87 É esta experiência do Apóstolo, que toda a pessoa que sofre é chamada a viver: « Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja » (Col 1,24).

86. Const. past. Gaudium et spes, sobre la Iglesia en el mundo actual, GS 18.
87. Cf. Carta ap. Salvifici doloris (11 febrero 1984), 14-24: AAS 76 ( 1984 ), 214-234.


« Importa mais obedecer a Deus do que aos homens » : a lei civil e a lei moral

68 (Ac 5,29)
Uma das características dos actuais atentados à vida humana — como já se disse várias vezes — é a tendência para exigir a sua legitimação jurídica, como se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em certas condições, reconhecer aos cidadãos e, consequentemente, a pretensão da execução dos mesmos com a assistência segura e gratuita dos médicos e restantes profissionais da saúde.

Considera-se, não raro, que a vida daquele que ainda não nasceu ou está gravemente debilitado, seria um bem simplesmente relativo: teria de ser confrontada e ponderada com outros bens, segundo uma lógica proporcionalista ou de puro cálculo. Igualmente pensa-se que só quem se encontra na situação concreta e nela está pessoalmente implicado é que poderia realizar uma justa ponderação dos bens em jogo: por conseguinte, unicamente essa pessoa poderia decidir sobre a moralidade da sua escolha. Por isso, e no interesse da convivência civil e da harmonia social, o Estado deveria respeitar essa escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e a eutanásia.

Outras vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos os cidadãos vivessem segundo um grau de moralidade mais elevado do que aquele que eles mesmos reconhecem e condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a opinião e a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes também, pelo menos em certos casos extremos, o direito ao aborto e à eutanásia. Nesses casos, aliás, a proibição e a punição dos referidos actos conduziria inevitavelmente — assim o dizem — a um aumento de práticas clandestinas: e estas escapariam ao necessário controlo social e seriam realizadas sem a devida segurança médica. E interrogam-se, além disso, se o apoiar uma lei que não é concretamente aplicável não significaria, em última análise, minar também a autoridade de qualquer outra lei.

Nas opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que, numa sociedade moderna e pluralista, deveria ser reconhecida a cada pessoa total autonomia para dispor da própria vida e da vida de quem ainda não nasceu: não seria competência da lei fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e menos ainda poderia ela pretender impor uma opinião particular em detrimento das outras.


69 Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico de uma sociedade haveria de limitar-se a registar e acolher as convicções da maioria e, consequentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo que a própria maioria reconhece e vive como moral. Se, depois, se chega a pensar que uma verdade comum e objectiva seria realmente inacessível, então o respeito pela liberdade dos cidadãos — que, num regime democrático, são considerados os verdadeiros soberanos — exigiria que, a nível legislativo, se reconhecesse a autonomia da consciência de cada um e, por conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que são absolutamente necessárias à convivência social, se adequassem exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela qual fosse. Desta maneira, todo o político deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o do comportamento público.

Em consequência disto, registam-se duas tendências que na aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia moral de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem imponha qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um dos outros cidadãos também tem direito. Mas por outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções públicas e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções para se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem e tutelam, aceitando como único critério moral no exercício das próprias funções aquilo que está estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é delegada na lei civil com a abdicação da própria consciência moral, pelo menos no âmbito da acção pública.



70 Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta quem pense que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto que só ele garantiria tolerância, respeito recíproco entre as pessoas e adesão às decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objectivas e vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.

Mas é exactamente a problemática conexa com o respeito da vida que mostra os equívocos e contradições, com terríveis resultados práticos, que se escondem nesta posição.

É verdade que a história regista casos de crimes cometidos em nome da « verdade ». Mas crimes não menos graves e negações radicais da liberdade foram também cometidos e cometem-se em nome do « relativismo ético ». Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, porventura não assume uma decisão « tirânica » contra o ser humano mais débil e indefeso? Justamente reage a consciência universal diante dos crimes contra a humanidade, de que o nosso século viveu tão tristes experiências. Porventura deixariam de ser crimes, se, em vez de terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem legitimados por consenso popular?

Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade ou a panaceia da imoralidade. Fundamentalmente, é um « ordenamento » e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu carácter « moral » não é automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa. Regista-se hoje um consenso quase universal sobre o valor da democracia, o que há-de ser considerado um positivo « sinal dos tempos », como o Magistério da Igreja já várias vezes assinalou. 88 Mas, o valor da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e promove: fundamentais e imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do « bem comum » como fim e critério regulador da vida política.

Na base destes valores, não podem estar « maiorias » de opinião provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei moral objectiva que, enquanto « lei natural » inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de referência para a própria lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da consciência colectiva, o cepticismo chegasse a pôr em dúvida mesmo os princípios fundamentais da lei moral, então o próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica dos diversos e contrapostos interesses. 89

Alguém poderia pensar que, na falta de melhor, já esta função reguladora fosse de apreciar em vista da paz social. Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é difícil não ver que, sem um ancoradouro moral objectivo, a democracia não pode assegurar uma paz estável, até porque é ilusória a paz não fundada sobre os valores da dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos próprios regimes de democracia representativa, de facto, a regulação dos interesses é frequentemente feita a favor dos mais fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna uma palavra vazia.

88. Cf, Carta enc. Centesimus annus (1 mayo 1991),
CA 46: AAS 83 (1991), 850; Pío XII, Radiomensaje de Navidad (24 diciembre 1944): AAS 37 (1945), 10-20.
89. Cf. Carta enc, Veritatis splendor (6 agosto 1993), VS 97 VS 99: AAS 85 ( 1993 ), 1209-1211.


71 Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge, pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congénitos, que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover.

Importa retomar, neste sentido, os elementos fundamentais da visão das relações entre lei civil e lei moral, tal como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do património das grandes tradições jurídicas da humanidade.

Certamente, a função da lei civil é diversa e de âmbito mais limitado que a da lei moral. De facto, « em nenhum âmbito da vida, pode a lei civil substituir-se à consciência, nem pode ditar normas naquilo que ultrapassa a sua competência », 90 que é assegurar o bem comum das pessoas, mediante o reconhecimento e defesa dos seus direitos fundamentais, a promoção da paz e da moralidade pública. 91 Com efeito, a função da lei civil consiste em garantir uma convivência social na ordem e justiça verdadeira, para que todos « tenhamos vida tranquila e sossegada, com toda a piedade e honestidade » (
1Tm 2,2). Por isso mesmo, a lei civil deve assegurar a todos os membros da sociedade o respeito de alguns direitos fundamentais, que pertencem por natureza à pessoa e que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro e fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de todo o ser humano inocente. Se a autoridade pública pode, às vezes, renunciar a reprimir algo que, se proibido, provocaria um dano maior, 92 ela não poderá nunca aceitar como direito dos indivíduos — ainda que estes sejam a maioria dos membros da sociedade —, a ofensa infligida a outras pessoas através do menosprezo de um direito tão fundamental como o da vida. A tolerância legal do aborto ou da eutanásia não pode, de modo algum, fazer apelo ao respeito pela consciência dos outros, precisamente porque a sociedade tem o direito e o dever de se defender contra os abusos que se possam verificar em nome da consciência e com o pretexto da liberdade. 93

A este propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem in terris: « Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste sobretudo no respeito dos direitos e deveres da pessoa. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres". Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico ». 94

90. Congregación para la Doctrina de la Fe, Instr. Donum vitae, sobre el respeto de la vida humana naciente y la dignidad de la procreación (22 febrero 1987), III; AAS 80 (1988), 98.
91. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae, sobre la libertad religiosa, DH 7.
92. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II 96,2.
93. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae, sobre la libertad religiosa, 7.
94 Carta enc. Pacem in terris (11 abril 1963 ), II: AAS 55 ( 1963 ), PT 273-274; la cita interna está tomada del Radiomensaje de Pentecostés 1941 (1 junio 1941 ) de Pío XII: AAS 33 ( 1941 ), 200. Sobre este tema la Encíclica hace referencia en nota a: Pío XI, Carta enc. Mit brennender Sorge (14 marzo 1937): AAS 29 (1937), 159; Carta enc. Divini Redemptoris (19 marzo 1937), III: AAS 29 (1937), 79; Pío XII, Radiomensaje de Navidad (24 diciembre 1942): AAS 35 (1943), 9-24.


72 Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a doutrina da necessidade da lei civil se conformar com a lei moral, como se vê na citada encíclica de João XXIII: « A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder ». 95 O mesmo ensinamento aparece claramente em S. Tomás de Aquino, que escreve: « A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um acto de violência ». 96 E ainda: « Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei mas sim corrupção da lei ». 97

Ora, a primeira e mais imediata aplicação desta doutrina diz respeito à lei humana que menospreza o direito fundamental e primordial à vida, direito próprio de cada homem. Assim, as leis que legitimam a eliminação directa de seres humanos inocentes, por meio do aborto e da eutanásia, estão em contradição total e insanável com o direito inviolável à vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos perante a lei. Poder-se-ia objectar que é diverso o caso da eutanásia, quando pedida em plena consciência pelo sujeito interessado. Mas um Estado que legitimasse tal pedido, autorizando a sua realização, estaria a legalizar um caso de suicídio-homicídio, contra os princípios fundamentais da não- -disponibilidade da vida e da tutela de cada vida inocente. Deste modo, favorece-se a diminuição do respeito pela vida e abre-se a estrada a comportamentos demolidores da confiança nas relações sociais.

As leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia colocam-se, pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra o bem comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade jurídica. De facto, o menosprezo do direito à vida, exactamente porque leva a eliminar a pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua razão de existir, é aquilo que se contrapõe mais frontal e irreparavelmente à possibilidade de realizar o bem comum. Segue-se daí que, quando uma lei civil legitima o aborto ou a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei civil, moralmente obrigatória.

95. Carta enc. Pacem in terris (11 abril 1963), l.c.,
PT 271.
96. Summa Theologiae, I-II 93,3, ad 2um.
97. Ibid., I-II 95,2. El Aquinate cita a S.. Agustín: «Non videtur esse lex, quae insta non fuerit», De libero arbitrio, I, 5, 11: PL 32, 1227.


73 O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas através da objecção de consciência. Desde os princípios da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas (cf. Rm Rm 13,1-7 1P 2,13-14), mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que « importa mais obedecer a Deus do que aos homens » (Ac 5,29). Já no Antigo Testamento e a propósito de ameaças contra a vida, encontramos um significativo exemplo de resistência à ordem injusta da autoridade. As parteiras dos hebreus opuseram-se ao Faraó, que lhes tinha dado a ordem de matarem todos os rapazes por ocasião do parto. « Não cumpriram a ordem do rei do Egipto, e deixaram viver os rapazes » (Ex 1,17). Mas há que salientar o motivo profundo deste seu comportamento: « As parteiras temiam a Deus » (Ex 1,17). É precisamente da obediência a Deus — o único a Quem se deve aquele temor que significa reconhecimento da sua soberania absoluta — que nascem a força e a coragem de resistir às leis injustas dos homens. É a força e a coragem de quem está disposto mesmo a ir para a prisão ou a ser morto à espada, na certeza de que nisto « está a paciência e a fé dos Santos » (Ap 13,10).

Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, « nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o próprio voto ». 98

Um particular problema de consciência poder-se-ia pôr nos casos em que o voto parlamentar fosse determinante para favorecer uma lei mais restritiva, isto é, tendente a restringir o número dos abortos autorizados, como alternativa a uma lei mais permissiva já em vigor ou posta a votação. Não são raros tais casos. Sucede, com efeito, que, enquanto, nalgumas partes do mundo, continuam as campanhas para a introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes apoiadas por organismos internacionais poderosos, noutras nações, pelo contrário — particularmente naquelas que já fizeram a amarga experiência de tais legislações permissivas —, vão-se manifestando sinais de reconsideração. No caso hipotizado, quando não fosse possível esconjurar ou abrogar completamente uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta oposição pessoal ao aborto fosse clara e conhecida de todos, poderia licitamente oferecer o próprio apoio a propostas que visassem limitar os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade pública. Ao proceder assim, de facto, não se realiza a colaboração ilícita numa lei injusta; mas cumpre-se, antes, uma tentativa legítima e necessária para limitar os seus aspectos iníquos.

98. Congregación para la Doctrina de la Fe, Declaración sobre el aborto procurado (18 noviembre 1974), 22:AAS 66 (1974), 744.


Evangelium vitae PT 64