Familiaris consortio PT 16

Matrimónio e virgindade

16A virgindade e o celibato pelo Reino de Deus não só não contradizem a dignidade do matrimónio, mas a pressupõem e confirmam. O matrimónio e a virgindade são os dois modos de exprimir e de viver o único Mistério da Aliança de Deus com o seu povo. Quando não se tem apreço pelo matrimónio, não tem lugar a virgindade consagrada; quando a sexualidade humana não é considerada um grande valor dado pelo Criador, perde significado a renúncia pelo Reino dos Céus.

De modo muito justo diz S. João Crisóstomo: «Quem condena o matrimónio, priva a virgindade da sua glória; pelo contrário, quem o louva, torna a virgindade mais admirável e esplendente. O que parece um bem apenas quando comparado ao mal, não é pois um grande bem; mas o que é melhor do que aquilo que todos consideram bom, é certamente um bem em grau superlativo»(38).

Na virgindade o homem está inclusive corporalmente em atitude de espera, pelas núpcias escatológicas de Cristo com a Igreja, dando-se integralmente à Igreja na esperança de que Cristo se lhe doe na plena verdade da vida eterna. A pessoa virgem antecipa assim na sua carne o mundo novo da ressurreição futura(39).

Por força deste testemunho, a virgindade mantém viva na Igreja a consciência do mistério do matrimónio e defende-o de todo o desvio e de todo o empobrecimento.

Tornando livre de um modo especial o coração humano(40), «de forma a inebriá-lo muito mais de caridade para com Deus e para com todos os homens»(41), a virgindade testemunha que o Reino de Deus e a sua justiça são aquela pérola preciosa que é preferida a qualquer outro valor, mesmo que seja grande, e, mais ainda, é procurada como o único valor definitivo. É por isso que a Igreja, durante toda a sua história, defendeu sempre a superioridade deste carisma no confronto com o do matrimónio, em razão do laço singular que ele tem com o Reino de Deus(42).

Embora tendo renunciado à fecundidade física, a pessoa virgem torna-se espiritualmente fecunda, pai e mãe de muitos, cooperando na realização da família segundo o desígnio de Deus.

Os esposos cristãos têm portanto o direito de esperar das pessoas virgens o bom exemplo e o testemunho da fidelidade à sua vocação até à morte. Como para os esposos a fidelidade se torna às vezes difícil e exige sacrifício, mortificação e renúncia, também o mesmo pode acontecer às pessoas virgens. A fidelidade destas, mesmo na provação eventual, deve edificar a fidelidade daqueles(43).

Estas reflexões sobre a virgindade podem iluminar e ajudar os que, por motivos independentes da sua vontade, não se puderam casar e depois aceitaram a sua situação em espírito de serviço.

(38) São João Crisóstomo, Virginitas X: PG 48, 540.
(39) Cfr.
Mt 22,30.
(40) Cfr. 1Co 7,32-35.
(41) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae Caritatis, PC 12.
(42) Cfr. Pio PP. XII, Carta Enc. Sacra Virginitas, II: AAS 46 (1954), 174 ss.
(43) Cfr. João Paulo PP. II, Carta Novo Incipiente (8 de Abril de 1979), 9: AAS 71 (1979), 410s.



TERCEIRA PARTE

OS DEVERES DA FAMÍLIA CRISTÃ


Família, torna-te aquilo que és!

17 No plano de Deus Criador e Redentor a família descobre não só a sua «identidade», o que «é», mas também a sua «missão», o que ela pode e deve «fazer». As tarefas, que a família é chamada por Deus a desenvolver na história, brotam do seu próprio ser e representam o seu desenvolvimento dinâmico e existencial. Cada família descobre e encontra em si mesma o apelo inextinguível, que ao mesmo tempo define a sua dignidade e a sua responsabilidade: família, «torna-te aquilo que és»!

Voltar ao «princípio» do gesto criativo de Deus é então uma necessidade para a família, se se quiser conhecer e realizar segundo a verdade interior não só do seu ser mas também do seu agir histórico. E porque, segundo o plano de Deus, é constituída qual «íntima comunidade de vida e de amor»(44), a família tem a missão de se tornar cada vez mais aquilo que é, ou seja, comunidade de vida e de amor, numa tensão que, como para cada realidade criada e redimida, encontrará a plenitude no Reino de Deus. E numa perspectiva que atinge as próprias raízes da realidade, deve dizer-se que a essência e os deveres da família são, em última análise, definidos pelo amor. Por isto é-lhe confiada a missão de guardar, revelar e comunicar o amor, qual reflexo vivo e participação real do amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo pela Igreja, sua esposa.

Cada dever particular da família é a expressão e a actuação concreta de tal missão fundamental. É necessário, portanto, penetrar mais profundamente na riqueza singular da missão da família e sondar os seus conteúdos numerosos e unitários.

Em tal sentido, partindo do amor e em permanente referência a ele, o recente Sínodo pôs em evidência quatro deveres gerais da família:

1) a formação de uma comunidade de pessoas;

2) o serviço à vida;

3) a participação no desenvolvimento da sociedade;

4) a participação na vida e na missão da Igreja.

(44) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes,
GS 48.



I - A FORMAÇÃO DE UMA COMUNIDADE DE PESSOAS


O amor, princípio e for\bç\Ba\b \Bde comunhão

18A família, fundada e vivificada pelo amor, é uma comunidade de pessoas: dos esposos, homem e mulher, dos pais e dos filhos, dos parentes. A sua primeira tarefa é a de viver fielmente a realidade da comunhão num constante empenho por fazer crescer uma autêntica comunidade de pessoas.

O princípio interior, a força permanente e a meta última de tal dever é o amor: como, sem o amor, a família não é uma comunidade de pessoas, assim, sem o amor, a família não pode viver, crescer e aperfeiçoar-se como comunidade de pessoas. Quanto escrevi na Encíclica Redemptor Hominisencontra, exactamente na família como tal, a sua aplicação originária e privilegiada: «O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e se não o torna algo próprio, se nele não participa vivamente»(45).

O amor entre o homem e a mulher no matrimónio e, de forma derivada e ampla, o amor entre os membros da mesma família - entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e familiares - é animado e impelido por um dinamismo interior e incessante, que conduz a família a uma comunhãosempre mais profunda e intensa, fundamento e alma da comunidade conjugal e familiar.

(45) N.
RH 10: AAS 71 (1979), 274.


A unidade indivisível\b \Bda comunhão conjugal

19A primeira comunhão é a que se instaura e desenvolve entre os cônjuges: em virtude do pacto de amor conjugal, o homem e a mulher «já não são dois, mas uma só carne»(46) e são chamados a crescer continuamente nesta comunhão através da fidelidade quotidiana à promessa matrimonial do recíproco dom total.

Esta comunhão conjugal radica-se na complementariedade natural que existe entre o homem e a mulher e alimenta-se mediante a vontade pessoal dos esposos de condividir, num projecto de vida integral, o que têm e o que são: por isso, tal comunhão é fruto e sinal de uma exigência profundamente humana. Porém, em Cristo, Deus assume esta exigência humana, confirma-a, purifica-a e eleva-a, conduzindo-a à perfeição com o sacramento do matrimónio: o Espírito Santo infuso na celebração sacramental oferece aos esposos cristãos o dom de uma comunidade nova, de amor, que é a imagem viva e real daquela unidade singularíssima, que torna a Igreja o indivisível Corpo Místico do Senhor.

O dom do Espírito é um mandamento de vida para os esposos cristãos e, ao mesmo tempo, impulso estimulante a que progridam continuamente numa união cada vez mais rica a todos os níveis - dos corpos, dos caracteres, dos corações, das inteligências e das vontades, das almas(47) - revelando deste modo à Igreja e ao mundo a nova comunhão de amor, doada pela graça de Cristo.

A poligamia contradiz radicalmente uma tal comunhão. Nega de facto, directamente o plano de Deus como nos foi revelado nas origens, porque contrária à igual dignidade pessoal entre o homem e a mulher, que no matrimónio se doam com um amor total e por isso mesmo único e exclusivo. Como escreve o Concílio Vaticano II: «A unidade do matrimónio, confirmado pelo Senhor, manifesta-se também claramente na igual dignidade pessoal da mulher e do homem que se deve reconhecer no mútuo e pleno amor»(48).

(46)
Mt 19,6; cfr. Gn 2,24.
(47) Cfr. João Paulo PP. II, Discurso aos Esposos (Kinshasa, 3 de Maio de 1980), 4: AAS 72 (1980), 426
(48) Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 49; cfr. João Paulo PP. II, Discurso aos Esposos (Kinshasa, 3 de Maio de 1980): 1. c.


Uma comunhão indissolúvel

20A comunhão conjugal caracteriza-se não só pela unidade mas também pela sua indissolubilidade: «Esta união íntima, já que é dom recíproco de duas pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a indissolubilidade da sua união»(49).

É dever fundamental da Igreja reafirmar vigorosamente - como fizeram os Padres do Sínodo - a doutrina da indissolubilidade do matrimónio: a quantos, nos nossos dias, consideram difícil ou mesmo impossível ligar-se a uma pessoa por toda a vida e a quantos, subvertidos por uma cultura que rejeita a indissolubilidade matrimonial e que ridiculariza abertamente o empenho de fidelidade dos esposos, é necessário reafirmar o alegre anúncio da forma definitiva daquele amor conjugal, que tem em Jesus Cristo o fundamento e o vigor(50).

Radicada na doação pessoal e total dos cônjuges e exigida pelo bem dos filhos, a indissolubilidade do matrimónio encontra a sua verdade última no desígnio que Deus manifestou na Revelação: Ele quer e concede a indissolubilidade matrimonial como fruto, sinal e exigência do amor absolutamente fiel que Deus Pai manifesta pelo homem e que Cristo vive para com a Igreja.

Cristo renova o desígnio primitivo que o Criador inscreveu no coração do homem e da mulher, e, na celebração do sacramento do matrimónio, oferece um «coração novo»: assim os cônjuges podem não só superar a «dureza do coração»(51), mas também e sobretudo compartir o amor pleno e definitivo de Cristo, nova e eterna Aliança feita carne. Assim como o Senhor Jesus é a «testemunha fiel»(52), é o «sim» das promessas de Deus(53) e, portanto, a realização suprema da fidelidade incondicional com que Deus ama o seu povo, da mesma forma os cônjuges cristãos são chamados a uma participação real na indissolubilidade irrevogável, que liga Cristo à Igreja, sua esposa, por Ele amada até ao fim(54).

O dom do sacramento é, ao mesmo tempo, vocação e dever dos esposos cristãos, para que permaneçam fiéis um ao outro para sempre, para além de todas as provas e dificuldades, em generosa obediência à santa vontade do Senhor: «O que Deus uniu, não o separe o homem»(55).

Testemunhar o valor inestimável da indissolubilidade e da fidelidade matrimonial é uma das tarefas mais preciosas e mais urgentes dos casais cristãos do nosso tempo. Por isso, juntamente com todos os Irmãos que participaram no Sínodo dos Bispos, louvo e encorajo os numerosos casais que, embora encontrando não pequenas dificuldades, conservam e desenvolvem o dom da indissolubilidade: cumprem desta maneira, de um modo humilde e corajoso, o dever que lhes foi confiado de ser no mundo um «sinal» - pequeno e precioso sinal, submetido também às vezes à tentação, mas sempre renovado - da fidelidade infatigável com que Deus e Jesus Cristo amam todos os homens e cada homem. Mas é também imperioso reconhecer o valor do testemunho daqueles cônjuges que, embora tendo sido abandonados pelo consorte, com a força da fé e da esperança cristãs, não contraíram uma nova união. Estes cônjuges dão também um autêntico testemunho de fidelidade, de que tanto necessita o mundo de hoje. Por isto mesmo devem ser encorajados e ajudados pelos pastores e pelos fiéis da Igreja.

(49) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes,
GS 48.
(50) Cfr. Ep 5,25.
(51) Cfr. Mt 19,8.
(52) Ap 3,14.
(53) Cfr. 2Co 1,20.
(54) Cfr. Jn 13,1.
(55) Mt 19,6.


A comunhão mais ampla da família

21A comunhão conjugal constitui o fundamento sobre o qual se continua a edificar a mais ampla comunhão da família: dos pais e dos filhos, dos irmãos e das irmãs entre si, dos parentes e de outros familiares.

Tal comunhão radica-se nos laços naturais da carne e do sangue, e desenvolve-se encontrando o seu aperfeiçoamento propriamente humano na instauração e maturação dos laços ainda mais profundos e ricos do espírito: o amor, que anima as relações interpessoais dos diversos membros da família, constitui a força interior que plasma e vivifica a comunhão e a comunidade familiar.

A família cristã é, portanto, chamada a fazer a experiência de uma comunhão nova e original, que confirma e aperfeiçoa a comunhão natural e humana. Na realidade, a graça de Jesus Cristo, «o Primogénito entre muitos irmãos»(56), é por sua natureza e dinamismo interior uma «graça de fraternidade» como a chama Santo Tomás de Aquino(57). O Espírito Santo, que se infunde na celebração dos sacramentos, é a raiz viva e o alimento inexaurível da comunhão sobrenatural que estreita e vincula os crentes com Cristo, na unidade da Igreja de Deus. Uma revelação e actuação específica da comunhão eclesial é constituída pela família cristã que também, por isto, se pode e deve chamar «Igreja doméstica»(58).

Todos os membros da família, cada um segundo o dom que lhe é peculiar, possuem a graça e a responsabilidade de construir, dia após dia, a comunhão de pessoas, fazendo da família uma «escola de humanismo mais completo e mais rico»(59): é o que vemos surgir com o cuidado e o amor para com os mais pequenos, os doentes e os anciãos; com o serviço recíproco de todos os dias; com a co-participação nos bens, nas alegrias e nos sofrimentos.

Um momento fundamental para construir uma comunhão semelhante é constituído pelo intercambio educativo entre pais e filhos(60), no qual cada um deles dá e recebe. Mediante o amor, o respeito, a obediência aos pais, os filhos dão o seu contributo específico e insubstituível para a edificação de uma família autenticamente humana e cristã(61). Isso ser-lhe-á facilitado, se os pais exercerem a sua autoridade irrenunciável como um «ministério» verdadeiro e pessoal, ou seja, como um serviço ordenado ao bem humano e cristão dos filhos, ordenado particularmente a proporcionar-lhes uma liberdade verdadeiramente responsável; e se os pais mantiverem viva a consciência do «dom» que recebem continuamente dos filhos.

A comunhão familiar só pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito de sacrifício. Exige, de facto, de todos e de cada um, pronta e generosa disponibilidade à compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação. Nenhuma família ignora como o egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos agridem, de forma violenta e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e variadas formas de divisão da vida familiar. Mas, ao mesmo tempo, cada família é sempre chamada pelo Deus da paz a fazer a experiência alegre e renovadora da «reconciliação», ou seja, da comunhão restabelecida, da unidade reencontrada Em particular a participação no sacramento da reconciliação e no banquete do único Corpo de Cristo oferece à família cristã a graça e a responsabilidade de superar todas as divisões e de caminhar para a plena verdade querida por Deus, respondendo assim ao vivíssimo desejo do Senhor: que «todos sejam um»(62).

(56)
Rm 8,29.
(57) S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II 14,2, ad 4.
(58) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 11; Cfr. Decr. sobre o apostolado dos Leigos Apostolicam Actuositatem, AGD 11.
(59) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 52.
(60) Cfr. Ep 6,1-4 Col 3,20 s.
(61) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 48.
(62) Jn 17,21.


Direitos e função da mulher

22 Enquanto é, e deve tornar-se, comunhão e comunidade de pessoas, a família encontra no amor a fonte e o estímulo incessante para acolher, respeitar e promover cada um dos seus membros na altíssima dignidade de pessoas, isto é, de imagens vivas de Deus. Como justamente afirmaram os Padres Sinodais, o critério moral da autenticidade das relações conjugais e familiares consiste na promoção da dignidade e vocação de cada uma das pessoas que encontram a sua plenitude mediante o dom sincero de si mesmas(63).

Nesta perspectiva, o Sínodo quis prestar atenção privilegiada à mulher, aos seus direitos e função na família e na sociedade. Nesta mesma perspectiva devem considerar-se também o homem como esposo e pai, a criança e os anciãos.

É de ressaltar-se antes de tudo a igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem: tal igualdade encontra uma forma singular de realização na doação recíproca de si ao outro e de ambos aos filhos, doação que é específica do matrimónio e da família. Tudo o que a razão intui e reconhece, vem revelado plenamente pela Palavra de Deus: a história da salvação é, de facto, um contínuo e claro testemunho da dignidade da mulher.

Ao criar o homem «varão e mulher»(64), Deus dá a dignidade pessoal de igual modo ao homem e à mulher, enriquecendo-os dos direitos inalienáveis e das responsabilidades que são próprias da pessoa humana. Deus manifesta ainda na forma mais elevada possível a dignidade da mulher, ao assumir Ele mesmo a carne humana da Virgem Maria, que a Igreja honra como Mãe de Deus, chamando-a nova Eva e propondo-a como modelo da mulher redimida. O delicado respeito de Jesus para com as mulheres a quem chamou ao seu séquito e amizade, a aparição na manhã da Páscoa a uma mulher antes que aos discípulos, a missão confiada às mulheres de levar a boa nova da Ressurreição aos apóstolos, são tudo sinais que confirmam a especial estima de Jesus para com a mulher. Dirá o Apóstolo Paulo: «Porque todos vós sois filhos de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo ... Não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus»(65).

(63) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes,
GS 24.
(64) Gn 1,27.
(65) Gn 3,26-28.


A mulher e a sociedade

23 Sem entrar agora a tratar nos seus vários aspectos o amplo e complexo tema das relações mulher-sociedade, mas limitando estas considerações a alguns pontos essenciais, não se pode deixar de observar como, no campo mais especificamente familiar, uma ampla e difundida tradição social e cultural tenha pretendido confiar à mulher só a tarefa de esposa e mãe, sem a estender adequadamente às funções públicas, em geral, reservadas ao homem.

Não há dúvida que a igual dignidade e responsabilidade do homem e da mulher justificam plenamente o acesso da mulher às tarefas públicas. Por outro lado, a verdadeira promoção da mulher exige também que seja claramente reconhecido o valor da sua função materna e familiar em confronto com todas as outras tarefas públicas e com todas as outras profissões. De resto, tais tarefas e profissões devem integrar-se entre si se se quer que a evolução social e cultural seja verdadeira e plenamente humana.

Isto conseguir-se-á mais facilmente se, como o desejou o Sínodo, uma renovada «teologia do trabalho» esclarecer e aprofundar o significado do trabalho na vida cristã e determinar o laço fundamental que existe entre o trabalho e a família, e, portanto, o significado original e insubstituível do trabalho da casa e da educação dos filhos(66). Portanto a Igreja pode e deve ajudar a sociedade actual pedindo insistentemente que seja reconhecido por todos e honrado no seu insubstituível valor o trabalho da mulher em casa. Isto é de importância particular na obra educativa: de facto, elimina-se a própria raiz da possível discriminação entre os diversos trabalhos e profissões, logo que se veja claramente como todos, em cada campo, se empenham com idêntico direito e com idêntica responsabilidade. Deste modo aparecerá mais esplendente a imagem de Deus no homem e na mulher.

Se há que reconhecer às mulheres, como aos homens, o direito de ascender às diversas tarefas públicas, a sociedade deve estruturar-se, contudo, de maneira tal que as esposas e as mães não sejam de facto constrangidas a trabalhar fora de casa e que a família possa dignamente viver e prosperar, mesmo quando elas se dedicam totalmente ao lar próprio.

Deve além disso superar-se a mentalidade segundo a qual a honra da mulher deriva mais do trabalho externo do que da actividade familiar. Mas isto exige que se estime e se ame verdadeiramente a mulher com todo o respeito pela sua dignidade pessoal, e que a sociedade crie e desenvolva as devidas condições para o trabalho doméstico.

A Igreja, com o devido respeito pela vocação diversa do homem e da mulher, deve promover, na medida do possível, também na sua vida, a igualdade deles quanto a direitos e dignidades, e isto para o bem de todos: da família, da Igreja e da sociedade.

É evidente, porém, que isto não significa para a mulher a renúncia à sua feminilidade nem a imitação do carácter masculino, mas a plenitude da verdadeira humanidade feminil, tal como se deve exprimir no seu agir, quer na família quer fora dela, sem contudo esquecer, neste campo, a variedade dos costumes e das culturas.

(66) Cfr. João Paulo PP. II, Enc. Laborem Exercens,
LE 19: AAS 73 (1981), 625.


Ofensas à dignidade da mulher

24 Infelizmente a mensagem cristã acerca da dignidade da mulher vem sendo impugnada por aquela persistente mentalidade que considera o ser humano não como pessoa, mas como coisa, como objecto de compra-venda, ao serviço de um interesse egoístico e exclusivo do prazer: e a primeira vítima de tal mentalidade é a mulher.

Esta mentalidade produz frutos bastante amargos, como o desprezo do homem e da mulher, a escravidão, a opressão dos fracos, a pornografia, a prostituição - sobretudo quando é organizada - e todas aquelas várias discriminações que se encontram no âmbito da educação, da profissão, da retribuição do trabalho, etc.

Além disso, ainda hoje, em grande parte da nossa sociedade, permanecem muitas formas de discriminação aviltante que ferem e ofendem gravemente algumas categorias particulares de mulheres, como, por exemplo, as esposas que não têm filhos, as viúvas, as separadas, as divorciadas, as mães-solteiras.

Estas e outras discriminações foram veementemente deploradas pelos Padres Sinodais. Solicito, pois, que se desenvolva uma acção pastoral específica mais vigorosa e incisiva, a fim de que sejam vencidas em definitivo, para se poder chegar à estima plena da imagem de Deus que esplandece em todos os seres humanos, sem nenhuma exclusão.


O homem esposo e pai

25É dentro da comunhão-comunidade conjugal e familiar que o homem é chamado a viver o seu dom e dever de esposo e pai.

Na esposa ele vê o cumprimento do desígnio de Deus: «Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe um auxiliar semelhante a ele»(67) e faz sua a exclamação de Adão, o primeiro esposo: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne»(68).

O amor conjugal autêntico supõe e exige que o homem tenha um profundo respeito pela igual dignidade da mulher: «Não és o senhor - escreve Santo Ambrósio - mas o marido; não te foi dada como escrava, mas como mulher... Retribui-lhe as atenções tidas para contigo e sê-lhe agradecido pelo seu amor»(69). Com a esposa o homem deve viver «uma forma muito especial de amizade pessoal»(70). O cristão, é, além disso, chamado a desenvolver uma atitude de amor novo, manifestando para com a sua esposa a caridade delicada e forte que Cristo nutre pela Igreja(71).

O amor à esposa tornada mãe e o amor aos filhos são para o homem o caminho natural para a compreensão e realização da paternidade. De modo especial onde as condições sociais e culturais constringem facilmente o pai a um certo desinteresse em relação à família ou de qualquer forma a uma menor presença na obra educativa, é necessário ser-se solícito para que se recupere socialmente a convicção de que o lugar e a tarefa do pai na e pela família são de importância única e insubstituível(72). Como a experiência ensina, a ausência do pai provoca desequilíbrios psicológicos e morais e dificuldades notáveis nas relações familiares. O mesmo acontece também, em circunstâncias opostas, pela presença opressiva do pai, especialmente onde ainda se verifica o fenómeno do «machismo», ou seja da superioridade abusiva das prerrogativas masculinas que humilham a mulher e inibem o desenvolvimento de relações familiares sadias.

Revelando e revivendo na terra a mesma paternidade de Deus(73), o homem é chamado a garantir o desenvolvimento unitário de todos os membros da família. Cumprirá tal dever mediante uma generosa responsabilidade pela vida concebida sob o coração da mãe e por um empenho educativo mais solícito e condividido com a esposa(74), por um trabalho que nunca desagregue a família mas a promova na sua constituição e estabilidade, por um testemunho de vida cristã adulta, que introduza mais eficazmente os filhos na experiência viva de Cristo e da Igreja.

(67)
Gn 2,18.
(68) Ibid., Gn 2,23.
(69) S. Ambrosio, Exameron, V, 7, 19: CSEL 32, I, 154.
(70) Paulo PP. VI, Enc. Humanae Vitae, HV 9: AAS 60 (1968), 486.
(71) Cfr. Ep 5,25.
(72) Cfr. João Paulo PP. II, Homilia aos fiéis de Terni (19 de Março de 1981), 3-5: AAS 73 (1981), 268-271.
(73) Cfr. Ep 3,15.
(74) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 52.


Os direitos da criança

26Na família, comunidade de pessoas, deve reservar-se uma especialíssima atenção à criança, desenvolvendo uma estima profunda pela sua dignidade pessoal como também um grande respeito e um generoso serviço pelos seus direitos. Isto vale para cada criança, mas adquire uma urgência singular quanto mais pequena e desprovida, doente, sofredora ou diminuída for a criança.

Solicitando e vivendo um cuidado terno e forte por cada criança que vem a este mundo, a Igreja cumpre uma sua missão fundamental: revelar e repetir na história o exemplo e o mandamento de Cristo, que quis pôr a criança em destaque no Reino de Deus: «Deixai vir a Mim os pequeninos e não os impeçais pois deles é o reino de Deus»(75).

Repito novamente o que disse na Assembleia geral das Nações Unidas em 2 de Outubro de 1979: «Desejo ... exprimir a felicidade que para cada um de nós constituem as crianças, primavera da vida, antecipação da história futura de cada pátria terrestre. Nenhum país do mundo, nenhum sistema político pode pensar no seu futuro senão através da imagem destas novas gerações que assumirão dos pais o múltiplo património dos valores, dos deveres e das aspirações da nação à qual pertencem, e o de toda a família humana. A solicitude pela criança ainda antes do nascimento, desde o primeiro momento da concepção e, depois, nos anos da infância e da adolescência, é a primária e fundamental prova da relação do homem com o homem. E, portanto, que mais se poderá augurar a cada nação e a toda a humanidade, a todas as crianças do mundo senão aquele futuro melhor no qual o respeito dos direitos do homem se torne plena realidade no aproximar-se do ano dois mil?»(76).

O acolhimento, o amor, a estima, o serviço multíplice e unitário - material, afectivo, educativo, espiritual - a cada criança que vem a este mundo deverão constituir sempre uma nota distintiva irrenunciável dos cristãos, em particular das famílias cristãs. Deste modo as crianças, ao poderem crescer «em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens»(77), darão o seu precioso contributo à edificação da comunidade familiar e à santificação dos pais(78).

(75)
Lc 18,16; cfr. Mt 19,14 Mc 10,14.
(76) João Paulo PP. II, Discurso Assembleia Geral das Nações Unidas (2 de Outubro de 1979), 21:AAS 71 (1979), 1159.
(77) Lc 2,52.
(78) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 48.


Os anciãos na família

27Há culturas que manifestam uma veneração singular e um grande amor pelo ancião: longe de ser excluído da família ou de ser suportado como um peso inútil, o ancião continua inserido na vida familiar, tomando nela parte activa e responsável - embora devendo respeitar a autonomia da nova família - e sobretudo desenvolvendo a missão preciosa de testemunha do passado e de inspirador de sabedoria para os jovens e para o futuro.

Outras culturas, pelo contrário, especialmente depois de um desenvolvimento industrial e urbanístico desordenado, forçaram e continuam a forçar os anciãos a situações inaceitáveis de marginalização que são fonte de atrozes sofrimentos para eles mesmos e de empobrecimento espiritual para muitas famílias.

É necessário que a acção pastoral da Igreja estimule todos a descobrir e a valorizar as tarefas dos anciãos na comunidade civil e eclesial, e, em particular, na família. Na realidade, «a vida dos anciãos ajuda-nos a esclarecer a escala dos valores humanos; mostra a continuidade das gerações e demonstra maravilhosamente a interdependência do povo de Deus. Os anciãos têm além disso o carisma de encher os espaços vazios entre gerações, antes que se sublevem. Quantas crianças têm encontrado compreensão e amor nos olhos, nas palavras e nos carinhos dos anciãos! E quantas pessoas de idade têm subscrito com gosto as inspiradas palavras bíblicas que a "coroa dos anciãos são os filhos dos filhos" (
Pr 17,6)»(79).

(79) João Paulo PP. II, Discurso aos participantes no « International Forum on Active Aging » (5 de Setembro de 1980), 5: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 2 (1980), 539.



II - O SERVIÇO À VIDA


1) A transmissão da vida


Cooperadores do amor de Deus Criador

28Com a criação do homem e da mulher à sua imagem e semelhança, Deus coroa e leva à perfeição a obra das suas mãos: Ele chama-os a uma participação especial do seu amor e do seu poder de Criador e de Pai, mediante uma cooperação livre e responsável deles na transmissão do dom da vida humana: «Deus abençoou-os e disse-lhes: "crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra"»(80).

Assim a tarefa fundamental da família é o serviço à vida. É realizar, através da história, a bênção originária do Criador, transmitindo a imagem divina pela geração de homem a homem(81).

A fecundidade é o fruto e o sinal do amor conjugal, o testemunho vivo da plena doação recíproca dos esposos: «O autêntico culto do amor conjugal e toda a vida familiar que dele nasce, sem pôr de lado os outros fins do matrimónio, tendem a que os esposos, com fortaleza de animo, estejam dispostos a colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a família»(82).

A fecundidade do amor conjugal não se restringe somente à procriação dos filhos, mesmo que entendida na dimensão especificamente humana: alarga-se e enriquece-se com todos aqueles frutos da vida moral, espiritual e sobrenatural que o pai e a mãe são chamados a doar aos filhos e, através dos filhos, à Igreja e ao mundo.

(80)
Gn 1,28.
(81) Cfr. Ibid., Gn 5,1-3.
(82) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 50.



Familiaris consortio PT 16