Fides et ratio PT 15


15 A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quemquer que seja perceber o « mistério » da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: « Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á » (Jn 8,32).

A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de conhecer a verdade — se ainda é capaz de ver para além de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus próprios projectos — é-lhe concedida a possibilidade de recuperar a genuína relação com a sua vida, seguindo a estrada da verdade. Podem-se aplicar a esta situação as seguintes palavras do Deuteronómio: « A lei que hoje te imponho não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance. Não está no céu, para que digas: "Quem subirá por nós ao céu e no-la irá buscar?" Não está tão pouco do outro lado do mar, para que digas: "Quem atravessará o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?" Não, ela está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração; e tu podes cumpri-la » (30, 11-14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho: « Noli foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas ». 21

À luz destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n'Ele ou O procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objecto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele « caminho da vida » (Ps 16,11 - 15,11) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino.

21 De vera religione, XXXIX, 72: CCL 32, 234.


CAPÍTULO II - CREDO UT INTELLEGAM




1. « A sabedoria sabe e compreende todas as coisas»

16 (Sg 9,11)
Quão profunda seja a ligação entre o conhecimento da fé e o da razão, já a Sagrada Escritura no-lo indica com elementos de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas páginas da Sagrada Escritura é o facto de estes textos conterem não apenas a fé de Israel, mas também o tesouro de civilizações e culturas já desaparecidas. Como se de um desígnio particular se tratasse, o Egipto e a Mesopotâmia fazem ouvir novamente a sua voz, e alguns traços comuns das culturas do Antigo Oriente ressurgem nestas páginas ricas de intuições singularmente profundas.

Não é por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem sábio, o apresenta como aquele que ama e busca a verdade: « Feliz o homem que é constante na sabedoria, e que discorre com a sua inteligência; que repassa no seu coração os caminhos da sabedoria, e que penetra no conhecimento dos seus segredos; vai atrás dela como quem lhe segue o rasto, e permanece nos seus caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta às suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa um pilar nas suas paredes; levanta a sua tenda junto dela, e estabelece ali agradável morada; coloca os seus filhos debaixo da sua protecção, e ele mesmo morará debaixo dos seus ramos; à sua sombra estará defendido do calor, e repousará na sua glória » (Si 14,20-27).

Para o autor inspirado, como se vê, o desejo de conhecer é uma característica comum a todos os homens. Graças à inteligência, é dada a todos, crentes e descrentes, a possibilidade de « saciarem-se nas águas profundas » do conhecimento (cf. Prov Pr 20,5). Seguramente, no Antigo Israel, o conhecimento do mundo e dos seus fenómenos não se realizava pela via da abstracção, como já o fazia o filósofo jónico ou o sábio egípcio. E menos ainda podia o bom israelita conceber o conhecimento nos parâmetros próprios da época moderna, mais propensa à subdivisão do saber. Apesar disso, o mundo bíblico fez confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu contributo original.

Qual? O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que nele acontece, assim como a história e as diversas vicissitudes da nação são realidades observadas, analisadas e julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a este processo. Esta não intervém para humilhar a autonomia da razão, nem para reduzir o seu espaço de acção, mas apenas para fazer compreender ao homem que, em tais acontecimentos, Se torna visível e actua o Deus de Israel. Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história, sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que neles actua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência. A tal propósito, é significativa uma expressão do livro dos Provérbios: « A mente do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor quem dirige os seus passos » (16, 9). É como se dissesse que o homem, pela luz da razão, pode reconhecer a sua estrada, mas percorrê-la de maneira decidida, sem obstáculos e até ao fim, ele só o consegue se, de ânimo recto, integrar a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a razão e a fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus.



17 Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização. Aponta nesta direcção o livro dos Provérbios, quando exclama: « A glória de Deus é encobrir as coisas, e a glória dos reis é investigá-las » (25, 2). Deus e o homem estão colocados, em seu respectivo mundo, numa relação única. Em Deus reside a origem de tudo, n'Ele se encerra a plenitude do mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua nobreza. Um novo ladrilho é colocado neste mosaico pelo Salmista, quando diz: « Quão insondáveis para mim, ó Deus, vossos pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera contá-los, são mais que as areias; se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco » (139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer é tão grande e comporta tal dinamismo que o coração do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira pela riqueza infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está contida a resposta cabal para toda a questão ainda sem resposta.



18 Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexão, soube abrir à razão o caminho para o mistério. Na revelação de Deus, pôde sondar em profundidade aquilo que a razão estava procurando alcançar sem o conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo Eleito compreendeu que a razão deve respeitar algumas regras fundamentais, para manifestar do melhor modo possível a própria natureza. A primeira regra é ter em conta que o conhecimento do homem é um caminho que não permite descanso; a segunda nasce da consciência de que não se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de conquista pessoal; a terceira regra funda-se no « temor de Deus », de quem a razão deve reconhecer tanto a transcendência soberana como o amor solícito no governo do mundo.

Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e acaba por encontrar-se na condição do « insensato ». Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaça à vida. É que o insensato ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, não é capaz de fixar o olhar nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr ordem na sua mente (cf. Prov
Pr 1,7) e de assumir uma atitude correcta para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a afirmar que « Deus não existe » (cf. Sal Ps 1413,1), isso revela, com absoluta clareza, quanto seja deficiente o seu conhecimento e quão distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, da sua origem e do seu destino.



19 Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o autor sagrado fala de Deus que Se dá a conhecer também através da natureza. Para os antigos, o estudo das ciências naturais coincidia, em grande parte, com o saber filosófico. Depois de ter afirmado que o homem, com a sua inteligência, é capaz de « conhecer a constituição do universo e a força dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posição dos astros, a natureza dos animais mansos e os instintos dos animais ferozes » (Sg 7,17 Sg 7,19-20), por outras palavras, que o homem é capaz de filosofar, o texto sagrado dá um passo em frente muito significativo. Retomando o pensamento da filosofia grega, à qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que, raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: « Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor » (Sg 13,5). Reconhece-se, assim, um primeiro nível da revelação divina, constituído pelo maravilhoso « livro da natureza »; lendo-o com os meios próprios da razão humana, pode-se chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua inteligência, não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever não tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstáculo interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado.



20 Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não superexaltada. O que ela alcança pode ser verdade, mas só adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num horizonte mais amplo, o da fé: « O Senhor é quem dirige os passos do homem; como poderá o homem compreender o seu próprio destino? » (Pr 20,24). A fé, segundo o Antigo Testamento, liberta a razão, na medida em que lhe permite alcançar coerentemente o seu objecto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência. Justamente, pois, o autor sagrado coloca o início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: « O temor do Senhor é o princípio da sabedoria » (Pr 1,7 cf. Si 1,14).



2. « Adquire a sabedoria, adquire a inteligência »

21 (Pr 4,5)
Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não se baseia apenas numa atenta observação do homem, do mundo e da história, mas supõe como indispensável também uma relação com a fé e os conteúdos da Revelação. Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a que deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o homem bíblico descobriu que não se podia compreender senão como « ser em relação »: relação consigo mesmo, com o povo, com o mundo e com Deus. Esta abertura ao mistério, que provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a fonte dum verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se em espaços infinitos, recebendo inesperadas possibilidades de compreensão.

Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação não estava isento da fadiga causada pelo embate nas limitações da razão. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o livro dos Provérbios denuncia o cansaço provado ao tentar compreender os misteriosos desígnios de Deus (cf. 30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a força para continuar o seu caminho rumo à verdade provém da certeza de que Deus o criou como um « explorador » (cf. Coel 1, 13), cuja missão é não deixar nada sem tentar, não obstante a contínua chantagem da dúvida. Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado para o que é belo, bom e verdadeiro.



22 S. Paulo, no primeiro capítulo da carta aos Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja incisiva a reflexão dos Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma argumentação filosófica, o Apóstolo exprime uma verdade profunda: através da criação, os « olhos da mente » podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, através das criaturas, Ele faz intuir à razão o seu « poder » e a sua « divindade » (cf. Rom Rm 1,20). Deste modo, é atribuída à razão humana uma capacidade tal que parece quase superar os seus próprios limites naturais: não só ultrapassa o âmbito do conhecimento sensorial, visto que lhe é possível reflectir criticamente sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos sentidos, pode chegar também à causa que está na origem de toda a realidade sensível. Em terminologia filosófica, podemos dizer que, neste significativo texto paulino, está afirmada a capacidade metafísica do homem.

Segundo o Apóstolo, no projecto originário da criação estava prevista a capacidade de a razão ultrapassar comodamente o dado sensível para alcançar a origem mesma de tudo: o Criador. Como resultado da desobediência com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta autonomia relativamente Àquele que o tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus criador.

O livro do Génesis descreve de maneira figurada esta condição do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do Éden, tendo no centro « a árvore da ciência do bem e do mal » (2, 17). O símbolo é claro: o homem não era capaz de discernir e decidir, por si só, aquilo que era bem e o que era mal, mas devia apelar-se a um princípio superior. A cegueira do orgulho iludiu os nossos primeiros pais de que eram soberanos e autónomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta desobediência original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando à razão traumas sérios que haveriam de dificultar-lhe, daí em diante, o caminho para a verdade plena. Agora a capacidade humana de conhecer a verdade aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é fonte e origem da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos homens se tornaram « vãos » e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom Rm 1,21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente: a razão foi progressivamente ficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de salvação que redimiu a razão da sua fraqueza, libertando-a dos grilhões onde ela mesma se tinha algemado.



23 Deste modo, a relação do cristão com a filosofia requer um discernimento radical. No Novo Testamento, especialmente nas cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a contraposição entre « a sabedoria deste mundo » e a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidade da sabedoria revelada rompe o círculo dos nossos esquemas de reflexão habituais, que não são minimamente capazes de exprimi-la de forma adequada.

O início da primeira carta aos Coríntios apresenta radicalmente este dilema. O Filho de Deus crucificado é o acontecimento histórico contra o qual se desfaz toda a tentativa da mente para construir, sobre razões puramente humanas, uma justificação suficiente do sentido da existência. O verdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer filosofia, é a morte de Jesus Cristo na cruz. Aqui, de facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salvífico do Pai a mera lógica humana está destinada à falência. « Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o investigador deste século? Porventura, Deus não considerou louca a sabedoria deste mundo? » (
1Co 1,20) — interroga-se enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que Deus quer realizar, não basta a simples sabedoria do homem sábio, requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade radical: « O que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios (...). O que é vil e desprezível no mundo, é que Deus escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são » (1Co 1,27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria fragilidade o pressuposto da sua força; mas S. Paulo não hesita em afirmar: « Quando me sinto fraco, então é que sou forte » (2Co 12,10). O homem não consegue compreender como possa a morte ser fonte de vida e de amor, mas Deus, para revelar o mistério do seu desígnio salvador, escolheu precisamente o que a razão considera « loucura » e « escândalo ». Usando a linguagem dos filósofos do seu tempo, Paulo chega ao clímax da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: « Deus escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada são, para destruir as que são » (cf. 1Co 1,28). Para exprimir o carácter gratuito do amor revelado na cruz de Cristo, o Apóstolo não tem medo de usar a linguagem mais radical que os filósofos empregavam nas suas reflexões a respeito de Deus. A razão não pode esgotar o mistério de amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar à razão a resposta última que esta procura. S. Paulo coloca, não a sabedoria das palavras, mas a Palavra da Sabedoria como critério, simultaneamente, de verdade e de salvação.

Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que se lhe queira impor, obrigando a abrir-se à universalidade da verdade de que é portadora. Como é grande o desafio lançado à nossa razão e como são enormes as vantagens que terá, se ela se render! A filosofia, que por si mesma já é capaz de reconhecer a necessidade do homem se transcender continuamente na busca da verdade, pode, ajudada pela fé, abrir-se para, na « loucura » da Cruz, acolher como genuína a crítica a quantos se iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistema próprio. A relação entre a fé e a filosofia encontra, na pregação de Cristo crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual pode naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no oceano ilimitado da verdade. Aqui é evidente a fronteira entre a razão e a fé, mas torna-se claro também o espaço onde as duas se podem encontrar.



CAPÍTULO III - INTELLEGO UT CREDAM


1. Caminhar à procura da verdade

24 Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada de Paulo a Atenas, numa das suas viagens missionárias. A cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o anúncio do querigma: « Atenienses — disse ele —, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: "Ao Deus desconhecido". Pois bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio » (Ac 17,22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida. Depois continua o seu discurso, dizendo: « Fez a partir de um só homem, todo o género humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo tacteando, embora não Se encontre longe de cada um de nós » (Ac 17,26-27).

O Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que não crêem, diz: « Deus eterno e omnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que só em Vós descansa o seu coração ». 22 Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender até ao infinito.

De vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia dar voz a este seu desejo íntimo. A literatura, a música, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realizações da sua inteligência criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura. Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e segundo as modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo universal do homem.

22 « Ut te semper desiderando quaererent et inveniendo quiescerent »: Missale Romanum.



25 « Todos os homens desejam saber », 23 e o objecto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: « Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado ». 24 Considera-se, justamente, que uma pessoa alcançou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios, entre aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.

E a pesquisa é tão importante no campo teórico, como no âmbito prático: ao referir-me a este, desejo aludir à procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito, graças precisamente ao agir ético, a pessoa, se actuar segundo a sua livre e recta vontade, entra pela estrada da felicidade e encaminha-se para a perfeição. Também neste caso, está em questão a verdade. Reafirmei esta convicção na carta encíclica Veritatis splendor: « Não há moral sem liberdade (...). Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida ». 25

Por isso, é necessário que os valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, porque só estes é que podem aperfeiçoar a pessoa, realizando a sua natureza. Não é fechando-se em si mesmo que o homem encontra esta verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de dimensões que o transcendem. Esta é uma condição necessária para que cada um se torne ele mesmo e cresça como pessoa adulta e madura.

23 Aristóteles, Metafísica, I, 1.
24 Confessiones, X, 23, 33: CCL 27,173.
25 N.
VS 34: AAS 85 (1993), 1161.



26 Ao princípio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma interrogativa: A vida tem um sentido? Para onde se dirige? À primeira vista, a existência pessoal poderia aparecer radicalmente sem sentido. Não é preciso recorrer aos filósofos do absurdo, nem às perguntas provocatórias que se encontram no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experiência quotidiana do sofrimento, pessoal e alheio, e a observação de muitos factos, que à luz da razão se revelam inexplicáveis, bastam para tornar iniludível um problema tão dramático como é a questão do sentido da vida. 26 A isto se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa existência, para além do facto de existirmos, é a inevitabilidade da morte. Perante um dado tão desconcertante como este, impõe-se a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte será o termo definitivo da sua existência, ou se algo permanece para além da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não. É significativo que o pensamento filosófico tenha recebido, da morte de Sócrates, uma orientação decisiva que o marcou durante mais de dois milénios. Certamente não é por acaso que os filósofos, perante a realidade da morte, sempre voltam a pôr-se este problema, associado à questão do sentido da vida e da imortalidade.

26 Cf. João Paulo II, Carta ap. Salvifici doloris (11 de Fevereiro de 1984), 9: AAS 76 (1984), 209-210.



27 A tais questões, não pode esquivar-se ninguém — nem o filósofo, nem o homem comum. E, da resposta que se lhes der, deriva uma orientação decisiva da investigação: a possibilidade, ou não, de alcançar uma verdade universal. Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que é verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos. Contudo, para além desta universalidade, o homem procura um absoluto que seja capaz de dar resposta e sentido a toda a sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de fundamento a tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explicação definitiva, um valor supremo, para além do qual não existam, nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As hipóteses podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o momento em que, admitam-no ou não, há necessidade de ancorar a existência a uma verdade reconhecida como definitiva, que forneça uma certeza livre de qualquer dúvida.

Os filósofos procuraram, ao longo dos séculos, descobrir e exprimir tal verdade, criando um sistema ou uma escola de pensamento. Mas, para além dos sistemas filosóficos, existem outras expressões nas quais o homem procura formular a sua « filosofia »: trata-se de convicções ou experiências pessoais, tradições familiares e culturais, ou itinerários existenciais vividos sob a autoridade de um mestre. A cada uma destas manifestações, subjaz sempre vivo o desejo de alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.


2. Os diferentes rostos da verdade do homem

28 Há que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se desenrola com a referida transparência e coerência de raciocínio. Muitas vezes, as limitações naturais da razão e a inconstância do coração ofuscam e desviam a pesquisa pessoal. Outros interesses de vária ordem podem sobrepor-se à verdade. Acontece também que o próprio homem a evite, quando começa a entrevê-la, porque teme as suas exigências. Apesar disto, mesmo quando a evita, é sempre a verdade que preside à sua existência. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a dúvida, a incerteza ou a mentira; tal existência estaria constantemente ameaçada pelo medo e a angústia. Assim, pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade.



29 É impensável que uma busca, tão profundamente radicada na natureza humana, possa ser completamente inútil e vã. A própria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas implica já uma primeira resposta. O homem não começaria a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inatingível. Só a previsão de poder chegar a uma resposta é que consegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa científica. Quando o cientista, depois de ter uma intuição, se lança à procura da explicação lógica e empírica dum certo fenómeno, fá-lo porque tem a esperança, desde o início, de encontrar uma resposta, e não se dá por vencido com os insucessos. Nem considera inútil a intuição inicial, só porque não alcançou o seu objectivo; dirá antes, e justamente, que não encontrou ainda a resposta adequada.

O mesmo deve valer também para a busca da verdade no âmbito das questões últimas. A sede de verdade está tão radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existência ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas. São respostas de cuja verdade estamos convencidos, até porque notamos que não diferem substancialmente das respostas a que muitos outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo valor; todavia, o conjunto dos resultados alcançados confirma a capacidade que o ser humano, em princípio, tem de chegar à verdade.



30 Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas de verdade. As mais numerosas são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na filosofia; estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões últimas. 27

Quanto às verdades filosóficas, é necessário especificar que não se limitam só às doutrinas, por vezes efémeras, dos filósofos profissionais. Como já disse, todo o homem é, de certa forma, um filósofo e possui as suas próprias concepções filosóficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos modos, consegue formar uma visão global e uma resposta sobre o sentido da própria existência: e, à luz disso, interpreta a própria vida pessoal e regula o seu comportamento. É aqui que deveria colocar-se a questão da relação entre as verdades filosófico-religiosas e a verdade revelada em Jesus Cristo. Antes de responder a tal questão, é preciso ter em conta outro dado da filosofia.

27 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate,
NAE 2.



31 O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e avaliadas através da actividade crítica própria do pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades sejam « recuperadas » com base na experiência feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso, na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças.



32 Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma significativa tensão: por um lado, o conhecimento por crença apresenta-se como uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeiçoar progressivamente por meio da evidência alcançada pela própria pessoa; por outro lado, a crença é muitas vezes mais rica, humanamente, do que a simples evidência, porque inclui a relação interpessoal, pondo em jogo não apenas as capacidades cognoscitivas do próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estável e íntimo.

Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação interpessoal não são primariamente de ordem empírica ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta.

Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro que me vem ao pensamento é o testemunho dos mártires. Com efeito, o mártir é a testemunha mais genuína da verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcançou a verdade a respeito da sua vida, e nada nem ninguém poderá jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o sofrimento, nem a morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à verdade que descobriu no encontro com Cristo. Por isso mesmo é que, até agora, o testemunho dos mártires atrai, gera consenso, é escutado e seguido. Esta é a razão pela qual se tem confiança na sua palavra: descobre-se neles a evidência dum amor que não precisa de longas demonstrações para ser convincente, porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente como verdadeiro e que há tanto tempo procurava. Em resumo, o mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz aquilo que já sentimos e torna evidente aquilo que nós mesmos queríamos ter a força de dizer.




Fides et ratio PT 15