Fides et ratio PT 48


48 Assim, o dado saliente desta última parte da história da filosofia é a constatação duma progressiva separação entre a fé e a razão filosófica. É verdade que, observando bem, mesmo na reflexão filosófica daqueles que contribuíram para ampliar a distância entre fé e razão, se manifestam às vezes gérmenes preciosos de pensamento que, se aprofundados e desenvolvidos com mente e coração recto, podem fazer descobrir o caminho da verdade. Estes gérmenes de pensamento podem-se encontrar, por exemplo, nas profundas análises sobre a percepção e a experiência, a imaginação e o inconsciente, sobre a personalidade e a intersubjectividade, a liberdade e os valores, o tempo e a história. Inclusive o tema da morte pode tornar-se, para todo o pensador, um severo apelo a procurar dentro de si mesmo o sentido autêntico da própria existência. Todavia isto não pode fazer esquecer a necessidade que a actual relação entre fé e razão tem de um cuidadoso esforço de discernimento, porque tanto a razão como a fé ficaram reciprocamente mais pobres e débeis. A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser.

À luz disto, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo para que a fé e a filosofia recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes com a sua natureza, no respeito da recíproca autonomia. Ao desassombro (parresia) da fé deve corresponder a audácia da razão.




CAPÍTULO V - INTERVENÇÕES DO MAGISTÉRIO EM MATÉRIA FILOSÓFICA


1. O discernimento do Magistério como diaconia da verdade

49 A Igreja não propõe uma filosofia própria, nem canoniza uma das correntes filosóficas em detrimento de outras. 54 A razão profunda desta reserva está no facto de que a filosofia, mesmo quando entra em relação com a teologia, deve proceder segundo os seus métodos e regras; caso contrário, não haveria garantia de permanecer orientada para a verdade, tendendo para a mesma através dum processo racionalmente controlável. Pouca ajuda daria uma filosofia que não agisse à luz da razão, segundo princípios próprios e específicas metodologias. Fundamentalmente, a raiz da autonomia de que goza a filosofia, há que individuá-la no facto de a razão estar orientada, por sua natureza, para a verdade e dotada em si mesma dos meios necessários para a alcançar. Uma filosofia, ciente deste seu « estatuto constitutivo », não pode deixar de respeitar as exigências e evidências próprias da verdade revelada.

E, todavia, vimos, na história, os extravios e erros em que várias vezes incorreu o pensamento filosófico, sobretudo moderno. Não é função nem competência do Magistério intervir para colmar as lacunas dum discurso filosófico carente. Mas, já é sua obrigação reagir, de forma clara e vigorosa, quando teses filosóficas discutíveis ameaçam a recta compreensão do dado revelado e quando se difundem teorias falsas e sectárias que semeiam erros graves, perturbando a simplicidade e a pureza da fé do povo de Deus.

54 Cf. Pio XII, Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 566.



50 Por conseguinte, o Magistério eclesiástico pode, e deve, exercer com autoridade, à luz da fé, o discernimento crítico sobre filosofias e afirmações que contradigam a doutrina cristã. 55 Ao Magistério compete, antes de mais, indicar os pressupostos e as conclusões filosóficas que são incompatíveis com a verdade revelada, formulando assim as exigências que, do ponto de vista da fé, se impõem à filosofia. Além disso, no desenvolvimento do saber filosófico, surgiram diversas escolas de pensamento; ora, este pluralismo impõe ao Magistério a responsabilidade de exprimir o seu juízo sobre a compatibilidade ou incompatibilidade das concepções de base, defendidas por essas escolas, com as exigências próprias da palavra de Deus e da reflexão teológica.

A Igreja tem o dever de indicar aquilo que pode existir, num sistema filosófico, de incompatível com a sua fé. Na verdade, muitos conteúdos filosóficos — relativos, por exemplo, a Deus, ao homem, à sua liberdade e ao seu comportamento ético —, têm a ver directamente com a Igreja, porque tocam na verdade revelada que ela guarda. Quando nós, Bispos, realizamos o referido discernimento, temos a obrigação de ser « testemunhas da verdade », no cumprimento dum serviço humilde, mas firme, que todo o filósofo devia prezar, em benefício da recta ratio, ou seja, da razão que reflecte correctamente sobre a verdade.

55 Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Primeira const. dogm. sobre a Igreja de Cristo Pastor Aeternus:
DS 3070; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 25c.



51 Em todo o caso, tal discernimento não deve ser visto primariamente de forma negativa, como se a intenção do Magistério fosse eliminar ou reduzir qualquer possibilidade de mediação; ao contrário, as suas intervenções visam em primeiro lugar suscitar, promover e encorajar o pensamento filosófico. Os filósofos são, aliás, os primeiros a compreender a exigência de autocrítica, de correcção de eventuais erros, e a necessidade de ultrapassar os limites demasiado estreitos em que a sua reflexão foi concebida. De modo particular, deve-se considerar que a verdade é uma só, embora as suas expressões acusem os vestígios da história e sejam, além disso, obra duma razão humana ferida e enfraquecida pelo pecado. Daqui se conclui que nenhuma forma histórica da filosofia pode, legitimamente, ter a pretensão de abraçar a totalidade da verdade ou de possuir a explicação cabal do ser humano, do mundo e da relação do homem com Deus.

E hoje, com esta multiplicação de sistemas, métodos, conceitos e argumentos filosóficos, muitas vezes extremamente fragmentários, impõe-se ainda com maior urgência um discernimento crítico à luz da fé. Este discernimento não é fácil, porque, se já é custoso reconhecer as capacidades naturais e inalienáveis da razão com as suas limitações constitutivas e históricas, mais problemático ainda se pode tornar às vezes o discernimento de cada uma das propostas filosóficas para verificar, do ponto de vista da fé, o que apresentam de válido e fecundo e o que existe nelas de errado ou perigoso. De qualquer modo, a Igreja sabe que os « tesouros da sabedoria e da ciência » estão escondidos em Cristo (
Col 2,3); por isso, ela intervém, estimulando a reflexão filosófica, para que não se obstrua a estrada que leva ao conhecimento do mistério.



52 Não foi só recentemente que o Magistério da Igreja interveio para manifestar o seu pensamento a respeito de determinadas doutrinas filosóficas. A título de exemplo, basta recordar, no decurso dos séculos, as tomadas de posição acerca das teorias que defendiam a preexistência das almas, 56 e ainda sobre as diversas formas de idolatria e esoterismo supersticioso, contidas em teses astrológicas; 57 sem esquecer os textos mais sistemáticos contra algumas teses do averroísmo latino, incompatíveis com a fé cristã. 58

Se a palavra do Magistério se fez ouvir mais frequentemente a partir da segunda metade do século passado, foi porque, naquele período, numerosos católicos sentiram o dever de contrapor uma filosofia própria às várias correntes do pensamento moderno. Daqui resultou, para o Magistério da Igreja, a obrigação de vigiar a fim de que tais filosofias não degenerassem, por sua vez, em formas erróneas e negativas. Acabaram assim censurados os dois extremos: dum lado, o fideísmo 59 e o tradicionalismo radical,60 pela sua falta de confiança nas capacidades naturais da razão; e, do outro, o racionalismo 61 e o ontologismo, 62 porque atribuíam à razão natural aquilo que apenas se pode conhecer pela luz da fé. Os conteúdos positivos deste debate foram formalizados na constituição dogmática Dei Filius, por meio da qual um concílio ecuménico — o Vaticano I — intervinha, pela primeira vez e de forma solene, sobre as relações entre razão e fé. A doutrina contida neste texto marcou, intensa e positivamente, a investigação filosófica de muitos crentes e constitui ainda hoje um ponto normativo de referência para uma correcta e coerente reflexão cristã neste âmbito particular.

56 Cf. Sínodo de Constantinopla,
DS 403.
57 Cf. Concílio de Toledo I, DS 205; Concílio de Braga I, DS 459-460; Sisto V, Bula Coeli et terrae Creator (5 de Janeiro de 1586): Bullarium Romanum 44 (Roma, 1747), 176-179; Urbano VIII, Inscrutabilis iudiciorum (1 de Abril de 1631): Bullarium Romanum 61 (Roma, 1758), 268-270.
58 Cf. Conc. Ecum. de Viena, Decr. Fidei catholicae: DS 902; Conc. Ecum. Lateranense V, Bula Apostolici regiminis: DS 1440.
59 Cf. Theses a Ludovico Eugenio Bautain iussu sui Episcopi subscriptae (8 de Setembro de 1840): DS 2751-2756; Theses a Ludovico Eugenio Bautain ex mandato S. Congr. Episcoporum et Religiosorum subscriptae (26 de Abril de 1844): DS 2765-2769.
60 Cf. S. Congr. Indicis, Decr. Theses contra traditionalismum Augustini Bonnety (11 de Junho de 1855): DS 2811-2814.
61 Cf. Pio IX, Breve Eximiam tuam (15 de Junho de 1857): DS 2828-2831; Breve Gravissimas inter (11 de Dezembro de 1862): DS 2850-2861.
62 Cf. S. Congr. do Santo Ofício, Decr. Errores ontologistarum (18 de Setembro de 1861): DS 2841-2847.



53 Mais do que teses filosóficas isoladas, as tomadas de posição do Magistério ocuparam-se da necessidade do conhecimento racional — e por conseguinte, em última análise, do conhecimento filosófico — para a compreensão da fé. O Concílio Vaticano I, sintetizando e confirmando solenemente os ensinamentos que o Magistério pontifício tinha proposto aos fiéis de maneira ordinária e constante, pôs em evidência como são inseparáveis e ao mesmo tempo irredutíveis entre si o conhecimento natural de Deus e a Revelação, a razão e a fé. O Concílio partia da exigência fundamental — pressuposta também pela Revelação — da cognoscibilidade natural da existência de Deus, princípio e fim de todas as coisas, 63 para concluir com a solene afirmação já citada: « Existem duas ordens de conhecimento, distintas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo seu objecto ». 64 É que era preciso afirmar, contra qualquer forma de racionalismo, a distinção entre os mistérios da fé e as conclusões filosóficas, e ainda a transcendência e precedência daqueles sobre estas; por outro lado, contra as tentações fideístas, tornava-se necessário corroborar a unidade da verdade e também o contributo positivo que o conhecimento racional pode, e deve, dar para o conhecimento da fé: « Mas, embora a fé esteja acima da razão, não poderá existir nunca uma verdadeira divergência entre fé e razão, porque o mesmo Deus que revela os mistérios e comunica a fé, foi quem colocou também, no espírito humano, a luz da razão. E Deus não poderia negar-Se a Si mesmo, pondo a verdade em contradição com a verdade ».65

63 Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, II:
DS 3004; e cân. 2-§1: DS 3026.
64 Ibid., IV: DS 3015, citado em Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 59.
65 Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, IV: DS 3017.



54 Neste século, o Magistério voltou várias vezes ao mesmo assunto, alertando contra a tentação racionalista. É neste horizonte que se devem colocar as intervenções do Papa S. Pio X, pondo em relevo como, na base do modernismo, havia posições filosóficas de linha fenomenista, agnóstica e imanentista.66 E não se pode esquecer a importância que teve a rejeição católica da filosofia marxista e do comunismo ateu.67

Sucessivamente, o Papa Pio XII fez ouvir a sua voz quando, na carta encíclica Humani generis, preveniu contra interpretações erróneas que andavam ligadas com as teses do evolucionismo, do existencialismo e do historicismo. Explicava ele que estas teses não foram elaboradas nem eram propostas por teólogos, mas tinham a sua origem « fora do redil de Cristo »; 68 acrescentava, porém, que tais extravios não deviam ser liminarmente rejeitados, mas examinados criticamente: « Ora, estas tendências, que se afastam em medida desigual da recta via, não podem ser ignoradas ou transcuradas pelos filósofos e teólogos católicos, que têm o grave dever de defender a verdade divina e humana, e de fazê-la penetrar na mente dos homens. Pelo contrário, devem conhecer bem estas opiniões, quer porque as doenças não podem ser curadas, se primeiro não são bem conhecidas, quer porque algumas vezes mesmo nas afirmações falsas se esconde um pouco de verdade, quer finalmente porque os próprios erros forçam a nossa mente a investigar e a perscrutar, com maior diligência, certas verdades filosóficas e teológicas ».69

Por último, também a Congregação da Doutrina da Fé, no cumprimento do seu múnus específico ao serviço do magistério universal do Romano Pontífice, 70 teve de intervir para sublinhar o perigo que comportava a assunção acrítica, feita por alguns teólogos da libertação, de teses e metodologias provenientes do marxismo. 71

Vemos assim que, no passado, o Magistério exerceu reiteradamente e sob diversas modalidades o discernimento em matéria filosófica. Aquilo que os meus Venerados Predecessores enunciaram, constitui um contributo precioso que não pode ser esquecido.


66 Cf. Carta enc. Pascendi dominici gregis (8 de Setembro de 1907): ASS 40 (1907), 596-597.
67 Cf. Pio XI, Carta enc. Divini Redemptoris (19 de Março de 1937): AAS 29 (1937), 65-106.
68 Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 562-563.
69 Ibid.: o.c., 563-564.
70 Cf. João Paulo II, Const. ap. Pastor Bonus (28 de Junho de 1988) arts. : AAS 80 (1988), 873; Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a vocação eclesial do teólogo Donum veritatis (24 de Maio de 1990), 18: AAS 82 (1990), 1558.
71 Cf. Instr. sobre alguns aspectos da « teologia da libertação » Libertatis nuntius (6 de Agosto de 1984), VII-X: AAS 76 (1984), 890-903.



55 Se observarmos a situação actual, constatamos que os problemas retornam, mas com peculiaridades novas. Já não se trata de questões que interessam apenas a indivíduos ou grupos, mas de convicções tão generalizadas no ambiente que se tornam, em certa medida, mentalidade comum. Tal é, por exemplo, a desconfiança radical na razão, que evidenciam as conclusões mais recentes de muitos estudos filosóficos. De várias partes ouviu-se falar, a este respeito, de « fim da metafísica »: querem que a filosofia se contente com tarefas mais modestas, tais como a mera interpretação dos factos ou apenas a investigação sobre determinados campos do saber humano ou das suas estruturas.

Também, na teologia, voltam a assomar as tentações de outrora. Por exemplo, em algumas teologias contemporâneas comparece novamente um certo racionalismo, principalmente quando asserções, consideradas filosoficamente fundadas, são tomadas como normativas para a investigação teológica. Isto sucede sobretudo quando o teólogo, por falta de competência filosófica, se deixa condicionar de modo acrítico por afirmações que já entraram na linguagem e cultura corrente, mas carecem de suficiente base racional. 72

Não faltam também perigosas recaídas no fideísmo, que não reconhece a importância do conhecimento racional e do discurso filosófico para a compreensão da fé, melhor, para a própria possibilidade de acreditar em Deus. Uma expressão, hoje generalizada, desta tendência fideísta é o « biblicismo », que tende a fazer da leitura da Sagrada Escritura, ou da sua exegese, o único referencial da verdade. Assim, acaba-se por identificar a palavra de Deus só com a Sagrada Escritura, anulando deste modo a doutrina da Igreja que o Concílio Ecuménico Vaticano II expressamente reafirmou. Com efeito, a constituição Dei Verbum, depois de recordar que a palavra de Deus está presente tanto nos textos sagrados como na Tradição, 73 afirma sem rodeios: « A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus Pastores na doutrina dos Apóstolos ».74 Portanto, a Sagrada Escritura não constitui, para a Igreja, a sua única referência; a « regra suprema da sua fé » 75 provém efectivamente da unidade que o Espírito estabeleceu entre a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, numa reciprocidade tal que os três não podem subsistir de maneira independente.76

Além disso, não se deve subestimar o perigo que existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação de uma única metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o acesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: é preciso examiná-las com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados.

Outras formas de fideísmo latente podem-se identificar na pouca consideração que é reservada à teologia especulativa, e ainda no desprezo pela filosofia clássica, de cujas noções provieram os termos para exprimir tanto a compreensão da fé como as próprias formulações dogmáticas. O Papa Pio XII, de veneranda memória, alertou contra este esquecimento da tradição filosófica e abandono das terminologias tradicionais. 77

72 Com sua palavra clara e de grande autoridade, o Concílio Vaticano I tinha já condenado este erro, ao afirmar, por um lado, que, « relativamente à fé (...), a Igreja Católica preconiza que é uma virtude sobrenatural pela qual, sob a inspiração divina e com a ajuda da graça, acreditamos que são verdadeiras as coisas por Ele reveladas, não por causa da verdade intrínseca das coisas percebida pela luz natural da razão, mas por causa da autoridade do próprio Deus que as revela, o qual não pode enganar-Se nem enganar » [Const. dogm. sobre a doutrina católica Dei Filius, III:
DS 3008; e cân. 3-§ 2: DS 3032]. E, por outro lado, o Concílio declarava que a razão nunca « chega a ser capaz de penetrar [tais mistérios], nem as verdades que formam o seu objecto específico » [ibid., IV: DS 3016]. Daqui tirava a seguinte conclusão prática: « Os fiéis cristãos não só não têm o direito de defender, como legítimas conclusões da ciência, as opiniões reconhecidas contrárias à doutrina da fé, especialmente quando estão condenadas pela Igreja, mas são estritamente obrigados a considerá-las como erros, que apenas têm uma ilusória aparência de verdade » [ibid., IV: DS 3018].
73 Cf. nn. DV 9-10.
74 Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, DV 10.
75 Ibid., DV 21.
76 Cf. ibid., DV 10.
77 Cf. Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 565-567.571-573.



56 Constata-se, enfim, uma generalizada desconfiança relativamente a asserções globais e absolutas sobretudo da parte de quem pensa que a verdade resulte do consenso, e não da conformidade do intelecto com a realidade objectiva. Compreende-se que, num mundo subdividido em tantos campos de especializações, se torne difícil reconhecer aquele sentido total e último da vida que tradicionalmente a filosofia procurava. Mas nem por isso posso, à luz da fé que reconhece em Jesus Cristo tal sentido último, deixar de encorajar os filósofos, cristãos ou não, a terem confiança nas capacidades da razão humana e a não prefixarem metas demasiado modestas à sua investigação filosófica. A lição da história deste milénio, quase a terminar, testemunha que a estrada a seguir é esta: não perder a paixão pela verdade última, nem o anseio de pesquisa, unidos à audácia de descobrir novos percursos. É a fé que incita a razão a sair de qualquer isolamento e a abraçar de bom grado qualquer risco por tudo o que é belo, bom e verdadeiro. Deste modo, a fé torna-se advogada convicta e convincente da razão.


2. Solicitude da Igreja pela filosofia

57 O Magistério, porém, não se limitou a pôr em destaque os erros e desvios das doutrinas filosóficas. Mas, com igual cuidado, quis confirmar os princípios fundamentais para uma genuína renovação do pensamento filosófico, indicando mesmo percursos concretos a seguir. Nesta linha, o Papa Leão XIII, com a carta encíclica AEterni Patris, realizou um passo de alcance verdadeiramente histórico na vida da Igreja. Efectivamente aquela constitui, até ao dia de hoje, o único documento pontifício dedicado, a esse nível, inteiramente à filosofia. O grande Pontífice retomou e desenvolveu a doutrina do Concílio Vaticano I sobre a relação entre fé e razão, mostrando como o pensamento filosófico é um contributo fundamental para a fé e para a ciência teológica. 78 Passado mais de um século, muitas indicações, lá contidas, nada perderam do seu interesse tanto do ponto de vista prático como pedagógico; a primeira de todas é a que diz respeito ao valor incomparável da filosofia de S. Tomás. A reposição do pensamento do Doutor Angélico era vista pelo Papa Leão XIII como a melhor estrada para se recuperar um uso da filosofia conforme às exigências da fé. S. Tomás, escrevia ele, « ao mesmo tempo que, como é devido, distingue perfeitamente a fé da razão, une-as a ambas com laços de amizade recíproca: conserva os direitos próprios de cada uma e salvaguarda a sua dignidade ».79

78 Cf. Carta enc. AETERNI PATRIS (4 de Agosto de 1879): ASS 11 (1878-1879), 97-115.
79 Ibid.: o.c., 109.




58 São conhecidas as felizes consequências que teve este convite pontifício. Os estudos sobre o pensamento de S. Tomás e doutros autores escolásticos receberam novo incentivo. Foi dado um forte impulso aos estudos históricos, de que resultou uma nova descoberta das riquezas do pensamento medieval, até então amplamente desconhecidas, e constituíram-se novas escolas tomistas. Com a aplicação da metodologia histórica, fizeram-se grandes progressos no conhecimento da obra de S. Tomás, e muitos foram os estudiosos que corajosamente introduziram a tradição tomista nas discussões dos problemas filosóficos e teológicos daquele tempo. Os teólogos católicos mais influentes deste século, a cuja reflexão e pesquisa muito deve o Concílio Vaticano II, são filhos de tal renovação da filosofia tomista. E assim a Igreja pôde, no decurso do século XX, dispor dum vigoroso grupo de pensadores, formados na escola do Doutor Angélico.



59 Contudo, a renovação tomista e neotomista não foi o único sinal de retoma do pensamento filosófico na cultura de inspiração cristã. Já antes, e contemporâneamente ao convite do Papa Leão XIII, tinham surgido vários filósofos católicos que, valendo-se de correntes de pensamento mais recentes e com uma metodologia própria, geraram obras filosóficas de grande influência e valor duradouro. Houve quem tivesse organizado sínteses de nível tão alto que nada tinham a invejar aos grandes sistemas do idealismo, e quem pusesse as bases epistemológicas para uma nova exposição da fé, à luz de uma renovada compreensão da consciência moral; houve quem tivesse elaborado uma filosofia que, partindo da análise da imanência, abria o caminho para o transcendente, e quem tentasse traduzir as exigências da fé no horizonte da metodologia fenomenológica. Em suma, partindo de diversas perspectivas, continuou-se a elaborar formas de reflexão filosófica, que visavam manter viva a grande tradição do pensamento cristão na unidade de fé e razão.



60 O Concílio Ecuménico Vaticano II, por sua vez, apresenta uma doutrina muito rica e fecunda a propósito da filosofia. Não posso esquecer, sobretudo no contexto desta carta encíclica, que um capítulo inteiro da constituição Gaudium et spes constitui uma espécie de compêndio de antropologia bíblica, fonte de inspiração também para a filosofia. Naquelas páginas, trata-se do valor da pessoa humana criada à imagem de Deus, indicam-se os motivos da sua dignidade e superioridade relativamente ao resto da criação, e mostra-se a capacidade transcendente da sua razão. 80 Na referida Constituição conciliar, considera-se também o problema do ateísmo e denunciam-se, juntamente com suas causas, os erros desta visão filosófica, sobretudo no que diz respeito à dignidade inalienável da pessoa e da sua liberdade. 81 E um profundo significado filosófico reveste também o ponto culminante daquelas páginas, que transcrevia já na minha primeira carta encíclica, a Redemptor hominis, e mantive como um dos pontos de referência constante no meu magistério: « Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime ». 82

O Concílio ocupou-se também do estudo da filosofia, ao qual se devem dedicar os candidatos ao sacerdócio; são recomendações que se podem generalizar a todo o ensino cristão. Afirma-se num dos documentos conciliares: « As disciplinas filosóficas sejam ensinadas de forma que os alunos possam adquirir, antes de mais, um conhecimento sólido e coerente do homem, do mundo e de Deus, apoiados num património filosófico perenemente válido, tendo em conta as investigações filosóficas dos tempos actuais »83

Estas directrizes foram depois retomadas e especificadas noutros documentos do Magistério, com o intuito de garantir uma sólida formação filosófica sobretudo àqueles que se preparam para os estudos teológicos. Também eu sublinhei, em várias ocasiões, a importância desta formação filosófica para todos os que, um dia, terão de enfrentar, na vida pastoral, as questões do mundo actual e individuar as causas de determinados comportamentos, a fim de lhes dar pronta resposta. 84

80 Cf. nn.
GS 14-15.
81 Cf. ibid., GS 20-21.
82 Ibid., GS 22; cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), RH 8: AAS 71 (1979), 271-272.
83 Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam totius, OT 15.
84 Cf. João Paulo II, Const. ap. Sapientia christiana (15 de Abril de 1979), arts. 79-80: AAS 71 (1979), 495-496; Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), PDV 52: AAS 84 (1992), 750-751. Vejam-se também algumas reflexões sobre a filosofia de S. Tomás: Discurso na Pontifícia Universidade de S. Tomás (17 de Novembro de 1979): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 1; Discurso aos participantes no VIII Congresso Tomista Internacional (13 de Setembro de 1980): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28 de Setembro de 1980), 4; Discurso aos participantes no Congresso Internacional da Sociedade S. Tomás de Aquino sobre « A doutrina tomista da alma » (4 de Janeiro de 1986): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12 de Janeiro de 1986), 9. E ainda: S. Congr. da Educação Católica, Ratio fundamentalis institutionis sacerdotalis (6 de Janeiro de 1970), 70-75: AAS 62 (1970), 366-368; Decr. Sacra theologia (20 de Janeiro de 1972): AAS 64 (1972), 583-586.



61 Se foi necessário intervir, em diversas circunstâncias, sobre este tema, reiterando o valor das intuições do Doutor Angélico e insistindo a favor da aquisição do seu pensamento, isso ficou a dever-se também ao facto de não terem sido sempre observadas as directrizes do Magistério, com a solicitude desejada. De facto, nos anos posteriores ao Concílio Vaticano II, pôde observar-se, em muitas escolas católicas, um certo declínio nesta matéria, devido à menor estima sentida não apenas pela filosofia escolástica, mas pelo estudo da filosofia em geral. Com surpresa e mágoa, tenho de constatar que vários teólogos compartilham este desinteresse pelo estudo da filosofia.

Na base desta indiferença, há diversas razões. Em primeiro lugar, aquela falta de confiança na razão que se manifesta em grande parte da filosofia contemporânea, abandonando em larga escala a investigação metafísica das questões últimas do homem para concentrar a sua atenção sobre problemas particulares e regionais, às vezes puramente formais. Depois, há que acrescentar o equívoco que se gerou sobretudo a respeito das « ciências humanas ». O Concílio Vaticano II afirmou, várias vezes, o valor positivo da pesquisa científica para um conhecimento mais profundo do mistério do homem. 85 Mas, o convite dirigido aos teólogos para conhecerem estas ciências e, se vier a propósito, aplicá-las correctamente nos seus estudos, não deve ser interpretado como uma implícita autorização para marginalizar a filosofia, pondo-a de parte na formação pastoral e na praeparatio fidei. E, finalmente, não se pode esquecer o interesse novamente sentido pela inculturação da fé. Em particular, a vida das jovens Igrejas permitiu descobrir, ao lado de formas elevadas de pensamento, a presença de múltiplas expressões de sabedoria popular. Isto constitui um autêntico património de cultura e de tradições. Todavia, o estudo dos costumes tradicionais deve ser acompanhado simultaneamente pela pesquisa filosófica. Será esta que possibilitará fazer sobressair os traços positivos da sabedoria popular, criando a necessária ligação com o anúncio do Evangelho.86

85 Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
GS 57 GS 62.
86 Cf. ibid., GS 44.



62 Desejo insistir novamente que o estudo da filosofia reveste um carácter fundamental e indispensável na estrutura dos estudos teológicos e na formação dos candidatos ao sacerdócio. Não é por acaso que o currículo dos estudos teológicos é antecedido por um período de tempo especialmente consagrado ao estudo da filosofia. Esta decisão, confirmada pelo Concílio Ecuménico Lateranense V, 87 tem as suas raízes na experiência maturada durante a Idade Média, quando foi posta em relevo a importância de uma harmonia construtiva entre o saber filosófico e o teológico. Esta organização dos estudos influenciou, facilitou e promoveu, embora de forma indirecta, uma boa parte do progresso da filosofia moderna. Temos um exemplo significativo na influência exercida pelas Disputationes metaphysicae de Francisco Suárez, que eram seguidas até mesmo nas universidades luteranas da Alemanha. Pelo contrário, o abandono desta metodologia foi causa de graves carências, tanto na formação sacerdotal como na investigação teológica. Basta considerar, por exemplo, como a sua negligência no âmbito do pensamento e da cultura moderna levou ao encerramento de toda a forma de diálogo ou à recepção indiscriminada de qualquer filosofia.

Nutro profunda esperança de que estas dificuldades serão superadas mercê de uma sábia formação filosófica e teológica, que nunca deve faltar na Igreja.

87 Cf. Bula Apostolici regimini sollicitudo, Sessão VIII: Conc. Rcum. Decreta (1991), 605-606.




63 Em virtude das razões aduzidas, senti a urgência de confirmar, por meio desta carta encíclica, o grande interesse que a Igreja tem pela filosofia; ou melhor, a ligação íntima do trabalho teológico com a investigação filosófica da verdade. Daqui nasce o dever que o Magistério tem de discernir e estimular um pensamento filosófico que não esteja em dissonância com a fé. A minha missão é propor alguns princípios e pontos de referência, que considero necessários para se poder instaurar uma relação harmoniosa e eficaz entre a teologia e a filosofia. À luz deles, será possível discernir com maior clareza se e como deve a teologia relacionar-se com os diversos sistemas ou asserções filosóficas que o mundo actual apresenta.



Fides et ratio PT 48