Gaudium et spes PT 20

O ateísmo sistemático

20 O ateísmo moderno apresenta muitas vezes uma forma sistemática, a qual, prescindindo de outros motivos, leva o desejo de autonomia do homem a um tal grau que constitui um obstáculo a qualquer dependência com relação a Deus. Os que professam tal ateísmo, pretendem que a liberdade consiste em ser o homem o seu próprio fim, autor único e demiurgo da sua história; e pensam que isso é incompatível com o reconhecimento de um Senhor, autor e fim de todas as coisas; ou que, pelo menos, torna tal afirmação plenamente supérflua. O sentimento de poder que os progressos técnicos hodiernos deram ao homem pode favorecer esta doutrina.

Não se deve passar em silêncio, entre as formas actuais de ateísmo, aquela que espera a libertação do homem sobretudo da sua libertação económica. A esta, dizem, opõe-se por sua natureza a religião, na medida em que, dando ao homem a esperança duma enganosa vida futura, o afasta da construção da cidade terrena. Por isso, os que professam esta doutrina, quando alcançam o poder, atacam violentamente a religião, difundindo o ateísmo também por aqueles meios de pressão de que dispõe o poder público, sobretudo na educação da juventude.


Atitude da Igreja perante o ateísmo

21 A Igreja, fiel a Deus e aos homens, não pode deixar de reprovar com dor e com toda a firmeza, como já o fez no passado (16), essas doutrinas e actividades perniciosas, contrárias à razão e à experiência comum dos homens, e que destronam o homem da sua inata dignidade.

Procura, no entanto, descobrir no espírito dos ateus as causas da sua negação de Deus, e, consciente da gravidade dos problemas levantados pelo ateísmo, e, levada pelo amor dos homens, entende que elas devem ser objecto de um exame sério e profundo.

A Igreja defende que o reconhecimento de Deus de modo algum se opõe à dignidade do homem, uma vez que esta dignidade se funda e se realiza no próprio Deus. Com efeito, o homem inteligente e livre, foi constituído em sociedade por Deus Criador; mas é sobretudo chamado a unir-se, como filho, a Deus e a participar na sua felicidade. Ensina, além disso, a Igreja que a importância das tarefas terrenas não é diminuída pela esperança escatológica, mas que esta antes reforça com novos motivos a sua execução. Pelo contrário, se faltam o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade humana é gravemente lesada, como tantas vezes se verifica nos nossos dias, e os enigmas da vida e da morte, do pecado e da dor, ficam sem solução, o que frequentemente leva os homens ao desespero.

Entretanto, cada homem permanece para si mesmo um problema insolúvel, apenas confusamente pressentido. Ninguém pode, na verdade, evitar inteiramente esta questão em certos momentos, e sobretudo nos acontecimentos mais importantes da vida. Só Deus pode responder plenamente e com toda a certeza, Ele que chama o homem a uma reflexão mais profunda e a uma busca mais humilde.

Quanto ao remédio para o ateísmo, ele há-de vir da conveniente exposição da doutrina e da vida íntegra da Igreja e dos seus membros. Pois a Igreja deve tornar presente e como que visível a Deus Pai e a seu Filho encarnado, renovando-se e purificando-se continuamente sob a direcção do Espírito Santo (17). Isto há-de alcançar-se, antes de mais, com o testemunho duma fé viva e adulta, educada de modo a poder perceber claramente e superar as dificuldades. Magnífico testemunho desta fé deram e continuam a dar inúmeros mártires. Ela deve manifestar a sua fecundidade, penetrando toda a vida dos fiéis, mesmo a profana, levando-os à justiça e ao amor, sobretudo para com os necessitados. Finalmente, o que contribui mais que tudo para manifestar a presença de Deus é a caridade fraterna dos fiéis que unânimemente colaboram com a fé do Evangelho (18) e se apresentam como sinal de unidade.

Ainda que rejeite inteiramente o ateísmo, todavia a Igreja proclama sinceramente que todos os homens, crentes e não-crentes, devem contribuir para a recta construção do mundo no qual vivem em comum. O que não é possível sem um prudente e sincero diálogo. Deplora, por isso, a discriminação que certos governantes introduzem entre crentes e não-crentes, com desconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana. Para os crentes, reclama a liberdade efectiva, que lhes permita edificar neste mundo também o templo de Deus. Quanto aos ateus, convida-os cortêsmente a considerar com espírito aberto o Evangelho de Cristo.

Pois a Igreja sabe perfeitamente que, ao defender a dignidade da vocação do homem, restituindo a esperança àqueles que já desesperam do seu destino sublime, a sua mensagem está de acordo com os desejos mais profundos do coração humano. Longe de diminuir o homem, a sua mensagem contribui para o seu bem, difundindo luz, vida e liberdade; e, fora dela, nada pode satisfazer o coração humano: «fizeste-nos para Ti», Senhor, e o nosso coração está inquieto, enquanto não repousa em Ti» (19).

16. Cfr. Pio XI, Enc. Divini Redemptoris, 19 março 1937: AAS 29 (1937), p. 65-106; Pio XII, Enc. Ad Apostolorum Principis, 29 junho 1958: AAS 50 (1958), p. 601-614; João XXIII, Enc. Mater et Magistra, 15 maio 1961: AAS 53 (1961) p. 451-453; Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam, 6 agosto 1964: AAS 56 (1964), p. (ES 651-653).
17. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap. I, n.
LG 8: AAS 57 (1965), p. 12.
18. Cfr. Ph 1,27.
19. S. Agostinho, Confissões, I, 1: PL 32, 661.


Cristo, o homem novo

22 Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro (20), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham n'Ele a sua fonte e n'Ele atinjam a plenitude.

«Imagem de Deus invisível» (
Col 1,15) (21), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que, n'Ele, a natureza humana foi assumida, e não destruída (22), por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana (23), amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado (24).

Cordeiro inocente, mereceu-nos a vida com a livre efusão do seu sangue; n 'Ele nos reconciliou Deus consigo e uns com os outros (25) e nos arrancou da escravidão do demónio e do pecado. De maneira que cada um de nós pode dizer com o Apóstolo: o Filho de Deus «amou-me e entregou-se por mim» (Ga 2,20). Sofrendo por nós, não só nos deu exemplo, para que sigamos os seus passos (26), mas também abriu um novo caminho, em que a vida e a morte são santificados e recebem um novo sentido.

O cristão, tornado conforme à imagem do Filho que é o primogénito entre a multidão dos irmãos (27), recebe «as primícias do Espírito» (Rm 8,23), que o tornam capaz de cumprir a lei nova do amor (28). Por meio deste Espírito, «penhor da herança (Ep 1,14), o homem todo é renovado interiormente, até à «redenção do corpo» (Rm 8,23): «Se o Espírito d'Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos dará também a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita» (Rm 8,11) (29). É verdade que para o cristão é uma necessidade e um dever lutar contra o mal através de muitas tribulações, e sofrer a morte; mas, associado ao mistério pascal, e configurado à morte de Cristo, vai ao encontro da ressurreição, fortalecido pela esperança (30).

E o que fica dito, vale não só dos cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente (31). Com efeito, já que por todos morreu Cristo (32) e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido.

Tal é, e tão grande, o mistério do homem, que a revelação cristã manifesta aos que crêem. E assim, por Cristo e em Cristo, esclarece-se o enigma da dor e da morte, o qual, fora do Seu Evangelho, nos esmaga. Cristo ressuscitou, destruindo a morte com a própria morte, e deu-nos a vida (33), para que, tornados filhos no Filho, exclamemos no Espírito: Abba, Pai (34).

20. Cfr. Rm 5,14. Cfr. Tertuliano, De carpis resurr. 6: «Quodcumque limus exprimebatur, Christus cogitabatur homo futurus»: PL 2, 802 (848); CSEL, 47, p. 33, 1. 12-13.
21. Cfr. 2Co 4,4.
22.Cfr. Conc. Constant. II, can. 7: «Neque Deo Verbo in carpis naturam transmutato, neque carne in Verbi naturam transducta»: Denz. 219 (DS 428). Cfr. também Conc. Constant. III: « Quemadmodum enim sanctissima ac immaculata animata eius caro deificata non est perempta (theôtheisa ouk anërethe), sed in próprio sui statu et ratione permansit»: Denz. 291 (DS 556). Cfr. Conc. Calc.: «in duabus naturis inconfuse, immutabiliter, indivise, inseparabiliter agnoscentum»: Denz. 148 (DS 302).
23. Cfr. Conc. Constant. III: «ita et humana eius voluntas deificata non. est perempta»: Denz. 291 (DS 556).
24 Cfr. He 4,15
25. Cfr. 2Co 5,18-19 Col 1,20-22.
26. Cfr. 1P 2,2 Mt 16,24 Lc 14,27.
27. Cfr. Rm 8,29 Col 1,18.
28. Cfr. Rm 8,1-11.
29. Cfr. 2Co 4,14.
30. Cfr. Ph 3,10 Rm 8,17.
31. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap. II, n. LG 16: AAS 57 (1965), p. 20.
32. Cfr. Rm 8,32.
33. Cfr. Liturgia Pascal bizantina.
34. Cfr. Rm 8,15 Ga 4,6; Jn 1,12 Jn 3,1-2.


CAPÍTULO II

A COMUNIDADE HUMANA


Propósito do Concílio

23 Entre os principais aspectos do mundo actual conta-se a multiplicação das relações entre os homens, cujo desenvolvimento é muito favorecido pelos progressos técnicos hodiernos. Todavia, o diálogo fraterno entre os homens não se realiza ao nível destes progressos, mas ao nível mais profundo da comunidade de pessoas, a qual exige o mútuo respeito da sua plena dignidade espiritual. A revelação cristã favorece poderosamente esta comunhão entre as pessoas, ao mesmo tempo que nós leva a uma compreensão mais profunda das leis da vida social que o Criador inscreveu na natureza espiritual e moral do homem.

Dado, porém, que recentes documentos do magistério eclesiástico expuseram a doutrina cristã acerca da sociedade humana (1), o Concílio limita-se a recordar algumas verdades mais importantes e a expor o seu fundamento à luz da revelação. Insiste, seguidamente, em algumas consequências de maior importância para o nosso tempo.

1. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et Magistra, 15 maio 1961: AAS 53 (1961) p.
MM 401-464; Enc. Pacem in terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), p. PT 257-304; Paulo VI, Enc. Ecclesiam suam, 6 agosto 1964: AAS 54 (1964), p. (ES 609-659).


Índole comunitária da vocação humana

24 Deus, que por todos cuida com solicitude paternal, quis que os homens formassem uma só família, e se tratassem uns aos outros como irmãos. Criados todos à imagem e semelhança daquele Deus que «fez habitar sobre toda a face da terra o inteiro género humano, saído dum princípio único» (Ac 17,26), todos são chamados a um só e mesmo fim, que é o próprio Deus.

E por isso, o amor de Deus e do próximo é o primeiro e maior de todos os mandamentos. Mas a Sagrada Escritura ensina-nos que o amor de Deus não se pode separar do amor do próximo, «...todos os outros mandamentos se resumem neste: amarás o próximo como a ti mesmo... A caridade é, pois, a lei na sua plenitude» (Rm 13,9-10 cfr. 1Jn 4,20). Isto revela-se como sendo da maior importância, hoje que os homens se tornam cada dia mais dependentes uns dos outros e o mundo se unifica cada vez mais.

Mais ainda: quando o Senhor Jesus pede ao Pai «que todos sejam um..., como nós somos um» (Jn 17,21-22), sugere - abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana - que dá uma certa analogia entre a união das pessoas divinas entre si e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança torna manifesto que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo (2).

2. Cfr. Lc 17,33.


Interdependência da pessoa humana e da sociedade humana

25 A natureza social do homem torna claro que o progresso da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade estão em mútua dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social (3), é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças ao contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com seus irmãos.

Entre os laços sociais, necessários para o desenvolvimento do homem, alguns, como a família e a sociedade política, correspondem mais imediatamente à sua natureza íntima; outros são antes fruto da sua livre vontade. No nosso tempo, devido a várias causas, as relações e interdependências mútuas multiplicam-se cada vez mais; o que dá origem a diversas associações e instituições, quer públicas quer privadas. Este facto, denominado socialização, embora não esteja isento de perigos, traz, todavia, consigo muitas vantagens, em ordem a confirmar e desenvolver as qualidades da pessoa humana e a proteger os seus direitos (4).

Porém, se é verdade que as pessoas humanas recebem muito desta vida social, em ordem a realizar a própria vocação, mesmo a religiosa, também não se pode negar que os homens são muitas vezes afastados do bem ou impelidos ao mal pelas condições em que vivem e estão mergulhados desde a infância. É certo que as perturbações tão frequentes da ordem social vêm, em grande parte, das tensões existentes no seio das formas económicas, políticas e sociais. Mas, mais profundamente, nascem do egoísmo e do orgulho dos homens, os quais também pervertem o ambiente social. Onde a ordem das coisas se encontra viciada pelas consequências do pecado, o homem, nascido com uma inclinação para o mal, encontra novos incitamentos para o pecado, que não pode superar sem grandes esforços e ajudado pela graça.

3. Cfr. S. Tomás, 1 Ethic. lect. 1.
4. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p.
MM 418. Cfr. também Pio XI, Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 222 ss.


Promoção do bem-comum

26 A interdependência, cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo o mundo, faz com que o bem comum - ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e fàcilmente a própria perfeição - se torne hoje cada vez mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo o género humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família humana (5).

Simultâneamente, aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa.

A ordem social e o seu progresso devem, pois, reverter sempre em bem das pessoas, já que a ordem das coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas e não ao contrário; foi o próprio Senhor quem o insinuou ao dizer que o sábado fora feito para o homem, não o homem para o sábado (6). Essa ordem, fundada na verdade, construída sobre a justiça e vivificada pelo amor, deve ser cada vez mais desenvolvida e, na liberdade, deve encontrar um equilíbrio cada vez mais humano (7). Para o conseguir, será necessária a renovação da mentalidade e a introdução de amplas reformas sociais.

O Espírito de Deus, que dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável providência, está presente a esta evolução. E o fermento evangélico despertou e desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade.

5. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p.
MM 417.
6. Cfr. Mc 2,27.
7. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. PT 266.


Respeito da pessoa humana

27 Vindo a conclusões práticas e mais urgentes, o Concílio recomenda a reverência para com o homem, de maneira que cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um «outro eu», tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários para a levar dignamente (8), não imitando aquele homem rico que não fez caso algum do pobre Lázaro (9).

Sobretudo em nossos dias, urge a obrigação de nos tornarmos o próximo de todo e qualquer homem, e de o servir efectivamente quando vem ao nosso . encontro - quer seja o ancião, abandonado de todos, ou o operário estrangeiro injustamente desprezado, ou o exilado, ou o filho duma união ilegítima que sofre injustamente por causa dum pecado que não cometeu, ou o indigente que interpela a nossa consciência, recordando a palavra do Senhor: «todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes» (
Mt 25,40).

Além disso, são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.

8. Cfr. Jc 2,15-16.
9. Cfr. Lc 16,19-31.


Respeito e amor dos adversários

28 O nosso respeito e amor devem estender-se também àqueles que pensam ou actuam diferentemente de nós em matéria social, política ou até religiosa. Aliás, quanto mais intimamente compreendermos, com delicadeza e caridade, a sua maneira de ver, tanto mais fàcilmente poderemos com eles dialogar.

Evidentemente, este amor e benevolência de modo algum nos devem tornar indiferentes perante a verdade e o bem. Pelo contrário, é o próprio amor que incita os discípulos de Cristo a anunciar a todos a verdade salvadora. Mas deve distinguir-se entre o erro, sempre de rejeitar, e aquele que erra, o qual conserva sempre a dignidade própria de pessoas, mesmo quando está atingido por ideias religiosas falsas ou menos exactas (10). Só Deus é juiz e penetra os corações; por esse motivo, proibe-nos Ele de julgar da culpabilidade interna de qualquer pessoa (11).

A doutrina de Cristo exige que também perdoemos as injúrias (12), e estende a todos os inimigos o preceito do amor, que é o mandamento da lei nova: «ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Mas eu digo-vos: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam» (
Mt 5,43-44).

10. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. PT 299-300.
11. Cfr. Lc 6,37-38 Mt 7,1-2 Rm 2,1-11 Rm 14,10-12.
12. Cfr. Mt 5,45-47.


Igualdade essencial entre todos os homens

29 A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos.

Sem dúvida, os homens não são todos iguais quanto à capacidade física e forças intelectuais e morais, variadas e diferentes em cada um. Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião. É realmente de lamentar que esses direitos fundamentais da pessoa ainda não sejam respeitados em toda a parte. Por exemplo, quando se nega à mulher o poder de escolher livremente o esposo ou o estado de vida ou de conseguir uma educação e cultura iguais às do homem.

Além disso, embora entre os homens haja justas diferenças, a igual dignidade pessoal postula, no entanto, que se chegue a condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as excessivas desigualdades económicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional.

Procurem as instituições humanas, privadas ou públicas, servir a dignidade e o destino do homem, combatendo ao mesmo tempo valorosamente contra qualquer forma de sujeição política ou social e salvaguardando, sob qualquer regime político, os direitos humanos fundamentais. Mais ainda: é necessário que tais instituições se adaptem progressivamente às realidades espirituais, que são as mais elevadas de todas; embora por vezes se requeira um tempo razoàvelmente longo para chegar a esse desejado fim.


Superação da ética individualista

30 A profundidade e rapidez das transformações reclamam com maior urgência que ninguém se contente, por não atender à evolução das coisas ou por inércia, com uma ética puramente individualística. O dever de justiça e caridade cumpre-se cada vez mais com a contribuição de cada um em favor do bem comum, segundo as próprias possibilidades e as necessidades dos outros, promovendo instituições públicas ou privadas e ajudando as que servem para melhorar as condições de vida dos homens. Mas há pessoas que, fazendo profissão de ideias amplas e generosas, vivem sempre, no entanto, de tal modo como se nenhum caso fizessem das necessidades sociais. E até, em vários países, muitos desprezam as leis e prescrições sociais. Não poucos atrevem-se a eximir-se, com várias fraudes e enganos, aos impostos e outras obrigações sociais. Outros desprezam certas normas da vida social, como por exemplo as estabelecidas para defender a saúde ou para regularizar o trânsito de veículos, sem repararem que esse seu descuido põe em perigo a vida própria e alheia.

Todos tomem a peito considerar e respeitar as relações sociais como um dos principais deveres do homem de hoje. Com efeito, quanto mais o mundo se unifica, tanto mais as obrigações dos homens transcendem os grupos particulares e se estendem progressivamente a todo o mundo. O que só se poderá fazer se os indivíduos e grupos cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as virtudes morais e sociais, de maneira a tornarem-se realmente, com o necessário auxílio da graça divina, homens novos e construtores duma humanidade nova.


Responsabilidade e participação social

31 Para que cada homem possa cumprir mais perfeitamente os seus deveres de consciência quer para consigo quer em relação aos vários grupos de que é membro, deve-se ter o cuidado de que todos recebam uma formação mais ampla, empregando-se para tal os consideráveis meios de que hoje dispõe a humanidade. Antes de mais, a educação dos jovens, de qualquer origem social, deve ser de tal maneira organizada que suscite homens e mulheres não apenas cultos mas também de forte personalidade, tão urgentemente exigidos pelo nosso tempo.

Mal poderá, contudo, o homem chegar a este sentido de responsabilidade, se as condições de vida lhe não permitirem tornar-se consciente da própria dignidade e responder à sua vocação, empenhando-se no serviço de Deus e dos outros homens. Ora a liberdade humana com frequência se debilita quando o homem cai em extrema miséria, e degrada-se quando ele, cedendo às demasiadas facilidades da vida, se fecha numa espécie de solidão dourada. Pelo contrário, ela robustece-se quando o homem aceita as inevitáveis dificuldades da vida social, assume as multiformes exigências da vida em comum e se empenha no serviço da comunidade humana.

Deve, por isso, estimular-se em todos a vontade de tomar parte nos empreendimentos comuns. E é de louvar o modo de agir das nações em que a maior parte dos cidadãos participa, com verdadeira liberdade, nos assuntos públicos. É preciso, porém, ter sempre em conta a. situação real de cada povo e o necessário vigor da autoridade pública. Mas para que todos os cidadãos se sintam inclinados a participar na vida dos vários grupos de que se forma o corpo social, é necessário que encontrem nesses grupos bens que os atraiam e os predisponham ao serviço dos outros. Podemos legitimamente pensar que o destino futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações vindoiras razões de viver e de esperar.


O Verbo encarnado e a solidariedade humana

32 Do mesmo modo que Deus não criou os homens para viverem isolados, mas para se unirem em sociedade, assim também Lhe «aprouve... santificar e salvar os homens não individualmente e com exclusão de qualquer ligação mútua, mas fazendo deles um povo que O reconhecesse em verdade e O servisse santamente» (13). Desde o começo da história da salvação, Ele escolheu os homens não só como indivíduos mas ainda como membros duma comunidade. Com efeito, manifestando o seu desígnio, chamou a esses escolhidos o «seu povo» (Ex 3,7-12), com o qual estabeleceu aliança no Sinai (14).

Esta índole comunitária aperfeiçoa-se e completa-se com a obra de Jesus Cristo. Pois o próprio Verbo encarnado quis participar da vida social dos homens. Tomou parte nas bodas de Caná, entrou na casa de Zaqueu, comeu com os publicanos e pecadores. Revelou o amor do Pai e a sublime vocação dos homens, evocando realidades sociais comuns e servindo-se de modos de falar e de imagens da vida de todos os dias. Santificou os laços sociais e antes de mais os familiares, fonte da vida social; e submeteu-se livremente às leis do seu país. Quis levar a vida dum operário do seu tempo e da sua terra.

Na sua pregação claramente mandou aos filhos de Deus que se tratassem como irmãos. E na sua oração pediu que todos os seus discípulos fossem «um». Ele próprio se ofereceu à morte por todos, de todos feito Redentor. «Não há maior amor do que dar alguém a vida pelos seus amigos» (Jn 15,13). E mandou aos Apóstolos pregar a todos a mensagem evangélica para que a humanidade se tornasse a família de Deus, na qual o amor fosse toda a lei.

Primogénito entre muitos irmãos, estabeleceu, depois da sua morte e ressurreição, com o dom do seu Espírito, uma nova comunhão fraterna entre todos os que O recebem com fé e caridade, a saber, na Igreja, que é o seu corpo, no qual todos, membros uns dos outros, se prestam mùtuamente serviço segundo os diversos dons a cada um concedidos.

Esta solidariedade deve crescer sem cessar, até se consumar naquele dia em que os homens, salvos pela graça, darão perfeita glória a Deus, como família amada do Senhor e de Cristo seu irmão.

13. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap. II, LG 9: AAS 57 (1965), p. 12-13.
14. Cfr. Ex 24,1-8.


CAPÍTULO III

A ACTIVIDADE HUMANA NO MUNDO


Problema do sentido da actividade humana

33 Sempre o homem procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida; hoje, porém, sobretudo graças à ciência e à técnica, estendeu o seu domínio à natureza inteira, e continuamente o aumenta; e a família humana, sobretudo devido ao aumento de múltiplos meios de comunicação entre as nações, vai-se descobrindo e organizando progressivamente como uma só comunidade espalhada pelo mundo inteiro. Acontece assim que muitos bens que o homem noutro tempo esperava sobretudo das forças superiores, os alcança hoje por seus próprios meios.

Muitas são as questões que se levantam entre os homens, perante este imenso empreendimento, que já atingiu o inteiro género humano. Qual o sentido e valor desta actividade? Como se devem usar estes bens? Para que fim tendem os esforços dos indivíduos e das sociedades? Guarda do depósito da palavra divina, onde se vão buscar os princípios da ordem religiosa e moral, a Igreja, embora nem sempre tenha uma resposta já pronta para cada uma destas perguntas, deseja, no entanto, juntar a luz da revelação à competência de todos os homens, para que assim receba luz o caminho recentemente empreendido pela humanidade.


Valor da actividade humana

34 Uma coisa é certa para os crentes: a actividade humana individual e colectiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus. Pois o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade (1) e, reconhecendo Deus como Criador universal, orientar-se a si e ao universo para Ele; de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, seja glorificado em toda a terra o nome de Deus (2).

Isto aplica-se também às actividades de todos os dias. Assim, os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, de tal modo exercem a própria actividade que prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história (3).

Longe de pensar que as obras do engenho e poder humano se opõem ao poder de Deus, ou de considerar a criatura racional como rival do Criador, os cristãos devem, pelo contrário, estar convencidos de que as vitórias do género humano manifestam a grandeza de Deus e são fruto do seu desígnio inefável. Mas, quanto mais aumenta o poder dos homens, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária. Vê-se, portanto, que a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus semelhantes, mas que, antes, os obriga ainda mais a realizar essas actividades (4).

1. Cfr.
Gn 1,26-27 Gn 9,2-3.
2. Cfr. Ps 8,7 Ps 8,10.
3. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. PT 297.
4. Cfr. Mensagem enviada à humanidade pelos Padres Conciliares no início do Concílio Vaticano II, outubro 1962: AAS 54 (1962), p. 822-823.


Ordenação da actividade humana

35 A actividade humana, do mesmo modo que procede do homem, assim para ele se ordena. De facto, quando age, o homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades, sai de si e eleva-se sobre si mesmo. Este desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os bens externos que se possam conseguir. O homem vale mais por aquilo que é do que por aquilo que tem (5). Do mesmo modo, tudo o que o homem faz para conseguir mais justiça, mais fraternidade, uma organização mais humana das relações sociais, vale mais do que os progressos técnicos. Pois tais progressos podem proporcionar a base material para a promoção humana, mas, por si sós, são incapazes de a realizar.

A norma da actividade humana é pois a seguinte: segundo o plano e vontade de Deus, ser conforme com o verdadeiro bem da humanidade e tornar possível ao homem, individualmente considerado ou em sociedade, cultivar e realizar a sua vocação integral.



Gaudium et spes PT 20