Gaudium et spes PT 73

73 Profundas transformações se verificam nos nossos dias também nas estruturas e instituições dos povos, em consequência da sua evolução cultural, económica e social; pois todas estas transformações têm uma grande influência na vida da comunidade política, especialmente no que se refere aos direitos e deveres de cada um no exercício da liberdade cívica, na promoção do bem comum e na estruturação das relações dos cidadãos entre si e com o poder público.

A consciência mais sentida da dignidade humana dá origem em diversas regiões do mundo ao desejo de instaurar uma ordem político-jurídica em que os direitos da pessoa na vida pública sejam melhor assegurados, tais como os direitos de livre reunião e associação, de expressão das próprias opiniões e de profissão privada e pública da religião. A salvaguarda dos direitos da pessoa é, com efeito, uma condição necessária para que os cidadãos, quer individualmente quer em grupo, possam participar activamente na vida e gestão da coisa pública.

Paralelamente com o progresso cultural, económico e social, cresce em muitos o desejo de tomar maior parte na organização da comunidade política. Aumenta na consciência de muitos o empenho em assegurar os direitos das minorias, sem esquecer de resto os seus deveres para com a comunidade política; cresce, além disso, cada dia o respeito pelos homens que professam uma opinião ou religião diferente; e estabelece-se ao mesmo tempo uma colaboração mais ampla, a fim de que todos os cidadãos, e não apenas alguns privilegiados, possam gozar realmente dós direitos da pessoa.

Condenam-se, pelo contrário, todas as formas políticas, existentes em algumas regiões, que impedem a liberdade civil ou religiosa, multiplicam as vítimas das paixões e dos crimes políticos e desviam do bem comum o exercício da autoridade, em benefício de alguma facção ou dos próprios governantes.

Para estabelecer uma vida política verdadeiramente humana, nada melhor do que fomentar sentimentos interiores de justiça e benevolência e serviço do bem comum e reforçar as convicções fundamentais acerca da verdadeira natureza da comunidade política, bem como do fim, recto exercício e limites da autoridade.


Natureza e fim da comunidade política

74 Os indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade civil, têm consciência da própria insuficiência para realizar uma vida plenamente humana e percebem a necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual todos conjuguem diàriamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem o bem comum (1). E por esta razão constituem, segundo diversas formas, a comunidade política. A comunidade política existe, portanto, em vista do bem comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e fàcilmente a própria perfeição (2).

Porém, os homens que se reunem na comunidade política são muitos e diferentes, e podem legitimamente divergir de opinião. E assim, para impedir que a comunidade política se desagregue ao seguir cada um o próprio parecer, requere-se uma autoridade que faça convergir para o bem comum as energias de todos os cidadãos; não duma maneira mecânica ou despótica, mas sobretudo como força moral, que se apoia na liberdade e na consciência do próprio dever e sentido de responsabilidade.

Resulta, portanto, claro que a comunidade política e a autoridade pública se fundam na natureza humana e que, por conseguinte, pertencem à ordem estabelecida por Deus, embora a determinação do regime político e a designação dos governantes se deixem à livre vontade dos cidadãos (3).

Segue-se também que o exercício da autoridade política, seja na comunidade como tal, seja nos organismos representativos, se deve sempre desenvolver e actuar dentro dos limites da ordem. moral, em vista do bem comum, dinâmicamente concebido, de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou a estabelecer. Nestas condições, os cidadãos têm obrigação moral de obedecer (4). Daqui a responsabilidade, dignidade e importância dos que governam.

Mas quando a autoridade pública, excedendo os limites da própria competência, oprime os cidadãos, estes não se recusem às exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito, dentro dos limites traçados pela lei natural e pelo Evangelho, defender os próprios direitos e os dos seus concidadãos, contra o abuso desta autoridade.

Os modos concretos como a comunidade política organiza a própria estrutura e o equilíbrio dos poderes públicos, podem variar, segundo a diferente índole e o progresso histórico dos povos; mas devem sempre ordenar-se à formação de homens cultos, pacíficos e benévolos para com todos, em proveito de toda a família humana.

1. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p.
MM 417.
2. Cfr. ID., ibid.
3. Cfr. Rm 13,1-5.
4. Cfr. Rm 13,5.


A colaboração de todos na vida política

75 É plenamente conforme com a natureza do homem que se encontrem estruturas jurídico-políticas nas quais todos os cidadãos tenham a possibilidade efectiva de participar livre e activamente, dum modo cada vez mais perfeito e sem qualquer discriminação, tanto no estabelecimento das bases jurídicas da comunidade política, como na gestão da coisa pública e na determinação do campo e fim das várias instituições e na escolha dos governantes (5). Todos os cidadãos se lembrem, portanto, do direito e simultâneamente do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da promoção do bem comum. A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, em serviço dos homens.

Para que a cooperação responsável dos cidadãos leve a felizes resultados na vida pública de todos os dias, é necessário que haja uma ordem jurídica positiva, que estabeleça convenientemente divisão das funções e dos orgãos da autoridade pública e ao mesmo tempo protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem quer que seja. Juntamente com os deveres a que todos os cidadãos estão obrigados, sejam reconhecidos, assegurados e fomentados os direitos das pessoas, famílias e grupos sociais, bem como o exercício dos mesmos. Entre aqueles, é preciso recordar o dever de prestar à nação os serviços materiais e pessoais que são requeridos pelo bem comum. Os governantes tenham o cuidado de não impedir as associações familiares, sociais ou culturais e os corpos ou organismos intermédios, nem os privem da sua actividade legítima e eficaz; pelo contrário, procurem de bom grado promovê-la ordenadamente. Evitem, por isso, os cidadãos quer individual quer associativamente, conceder à autoridade um poder excessivo, nem lhe peçam, de modo inoportuno, demasiadas vantagens e facilidades, de modo a que se diminua a responsabilidade das pessoas, famílias e grupos sociais.

A crescente complexidade das actuais circunstâncias força com frequência o poder público a intervir nos assuntos sociais, económicos e culturais, com o fim de introduzir condições mais favoráveis em que os cidadãos e grupos possam livremente e com mais eficácia promover o bem humano integral. As relações entre a socialização (6) e a autonomia e desenvolvimento pessoais podem conceber-se diferentemente, conforme a diversidade das regiões e o grau de desenvolvimento dos povos. Mas quando, por exigência do bem comum, se limitar temporàriamente o exercício dos direitos, restabeleça-se quanto antes a liberdade, logo que mudem as circunstâncias. É, porém, desumano que a autoridade política assuma formas totalitárias ou ditatoriais, que lesam os direitos das pessoas ou dos grupos sociais.

Os cidadãos cultivem com magnanimidade e lealdade o amor da pátria, mas sem estreiteza de espírito, de maneira que, ao mesmo tempo, tenham sempre presente o bem de toda a família humana, que resulta das várias ligações entre as raças, povos e nações.

Todos os cristãos tenham consciência da sua vocação especial e própria na comunidade política; por ela são obrigados a dar exemplo de sentida responsabilidade e dedicação pelo bem comum, de maneira a mostrarem também com factos como se harmonizam a autoridade e a liberdade, a iniciativa pessoal e a solidariedade do inteiro corpo social, a oportuna unidade com a proveitosa diversidade. Reconheçam as legítimas opiniões, divergentes entre si, acerca da organização da ordem temporal, e respeitem os cidadãos e grupos que as defendem honestamente. Os partidos políticos devem promover o que julgam ser exigido pelo bem comum, sem que jamais seja lícito antepor o próprio interesse ao bem comum.

Deve atender-se cuidadosamente à educação cívica e política, hoje tão necessária à população e sobretudo aos jovens, para que todos os cidadãos possam participar na vida da comunidade política. Os que são ou podem tornar-se aptos para exercer a difícil e muito nobre (7) arte da política, preparem-se para ela; e procurem exercê-la sem pensar no interesse próprio ou em vantagens materiais. Procedam com inteireza e prudência contra a injustiça e a opressão, contra o arbitrário domínio de uma pessoa ou de um partido, e contra a intolerância. E dediquem-se com sinceridade e equidade, mais ainda, com caridade e fortaleza política, ao bem de todos.

5. Cfr. Pio XII, Radiomensagem, 24 dezembro 1942: AAS 35 (1943), p. 9-24; 24 dezembro 1944: AAS 37 (1945), p. 11-17, João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p.
PT 263 PT 271 PT 277-278.
6. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. MM 415-418.
7. Pio XI, Alocução aos dirigentes da federação Universitária Católica: Discorsi di Pio XI (ed. Bertetto), Turim, vol. 1 (1960), p. 743.


A comunidade política e a Igreja

76 E de grande importância, sobretudo onde existe uma sociedade pluralística, que se tenha uma concepção exacta das relações entre a comunidade política e a Igreja, e, ainda, que se distingam claramente as actividades que os fiéis, isoladamente ou em grupo, desempenham em próprio nome como cidadãos guiados pela sua consciência de cristãos, e aquelas que exercitam em nome da Igreja e em união com os seus pastores.

A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana.

No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo. Porque o homem não se limita à ordem temporal sòmente; vivendo na história humana, fundada sobre o amor do Redentor, ela contribui para que se difundam mais amplamente, nas nações e entre as nações, a justiça e a caridade. Pregando a verdade evangélica e iluminando com a sua doutrina e o testemunho dos cristãos todos os campos da actividade humana, ela respeita e promove também a liberdade e responsabilidade política dos cidadãos.

Os Apóstolos e os sucessores dos mesmos, com os seus cooperadores, enviados para anunciar aos homens Cristo, salvador do mundo, têm por sustentáculo do seu apostolado o poder de Deus, o qual muitas vezes manifesta a força do Evangelho na fraqueza das suas testemunhas. É preciso, pois, que todos os que se consagram ao ministério da palavra de Deus utilizem os caminhos e meios próprios do Evangelho, tantas vezes diferentes dos meios da cidade terrena.

É certo que as coisas terrenas e as que, na condição humana, transcendem este mundo, se encontram intimamente ligadas; a própria Igreja usa das coisas temporais, na medida em que a sua missão o exige. Mas ela não coloca a sua esperança nos privilégios que lhe oferece a autoridade civil; mais ainda, ela renunciará ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos, quando verificar que o seu uso põe em causa a sinceridade do seu testemunho ou que novas condições de vida exigem outras disposições. Porém, sempre lhe deve ser permitido pregar com verdadeira liberdade a fé; ensinar a sua doutrina acerca da sociedade; exercer sem entraves a própria missão entre os homens; e pronunciar o seu juízo moral mesmo acerca das realidades políticas, sempre que os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem e utilizando todos e só aqueles meios que são conformes com o Evangelho e, segundo a variedade dos tempos e circunstâncias, são para o bem de todos.

Aderindo fielmente ao Evangelho e realizando a sua missão no mundo, a Igreja -a quem pertence fomentar e elevar tudo o que de verdadeiro, bom e belo se encontra na comunidade dos homens (8) - consolida, para glória de Deus, a paz entre os homens (9).

8. Cfr. Conc. Vaticano II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium
LG 13: A.AS 57 (1965), p. 17.
9. Cfr. Lc 2,14.


CAPÍTULO V

A PROMOÇÃO DA PAZ E A COMUNIDADE INTERNACIONAL


Necessidade e desejos actuais da paz

77 Nestes nossos tempos, em que as dores e angústias derivadas da guerra ou da sua ameaça ainda oprimem tão duramente os homens, a família humana chegou a uma hora decisiva no seu processo de maturação. Progressivamente unificada, e por toda a parte mais consciente da própria unidade, não pode levar a cabo a tarefa que lhe incumbe de construir um mundo mais humano para todos os homens, a não ser que todos se orientem com espírito renovado à verdadeira paz. A mensagem evangélica, tão em harmonia com os mais altos desejos e aspirações do género humano, brilha assim com novo esplendor nos tempos de hoje, ao proclamar felizes os construtores da paz «porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9). Por isso, o Concílio, explicando a verdadeira e nobilíssima natureza da paz, e uma vez condenada a desumanidade da guerra, quer apelar ardentemente para que os cristãos, com a ajuda de Cristo, autor da paz, colaborem com todos os homens no estabelecimento da paz na justiça e no amor e na preparação dos instrumentos da mesma paz.


Natureza da paz e sua consecução

78 A paz não é ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela é chamada «obra da justiça» (Is 32,7). É um fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça. Com efeito, o bem comum do género humano é regido, primária e fundamentalmente, pela lei eterna; mas, quanto às suas exigências concretas, está sujeito a constantes mudanças, com o decorrer do tempo. Por esta razão, a paz nunca se alcança duma vez para sempre, antes deve estar constantemente a ser edificada. Além disso, como a vontade humana é fraca e ferida pelo pecado, a busca da paz exige o constante domínio das paixões de cada um e a vigilância da autoridade legítima. Mas tudo isto não basta. Esta paz não se pode alcançar na terra a não ser que se assegure o bem das pessoas e que os homens compartilhem entre si livre e confiadamente as riquezas do seu espírito criador. Absolutamente necessárias para a edificação da paz são ainda a vontade firme de respeitar a dignidade dos outros homens e povos e a prática assídua da fraternidade. A paz é assim também fruto do amor, o qual vai além do que a justiça consegue alcançar. A paz terrena, nascida do amor do próximo, é imagem e efeito da paz de Cristo, vinda do Pai. Pois o próprio Filho encarnado, príncipe da paz, reconciliou com Deus, pela cruz, todos os homens; restabelecendo a unidade de todos num só povo e num só corpo, extinguiu o ódio (1) e, exaltado na ressurreição, derramou nos corações o Espírito de amor.

Todos os cristãos são, por isso, insistentemente chamados a que «praticando a verdade na caridade» (Ep 4,15), se unam com os homens verdadeiramente pacíficos para implorarem e edificarem a paz.

Levados pelo mesmo espírito, não podemos deixar de louvar aqueles que, renunciando à violência na reivindicação dos próprios direitos, recorrem a meios de defesa que estão também ao alcance dos mais fracos — sempre que isto se possa fazer sem lesar os direitos e obrigações de outros ou da comunidade.

Na medida em que os homens são pecadores, o perigo da guerra ameaça-os e continuará a ameaça-los até à vinda de Cristo; mas na medida em que, unidos em caridade, superam o pecado, superadas ficam também as lutas, até que se realize aquela palavra: «com as espadas forjarão arados e foices com as lanças. Nenhum povo levantará a espada contra outro e jamais se exercitarão para a guerra» (Is 2,4).

1. Cfr. Ep 2,16 Col 1,20-22.


Secção 1: EVITAR A GUERRA


Refrear a crueldade das guerras

79 Apesar de as últimas guerras terem trazido tão grandes danos materiais e morais, ainda todos os dias a guerra leva por diante as suas devastações em alguma parte da terra. Mais ainda, o emprego de armas científicas de todo o género para fazer a guerra, ameaça, dada a selvajaria daquelas, levar os combatentes a uma barbárie muito pior que a de outros tempos. Além disso, a complexidade da actual situação e o intrincado dos relações entre países tornam possível o prolongar-se de guerras mais ou menos larvadas, pelo recurso a novos métodos insidiosos e subversivos. Em muitos casos, o recurso aos métodos do terrorismo é considerado como uma nova forma de guerra.

Tendo diante dos olhos este estado de prostração da humanidade, o Concílio quer, antes de mais, recordar o valor permanente do direito natural internacional e dos seus princípios universais. A. própria consciência da humanidade afirma cada vez com maior força estes princípios. As acções que lhes são deliberadamente contrárias, bem como as ordens que as mandam executar, são portanto, criminosas; nem a obediência cega pode desculpar os que as cumprem. Entre tais actos devem-se contar, antes de mais, aqueles com que se leva metòdicamente a cabo o extermínio de toda uma raça, nação ou minoria étnica. Tais acções devem ser veementemente condenadas como horríveis crimes e louvada no mais alto grau a coragem de quantos não temem resistir abertamente aos que as querem impor.

Existem diversas convenções internacionais relativas à guerra assinadas por bastantes nações, e que visam a tornar menos desumanas as actividades bélicas e suas consequências; tais, por exemplo, as que se referem à sorte dos soldados feridos ou prisioneiros, e outras semelhantes. Estes acordos devem ser observados. Mais ainda, todos, sobretudo os poderes públicos e os peritos nestas matérias, têm obrigação de procurar aperfeiçoa-los quanto lhes for

possível, de maneira a que sejam capazes de melhor e mais eficazmente refrearem a crueldade das guerras. Parece, além disso, justo que as leis tenham em conta com humanidade o caso daqueles que, por motivo de consciência, recusam combater, contanto que aceitem outra forma de servir a comunidade humana.

Na realidade, a guerra não foi eliminada do mundo dos homens. E enquanto existir o perigo de guerra e não houver uma autoridade internacional competente e dotada dos convenientes meios, não se pode negar aos governos, depois de esgotados todos os recursos de negociações pacíficas, o direito de legítima defesa. Cabe assim aos governantes e aos demais que participam na responsabilidade dos negócios públicos, o dever de assegurar a defesa das populações que lhes estão confiadas, tratando com toda a seriedade um assunto tão sério. Mas uma coisa é utilizar a força militar para defender justamente as populações, outra coisa é querer subjugar as outras nações. O poderio bélico não legitima qualquer uso militar ou político que dele se faça. Nem, finalmente, uma vez começada lamentàvelmente a guerra, já tudo se torna lícito entre as partes beligerantes.

Aqueles que se dedicam ao serviço da pátria no exército, considerem-se servidores da segurança e da liberdade dos povos; na medida em que se desempenham como convém desta tarefa, contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da paz.


A guerra total

80 Com o incremento das armas científicas, tem aumentado desmesuradamente o horror e maldade da guerra. Pois, com o emprego de tais armas, as acções bélicas podem causar enormes e indiscriminadas destruições, que desse modo já vão muito além dos limites da legítima defesa. Mais ainda: se se empregasse integralmente o material existente nos arsenais das grandes potências, resultaria daí o quase total e recíproco extermínio de ambos os adversários, sem falar nas inúmeras devastações provocadas no mundo e nos funestos efeitos que do uso de tais armas se seguiriam.

Tudo isto nos força a considerar a guerra com um espírito inteiramente novo (2). Saibam os homens de hoje que darão grave conta das suas actividades bélicas. Pois das suas decisões actuais dependerá em grande parte o curso dos tempos futuros.

Tendo em atenção todas estas coisas, e fazendo suas as condenações da guerra total já anteriormente pronunciadas pelos Sumos Pontífices (3), este sagrado Concílio declara:

Toda a acção bélica que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões e seus habitantes é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza e sem hesitação.

O perigo peculiar da guerra hodierna está em que ela fornece, por assim dizer, a oportunidade de cometer tais crimes àqueles que estão de posse das modernas armas científicas; e, por uma consequência quase fatal, pode impelir as vontades dos homens às mais atrozes decisões. Para que tal nunca venha a suceder, os Bispos de todo o mundo, reunidos, imploram a todos, sobretudo aos governantes e chefes militares, que ponderem sem cessar a sua tão grande responsabilidade perante Deus e a humanidade.

2. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), p.
PT 291: Por isso, nesta nossa idade, que se gloria da força atómica, é fora de razão pensar que a guerra é um meio apto para ressarcir os direitos violados».
3. Cfr. Pio XII, Alocução, 30 setembro 1954: AAS 46 (1954), p. 589; Radiomensagem, 24 setembro 1954: AAS 47 (1955), p. 15 s.; João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. PT 286-291; Paulo VI, Alocução na Assembleia das Nações Unidas, 4 outubro 1965: AAS 57 (1965), p. 877-885.


A corrida aos armamentos

81 É verdade que não se acumulam as armas científicas só com o fim de serem empregadas na guerra. Com efeito, dado que se pensa que a solidez defensiva de cada parte depende da sua capacidade de resposta fulminante, esta acumulação de armas, que aumenta de ano para ano, serve, paradoxalmente, para dissuadir possíveis inimigos. Muitos pensam que este é hoje o meio mais eficaz para assegurar uma certa paz entre as nações.

Seja o que for deste meio de dissuasão, convençam-se os homens de que a corrida aos armamentos, a que se entregam muitas nações, não é caminho seguro para uma firme manutenção da paz; e de que o pretenso equilíbrio daí resultante não é uma paz segura nem verdadeira. Corre-se o perigo de que, com isso, em vez de se eliminarem as causas da guerra, antes se agravem progressivamente. E enquanto se dilapidam riquezas imensas no constante fabrico de novas armas, torna-se impossível dar remédio suficiente a tantas misérias de que sofre o mundo actualmente. Mais do que sanar verdadeiramente e plenamente as discórdias entre as nações, o que se consegue é contagiar com elas outras partes do mundo. É preciso escolher outros caminhos, partindo da reforma das mentalidades, para eliminar este escândalo e poder-se restituir ao mundo, liberto da angústia que o oprime, uma paz verdadeira.

Por tal razão, de novo se deve declarar que a corrida aos armamentos é um terrível flagelo para a humanidade e prejudica os pobres dum modo intolerável. E é muito de temer, se ela continuar, que um dia provoque as exterminadoras calamidades de que já presentemente prepara os meios.

Advertidos pelas calamidades que o género humano tornou possíveis, aproveitemos o tempo de que ainda dispomos para, tornados mais conscientes da própria responsabilidade, encontrarmos os caminhos que tornem possível resolver os nossos conflitos dum modo mais digno de homens. A providência divina instantemente nos pede que nos libertemos da antiga servidão da guerra. Se nos recusamos a fazer este esforço, não sabemos aonde nos levará o funesto caminho por onde enveredámos.


Proscrição total da guerra e acção internacional para a evitar

82 É, portanto, claro, que nos devemos esforçar por todos os meios por preparar os tempos em que, por comum acordo das nações, se possa interditar absolutamente qualquer espécie de guerra. Isto exige, certamente, a criação duma autoridade pública mundial, por todos reconhecida e com poder suficiente para que fiquem garantidos a todos a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos direitos. Porém, antes que esta desejável autoridade possa ser instituída, é necessário que os supremos organismos internacionais se dediquem com toda a energia a buscar os meios mais aptos para conseguir a segurança comum. Já que a paz deve antes nascer da confiança mútua do que ser imposta pelo terror das armas, todos devem trabalhar por que se ponha, finalmente, um termo à corrida aos armamentos e por que se inicie progressivamente e com garantias reais e eficazes, a redução dos mesmos armamentos, não unilateral evidentemente, mas simultânea e segundo o que for estatuído (4).

Entretanto, não se devem subestimar as tentativas já feitas ou ainda em curso para afastar o perigo da guerra. Procure-se antes ajudar a boa vontade de muitos que, carregados com as ingentes preocupações dos seus altos ofícios, mas movidos do seriíssimo dever que os obriga, se esforçam por eliminar a guerra de que têm horror, embora não possam prescindir da complexidade objectiva das situações. E dirijam-se a Deus instantes preces, para que lhes dê a força necessária para empreender com perseverança e levar a cabo com fortaleza esta obra de imenso amor dos homens, de construir virilmente a paz. Hoje em dia, isto exige certamente deles que alarguem o espírito mais além das fronteiras da própria nação, deponham o egoísmo nacional e a ambição de dominar sobre os outros países, fomentem um grande respeito por toda a humanidade, que já avança tão laboriosamente para uma maior unidade.

As sondagens até agora diligente e incansàvelmente levadas a cabo acerca dos problemas da paz e desarmamento, e as reuniões internacionais que trataram deste assunto, devem ser consideradas como os primeiros passos para a solução de tão graves problemas e devem no futuro promover-se ainda com. mais empenho, para obter resultados práticos. No entanto, evitem os homens entregar-se apenas aos esforços de alguns, sem se preocuparem com a própria mentalidade. Pois os governantes, responsáveis pelo bem comum da própria nação e ao mesmo tempo promotores do bem de todo o mundo, dependem muito das opiniões e sentimentos das populações. Nada aproveitarão com dedicar-se à edificação da paz, enquanto os sentimentos de hostilidade, desprezo e desconfiança, os ódios raciais e os preconceitos ideológicos dividirem os homens e os opuserem uns aos outros. Daqui a enorme necessidade duma renovação na educação das mentalidades e na orientação da opinião publica. Aqueles que se consagram à obra de educação, sobretudo da juventude, ou que formam a opinião pública, considerem como gravíssimo dever o procurar formar as mentalidades de todos para novos sentimentos pacíficos. Todos nós temos, com efeito, de reformar o nosso coração, com os olhos postos no mundo inteiro e naquelas tarefas que podemos realizar juntos para o progresso da humanidade.

Não nos engane uma falsa esperança. A não ser que, pondo de parte inimizades e ódios, se celebrem no futuro pactos sólidos e honestos acerca dá paz universal, a humanidade, que já agora corre grave risco, chegará talvez desgraçadamente, apesar da sua admirável ciência, àquela hora em que não conhecerá outra paz além da horrível tranquilidade da morte. Mas, ao mesmo tempo que isto afirma, a Igreja de Cristo, no meio das angústias do tempo actual, não deixa de esperar firmemente. A nossa época quer ela propor, uma e outra vez, oportuna e importunamente, a mensagem do Apóstolo: «eis agora o tempo favorável» para a conversão dos corações, «eis agora os dias da salvação (5).

4. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in terris, onde se fala da diminuição dos armamentos: AAS 55 (1963), p.
PT 287.
5. Cfr. 2Co 6,2.


Secção 2: CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL


Causas e remédios das discórdias

83 Para edificar a paz, é preciso, antes de mais, eliminar as causas das discórdias entre os homens, que são as que alimentam as guerras, sobretudo as injustiças. Muitas delas provêm das excessivas desigualdades económicas e do atraso em lhes dar remédios necessários. Outras, porém, nascem do espírito de dominação e do desprezo das pessoas; e, se buscamos causas mais profundas, da inveja, desconfiança e soberba humanas, bem como de outras paixões egoístas. Como o homem não pode suportar tantas desordens, delas provém que, mesmo sem haver guerra, o mundo está continuamente envenenado com as contendas e violências entre os homens. E como se verificam os mesmos males nas relações entre as nações, é absolutamente necessário, para os vencer ou prevenir, e para reprimir as violências desenfreadas, que os organismos internacionais cooperem e se coordenem melhor e que se fomentem incansàvelmente as organizações que promovem a paz.


A comunidade das nações e instituições internacionais

84 Para que o bem comum universal se procure convenientemente e se alcance com eficácia, torna-se já necessário, dado o aumento crescente de estreitos laços de mútua dependência entre todos os cidadãos e entre todos os povos do mundo, que a comunidade dos povos se dê a si mesma uma estrutura à altura das tarefas actuais, sobretudo relativamente àquelas numerosas regiões que ainda padecem intolerável indigência.

Para obter tais fins, as instituições da comunidade internacional devem prover, cada uma por sua parte, às diversas necessidades dos homens, no domínio da vida social - a que pertencem a alimentação, saúde, educação, trabalho - como em certas circunstâncias particulares, que podem surgir aqui ou ali, tais como a necessidade geral de favorecer o progresso das nações em vias de desenvolvimento, de obviar às necessidades dos refugiados dispersos por todo o mundo, ou ainda de ajudar os emigrantes e suas famílias.

As instituições internacionais, mundiais ou regionais, já existentes, são beneméritas do género humano. Aparecem como as primeiras tentativas para lançar os fundamentos internacionais da inteira comunidade humana, a fim de se resolverem os gravíssimos problemas dos nossos tempos, se promover o progresso em todo o mundo e se prevenir qualquer forma de guerra. A Igreja alegra-se com o espírito de verdadeira fraternidade que em todos estes campos floresce entre cristãos e não-cristãos, e tende a intensificar os esforços por remediar tão grande miséria.


A cooperação internacional no campo económico

85 A unificação actual do género humano requer também uma cooperação internacional mais ampla no campo económico. Com efeito, embora quase todos os povos se tenham tornado independentes, estão ainda longe de se encontrarem livres de excessivas desigualdades ou de qualquer forma de dependência indevida, ou ao abrigo de graves dificuldades internas.

O crescimento dum país depende dos recursos humanos e financeiros. Em cada nação, os cidadãos devem ser preparados pela educação e formação profissional, para desempenharem as diversas funções da vida económica e social. Para tal, requere-se a ajuda de peritos estrangeiros; estes, ao darem tal ajuda, não procedam como dominadores, mas como auxiliares e cooperadores. Não será possível prestar o auxílio material às nações em desenvolvimento, se não se mudarem profundamente no mundo as estruturas do comércio actual. Os países desenvolvidos prestar-lhes-ão ainda ajuda sob outras formas, tais como dons, empréstimos ou investimentos financeiros; os quais se devem prestar generosamente e sem cobiça, por uma das parte, e receber com inteira honestidade, pela outra.

Para se estabelecer uma autêntica ordem económica internacional, é preciso abolir o apetite de lucros excessivos, as ambições nacionais, o desejo de domínio político, os cálculos de ordem militar bem como as manobras para propagar e impor ideologias. Apresentam-se muitos sistemas económicos e sociais; é de desejar que os especialistas encontrem neles as bases comuns dum são comércio mundial; o que mais fàcilmente se conseguirá, se cada um renunciar aos próprios preconceitos e se mostrar disposto a um diálogo sincero.



Gaudium et spes PT 73