Discursos João Paulo II 2002 - 12 de Fevereiro de 2002

Por isso, só uma nova proposta dos valores morais fundamentais, como a honestidade, a austeridade, a responsabilidade pelo bem comum, a solidariedade, o espírito de sacrifício e a cultura do trabalho, numa terra como a vossa que a Providência criou fértil e fecunda, pode garantir um melhor desenvolvimento integral para todos os membros da comunidade nacional.

4. A situação que se vive na Argentina também pode causar a divisão e fomentar o ódio e o rancor entre quantos estão chamados a ser os construtores quotidianos do País. Por isso, convido-vos a continuar a acompanhar o vosso povo como ministros da reconciliação, para que a grei que vos foi confiada, superando as actuais dificuldades, prossiga pelos caminhos da concórdia e do amor sincero entre todos, sem excepções. Sabeis bem que o futuro do País se deve basear na paz, que é fruto da justiça (cf. Tg Jc 3,18). Prossegui por esse caminho, ajudai a edificar uma sociedade que favoreça a concórdia, a harmonia e o respeito pela pessoa e por cada um dos seus direitos fundamentais! Com a vossa palavra valorosa e oportuna, e tendo sempre presentes as exigências do bem comum, deveis animar a todos, começando pelos responsáveis da vida política, parlamentar, administrativa e judicial da Nação, a promover condições de vida, de trabalho e de habitação mais justas.

Mesmo se a vastidão do fenómeno tem também elementos externos, é necessário procurar apoios fora das próprias fronteiras, deve ter-se presente que os próprios argentinos, com as ricas qualidades que os distinguem, devem ser os protagonistas e os artífices principais da reconstrução do País, comprometendo-se, com o seu esforço e tenacidade, a superar essa situação tão difícil.

5. Enquanto se espera que as soluções adoptadas dêem resultados positivos, é importante fomentar a acção caritativa e assistencial, tarefa que a Igreja sempre realizou, a fim de tornar mais toleráveis as condições dos menos favorecidos. Queridos Irmãos, preocupai-vos com a situação daquelas pessoas que sofrem e estão privadas do necessário. Penso de modo particular nos aposentados, nos desempregados, em quantos perderam tudo com as revoltas. A respeito disto, são confortadoras as várias iniciativas tomadas em cada diocese para responder de modo adequado às necessidades dos pobres. São dignas de louvor as actividades da Cáritas, as de numerosas paróquias e congregações religiosas, assim como a iniciativa já consolidada da Colecta "Mais por menos" e outras semelhantes. Com elas, os cristãos são convidados a privar-se de algo necessário, e não apenas do supérfluo, incrementando a atitude de partilhar com os irmãos.
Esta preocupação "faz parte integrante da missão evangelizadora da Igreja" (Sollicitudo rei socialis SRS 41), na qual deve ocupar um lugar predominante a promoção humana. Por conseguinte, os Pastores devem orientar os seus fiéis neste campo e todos eles estão chamados a colaborar activamente neste serviço da caridade, estimulando e favorecendo neste momento tão importante da história da Argentina iniciativas adequadas orientadas para a superação de situações de pobreza e de marginalização, que atingem tantos irmãos necessitados. A coordenação com as diversas instituições estatais ou não governamentais propiciará uma ajuda mais eficaz ao próximo, contribuindo para que não se deixe levar pela tentação do lucro ou do consumismo, mas que se baseie nas melhores tradições de sobriedade, solidariedade e generosidade que estão no coração do vosso povo.

6. O exame dos Relatórios quinquenais e o colóquio pessoal com cada um de vós realçam a vitalidade da Igreja na Argentina, com os seus benefícios e progressos, os seus projectos e esforços, bem como as limitações humanas com que inevitavelmente se deve confrontar, no âmbito do empenho constante de fidelidade à missão que Cristo Senhor confiou à sua Igreja de ser instrumento de salvação para todos, capaz de inspirar uma acção de transformação da sociedade.

No exercício da vossa missão de Pastores é necessário manter sempre a comunhão afectiva e efectiva com esta Sé de Pedro e entre vós mesmos. O esmero por continuar a manter este espírito, manifestado nas vossas assembleias ou noutros tipos de encontros para vos oferecer ajuda recíproca e completar a visão sobre os vários aspectos da realidade pastoral, é uma alegre experiência eclesial e, por sua vez, deve ser um valoroso exemplo para os sacerdotes, as comunidades e até para a própria sociedade civil, que por vezes se confronta com vários pontos de vista ou conflitos de interesse.

7. A fim de poder dar continuidade à tarefa da Igreja na Argentina convido-vos a prestar atenção à exigência de contar com evangelizadores suficientes, tanto em quantidade como em qualidade, que sejam sacerdotes e religiosos, religiosas e pessoas consagradas que tornem presente o anúncio do Evangelho a todos os povos.

Isto exige que seja dedicada uma atenção permanente ao problema das vocações de especial consagração. Neste sentido, é fundamental poder contar com famílias sãs, estáveis, fundadas nos verdadeiros valores domésticos, nas quais possam desabrochar e crescer num clima adequado os germes da vocação; são de igual modo importantes as organizações, de tipo paroquial, escolar ou vinculadas aos novos movimentos apostólicos, como ambiente propício para a inserção num estilo de vida que mostre interesse pelo próximo o ofereça uma educação baseada na fé. A experiência ensina que, com frequência, as vocações para o sacerdócio e para a vida de especial consagração surgiram nesses ambientes e nos centros educativos de orientação cristã, onde o objectivo de procurar a maturidade humana e técnica está relacionado com o compromisso evangelizador.

Os jovens, e por vezes, as pessoas já adultas e formadas, devem ser recebidos, sentir-se amados e ser convenientemente seguidos nos seminários e nas casas de formação mediante um processo que ajude a desenvolver a vocação, para que um dia possam ser os servos de Deus em benefício dos fiéis e dos numerosos irmãos necessitados em todo o mundo. A fim de colaborar nesta tarefa importantíssima não devemos duvidar em eleger as pessoas mais capazes e com um estilo de vida mais íntegro, porque depende disso, em grande parte, um futuro prometedor para a Igreja.

Conheço a previsão feita pela vossa Conferência Episcopal, que fez recentemente um estudo sobre a tendência das vocações na Argentina. É confortador verificar que, em determinados aspectos, haja um incremento, mas o facto de que diminuam em proporção ao aumento da população deve servir de estímulo para que redobreis os esforços, a fim de preparar o futuro eclesial de cada diocese.

8. Queridos Irmãos, termino este encontro esperando que leveis o conforto e o apoio do Papa para continuardes a sacrificada e, por vezes, alegre entrega à Igreja e à sociedade na qual exerceis o vosso ministério. Estou ao corrente das dificuldades que vós e os vossos colaboradores enfrentais todos os dias. Mas Cristo Jesus, modelo perfeito do Pastor, dar-vos-á a força para o serviço fiel e para a paz da consciência na perseverança, "expectantes beatam spem et adventum Salvatoris nostri Jesu Christi" (Ordinário da missa, preparação para a comunhão).
Peço-vos que leveis aos sacerdotes, aos religiosos e religiosas, aos seminaristas, aos membros dos movimentos eclesiais e leigos comprometidos na missão da Igreja, bem como a todo o povo fiel, a saudação do Papa e a certeza da sua oração por eles, a fim de que perseverem na fé e se fortaleçam no caminho da vida cristã e no propósito do amor solidário universal.

A todos vós, a todo o querido povo argentino, sobretudo aos que mais sofrem neste momento de dolorosa provação, concedo com afecto a Bênção apostólica.



MENSAGEM DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


PELO XX ANIVERSÁRIO DO RECONHECIMENTO


DA FRATERNIDADE DE "COMUNHÃO E LIBERTAÇÃO"


Ao Reverendo Monsenhor LUIGI GIUSSANI
Fundador do movimento "Comunhão e Libertação"

1. Uno-me com participação intensa à alegria da Fraternidade de "Comunhão e Libertação", no vigésimo aniversário do seu reconhecimento por parte do Pontifício Conselho para os Leigos como Associação de fiéis de direito pontifício. Já em 1954, Vossa Reverência, estimado Monsenhor Giussani, dera origem em Milão ao movimento "Comunhão e Libertação", que depois se foi difundindo noutros Países do mundo. A Fraternidade é um fruto maduro deste movimento.

Na feliz data do vigésimo aniversário, é-me particularmente grato percorrer os passos significativos do itinerário eclesial do movimento, para agradecer a Deus o que realizou através da sua iniciativa, e da de quantos a si se uniram, Reverendo Monsenhor, ao longo dos anos. É confortador recordar as vicissitudes através das quais a acção de Deus se manifestou e reconhecer juntos a grandeza da sua misericórdia.

2. Voltando com a memória à vida e às obras da Fraternidade e do movimento, o primeiro aspecto que chama a atenção é o empenho dedicado em pôr-se à escuta das necessidades do homem de hoje. O homem nunca se cansa de procurar: quando é marcado pelo drama da violência, continua a procurar. A única resposta que pode satisfazê-lo, tranquilizando esta sua procura, provém do encontro com Aquele que é a fonte do seu ser e do seu agir.

Por conseguinte, o movimento quis e deseja indicar não um caminho, mas o caminho para alcançar a solução deste drama existencial. O caminho, quantas vezes Vossa Reverência o afirmou, é Cristo. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida, que alcança a pessoa no dia-a-dia da sua existência.

Marcados pelo dom da fé, pelo encontro com o Redentor, os crentes são chamados a tornarem-se eco do acontecimento de Cristo, a serem eles próprios "acontecimento".

O cristianismo, antes de ser um conjunto de doutrinas ou uma regra para a salvação, é por conseguinte o "acontecimento" de um encontro. Esta é a intuição e a experiência que Vossa Reverência transmitiu durante estes anos a tantas pessoas que aderiram ao movimento. Comunhão e Libertação, mais do que oferecer coisas novas, propõe-se fazer redescobrir a Tradição e a história da Igreja, para a exprimir de maneiras capazes de falar e de interpelar os homens do nosso tempo. Na Mensagem aos participantes no Congresso mundial dos movimentos eclesiais e novas comunidades, a 27 de Maio de 1998, escrevi que a originalidade do carisma de cada movimento "não pretende, nem o poderia, acrescentar algo à riqueza do depositum fidei, conservado pela Igreja com apaixonada fidelidade" (n. 4). Mas esta originalidade "constitui um apoio poderoso, um apelo sugestivo e convincente a viver plenamente, com inteligência e criatividade, a experiência cristã. Está nisto o pressuposto para encontrar respostas adequadas para os desafios e urgências dos tempos e das circunstâncias históricas sempre diversas" (ibid.).

3. É preciso voltar para Cristo, Verbo de Deus encarnado para salvação da humanidade. Jesus de Nazaré, que viveu a experiência humana como mais ninguém o poderia fazer, coloca-se como meta de qualquer aspiração humana. Só n'Ele o homem pode chegar a conhecer-se plenamente a si próprio.

Desta forma, a fé apresenta-se como uma autêntica aventura do conhecimento, não sendo um tema abstracto, nem um vago sentimento religioso, mas um encontro pessoal com Cristo, que dá um sentido novo à vida. A obra educativa que, no âmbito das vossas actividades e comunidades, tantos pais e professores procuraram desenvolver, consistiu precisamente em acompanhar irmãos, filhos e amigos, a descobrir nos afectos, no trabalho, nas diferentes vocações, a voz que faz com que cada um vá ao encontro definitivo com o Verbo feito homem. Unicamente no Filho unigénito do Pai o homem pode encontrar uma resposta plena e definitiva às suas expectativas íntimas e fundamentais.

Este diálogo permanente com Cristo, alimentado pela oração pessoal e litúrgica, é estímulo para uma activa presença social, como testemunha a história do movimento e da Fraternidade de Comunhão e Libertação. De facto, a vossa é também história de obras de cultura, de caridade, de formação e, no respeito da distinção entre as finalidades da sociedade civil e da Igreja, também é história de empenho no campo político, um âmbito que, por sua natureza, é rico de contraposições, no qual muitas vezes é difícil servir fielmente a causa do bem comum.

4. Nestes vinte anos a Igreja viu surgir e desenvolver-se no seu interior muitos outros movimentos, comunidades e associações. A força do Espírito de Cristo nunca deixa de superar, quase de romper, os esquemas e as formas estabelecidas pela vida precedente, para enfrentar modalidades expressivas inéditas. Esta urgência é o sinal da missão activa da Igreja, na qual o rosto de Cristo se delineia através dos traços dos rostos dos homens de todos os tempos e lugares da história. Como não se admirar perante estes prodígios do Espírito Santo? Ele realiza maravilhas e no alvorecer do novo milénio estimula os crentes a fazer-se ao largo em direcção a fronteiras cada vez mais distantes na edificação do Reino.

Há anos, por ocasião do trigésimo aniversário do nascimento de Comunhão e Libertação, eu disse: "Ide ao mundo inteiro para levar a verdade, a beleza e a paz, que se encontram em Cristo Redentor" (Roma, 29 de Setembro de 1984, n. 4). No início do terceiro milénio da era cristã, confio-vos de novo com vigor e gratidão a mesma recomendação. Exorto-vos a cooperar com consciência constante na missão da diocese e das paróquias, fomentando corajosamente a sua acção missionária até aos extremos confins do mundo.

O Senhor vos acompanhe e fecunde os vossos esforços. Maria, Virgem fiel e Estrela da nova evangelização, seja o vosso amparo e vos oriente pelo caminho de uma fidelidade ao Evangelho cada vez mais audaciosa.

Com estes sentimentos, concedo de bom grado a Vossa Reverência, Mons. Giussani, aos seus colaboradores e a todos os membros da Fraternidade, assim como a quantos aderem ao movimento uma especial Bênção apostólica.

Vaticano, 11 de Fevereiro de 2002, festa da Bem-Aventurada Virgem Maria de Lourdes

JOÃO PAULO II




MENSAGEM DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II

AO PRESIDENTE DA PONTIFÍCIA

COMISSÃO DE ARQUEOLOGIA SACRA


NO SESQUICENTENÁRIO DE FUNDAÇÃO



Ao Venerado Irmão D. FRANCESCO MARCHISANO
Presidente da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra

1. Passaram cento e cinquenta anos desde que o meu Predecessor, o Beato Pio IX, tornou operativo o primeiro projecto pormenorizado da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra, instituída pouco tempo antes para ampliar a colecção das antiguidades cristãs, para as reunir num lugar apropriado e para delas fazer um museu que, em seguida, teria adquirido o nome de Museu cristiano-pio.

A finalidade que ele confiou a essa Comissão consistia em interessar-se com discernimento sábio, "a fim de que permaneçam possivelmente no lugar das catacumbas todos aqueles objectos que, sem perigo de deterioração, podem [...] edificar os devotos, evocando à sua memória a simplicidade das próprias catacumbas" (em: Archivio della Società Romana di Storia Patria, 91 [1968], pág. 259). Tornando conhecidas as disposições daquele venerável Pontífice, o então Secretário de Estado Cardeal Giacomo Antonelli comunicou, no dia 6 de Janeiro de 1852, a composição definitiva da Comissão, da qual faziam parte ilustres e clarividentes estudiosos, entre os quais Pe. Giuseppe Marchi, S.J., e Giovanni Battista De Rossi.

Nesta feliz comemoração, pedi ao Senhor Cardeal Angelo Sodano, meu Secretário de Estado, que transmitisse aos membros da actual, benemérita Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra a minha saudação cordial e um encorajamento ardente, para que continuem a conservar, estudar e divulgar a preciosa herança das veneráveis memórias da Igreja, em particular das catacumbas da Urbe e da Itália.

2. Como deixar de realçar, nesta circunstância, o esmero atento com que os Pontífices Romanos conservaram as memórias da comunidade cristã, disseminadas na cidade de Roma e na Península itálica, desde os primórdios?

É digna de ser mencionada, por exemplo, a decisão do Papa Zeferino, o primeiro que desejou criar uma catacumba na Via Ápia, cujos cuidados foram por ele confiados ao diácono Calisto. Em seguida este complexo de catacumbas, o maior de todos, receberá o nome de Calisto, que se tornou Papa e sucessor de Zeferino. Outro Pontífice profundamente comprometido na valorização das catacumbas foi o Papa Dâmaso que, durante o seu Pontificado, se dedicou à procura dos túmulos dos mártires, para os decorar com maravilhosas epígrafes métricas, em memória das gestas daquelas primeiras testemunhas da fé.

No século passado, ao confirmar e actualizar as disposições dos seus imediatos Predecessores, o Papa Pio IX, com o Motu Proprio "Os cemitérios primitivos", ampliou e revigorou a Comissão de Arqueologia Sacra, "a fim de que os vetustos monumentos da Igreja sejam conservados da melhor forma, em ordem ao estudo dos doutos, e não em menor medida à veneração e à piedade ardente dos fiéis de todos os países" (AAS 17 [1925], pág. 621). A próvida iniciativa desse grande Pontífice inseriu-se no contexto especial do Ano Santo de 1925, que viu chegarem multidões de peregrinos para prestar homenagem às memórias da Igreja de Roma. Por conseguinte, foi como sempre uma proeminente finalidade pastoral-espiritual que levou os Sucessores do Apóstolo Pedro a infundir uma nova linfa na Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra.

3. Em todas as épocas, as catacumbas representaram para os crentes um centro de piedade e de unidade. Nelas estão afectuosamente conservados e são venerados os testemunhos eloquentes da santidade da Igreja, que evocam a comunhão de união entre os vivos e os defuntos, a terra e o céu, o tempo e a eternidade. Nesses lugares sacros estão à espera do advento glorioso de Cristo todos aqueles que foram marcados com o selo do Baptismo e, não raro, deram pelo Evangelho a suprema prova da efusão do seu sangue.

Apraz-me citar por extenso, entre as numerosas inscrições existentes, a epígrafe que o Papa São Dâmaso compôs em honra de São Saturnino mártir, de quem hoje se celebra a memória litúrgica. Trata-se de palavras que podem aplicar-se às numerosas pessoas que, por Cristo, ofereceram a vida e agora adormeceram na paz, enquanto aguardam o dia sem crepúsculo, quando o Senhor voltar na sua glória. É uma homenagem que queremos prestar a estes nossos irmãos e irmãs na fé:

"Incola nunc Christi
fuerat Chartaginis ante.
Tempore quo gladius
secuit pia viscera Matris,
Sanguine mutavit patriam,
vitamque, genusque
Romanum civem
Sanctorum fecit origo.
Mira fides rerum: docuit
post exitus ingens.
Cum lacerat pia membra,
fremit Gratianus ut hostis;
posteaquam fellis vomuit
concepta venena,
cogere non potuit
Christum te, sancte, negare;
Ipse tuis precibus
meruit confessus abire.
Supplicis haec Damasi
vox est: venerare sepulcrum.
[Solvere vota licet castasque
effundere preces,
Sancti Saturnini tumulus
quia martyris hic est].
Saturnine tibi martyr
mea vota rependo"

(Epigrammata Damasiana, por A. Ferrua, Roma 1942, PP 188-189).

"Cidadão que agora és de Cristo,
e já foste de Cartago.
Quando a espada atravessou
o piedoso seio da Mãe,
por mérito do seu sangue mudou
a pátria, o nome e a origem;
o nascimento para a vida dos santos
fez dele um cidadão romano.
Admirável foi a sua fé: e provou-o,
depois, com a sua morte heróica.
Estremece Graciano como inimigo,
ao despedaçar os piedosos membros;
mas embora demonstrasse
toda a sua cólera venenosa,
não pôde induzir-te, ó Santo,
a renegar Cristo;
que, aliás, ele mesmo,
pelas tuas preces,
mereceu morrer como cristão.
Esta é a oração de Dâmaso:
venera este sepulcro!
[Aqui é dado cumprir os votos
e mergulhar a alma
em castas orações, porque este é
o túmulo do mártir São Saturnino].
A ti, ó mártir Saturnino,
apresento os meus votos!

(Epígrafe que o Papa São Dâmaso compôs em honra de São Saturnino)

Como é que se pode negar, também à luz destes versos inspirados, que as catacumbas são um dos símbolos históricos da vitória de Cristo sobre o mal e sobre o pecado? Elas atestam que as tempestades que se abatem sobre a Igreja nunca conseguem alcançar a finalidade de a aniquilar, porque ela está fundamentada na promessa do Senhor: "Portae inferi non praevalebunt adversus eam" (Mt 16,18).

4. Além disso, é de bom grado que recordo que a Comissão, dignamente presidida por Vossa Excelência, não se preocupa apenas em conservar de modo apropriado estes "vestígios do povo de Deus", mas que se esforça também por reunir e propagar a mensagem religiosa e cultural que elas evocam. Com efeito, a contribuição de quantos colaboram convosco inclui aspectos técnicos, científicos, epigráficos e inclusivamente antropológicos, teológicos e litúrgicos. Isto permite que a Igreja conheça cada vez melhor o património deixado pelas gerações dos primeiros cristãos. E, graças também à mensagem constante que este património proclama silenciosamente, o povo cristão é auxiliado a permanecer fiel ao depositum fidei, recebido como tesouro precioso a ser conservado com esmero.

Durante os últimos cento e cinquenta anos, as qualificadas intervenções dos peritos da Comissão foram e continuam a ser importantes não apenas pelo seu carácter científico, mas especialmente pela sua índole religiosa e eclesial. Nesta feliz circunstância jubilar, desejo expressar a minha mais sentida gratidão pelo vasto e generoso compromisso com que cada um deles contribui para incrementar esta obra histórica e pastoral.

Outrossim, formulo votos para que o trabalho desta Pontifícia Comissão seja cada vez melhor conhecido, de maneira a ir ao encontro do desejo de quantos gostam de se aproximar dos testemunhos daqueles que os precederam no sinal da fé. Ao entrarem em contacto com a firmeza da fé dos primeiros cristãos, através destes monumentos e destas memórias, as jovens gerações, por sua vez, poderão sentir-se eficazmente estimuladas a viver o Evangelho de maneira coerente, também à custa do sacrifício pessoal.

É com estes sentimentos que lhe confirmo, venerado Irmão, assim como aos membros da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra, aos colaboradores e a quantos intervierem nas manifestações programadas, o meu afecto constante e, enquanto confio cada um de vós a Maria, Mãe da Igreja, concedo-vos a todos do íntimo do coração uma especial Bênção apostólica, propiciadora de abundantes favores celestiais.

Vaticano, 12 de Fevereiro de 2002, memória dos Santos Saturnino e Companheiros mártires.









DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS PÁROCOS E AO CLERO


DA DIOCESE DE ROMA NO INÍCIO DA QUARESMA


Quinta-feira, 14 de Fevereiro de 2002


Senhor Cardeal
Estimados Irmãos no Episcopado
Caríssimos Sacerdotes!

1. Este encontro com o clero romano, que se realiza todos os anos no início da Quaresma, é para mim uma grande alegria. Saúdo com afecto cada um de vós e agradeço-vos por terdes vindo e pelo vosso serviço à Igreja de Roma. Saúdo e agradeço ao Cardeal Vigário, o Vice-Gerente, os Bispos Auxiliares e os que, de entre vós, me saudaram.

"Subiu, depois, a um monte e chamou os que Ele quis. E foram ter com Ele. Elegeu doze para andarem com Ele e para os enviar a pregar" (Mc 3,13-15). Ao começar o caminho quaresmal, estas palavras do Evangelista Marcos, que pusestes na base do programa pastoral diocesano, chamam-nos a nós, Sacerdotes, a fazer aquela busca de íntima proximidade com o Senhor que é para cada cristão, mas sobretudo para nós, o segredo da nossa existência e a fonte da fecundidade do nosso ministério.

Estas mesmas palavras evangélicas põem bastante em evidência o vínculo profundo que existe entre a vocação divina, aceite na obediência à fé, e a missão cristã de ser testemunhas e anunciadores de Cristo, colaboradores humildes mas corajosos na sua obra de salvação. Fazeis bem, por conseguinte, em dedicar uma atenção especial às vocações, sobretudo às vocações ao sacerdócio e à vida consagrada, dentro da grande orientação para a missionaridade que caracteriza a vida e a pastoral da nossa Diocese.

2. Todos nós sabemos como são necessárias as vocações para a vida, o testemunho e a acção pastoral das nossas comunidades eclesiais. E também sabemos que a diminuição das vocações muitas vezes é, numa diocese ou numa nação, consequência do enfraquecimento da intensidade da fé e do fervor espiritual. Por conseguinte, não devemos contentar-nos facilmente com a explicação segundo a qual a escassez das vocações sacerdotais seria compensada com o crescimento do empenho apostólico dos leigos, ou até querida pela Providência, a fim de favorecer o crescimento do laicado. Ao contrário, quanto mais numerosos são os leigos que desejam viver com generosidade a própria vocação baptismal, tanto mais se tornam necessárias a presença e a obra específica dos ministros ordenados.

Por isso, não queremos esquecer as dificuldades bem conhecidas que impedem hoje, tanto em Roma como em grande parte do mundo ocidental, uma resposta positiva ao chamamento do Senhor. Com efeito, tornou-se difícil, por vários motivos, conceber e empreender projectos de vida grandes e empenhativos, que envolvam de modo não parcial ou provisório, mas pleno e definitivo. É ainda mais difícil, para muitas pessoas, conceber tais projectos não como algo que seja apenas delas, fruto das suas opções e das suas capacidades, mas que, ao contrário, surja, antes de mais, do chamamento de Deus, do desígnio de amor e de misericórdia que Ele, da eternidade, concebeu para cada pessoa.

Por conseguinte, na base do empenho da Igreja pelas vocações deve estar um grande empenho comum, que chama à razão tanto os leigos como os sacerdotes e os religiosos, e que consiste em redescobrir aquela dimensão fundamental da nossa fé para a qual a própria vida, qualquer vida humana, é fruto da chamada de Deus e só pode realizar-se positivamente como resposta a esta chamada.

3. Dentro desta grande realidade da vida como vocação e, em concreto, da nossa comum vocação baptismal, a vocação para o ministério ordenado, vocação sacerdotal, manifesta todo o seu extraordinário significado. De facto, ela é dom e mistério, o mistério da divina eleição gratuita: "Não fostes vós que Me escolhestes, fui Eu que vos escolhi e vos nomeei para irdes e dardes fruto, e o vosso fruto permanecer" (Jn 15,16).

Sim, queridos Irmãos no sacerdócio, a nossa vocação é um mistério. Como escrevi por ocasião do meu Jubileu sacerdotal, é "o mistério de um "maravilhoso intercâmbio" admirabile commercium entre Deus e o homem. Ele doa a Cristo a sua humanidade para que ele se possa servir dela como instrumento de salvação, como que fazendo deste homem outro homem. Se não se capta o mistério deste "intercâmbio", não conseguimos compreender como pode acontecer que um jovem, ao ouvir a palavra "Segue-Me!", chegue a renunciar a tudo por Cristo, certo de que por este caminho se realizará plenamente a sua personalidade humana" (Dom e Mistério, pág. 84).

Por isso, quando falamos do nosso sacerdócio e dele damos testemunho, devemos fazê-lo com grande alegria e gratidão, e ao mesmo tempo também com grande humildade, conscientes de que Deus "nos chamou com uma vocação santa, já não com base nas nossas obras, mas segundo os seus propósitos e a sua graça" (2Tm 1,9).

4. Desta forma, é totalmente claro por que o primeiro e principal empenho pelas vocações é unicamente a oração: "A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos! Pedi, pois, ao dono da messe que envie trabalhadores para a Sua messe" (Mt 9,37-38 cf. Lc Lc 10,2). A oração pelas vocações não é e não pode ser o fruto da resignação, como se pensássemos que já fizemos tudo o que era possível pelas vocações, com muito poucos resultados, e portanto não nos resta mais nada do que rezar. Com efeito, a oração, não é uma espécie de entrega ao Senhor, para que seja Ele a agir em nosso lugar. É, ao contrário, um confiar-se a Ele, um pôr-se nas suas mãos, que nos torna, por nossa vez, confiantes e disponíveis para realizar as obras de Deus.

Por isso, a oração pelas vocações é sem dúvida um compromisso de toda a comunidade cristã, mas deve ser praticada intensamente sobretudo por quantos se encontram na idade e nas condições para escolher o próprio estado de vida, como são sobretudo os jovens.

Pelo mesmo motivo, a oração deve ser acompanhada por uma pastoral que tenha um claro e explícito cunho vocacional. Desde quando começam a conhecer Deus e a formar uma consciência moral, as nossas crianças e jovens devem ser ajudados a descobrir que a vida é vocação e que Deus chama alguns para O seguirem mais de perto, na comunhão com Ele e no dom de si. Portanto, as famílias cristãs têm uma grande e insubstituível missão e responsabilidade em relação às vocações e devem ser ajudadas a corresponder-lhe de modo consciente e generoso. De igual modo a catequese e toda a pastoral de iniciação cristã devem incluir em si uma primeira proposta vocacional.

5. Mas é evidente, caríssimos Sacerdotes, que a pastoral vocacional nos chama à razão, antes de mais, a nós próprios e é confiada em primeiro lugar à nossa oração, ao nosso ministério, ao nosso testemunho pessoal. De facto, é difícil que uma vocação para o sacerdócio surja sem uma relação com a figura de um sacerdote, sem contacto pessoal com ele, sem a sua amizade, a sua paciente e solícita atenção, sem a sua orientação espiritual.

Se os jovens e as moças vêem sacerdotes atarefados devido a demasiados afazeres, desanimados e que se lamentam, descuidados na oração e nas tarefas próprias do seu ministério, como poderão sentir-se fascinados pela vida sacerdotal? Se, ao contrário, vêem em nós a alegria de sermos ministros de Cristo, a generosidade no serviço à Igreja, a prontidão em encarregar-se do crescimento humano e espiritual das pessoas que nos estão confiadas, sentir-se-ão estimulados a interrogar-se se não pode ser esta, também para eles, a "parte melhor" (Lc 10,42), a escolha mais bela para as suas jovens vidas.

Caríssimos Irmãos Sacerdotes, confiamos a Maria Santíssima, Mãe de Cristo, Mãe da Igreja e Mãe, sobretudo, de nós, Sacerdotes, esta nossa peculiar solicitude pelas vocações. Confiamos-lhe também o nosso caminho quaresmal e sobretudo a nossa santificação pessoal: de facto, a Igreja tem necessidade de sacerdotes santos, para abrir a Cristo até as portas que parecem estar mais fechadas.

Obrigado mais uma vez por este encontro. Abençoo-vos a todos de coração e convosco também as vossas comunidades.

Vi que a maior parte dos que intervieram, dos que falaram, prepararam o texto escrito. Por isso, eu fiz o mesmo. Mas vi que alguns improvisaram. Talvez eu também deva improvisar alguma coisa.

Ficou na minha memória esta expressão: "pupilla oculi". A "pupilla oculi" do Bispo é o Seminário, porque através desta "pupila", deste Seminário, ele vê o futuro da Igreja. Digo isto com a experiência que tenho por ser Bispo há tantos anos, primeiro em Cracóvia, depois em Roma: em Cracóvia, durante vinte anos, em Roma já há vinte e quatro. Esta "pupilla oculi" é verdadeira.

Desejo a todos os Bispos de Roma, e aos que vierem depois de mim e a todos os Bispos do mundo, que conservem este princípio de olhar com esperança para esta "pupilla oculi", através dos nossos Seminários. Que não faltem as vocações! Graças a Deus, em Roma não faltam vocações.

Graças a Deus! Recordo também, no meu passado, que alguns momentos históricos na vida da Igreja na Polónia suscitaram mais vocações. Por exemplo o Milénio, mas não só: também a peregrinatio de Nossa Senhora de Czestochowa e outras ocasioes.

Portanto, procurei imitar nao só os que leram, mas também os que improvisaram!




Discursos João Paulo II 2002 - 12 de Fevereiro de 2002