Discursos João Paulo II 2001 - Sexta-feira, 23 de Novembro de 2001

AOS PARTICIPANTES NUM SIMPÓSIO


PROMOVIDO PELA


CONGREGAÇÃO PARA AS IGREJAS ORIENTAIS


Sexta-feira, 23 de novembro de 2001






1. Sinto-me muito feliz por vos poder dirigir a minha palavra, venerados Irmãos, que participais no Simpósio promovido pela Congregação para as Igrejas Orientais por ocasião do X aniversário da entrada em vigor do Codex Canonum Ecclesiarum Orientalium. Saúdo-vos a todos e a cada um em particular, começando pelo Prefeito da Congregação, Sua Beatitude o Cardeal Ignace Moussa I Daoud, a quem agradeço os sentimentos que me exprimiu em nome de todos os presentes.

Desejo dirigir uma especial palavra de apreço a quantos colaboraram nesta iniciativa de aprofundamento científico, preparando a sua celebração e orientando o seu desenvolvimento. Sobretudo, desejo agradecer aos membros da Comissão científica juntamente com os Relatores, que deram ao Simpósio o precioso contributo das suas específicas competências. Também não esqueço, na minha expressão de grato reconhecimento, todos aqueles que, com o seu serviço escondido mas valiosíssimo, garantiram o seu feliz êxito.

2. Ontem pedi ao Senhor Cardeal Secretário de Estado que vos antecipasse as minhas saudações, juntamente com algumas considerações sobre pontos importantes da disciplina canónica vigente. Esta manhã desejo apenas reflectir convosco sobre o momento em que esta data se situa. Ela ainda sente a influência benéfica do Grande Jubileu do Ano 2000, no qual Oriente e Ocidente se sentiram mais estreitamente unidos na celebração do acontecimento decisivo do nascimento de Cristo. Toda a Igreja, naqueles meses, se dirigiu com particular intensidade de fé e de amor para o Oriente. Eu próprio, quase interpretando este difundido sentimento dos cristãos do mundo inteiro, me fiz peregrino à Terra Santa. Aquela foi, no sentido mais profundo, uma peregrinação "ad Orientem", isto é, a Cristo, nos lugares onde Ele encarnou "provindo do alto", como Redentor do homem e esperança do mundo: "orientale Lumen"! (cf. Carta Apost. Orientale lumem, 1).

À luz profética dos acontecimentos jubilares, olhamos com esperança, no início do terceiro milénio, para o caminho futuro rumo à plena unidade dos cristãos. Por isto, como sabeis, confio muito no contributo das Igrejas Orientais, "esperando que retorne plenamente aquela permuta de dons que enriqueceu a Igreja do primeiro milénio" (Carta Apost. Novo millennio ineunte, 48).

3. Por conseguinte, o vosso Simpósio realçou justamente a necessidade de intensificar as relações fraternas com os outros cristãos e, sobretudo, com as Igrejas ortodoxas. A este respeito, vejo com prazer que participa neste Simpósio também um representante dessas Igrejas: saúdo-o com afecto. Graças ao Concílio Vaticano II e ao empenho dedicado ao longo destes anos, que eu desejei apoiar e encorajar muitas vezes, "nas Igrejas do Oriente, sobressai a sua grande tradição litúrgica e espiritual, o carácter específico do seu desenvolvimento histórico, os ordenamentos seguidos por elas desde os primeiros tempos e sancionados pelos Santos Padres e pelos Concílios ecuménicos, o seu modo próprio de enunciar a doutrina. Tudo isto na convicção de que a legítima diversidade não se opõe de forma alguma à unidade da Igreja, antes aumenta o seu decoro e contribui significativamente para o cumprimento da sua missão" (Carta enc. Ut unum sint UUS 50). Expresso os votos de que o caminho de reconciliação entre Oriente e Ocidente seja para vós uma preocupação constante e prioritária, como é para o Bispo de Roma.

Nesta perspectiva, a Providência concedeu-me dar passos bastante significativos durante as recentes viagens apostólicas à Grécia, Síria, Ucrânia, Cazaquistão e Arménia. As celebrações litúrgicas e os encontros fraternos, que nestas circunstâncias tive a oportunidade de viver, são para mim um incessante motivo de conforto. Neles, vi realizados os votos do Concílio Ecuménico Vaticano II, que considera o património eclesiástico e espiritual das Igrejas Orientais como bem de toda a Igreja (cf. Decr. Orientalium Ecclesiarum, OE 5).

Precisamente para que fosse salvaguardada e promovida a especificidade deste património, no dia 18 de Outubro de 1990 promulguei o Código dos Cânones das Igrejas Orientais, que entrou em vigor a 1 de Outubro do ano seguinte.

4. Na Constituição apostólica Sacri canones, manifestei os votos de que, graças a esse instrumento jurídico, pudesse ser favorecida nas Igrejas Orientais aquela "tranquilidade da ordem" que já tinha desejado por ocasião da promulgação do novo Código latino. A ordem que o Código tem por objectivo, esclareci, é aquela que dá a primazia ao amor, à graça e ao carisma, facilitando o seu desenvolvimento orgânico na vida de cada fiel e de toda a comunidade eclesial (cf. AAS 82 [1990] 1042-1043).

Recordo-me de ter afirmado os mesmos votos alguns dias mais tarde perante a VIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realçando que os várias estruturas legislativas reguladoras da disciplina eclesiástica, mesmo que sejam articulados em numerosos cânones e parágrafos, mais não são do que uma particular expressão do preceito do amor que Jesus, nosso Senhor, nos deixou na Última Ceia, e que a Igreja, juntamente com o Apóstolo Paulo (cf. Gl Ga 5,14), considerou sempre o preceito que resume em si qualquer outro preceito (cf. n. 5: AAS 83 [1991], 488-489).

Por conseguinte, foi com grande prazer que tomei conhecimento de que este Simpósio tem como tema o mote "Ius Ecclesiarum vehiculum caritatis". Este mote contém a compreensão mais profunda do Legislador eclesiástico na promulgação dos vários ordenamentos jurídicos. Estou grato por isto ter sido compreendido, e também realçado no "símbolo" do Simpósio, mediante uma significativa imagem, inspirada por um mosaico de Santo Apolinário Novo, em Ravena, cidade ligada à tradição bizantina. Nele encontram-se representadas três naves, símbolo de cada uma das Igrejas particulares que, de vento em popa, com a força do Espírito Santo, garantia da comunhão hierárquica com a Igreja de Roma, orientam as almas pelo mar da vida, muitas vezes tempestuoso, para o porto seguro da salvação eterna.

5. Venerados Irmãos! No final destas minhas breves reflexões, desejaria manifestar-vos a alegria com que observei que, no vosso Simpósio, foi dedicada uma relação particular ao tema "Theotokos e Codex Canonum Ecclesiarum Orientalium". A seu tempo, como bem sabeis, confiei à Mãe de toda a Igreja a preparação deste Código e a sua promulgação. A ela, ao concluir a Constituição de promulgação, dirigi então uma oração especial. Hoje, renovo aquela oração com o mesmo fervor: "Com a sua materna intercessão suplique a seu Filho para que este Código se torne veículo daquela caridade que, demonstrada abundantemente pelo Coração de Cristo trespassado na cruz por uma lança, segundo o testemunho extraordinário do santo apóstolo João, deve estar profundamente radicado na alma de cada ser humano" (AAS [1990], 1043).

Concedo-vos a todos a minha Bênção!



MENSAGEM DO SANTO PADRE AO CONGRESSO DO


PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA


E NA CELEBRAÇÃO DOS 20 ANOS DA


"FAMILIARIS CONSORTIO"









Ao Senhor Cardeal

ALFONSO LOPEZ TRUJILLO

Presidente do Pontifício Conselho para a Família

1. Saúdo cordialmente os participantes no Congresso sobre o tema "A familiarias consortio no seu vigésimo aniversário, sua dimensão antropológica e pastoral", promovido pelo mesmo Pontifício Conselho na ocasião do XX aniversário da publicação da Exortação Pós-sinodal Familiaris consortio.

Saúdo-o a Si, venerado Senhor Cardeal, que preside à actividade do Dicastério; saúdo o Secretário e Subsecretário e todos os colaboradores, assim como a quantos cuidaram da preparação deste encontro, que comemora um acontecimento de singular importância para a vida da Igreja e diz respeito a um dos temas que me está mais no coração: a família. O panorama que ele pretende analisar é muito mais vasto e diz respeito à identidade e missão da família querida por Deus para "guardar, revelar e comunicar o amor" (FC 17). Nos últimos vinte anos assistimos à formação de uma nova consciência e de uma nova sensibilidade a respeito da família. Vinte anos que assinalam também a existência do Pontifício Conselho para a Família, ao qual quis confiar o dever de aprofundar e valorizar todos os aspectos das riquezas contidas nas Proposições do Sínodo (cf. FC, FC 2). Dou graças a Deus pelo trabalho desenvolvido pelo vosso Dicastério na defesa e no serviço do Evangelho da Família.

2. Neste período, mesmo se não faltaram ataques à instituição familiar talvez entre os mais perigosos da história, foram-se consolidando algumas convicções comuns. Por exemplo, a causa integral da família e da vida é, hoje, redescoberta e promovida em tantos âmbitos como valor e direito pertencente ao património comum da humanidade. O Magistério da Igreja forneceu significativos elementos para esta renovação, com numerosas intervenções e ensinamentos. Já no tempo do Concílio Vaticano II, a família era considerada como um dos temas, a respeito do qual era necessário esclarecer a consciência dos cristãos e de toda a humanidade. Sobre esta esteira muitos passos foram realizados. O apelo: "Família, torna-te aquilo que és", contido na citada Exortação Pós-sinodal (nº 17) teve muito eco na opinião pública.

"Família, torna-te aquilo que és", repito ainda hoje!

Como instituição natural, a comunidade familiar foi querida por Deus no "princípio", com a criação do homem e da mulher, para o bem dos homens. É para este "princípio" que Cristo chama a nossa atenção, quando os fariseus tentam deturpar-lhe a estrutura (Mt 19,3-12). Não foi dado aos homens o poder de mudar o projecto original do Criador.

A Exortação Pós-sinodal Familiaris consortio aprofundou notavelmente os deveres específicos da instituição familiar de que já falava a Constituição conciliar Gaudium et spes.

Toda a família deve ser uma verdadeira comunhão de pessoas "communio personarum" no respeito de cada um daqueles que a compõem. Neste contexto de mútua compreensão se coloca o "serviço à vida", segundo os dois significados complementares, unitivo e procreativo, da sexualidade, como ensinou o meu venerado predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, na Encíclica Humanae vitae.

3. Para a consolidação progressiva da consciência, por parte da família, da sua missão na Igreja e na sociedade contribuiram numerosos acontecimentos, que nestes anos viram a participação cada vez mais numerosa de famílias. Penso, por exemplo, nos Encontros Mundiais de Roma, na ocasião do Ano Internacional da Família em 1994, no encontro do Rio de Janeiro em 1997 e no do Jubileu das Famílias, no ano passado. Agradeço ao Senhor por este crescimento de autoconsciência que a família ofereceu de si mesma e da sua missão.

Todavia, ao lado das consoladoras metas alcançadas, é necessário registar a agressão violenta (cf. FC, FC 46) por parte de alguns sectores da sociedade moderna à instituição familiar e sua função social. Viram a luz alguns projectos de lei não conformes com o verdadeiro bem da família fundada sobre o matrimónio monogâmico e com a protecção da inviolabilidade da vida humana, favorecendo a infiltração de perigosas sombras da "cultura de morte" no interior do lar doméstico.

Também suscita preocupações a crescente divulgação nos fóruns internacionais de falsas concepções da sexualidade e da dignidade e missão da mulher, subjacentes a determinadas ideologias sobre o "género" ("gender").

Que dizer, depois, da crise de tantas famílias divididas, das pessoas isoladas e da situação das chamadas uniões de facto? Entre as perigosas estratégias contra a família está também a tentativa de negar dignidade humana ao embrião antes de ser implantado no seio materno, como também o atentar contra a sua existência com métodos variados.

Quando se fala da família, não se pode deixar de apontar para os filhos, que de diversos modos são vítimas inocentes das comunidades familiares desarticuladas.

4. Neste panorama, apenas delineado, ressalta quanto é necessária a missão das famílias cristãs. O seu exemplo de alegria e de doação, de esforço e de capacidade de sacrifício, nos passos da Santa Família, pode resultar decisivo para encorajar outros núcleos familiares a corresponder à graça da sua vocação. Como arrasta, efectivamente, o modelo de uma família cristã! Na sua humildade e simplicidade, o testemunho de vida doméstica pode tornar-se um veículo de evangelização de primeira ordem. Para isto, é bom que lhe dediquem atenção e cuidado as diversas instituições eclesiais. Igualmente, não deixem de oferecer o necessário apoio às situações familiares difíceis, que exigem uma maior assistência pastoral, como por exemplo os divorciados que voltaram a casar. Pode dizer-se que, depois da publicação da Familiaris consortio, se acentuou na Igreja o interesse pela família, e inumeráveis são as Dioceses e as paróquias em que a pastoral familiar se tornou objectivo prioritário. Vão-se difundindo associações e movimentos em favor da família e da vida. Pessoas de boa vontade contribuem, com o seu generoso esforço, para a formação de uma nova cultura "pro-vita". Recordo com grande apreço aqui os Encontros promovidos pelo vosso Pontifício Conselho durante estes dois decénios. Em primeiro lugar, o realizado com os Bispos responsáveis da pastoral da família e da vida em toda a Igreja, que se tornou uma valiosa ocasião para aprofundar as novas problemáticas familiares.

De especial importância é o diálogo com políticos e legisladores à volta da verdade da família fundada sobre o matrimónio monogâmico e a dignidade da vida desde o primeiro instante da sua concepção. A esse respeito, os Encontros continentais e nacionais promovidos pelo vosso Pontifício Conselho abriram prometedores caminhos de diálogo, capazes de infundir espírito cristão aos debates parlamentares e às legislações públicas que regulam a vida dos povos. A própria Carta dos Direitos da Família, publicada em 1983, já tinha sido pedida no decurso do Sínodo ordinário de 1980.

5. "Família, acredita naquilo que és; acredita na tua vocação de ser sinal luminoso do amor de Deus". Repito-vos hoje estas palavras que pronunciei no decurso do Encontro com as Famílias, em 20 de Outubro do ano passado.

Família, sê para os homens do nosso tempo "santuário da vida". Família cristã, sê "igreja doméstica", fiel à tua vocação evangélica. Propriamente porque "consciente de que o matrimónio e família constituem um dos bens mais preciosos da humanidade, a Igreja quer fazer chegar a sua voz e oferecer a sua ajuda a quem, conhecendo já o valor do matrimónio e da família, procura vivê-lo fielmente, a quem, incerto e ansioso, anda à procura da verdade e a quem está impedido de viver livremente o próprio projecto familiar" (FC 1).

A família, quando vive em plenitude as exigências do amor e do perdão, torna-se baluarte seguro da civilização do amor e esperança para o futuro da humanidade.
Com a força desta consciência, continue o vosso Dicastério a trabalhar cada vez com maior coragem no serviço do Evangelho da Família.

Enquanto faço votos pelo pleno sucesso do vosso Congresso, asseguro a minha lembrança na oração e, invocando a especial protecção de Maria, Regina Familiae, a todos concedo do coração uma especial Bênção Apostólica.

Vaticano, 22 de Novembro de 2001.



MENSAGEM DO SANTO PADRE


AO PRESIDENTE DAS SEMANAS SOCIAIS DA FRANÇA






A Sua Ex.cia o Senhor Michel Camdessus
Presidente das Semanas Sociais da França

1. Escolhestes como tema da sessão das Semanas Sociais da França deste ano, realizadas em Paris de 23 a 25 de Novembro de 2001: "Biologia, medicina e sociedade. Que faremos do homem?". É particularmente oportuno enfrentar hoje de maneira nova as questões complexas da bioética, fazendo apelo a especialistas nos diversos âmbitos do saber científico, técnico, filosófico e teológico. De facto, é importante que os nossos contemporâneos, muitas vezes perturbados e desorientados diante do progresso da ciência e das suas implicações éticas, não só sejam informados de todas as possibilidades permitidas pela ciência, mas tenham também e sobretudo os meios para formar a sua consciência, a fim de tomar decisões conformes com os valores humanos e morais fundamentais, que dão provas do lugar insigne do homem na criação.

2. A Igreja Católica aprecia e encoraja a investigação biomédica quando se destina à prevenção e à cura das doenças, ao alívio dos sofrimentos e ao bem-estar do homem. Ela sabe que se a investigação "é realizada de um modo verdadeiramente científico e conforme às normas morais, não será nunca contrária à fé" (Gaudium et spes, GS 36). Além disso, a investigação permite descobrir as grandes leis que regem o funcionamento da matéria e do mundo vivo, constatar a ordem inscrita na criação e apreciar as maravilhas do homem, no seu intelecto e no seu corpo, penetrar em maior medida o seu mistério; nele, em certa medida, reflecte-se a luz do Verbo, por meio do qual "tudo foi criado" (Jn 1,3). Desejosa de fazer partilhar o significado do homem que ela recebe do Salvador, a Igreja deseja dar o seu contributo à reflexão para ajudar todos os que são responsáveis pelo bem comum e todas as pessoas que devem tomar graves decisões nestes âmbitos da vida. É importante, de facto, que a ciência não reduza o homem a um objecto, mas esteja deveras e plenamente ao seu serviço. Contudo a Igreja não ignora a complexidade, por vezes dramática, de situações vividas dolorosamente por algumas pessoas, e também está consciente das pressões exercidas pelos poderosos interesses económicos. Os fiéis da Igreja católica e todos os homens de boa vontade são chamados a empenhar-se no debate em defesa da dignidade do homem. Por conseguinte, encorajo-vos a conduzir os vossos trabalhos preocupando-vos pela verdade, dando desta forma aos homens do nosso tempo elementos seguros para a sua reflexão e para as decisões que devem tomar.

3. Colocando o homem e a sua inalienável dignidade no centro do vosso estudo interdisciplinar, manifestais a urgente necessidade de fazer apelo a todos os recursos da sabedoria e da experiência, da razão e da ciência, para o servir melhor. As descobertas e as mudanças que marcaram as disciplinas biomédicas evidenciaram que, por trás dos brilhantes progressos relacionados com o próprio mistério da vida, por vezes a ciência parece estar aturdida pelo seu poder e tentada a manipular o homem como se ele fosse um objecto ou uma matéria. Perante esta situação inédita dos conhecimentos e das possibilidades oferecidas pela ciência e pela técnica, faço votos por que os vossos intercâmbios contribuam para uma lúcida análise do que está em jogo e das consequências do progresso, das potencialidades e dos desafios para o homem e para a humanidade. Devido à sua dignidade intrínseca, que integra plenamente a dimensão biológica, o indivíduo humano nunca pode, em caso algum, ser subordinado nem à espécie, nem à sociedade, nem à benevolência de outras pessoas, nem que sejam seus parentes, como se fossem um meio ou um instrumento; ele tem valor em si mesmo. Esta verdade que, em si, pertence à lei natural, ilumina-se para os cristãos com uma luz nova em Jesus Cristo, Verbo encarnado que, "novo Adão... manifesta perfeitamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a sublimidade da sua vocação" (Gaudium et spes, GS 22). A razão e a fé permitem o empenho constante dos cristãos, no decurso da história, pela defesa da pessoa, especialmente dos seres débeis, vulneráveis ou marginalizados, e dos nascituros. "Não existe nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma "indicação" médica, eugénica, social, económica ou moral que possa exibir ou conferir um título jurídico válido para dispor directa e deliberadamente de uma vida humana inocente, isto é, para dispor dela com vista à sua destruição prevista, quer como fim quer como meio, para obter uma finalidade que, talvez em si, não seja completamente ilegítima" (Pio XII, Discurso aos participantes no Congresso da União católica italiana das obstetras, 29 de Outubro de 1951, n. 12).

4. Nos dias de hoje, a dignidade do homem é ameaçada, sobretudo nas fases mais críticas da existência, que são a concepção e a morte natural; abre o seu caminho uma nova tentação, a de arrogar-se o direito de fixar, determinar os limites de humanidade de uma existência singular. Como podemos esquecer-nos de que, como recordei na Encíclica Evangelium vitae, "a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria" (n. 60)? A genética moderna mostra que, desde o primeiro instante, já se encontra "fixado o programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas características já bem determinadas" (Ibidem). Isto exige um respeito absoluto do ser humano, desde a fase embrional até ao fim da sua existência, ser que jamais pode ser considerado como um objecto ou um material de experimentação. De igual modo, é oportuno tratar com respeito as células germinais humanas devido ao património humano do qual elas são portadoras.

5. A experimentação biomédica que não tem por objectivo o bem do sujeito considerado, comporta aspectos selectivos e discriminatórios inaceitáveis; de facto, qualquer acção terapêutica ou de investigação deve ter como fim o ser sobre o qual se realiza. Benefícios hipotéticos para a humanidade e para o progresso da investigação não podem absolutamente constituir um critério decisivo de bondade moral. Isto contribui inevitavelmente para um enfraquecimento das convicções morais que dizem respeito ao ser humano, favorecendo a aceitação da prática de eliminar as pessoas portadoras de anomalias congénitas, às quais a diagnose pré-implantadora e um desenvolvimento abusivo de investigações pré-natais dão lugar.

Numerosos Países já estão empenhados no caminho de uma selecção dos nascituros, tacitamente encorajada, que constitui um verdadeiro eugenismo e que leva a uma espécie de anestesia das consciências, ferindo gravemente, entre outras, as pessoas portadoras de anomalias congénitas e as que as acolhem. Uma atitude como esta mais ou menos generalizada também leva, como se começa a perceber, ao surgimento de um certo número de patologias conjugais e familiares. Por outro lado, tais comportamentos dissuadem da decisão de empreender os esforços necessários para a descoberta de novas formas terapêuticas, o acolhimento e a integração das pessoas portadoras de uma deficiência, fortalecendo nestas um forte sentimento de anormalidade e de exclusão. Dou graças pelos esforços daqueles pais que aceitaram receber uma criança deficiente, mostrando assim o seu apego à vida. É desejável que eles sejam incessantemente apoiados e ajudados pela sociedade, que tem o dever da solidariedade. O desenvolvimento com a finalidade selectiva das investigações pre-natais, a diagnose de pré-implantação, e o uso, a produção e a destruição de embriões humanos simplesmente para fins experimentais e para a obtenção de células estaminais embrionais, constituem graves ultrajes ao respeito absoluto devido a qualquer vida e à grandeza de cada ser humano, que não depende do seu aspecto exterior ou dos vínculos que mantém com outros membros da sociedade. Estou grato ao Conselho permanente da Conferência Episcopal da França por ter alertado a opinião pública e ter contribuído para formar as consciências, publicando em 1998 o documento "Essor de la génétique et dignité humaine".

6. As possibilidades tecnológicas que surgiram no campo biomédico requerem a intervenção da autoridade política e do legislador, porque é uma questão que vai para além da esfera científica. Corresponde à autoridade pública o dever de "agir de forma que a lei civil seja regulada com base nas normas fundamentais da lei moral em tudo o que se refere aos direitos do homem, da vida humana e da instituição familiar" (Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre o respeito da vida humana nascitura e da dignidade da procriação, III). Também compete ao legislador propor as regras jurídicas que protegem as pessoas de todos os eventuais arbítrios, que constituem num certo sentido negações do ser humano, da sua dignidade e dos seus direitos fundamentais. As opções legislativas e políticas devem ser orientadas para o bem das pessoas e de toda a sociedade, e não em função de meras exigências científicas que, em si, não têm a possibilidade de elaborar e estabelecer um sistema de critérios morais. O futuro do homem e da humanidade está em grande medida ligado à sua capacidade de examinar rigorosamente as diversas questões bioéticas, a nível ético, sem temer pôr em discussão comportamentos que se tornaram habituais.

7. A multiplicação de intercâmbios interdisciplinares e uma reflexão filosófica e teológica favorecerão o trabalho de verdade e de respeito do mistério do ser humano e farão com que se evite qualquer tentação de fundar os comportamentos sobre factores unicamente científicos, sobre circunstâncias particulares, sobre o desejo das pessoas, ou em função de pressões dos mercados financeiros ou de interesses privados. O diálogo que vós seguis de perto com os vários interlocutores sociais pode permitir o restabelecimento da harmonia entre as exigências da investigação e os valores humanos. A edificação de uma sociedade na qual cada um tem o lugar que lhe corresponde devido à sua pertença à humanidade não depende nem da sua função nem da sua utilidade. É sobretudo quando a doença e o sofrimento debilitam as pessoas, e as tornam mais frágeis, que é preciso compreender o valor e o significado de cada existência. A esta tarefa dedicam-se de maneira admirável todos aqueles que, estando de tantas formas ao serviço dos doentes, lhes dão, dentro de um universo médico caracterizado por um tecnicismo crescente, aquele insubstituível algo mais de atenção e de delicada ternura que demonstram que eles são pessoas para todos os efeitos. É ao pessoal médico e paramédico, aos grupos de capelães e de visitadores de hospitais, a todas as pessoas empenhadas nas curas paliativas e que estão ao lado dos que sofrem, aos investigadores, aos filósofos, aos responsáveis políticos e a quantos estão empenhados neste trabalho quotidiano ao serviço da dignidade das pessoas, que se dirige o pensamento e o reconhecimento da Igreja. O seu empenho e as suas convicções são preciosos e constituem uma fonte de esperança.

8. Oxalá os trabalhos das Semanas Sociais encoragem cada um a reafirmar a grandeza e o valor de cada vida humana, valor sem o qual a vida social deixa de ser possível e o progresso humano campo é ameaçado! Possam ser um âmbito de propostas para um futuro melhor e contribuir para conservar em todos um olhar contemplativo, que surge da fé no Deus da vida, "o olhar de quem observa a vida em toda a sua profundidade, reconhecendo nelas as dimensões de generosidade, beleza, apelo à liberdade e à responsabilidade. É o olhar de quem não pretende apoderar-se da realidade, mas a acolhe como um dom, descobrindo em todas as coisas o reflexo do Criador e em cada pessoa a sua imagem viva" ( Evangelium vitae EV 83)!

Ao invocar Cristo, Rei do Universo, para que aumente no mundo a civilização do amor, concedo-vos de coração a Bênção apostólica, que faço extensiva aos organizadores, aos relatores e aos participantes das Semanas sociais da França.

Vaticano, 15 de Novembro de 2001.




AOS COMPONENTES DA


COMISSÃO MISTA INTERNACIONAL


CATÓLICO-ANGLICANA


Sábado, 24 de Novembro de 2001




Queridos Amigos em Cristo

1. Saúdo-vos na paz do Senhor Jesus, a vós que viestes a Roma para o encontro inaugural do novo Grupo de Trabalho anglicano-católico romano, uma reunião que teve início em Londres, onde encontrastes o Arcebispo Carey de Cantuária. A vossa presença aqui constitui um sinal da proximidade recíproca alcançada pelos anglicanos e pelos católicos, desde os dias do Concílio Vaticano II. "O caminho ecuménico continua certamente fatigante e talvez longo" (Novo millennio ineunte, 12), mas isto não nos pode impedir de reconhecer que já alcançámos um grande progresso. Não podemos deixar de louvar o Deus de toda a misericórdia pelos inúmeros desenvolvimentos autênticos, obtidos no campo do ecumenismo.

2. Nesta significativa ocasião, o nosso pensamento volta-se de modo espontâneo para o encontro entre o Papa Paulo VI e o Arcebispo Ramsey, realizado em 1966, a partir do qual nasceu a primeira Comissão Internacional anglicano-católica romana. Na sua Declaração conjunta, o Papa e o Arcebispo falaram sobre a necessidade de "um sério diálogo que, fundamentado sobre os Evangelhos e as antigas tradições comuns, pode levar àquela unidade na verdade, pela qual Cristo rezou". Agora, podemos olhar para trás e dizer que, a partir dessa data, o diálogo continuou de modo fecundo ao longo dos anos.

Ele recebeu um novo impulso por ocasião da minha visita a Cantuária, em 1982, quando o Arcebispo Runcie e eu decidimos instituir a segunda Comissão Internacional anglicano-católica romana. Na nossa Declaração conjunta, reconhecemos que o diálogo teológico "deve ser acompanhado pelo trabalho zeloso e pela oração ardente dos católicos romanos e dos anglicanos no mundo inteiro, enquanto procuram progredir na compreensão mútua, no amor fraternal e no testemunho conjunto do Evangelho" (n. 4). Por si só, isto constituiu um sinal de crescimento, pois o diálogo teológico era considerado essencial, mas não suficiente. A nossa peregrinação conjunta exigiu também que os anglicanos e os católicos aprendessem a rezar e a trabalhar em unidade.

Outro passo fundamental foi dado em 1996, quando o Arcebispo Carey e eu emanámos uma Declaração conjunta, exortando os nossos fiéis "a arrepender-se do passado, a rezar pela graça da unidade e a abrir-se ao poder transformador de Deus". Tornou-se cada vez mais evidente que a unidade plena e visível viria não como resultado da vontade e do desígnio do homem, por mais importantes que estes sejam, mas como uma dádiva divina num período que não nos é dado conhecer, mas para o qual é necessário que nos preparemos. A Declaração antecipou também o Encontro Internacional dos Bispos anglicanos e católicos, que teve lugar no ano passado na localidade de Mississauga (Canadá), onde foi decidida a instituição do novo Grupo de Trabalho para o qual fostes designados.

3. Como grupo internacional de Bispos, sois particularmente qualificados para considerar os próximos passos concretos que se podem dar, não só a fim de consolidar os resultados já alcançados, mas também para nos levar às novas profundidades de comunhão, rumo à plenitude da unidade desejada por Cristo. Somente a experiência de uma comunhão mais profunda nos tornará capazes de dar um testemunho mais efectivo de Cristo no mundo e de cumprir a missão que Ele nos confiou (cf. Mt Mt 28,19-20). É óbvio que a desunião constituiu um obstáculo para a nossa missão no mundo. Nestes tempos de dificuldade, o mundo precisa mais do que nunca do testemunho conjunto dos cristãos em todos os sectores, da salvaguarda da vida humana à promoção da justiça e da paz.

4. Estou persuadido de que o novo Grupo de Trabalho se sentirá apoiado pela "esperança de sermos guiados pela presença do Ressuscitado e pela força inexaurível do seu Espírito, capaz de surpresas sempre novas" (Novo millennio ineunte, 12). Tivemos muitas destas surpresas nas últimas décadas; e quando o desânimo nos ameaça e surgem novas dificuldades, temos necessidade de nos concentrarmos de novo no poder do Espírito, de realizar aquilo que aos nossos olhos parece impossível. Nos períodos de aparente estagnação, temos a obrigação de esperar que o Espírito Santo realize aquilo que nós mesmos somos incapazes de levar a cabo.

Contudo, esta expectativa não é passiva. É a verdadeira e concreta experiência da esperança cristã, que nos faz bradar: "Vem, Espírito Santo!", mas também exige o difícil compromisso do diálogo e do testemunho conjunto, que estais a empreender. Hoje, desejo encorajar-vos nesta esperança e oferecer-vos as minhas orações, na certeza de que Cristo, "que vos chama [para esta obra], é fiel; Ele o realizará" (1Th 5,24).

Em breve terá início o Tempo do Advento e, na nossa oração, pronunciaremos estas palavras: "Vem, Senhor Jesus!". Na nossa peregrinação ecuménica, já chegou o Tempo do Advento. Por conseguinte hoje, enquanto olhamos com confiança o bom êxito do Grupo de Trabalho, a nossa oração conjunta seja a seguinte: Vem, Senhor Jesus! Faz com que sejamos um, da maneira que só Tu podes, a fim de que finalmente o mundo possa ver "a Esposa do Cordeiro... descer do Céu, de junto de Deus, resplandecente da glória de Deus" (cf. Ap Ap 21,9-11).





Discursos João Paulo II 2001 - Sexta-feira, 23 de Novembro de 2001