AUDIÊNCIAS 2002




                                                                            Janeiro de 2002

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 2 de janeiro de 2002

Imitemos a fé de Maria




Queridos Irmãos e Irmãs,

1. Neste primeiro encontro do novo ano, no dia a seguir à solenidade de Maria, Mãe de Deus, e do Dia Mundial da Paz, queremos renovar a acção de graças a Deus pelos inúmeros benefícios com que Ele enriquece a nossa vida todos os dias. Ao mesmo tempo, prolongamos a contemplação do grande mistério da Encarnação, que estamos a viver nestes dias e que constitui um autêntico centro do tempo litúrgico.

Retomando a expressão de João, "o Verbo fez-se carne" (1, 14), a reflexão doutrinal da Igreja cunhou o termo "encarnação" para indicar o facto de que o Filho de Deus assumiu plena e completamente a natureza humana para, nela e através dela, realizar a nossa salvação. O Catecismo da Igreja Católica recorda que a fé na encarnação concreta do Filho de Deus constitui o "sinal distintivo" da fé cristã (cf. n. 463).

De resto, é isto que professamos com as palavras do Credo niceno-constantinopolitano: "Por nós, homens, e para a nossa salvação, e por obra do Espírito Santo, [Ele] encarnou no seio da Virgem Maria e fez-se homem".

2. No nascimento do Filho de Deus do seio virginal de Maria, os cristãos reconhecem a infinita condescendência do Altíssimo para com o homem e toda a criação. Através da Encarnação, Deus vem visitar o seu povo: "Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e libertou o seu povo, e nos suscitou um poderoso Salvador na casa de David, seu servo" (Lc 1,68-69). E a visita de Deus nunca deixa de ser eficaz: liberta da aflição e dá esperança, traz salvação e alegria.

Na narração do nascimento de Jesus, vemos que o alegre anúncio da vinda do Salvador esperado é levado em primeiro lugar a um grupo de pobres pastores, como descreve o Evangelho de Lucas: "O anjo do Senhor apareceu-lhes [diante dos pastores]" (2, 9). Desta maneira, São Lucas, que num certo sentido poderíamos definir como o "evangelista" do Natal, deseja realçar a benevolência e a delicadeza de Deus para com os pequeninos e os humildes, aos quais se manifesta e que, geralmente, se mostram melhor dispostos a reconhecê-lo e a recebê-lo.

O sinal dado aos pastores, a manifestação da infinita majestade de Deus numa Criança, está repleto de esperanças e de promessas: "Isto vos servirá de sinal para o identificardes: encontrareis um Menino envolto em panos, deitado numa manjedoura" (Ibid., v. 12).
Uma mensagem semelhante encontra eco imediato no coração humilde e disponível dos pastores. Para eles, a palavra que o Senhor lhes deu a conhecer é, sem dúvida, algo de concreto, um "acontecimento" (cf. Ibid., v. 15). Portanto, partem sem hesitar, encontram o sinal que lhes fora prometido e, imediatamente, tornam-se os primeiros missionários do Evangelho, espalhando pelos arredores a boa nova no nascimento de Jesus.

3. Durante estes dias, voltamos a escutar o cântico dos anjos em Belém: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado" (Ibid., v. 14). Este canto deve difundir-se no mundo, também neste nosso tempo, portador de grandes esperanças e de extraordinárias aberturas em todos os campos, mas repleto inclusivamente de fortes tensões e dificuldades. A fim de que no novo ano, que há pouco teve início, a humanidade possa caminhar de modo mais rápido e seguro pelos caminhos da paz, é necessária a contribuição efectiva da parte de todos.
Por issso ontem, por ocasião do Dia Mundial da Paz, desejei realçar o vínculo que existe entre a paz, a justiça e o perdão. Verdadeiramente, "não há paz sem justiça" e "não há justiça sem perdão"! Por conseguinte, deve crescer em todos um forte desejo de reconciliação, sustentado por uma sincera vontade de perdão. Ao longo de todo o ano, a nossa oração deve tornar-se mais vigorosa e insistente, em ordem a obter de Deus o dom da paz e da fraternidade, de maneira especial nas regiões mais conturbadas do Planeta.

4. Assim, entremos no novo ano com confiança, imitando a fé e a dócil disponibilidade de Maria, que conserva e medita no seu coração (cf. Ibid., v. 19) todas as coisas maravilhosas que estão a ter lugar diante dos seus olhos. Através do seu Filho unigénito, o próprio Deus realiza a salvação plena e definitiva para toda a humanidade.

Contemplemos a Virgem, que recebe Jesus nos seus braços para O conceder a todos os homens. Como Ela, olhemos também nós com atenção e conservemos no nosso coração as grandes coisas que Deus realiza todos os dias ao longo da história. Assim, aprenderemos a reconhecer, no enredo da vida quotidiana, a intervenção constante da Providência divina, que tudo orienta com sabedoria e amor.

Uma vez mais, Feliz Ano para todos!

Saudações

Queridos Irmãos e Irmãs
Com votos de um Ano Novo sereno e feliz, saúdo os peregrinos de língua portuguesa, sobre todos implorando uma especial protecção da Virgem Mãe, ao conceder aos presentes e seus entes queridos a minha Bênção apostólica.

Saúdo cordialmente o Coro paroquial "Santa Cecília" de Kistanje, os operários da Construtora "Zitex" de Donji Miholjac e os outros peregrinos croatas aqui presentes.

Caríssimos, faço votos para que o novo ano do Senhor, que há pouco teve início, seja para cada um de vós e para as vossas famílias uma nova etapa de amadurecimento na fé, assim como um novo período de graça, de esperança e de concórdia. É de bom grado que vos concedo a todos a Bênção apostólica.
Louvados sejam Jesus e Maria!

Hoje desejo dar especiais boas-vindas aos peregrinos e visitantes de língua inglesa, de modo particular aos provenientes da Noruega, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Um abençoado ano novo para todos!

Dirijo o meu pensamento cordial para todos os peregrinos e visitantes oriundos das terras de expressão alemã. A vós aqui presentes e aos que nos acompanham através da Rádio Vaticano e da televisão, concedo de bom grado a minha Bênção apostólica.

Apresento as cordiais boas-vindas aos peregrinos vindos da Espanha e da América Latina. Ao longo deste ano, que a nossa oração se faça mais forte e insistente, em ordem a obter de Deus o dom da paz.

Feliz ano novo para todos!

Saúdo cordialmente os fiéis francófonos. A alegria do Natal resplandeça nos vossos corações e nas vossas vidas, para que vos torneis cada vez mais testemunhas da salvação e da paz! Concedo-vos a todos a Bênção apostólica.

Agora dirijo uma saudação aos Legionários de Cristo, que hoje quiseram estar aqui presentes com toda a sua Comunidade de Roma, em particular com os presbíteros recém-ordenados e as consagradas do "Regnum Christi". Caríssimos, o mistério da Encarnação, celebrado neste tempo litúrgico, vos ilumine ao longo do caminho da fidelidade a Cristo. Segundo o exemplo de Maria, sabei conservar, meditar e seguir o Verbo que, em Belém, se fez carne para difundir com entusiasmo a mensagem da salvação.

Depois, dirijo um pensamento especial para o grupo de casais da Paróquia de São Miguel em Solofra (Itália), que recordam o aniversário do seu matrimónio. Caríssimos, realçando o amável gesto que a vossa comunidade paroquial realizou, oferecendo uma medalha de ouro a L'Osservartore Romano, no 140º aniversário da sua fundação, exorto-vos a perseverar no compromisso do generoso testemunho cristão.

A todos os peregrinos de língua italiana, presentes nesta primeira Audiência geral de 2002, apresento os afectuosos bons votos de serenidade e de bem para o novo ano.
Enfim, dirijo-me aos jovens, aos doentes e aos novos casais.

A vós, caros jovens, faço votos para que saibais considerar cada dia como uma dádiva de Deus, a acolher com reconhecimento, e viver de modo recto. Para vós, queridos doentes, o novo ano traga consolação ao corpo e ao espírito. E vós, dilectos novos casais, esforçai-vos por imitar a Sagrada Família de Nazaré, realizando uma autêntica comunhão de vida e de amor.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 9 de janeiro de 2002

Todo o ser vivo louve o Senhor




Queridos irmãos e irmãs,

1. O hino que agora acompanhou a nossa oração é o último cântico do Saltério, o Salmo 150. A derradeira palavra que ressoa no livro da prece de Israel é o aleluia, ou seja, o puro louvor a Deus e, por isso, o Salmo é proposto duas vezes na Liturgia das Laudes, no segundo e no quarto domingo.

O breve texto é cadenciado por uma série de dez imperativos que repetem a palavra "hallelû", "louvai"! Como música e canto perene, parece que nunca terminam, como acontece também no célebre aleluia do Messias de Haendel. O louvor a Deus torna-se uma espécie de respiro da alma, que não conhece trégua. Como se descreveu, "esta é uma das recompensas do facto de ser homem: a exaltação silenciosa, a capacidade de celebrar. É bem expressa numa frase que o rabino Akiba ofereceu aos seus discípulos: cada dia um cântico / um cântico para cada dia" (A. J. Heschel, Chi è l'uomo?, Milão 1971, pág. 198).

2. O Salmo 150 parece desenvolver-se num tríplice momento. Na abertura, nos primeiros dois versículos, o olhar fixa-se no "Senhor", no "seu santuário", no "seu poder", nas "suas obras poderosas" e na "sua grandeza". Depois semelhante a um verdadeiro e próprio movimento musical no louvor insere-se a orquestra do templo de Sião (cf. vv. 3-5 b), que acompanha o cântico e a dança sagrada. Em seguida, no último versículo do Salmo (cf. v. 6) aparece o universo, representado por "todos os seres vivos" ou, se quisermos corroborar ainda mais o original hebraico, por "tudo o que respira". É a própria vida que se faz louvor, um louvor que sobe das criaturas até ao Criador.

3. Agora nós, neste nosso primeiro encontro com o Salmo 150, contentar-nos-emos com uma análise do primeiro e do último momento deste hino. Eles servem, por assim dizer, de moldura para o segundo momento, que ocupa a parte central da composição e que examinaremos no futuro, quando o Salmo for novamente proposto pela Liturgia das Laudes.

A primeira figura em que se desenvolve o fio musical e orante é a do "santuário" (cf. n. 1). O original hebraico fala da área "sagrada", pura e trascendente, a morada de Deus. Depois, há uma referência ao horizonte celeste e paradisíaco onde, como especificará o Livro do Apocalipse, se celebra a eterna e perfeita liturgia do Anjo (cf., por exemplo, Ap 5,6-14). O mistério de Deus, onde os santos são recebidos na plena comunhão, constitui um âmbito de luz e de alegria, de revelação e de amor. Não é sem motivo que, mesmo com uma certa liberdade, a antiga tradução grega dos Setenta e a própria tradução latina da Vulgata propuseram, em vez de "santuário", a palavra "santos": "Louvai o Senhor no meio dos seus santos".

4. Do céu, o pensamento passa implicitamente para a terra, sublinhando as "suas obras poderosas" realizados por Deus, que manifestam "todas as suas grandezas" (v. 2). Estas obras poderosas são descritas no Salmo 104, que convida os Israelitas a "considerar o Seu poder" (cf. 105 [104], 4), a "lembrar-se das maravilhas que fez, dos Seus prodígios e das sentenças da Sua boca" (Ibid., v. 5); então, o salmista recorda "a aliança que estabeleceu com Abraão" (Ibid., vv. 8-9), a história extraordinária de José, os milagres da libertação do Egipto e da travessia do deserto e, enfim, a dádiva da terra. Outro Salmo fala de situações angustiantes, das quais o Senhor liberta aqueles que lhe "clamam"; as pessoas libertadas são incessantemente convidadas a dar graças pelos prodígios realizados por Deus: "Dêem graças ao Senhor pelos seus favores e pelas suas maravilhas a favor dos homens" (Ps 107 [106], 8.15.21 e 31).

Assim, no nosso Salmo é possível compreender a referência às "obras poderosas", como afirma o original hebraico, isto é, os "prodígios potentes" (cf. v. 2), que Deus semeia ao longo da história da salvação. O louvor torna-se uma profissão de fé em Deus Criador e Redentor, uma celebração festiva do amor divino, que se desenvolve criando, salvando, dando a vida e a libertação.

5. Assim, chegamos ao último versículo do Salmo 150 (cf. v. 6). O vocábulo hebraico utilizado para indicar os "seres vivos" que louvam a Deus remete para o respiro, como se dizia, mas também para algo de íntimo e profundo, inerente ao homem.

Se é possível pensar que toda a vida das criaturas consiste num hino de louvor ao Criador, é contudo mais exacto considerar que neste coro se reserva uma posição de primazia à criatura humana. Através do ser humano, porta-voz da criação inteira, todos os seres vivos louvam o Senhor. O nosso respiro de vida, que significa também autoconsciência, compreensão e liberdade (cf. Pr Pr 20,27), torna-se cântico e oração de toda a vida que pulsa no universo.
Por isso, todos nós recitamos "salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor" nos nossos corações (Ep 5,19).

6. Transcrevendo os versículos do Salmo 150, os manuscritos hebraicos reproduzem com frequência a Menorah, o famoso candelabro com sete braços, colocado no Santo dos Santos do templo de Jerusalém. Assim, sugerem uma bonita interpretação deste Salmo, um verdadeiro e próprio Amen na oração de sempre, dos nossos "irmãos maiores": cada homem, com todos os instrumentos e as formas musicais que o seu próprio génio inventou "trombeta, harpa, cítara, tambores, danças, instrumentos de corda, flautas, címbalos sonoros e címbalos retumbantes", como afirma o Salmo mas também "tudo o que respira" é convidado a arder como a Menorah, diante do Santo dos Santos, em constante oração de louvor e de acção de graças.

Unidos ao Filho, voz perfeita do mundo inteiro, por Ele criado, tornemo-nos nós também uma prece incessante perante o trono de Deus.

Saudações

Queridos Irmãos e Irmãs

De coração saúdo todos vós, amados peregrinos de língua portuguesa, com votos de que as nuvens sobre o vosso caminho nunca vos impeçam de irradiar e enaltecer a glória e a esperança despositadas em vós, cantando e louvando ao Senhor em vossos corações, dando sempre graças por tudo a Deus Pai. Boa viagem!

Saúdo cordialmente os peregrinos e os visitantes provenientes dos países de expressão alemã. Concedo-vos a todos, aos vossos entes queridos e também àqueles que nos acompanham através da Rádio Vaticano e da televisão, a minha Bênção apostólica.

No início do Novo Ano, faço extensiva uma especial saudação aos peregrinos e visitantes de língua inglesa, de modo particular os da Dinamarca e dos Estados Unidos da América. Dou especiais boas-vindas aos numerosos estudantes das várias escolas e universidades, enquanto peço ao Espírito Santo que vos oriente e fortaleça, enquanto cresceis em sabedoria e vos preparais para enfrentar os desafios da vida. Sobre todos vós, invoco as abundantes bênçãos do Todo-Poderoso.

Uma cordial saudação aos peregrinos oriundos da República Checa!

Neste tempo de Natal, ressoa nas nossas almas o cântico angélico: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado" (Lc 2,14). Possais também vós difundir a paz de Cristo sobre a face da terra.

Com estes votos, abençoo-vos do íntimo do coração. Louvado seja Jesus Cristo!

Saúdo com afecto os peregrinos de língua espanhola, presentes nesta Audiência. Formulo para todos os votos de um feliz e próspero ano de 2002, que há pouco teve início, desejando que ao longo dos seus dias possais louvor o Senhor incessantemente, como nos foi indicado pelo Salmo que hoje comentámos.

Sinto-me feliz por acolher os fiéis francófonos aqui presentes hoje de manhã, de modo particular os paroquianos de Nossa Senhora do Rosário, vindos da Ilha da Reunião, e os membros da Comunidade de Santo Egídio. A vossa estadia aqui possa confirmar a vossa fé e fazer de vós testemunhas do Evangelho! Com a minha Bênção apostólica.

Dirijo uma saudação especial aos peregrinos de língua italiana. Em particular, saúdo os seminaristas da Diocese de Massa Carrara-Pontremoli, acompanhados do seu Bispo, D. Eugénio Bini. Caríssimos, exorto-vos a haurir todos os dias, mediante a oração, o vigor espiritual do amor inexaurível de Cristo, preparando-vos para ser no futuro mestres de espiritualidade, ao serviço do Povo de Deus.

Saúdo os jovens da Congregação das Religiosas Beneditinas da Providência Divina, que neste ano farão a profissão perpétua. Abraço espiritualmente as crianças bielo-russas, acompanhados dos seus pais adoptivos, acolhidos pela Associação "Kuore", de Tropeia.

Enfim, o meu pensamento dirige-se para os jovens, os doentes e os novos casais.Caríssimos, durante estes dias a seguir à solenidade da Epifania, continuemos a meditar sobre a manifestação de Jesus a todos os povos. A Igreja convida-vos, a vós estimados jovens, a ser testemunhas de Cristo no meio dos vossos coetâneos; exorta-vos, a vós queridos doentes, a difundir todos os dias a sua luz com paciência serena; e encoraja-vos, a vós dilectos novos casais, a ser um sinal da sua presença renovadora, com o vosso amor fiel.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 16 de janeiro de 2002

Anseio pelo Senhor e pelo seu Templo

Caríssimos Irmãos e Irmãs:


Como a corça suspira / pelas correntes de água,
assim minha alma suspira / por ti, meu Deus.
Minha alma tem sede de Deus, / do Deus vivo:
quando entrarei para ver / a face de Deus? [Sal 42(41)2-3]

1. Uma corça sequiosa, com a garganta seca, lança o seu grito perante a aridez do deserto, ansiosa pelas águas frescas de um riacho. Esta célebre imagem abre o Salmo 41, que há pouco foi cantado. Podemos ver nela como que um símbolo da espiritualidade profunda desta composição, verdadeira jóia de fé e de poesia. Na realidade, segundo os estudiosos do Saltério, o nosso Salmo deve unir-se estreitamente ao seguinte, o 42, do qual foi separado quando os Salmos foram ordenados para formar o livro de oração do Povo de Deus. De facto, ambos os Salmos para além de estarem ligados pelo tema e pelo desenvolvimento são marcados pela mesma antífona: "Porque estás triste, ó minha alma, e te perturbas dentro de mim? Espera em Deus: ainda o poderei louvar, a Ele, salvação do meu rosto e meu Deus" (Ps 41,6 Ps 41,12 Ps 42,5). Este apelo, repetido duas vezes no mesmo Salmo, e uma terceira vez no Salmo seguinte, é um convite dirigido pelo que reza a si mesmo, com vista a afastar a tristeza por meio da confiança em Deus, que certamente se manifestará de novo como Salvador.

2. Mas voltemos à imagem de partida do Salmo, que gostaria de meditar com o fundo musical do canto gregoriano ou daquela obra-prima polifónica que é o Sicut cervus de Pierluigi da Palestrina.

A corça sequiosa é, de facto, o símbolo do que reza e que se dirige com todo o seu ser, corpo e alma, para o Senhor, sentido como longínquo e ao mesmo tempo necessário: "A minha alma tem sede do Senhor, do Deus vivo" (Ps 41,3). No hebraico a mesma palavra, nefesh, indica ao mesmo tempo a "alma" e a "garganta". Por isso, podemos dizer que a alma o corpo do orante estão envolvidos no desejo primário, espontâneo e substancial de Deus (cf Ps 62,2). Por alguma razão, há uma longa tradição que descreve a oração como "respiração": ela é original, necessária, fundamental como a respiração vital.

Orígenes, grande autor cristão do terceiro século, dizia que a procura de Deus por parte do homem é uma empresa jamais terminada, porque são sempre possíveis e necessários novos progressos. Numa das suas homilias sobre o livro dos Números escreve: "Aqueles que percorrem o caminho da busca da sabedoria de Deus não constroem casas estáveis, mas tendas móveis, porque vivem em viagens contínuas caminhando sempre em frente, descobrindo um horizonte que se perde na imensidade" (Homilia XVII, In Numeros, GCS, XVII, 159-160).

3. Procuremos agora descobrir a trama desta súplica, que poderemos imaginar dividida em três actos, dois dos quais estão no interior do nosso salmo, enquanto o último se abrirá no Salmo seguinte, o 42, que olharemos em seguida. A primeira cena (cf. Sl Ps 41,2-6) exprime a profunda nostalgia suscitada pela recordação de um passado tornado feliz por belas celebrações litúrgicas, agora inacessíveis: "Ao recordar-me destas coisas, a minha alma derrete-se dentro de mim, unir-me-ei com o meu povo, guiá-lo-ei até à casa do Senhor entre vozes de alegria e de louvor da multidão em festa" (v. 5).

"A casa de Deus" com a sua liturgia é o templo de Jerusalém, que o fiel outrora frequentava, mas é também o lugar da intimidade com Deus, "fonte de água viva", como canta Jeremias (2, 13). Ora, a única água que aflora às suas pupilas é a das lágrimas (Ps 41,4) pela distância da fonte da vida. A oração festiva de então, elevada para o Senhor durante o culto no templo, é agora substituída pelas lágrimas, pelo lamento, pela súplica.

4. Infelizmente, opõe-se um presente triste àquele passado alegre e sereno. O Salmista encontra-se, agora, longe de Sião: o horizonte que o circunda é o da Galileia, a região setentrional da Terra Santa, como sugere a menção das nascentes do Jordão, do cume do Hermon de onde brota este rio e de uma alta montanha desconhecida para nós, o Mizar (cf. v. 7). Estamos, pois, mais ou menos na área em que se encontram as cataratas do Jordão, as cascatas com que começa o percurso deste rio que atravessa toda a Terra prometida. Estas águas, porém, não matam a sede como as de Sião. Aos olhos do Salmista são, pelo contrário, semelhantes às águas caóticas do dilúvio que destruiram tudo. Ele sente-as cair sobre os ombros como uma torrente impetuosa que destrói a vida: "todas as vossas vagas e torrentes passaram sobre mim" (v. 8). Na Bíblia, de facto, o caos e o mal, ou o próprio juízo divino, são representados como um dilúvio que provoca destruição e morte (Gn 6,5-8 Ps 68,2-3).

Esta irrupção é definida logo a seguir no seu valor simbólico: são os perversos, os adversários do orante, talvez também os pagãos que habitam nesta remota região onde o fiel está desterrado. Eles desprezam o justo e escarnecem da sua fé, perguntando-lhe ironicamente: "onde está o teu Deus?" (v. 11; cf. v. 4). E ele dirige a Deus o seu pedido angustioso: "porque vos esqueceis de mim?" (v. 10). O "porque" dirigido ao Senhor, que parece ausente no dia da provação, é típico das súplicas bíblicas.

Frente a estes lábios ressequidos que gritam, frente a esta alma atormentada, a este rosto que está prestes a ser submergido por um mar de lodo, poderá Deus permanecer mudo? Certamente que não! O orante anima-se de novo na esperança (cf. vv. 6. 12). O terceiro acto, contido no Salmo seguinte, o 42, será uma invocação confiante dirigida a Deus (Ps 42,1 Ps 42,2 Ps 42,3 Ps 42,4) e usará expressões alegres e reconhecidas: "Então, entrarei no altar de Deus, o Deus da minha alegria, do meu júbilo".

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs

Saúdo com afecto os peregrinos de língua portuguesa. A quantos me escutam, desejo felicidades com a graça de Deus. Levai a certeza da minha estima e da minha oração por vós, com uma bênção para as vossas famílias e comunidades.

É-me deveras grato saudar os peregrinos e os visitantes oriundos das terras de expressão alemã. Que a aspiração a Deus, Redentor da nossa vida, seja sempre vivo em vós! É do íntimo do coração que vos concedo a minha Bênção apostólica a vós, aos vossos entes queridos e a todos aqueles que nos acompanham através da Rádio Vaticano e da televisão.

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua espanhola, de modo particular os fiéis da Paróquia de São Bartolomeu, e da Paróquia de São José Operário e São Francisco, provenientes de Múrcia. Convido-vos todos a perseverar na oração, confirmando desta maneira a fé e progredindo ao longo dos caminhos do Senhor.

Obrigado pela vossa atenção.

Dou as boas-vindas aos peregrinos e visitantes de língua inglesa, presentes na Audiência deste dia, de modo especial os numerosos grupos de estudantes dos Estados Unidos da América. Dirijo a minha calorosa saudação também aos alunos da Escola de São José, em Ringsted, na Dinamarca.
Agradeço aos membros do Coro que veio da localidade de Jackson, pelos seus cânticos de louvor a Deus. Sobre todos vós e as vossas famílias, invoco cordialmente a graça e a paz de nosso Senhor Jesus Cristo!

Sinto-me muito feliz por saudar todos os peregrinos francófonos presentes nesta Audiência, especialmente o grupo da Escola Normal Católica "Blomet", de Paris.

Que a vossa peregrinação renove em vós a confiança no amor de Deus, para serdes testemunhas da sua misericórdia e artífices da paz! Concedo-vos a todos, do íntimo do meu coração, a Bênção apostólica.

Dirijo uma cordial saudação aos peregrinos de língua italiana. De modo especial, saúdo os Dirigentes das sociedades e das empresas que oferecem o seu apoio ao jornal L'Osservatore Romano, aqui presentes juntamente com os seus familiares. Caríssimos, agradeço-vos a generosa disponibilidade com que vos empenhais para fazer com que a mensagem evangélica, a voz do Sucessor de Pedro e o Magistério da Igreja alcancem o maior número possível de fiéis.
Oxalá Deus torne fecunda esta vossa colaboração.

Depois, saúdo os Representantes da "Casa Pio XII" de Pozzuoli, e formulo a cada um um os votos de que continue com renovado impulso o serviço de amor para com os mais necessitados, segundo o exemplo luminoso de São Vicente de Paulo.

Enfim, o meu pensamento dirige-se aos jovens, aos doentes e aos novos casais. A solenidade do Baptismo do Senhor, que celebrámos no domingo passado desperte novamente em vós, queridos jovens, a recordação do vosso baptismo e vos sirva de estímulo a testemunhar com alegria a fé em Cristo; constitua para vós, dilectos doentes, um conforto no sofrimento; e vos ajude a vós, estimados novos casais, a aprofundar e a testemunhar corajosamente a fé para, em seguida, a transmitir com fidelidade aos vossos filhos.

Concedo-vos a todos a minha Bênção apostólica!





JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 23 de janeiro de 2002

Oração pelo povo santo de Deus


Queridos irmãos e irmãs,

1. No interior do Antigo Testamento não existe só o livro oficial da oração do Povo de Deus, isto é, o Saltério. Muitas páginas bíblicas estão cheios de cânticos, hinos, salmos, súplicas, orações, invocações que se elevam para o Senhor, como resposta à sua palavra. A Bíblia revela-se, assim, um diálogo entre Deus e a humanidade, um encontro que é colocado sob o selo da palavra divina, da graça e do amor.

É o caso da súplica que agora dirigimos ao "Senhor Deus do Universo" (v.1). Está contida no livro de Sirácide, um sábio que recolhe as suas reflexões, os seus conselhos, os seus cantos provavelmente à volta de 190-180 a. C., nos limiares da epopeia de libertação vivida por Israel sob a orientação dos irmãos Macabeus. Um neto deste sábio, em 138 a. C. traduziu para grego, como se narra no prólogo acrescentado ao volume, a obra do avô como que a oferecer estes ensinamentos para uma procura mais ampla dos leitores e discípulos.

O livro de Sirácide é chamado "Eclesiástico" pela tradição cristã. Não tendo sido acolhido no cânone hebraico, este livro acaba por caracterizar, juntamente com outros, a chamada "veritas christiana" [verdade cristã]. Os valores propostos por esta obra sapiencial entraram de tal modo na educação cristã da era patrística, sobretudo no âmbito monástico, que se tornaram como um manual do comportamento dos discípulos de Cristo.

2. A invocação do capítulo 36 de Sirácide, assumida como oração das Laudes pela Liturgia das Horas de uma forma simplificada, move-se ao longo de algumas linhas deste tema.

Encontramos, antes de mais, o pedido de que Deus intervenha em favor de Israel e contra as nações estrangeiras que o oprimem. No passado, Deus mostrou a sua santidade quando castigou as culpas do seu povo, entregando-o nas mãos dos seus inimigos. Agora, o orante pede a Deus que mostre a sua grandeza, reprimindo a prepotência dos opressores e instaurando uma nova era a partir dos matizes messiânicos.

Certamente, a súplica reflecte a tradição orante de Israel e, na realidade, está repleta de reminiscências bíblicas. Por estes versos, ela pode considerar-se como um modelo de oração para usar durante o tempo da perseguição e da opressão, como era aquele em que vivia o autor, sob o domínio mais áspero e severo dos soberanos estrangeiros sírio-helenísticos.

3. A primeira parte desta oração é aberta por um apelo ardente dirigido ao Senhor para que tenha piedade e guarde (cf.v 1). Mas a atenção depressa é dirigida para a acção divina, que é exaltada através de uma série de verbos muito sugestiva: "tem piedade... guarda... infunde o temor... levanta a mão... mostra-te grande... renova os sinais... realiza prodígios... glorifica a tua mão e o teu braço direito..."

O Deus da Bíblia não é indiferente nos confrontos com o mal. E mesmo se os seus caminhos não são os nosos caminhos, os seus tempos e projectos são diversos dos nossos (cf. Is. Is 55,8-9), todavia Ele alinha do lado das vítimas e apresenta-se como juiz severo dos violentos, dos opressores, dos triunfadores que não têm piedade.

Mas esta sua intervenção não se estende à destruição. Mostrando o seu poder e a sua fidelidade no amor, Ele pode gerar ainda na consciência do malvado um estremecimento que o leve à conversão. "Para que reconheçam, como também nós reconhecemos que fora de Vós, Senhor, não há outro Deus" (v. 4).

4. A segunda parte do hino abre uma perspectiva mais positiva. De facto, enquanto a primeira parte pede uma intervenção de Deus contra os inimigos, a segunda não fala mais de inimigos, mas pede os favores de Deus para Israel, implora a sua piedade em favor do povo eleito e da sua cidade santa, Jerusalém.

O sonho do regresso de todos os exilados, compreendendo os do reino do Norte, torna-se objecto da oração: "reuni todas as tribos de Jacob, tomai-as como vossa herança, como o foram desde o princípio" (v. 10). É pedida como que uma espécie de renascimento de todo o Israel, como nos tempos felizes da ocupação de toda a Terra Prometida.

Para tornar a oração mais premente, o orante insiste sobre a relação que une Deus a Israel e Jerusalém. Israel aparece designado como "o povo que foi chamado pelo vosso nome", aquele "que tratastes como filho primogénito"; Jerusalém é a "vossa cidade santa", a "vossa morada". O desejo expresso, depois, é que a relação se torne ainda mais estreita e, por isso, mais gloriosa.: "enchei Sião com as vossas palavras inefáveis e o vosso povo com a vossa glória" (v. 13). Pelo encher com a sua majestade o Templo de Jerusalém, que atrairá a si todas as nações (cf. Is Is 2,2-4 Mi 4,1-3), o Senhor encherá o seu povo com a sua glória.

5. Na Bíblia, o lamento dos que sofrem nunca leva ao desespero, antes é sempre aberto à esperança. Na base, está a certeza de que o Senhor não abandona os seus filhos, não deixa cair das suas mãos aqueles que ele formou.

A selecção feita pela Liturgia omitiu uma expressão feliz na nossa oração. Ela pede a Deus que dê "testemunho em favor daqueles que, desde o princípio, são vossas criaturas" (v. 14). Desde a eternidade, Deus tem um projecto de amor e de salvação destinado a todas as criaturas, chamadas a tornar-se seu povo. É um desígnio que São Paulo reconhecerá "revelado, pelo Espírito, aos Seus santos Apóstolos e Profetas... conforme o desígnio eterno que Deus realizou em Cristo Jesus, Nosso Senhor" (Ep 3,5 Ep 3,11).

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, a minha saudação afectuosa com um renovado convite para me acompanharem na oração que amanhã, de Assis, se elevará pela recomposição da harmonia e concórdia no seio da grande família humana, que tem Deus por Pai. Em seu Nome, a todos abençoo e desejo paz e bem!

Dou as minhas cordiais boas-vindas a todos os peregrinos vindos da Espanha e da América Latina, sobretudo aos grupos das paróquias de São João e São Paulo de Múrcia. Oxalá a leitura e a meditação deste Cântico renove em cada um de vós a certeza de que o Senhor nunca abandona os seus filhos. Deus vos abençoe!

Acolho com alegria os peregrinos de língua francesa, sobretudo os jovens da escola católica Rocroy Saint-Léon e do liceu Gregor Mendel, de Paris. Quando amanhã os grandes chefes das religiões se reunirem em Assis a fim de invocar o Senhor da paz, oxalá também vós contribuais, com a vossa oração e o vosso testemunho de vida cristã, para fazer reinar a paz no mundo! Concedo a todos, de bom grado, a Bênção apostólica.

Por fim, o meu pensamento dirige-se, como de costume, aos jovens, aos doentes e aos novos casais. Caríssimos, nesta semana de oração pela unidade dos cristãos seja intensa a nossa invocação para que se chegue, quanto antes, à plena comunhão de todos os discípulos de Cristo.

Neste espírito, convido-vos a vós, queridos jovens, a ser em toda a parte, sobretudo com os vossos coetâneos, testemunhas de unidade na adesão ao evangelho; peço-vos a vós, amados doentes, que ofereçais os vossos sofrimentos pelo alcance desta meta; e exorto-vos a vós estimados novos casais, a ser no âmbito da vossa família um só coração e uma só alma.

Como sabeis, amanhã vou a Assis, onde, juntamente com Chefes de Igrejas e Comunidades eclesiais e com Representantes de outras religiões, viveremos um dia dedicado à oração pela paz no mundo. Tratar-se-á de uma peregrinação de esperança, seguindo as pegadas de S. Francisco de Assis, profeta e testemunha de paz. Faço votos para que esta iniciativa, além dos afectos espirituais que não estão ao alcance das medidas humanas, possa contribuir para orientar os ânimos e as decisões para propósitos de justiça e de perdão sinceros e corajosos. Se assim for, teremos contribuído para consolidar as bases de uma paz autêntica e duradoura.

Por conseguinte, convido os fiéis católicos a unir a sua oração à que amanhã, em Assis, elevaremos juntos como cristãos, nutrindo ao mesmo tempo no seu coração sentimentos de simpatia pelos seguidores de outras religiões reunidos na cidade de São Francisco para rezar pela paz.

A todos, indivíduos e comunidades, exprimo desde já o meu cordial reconhecimento.




AUDIÊNCIAS 2002