AUDIÊNCIAS 2002

PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


30 de outubro de 2002

Deus julgará com justiça




Queridos irmãos e irmãs,

1. Entre os Cânticos bíblicos, que se entrelaçam com os Salmos na Liturgia das Laudes, encontramos um breve texto que hoje proclamámos. Ele é tirado de um capítulo do Livro do profeta Isaías, o trigésimo da sua grande e admirável recolha de oráculos divinos.

O Cântico começa com os versículos anteriores aos que foram citados (cf. vv. 10-12), com o anúncio de uma entrada poderosa e gloriosa de Deus sobre a história humana : "Agora eu me levantarei, diz o Senhor, agora me erguerei e vou subir" (v. 10). As palavras de Deus destinam-se aos que estão "longe" e aos que estão "perto", isto é, a todas as nações da terra, mesmo às mais distantes, e a Israel, o povo que está "perto" do Senhor devido à aliança (cf. v. 13).

Noutra passagem do Livro de Isaías é afirmado: "Porei nos seus lábios este cântico: Paz àquele que está longe e àquele que está perto, diz o Senhor, e eu o sararei" (Is 57,19). Agora, ao contrário, as palavras do Senhor tornam-se duras, assumem a tonalidade do julgamento sobre o mal dos que estão "longe" e dos que estão "perto".

2. De facto, logo a seguir, difunde-se o medo entre os habitantes de Sião nos quais se escondem pecado e impiedade (cf. Is Is 33,14). Eles estão conscientes de viver ao lado do Senhor que reside no templo, escolheu caminhar com eles na história e transformou-se em "Emanuel", "Deus-connosco" (cf. Is Is 7,14). Pois bem, o Senhor justo e santo não pode tolerar a impiedade, a corrupção e a injustiça. Como "fogo devorador" e "chama perene" (cf. Is Is 33,14), Ele desencadeia-se contra o mal para o aniquilar.

Já no capítulo 10, Isaías admoesta: "A luz de Israel será um fogo, o seu Santo, uma chama, que abrasará e devorará" (v. 17). Também o Salmista cantava: "Tal como... ao contacto com o fogo, se derrete a cera, assim se dissipam os ímpios na presença do Senhor" (Ps 67,3). Deseja dizer-se, no âmbito da economia veterotestamentária, que Deus não é indiferente face ao bem e ao mal, mas mostra o seu desdém e a sua cólera em relação à maldade.

3. O nosso cântico não termina com esta cena sombria de julgamento. Aliás, reserva a parte mais ampla e intensa à santidade acolhida e vivida como sinal da conversão e reconciliação com Deus que se verificou. Na esteira de alguns Salmos, como o 14 e o 23, que realçam as condições requeridas pelo Senhor para viver em comunhão jubilosa com Ele na liturgia do templo, Isaías enumera seis compromissos morais para o verdadeiro crente, fiel e justo (cf. Is Is 33,15), que pode habitar, sem sofrer dano algum, junto do fogo divino, que para ele é fonte de benefícios.

O primeiro compromisso consiste em "caminhar na justiça", ou seja, considerar a lei divina como lâmpada que ilumina o caminho da vida. O segundo, coincide com o falar leal e sincero, sinal de relações sociais correctas e autênticas. Como terceiro compromisso, Isaías propõe que se "recuse um lucro que seja fruto de vexames", combatendo assim a opressão dos pobres e a riqueza injusta.

Depois, o crente compromete-se a condenar a corrupção política e judicial "sacudindo as mãos para não aceitar dádivas", imagem sugestiva que indica a recusa de doações feitas para desviar a aplicação das leis e o curso da justiça.

4. O quinto compromisso é expresso com o gesto significativo de "fechar os ouvidos" quando são feitas propostas sanguinolentas, actos de violência a serem perpetrados. O sexto e último compromisso é expresso com uma imagem que, inicialmente, nos desorienta porque não corresponde ao nosso modo de falar. Quando falamos de "fechar um olho", desejamos dizer: "fingir não ver para não ter a obrigação de intervir"; mas o profeta diz que o homem honesto "fecha os olhos para não ver o mal", no sinal de uma recusa completa de qualquer contacto com o mal.

São Jerónimo, no seu comentário a Isaías, desenvolve da seguinte forma o conceito, tendo em consideração o conjunto do trecho: "Qualquer forma de iniquidade, de opressão e de injustiça, é decisão de sangue: e mesmo se não mata com a espada, contudo mata com a intenção. "E fecha os olhos para não ver o mal": é feliz a consciência que não ouve e não contempla o mal! Por conseguinte, quem se comporta assim, habitará "no excelso", ou seja, no reino dos céus ou na altíssima gruta da fortíssima Pedra, em Jesus Cristo" (In Isaiam prophetam, 10, 33: PL 24, 367).
Desta forma, Jerónimo introduz-nos na compreensão justa daquele "fechar os ouvidos" recordado pelo profeta: trata-se de um convite a recusar absolutamente qualquer forma de conivência com o mal. Como é fácil observar, são chamados em causa os sentidos principais do corpo: mãos, pés, olhos, ouvidos e língua são envolvidos no agir moral humano.

5. Pois bem, quem opta por seguir este comportamento honesto e justo poderá ter acesso ao templo do Senhor, onde irá receber a segurança daquele bem-estar exterior e interior que Deus oferece a quem está em comunhão com Ele. O profeta emprega duas imagens para descrever este êxito jubiloso (cf. v. 16): a segurança em fortalezas incorruptíveis e a abundância do pão e da água, símbolo de vida próspera e feliz.

A tradição interpretou espontaneamente o sinal da água como imagem do baptismo (cf. por Carta de Barnabé 11, 5), enquanto o pão se transfigurou para os cristãos em sinal da Eucaristia. É quanto se lê, por exemplo, no comentário de São Justino mártir, o qual vê nas palavras de Isaías uma profecia do "pão" eucarístico, "memória" da morte redentora de Cristo (cf. Diálogo com Trifónio, Paulinas 1988, pág. 242).

Saudações

Amados peregrinos vindos do Brasil, Portugal ou outros Países lusófonos, os próximos dias lembram de modo especial familiares e amigos que nos deixaram com a esperança dos nossos sufrágios para chegarem até Deus. Sirvam-lhes de ajuda e conforto os vossos passos de peregrinos sedentos de santidade.

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua francesa e, entre eles, todos os jovens: em particular os da Capelania de Dax, do Colégio de Saint-Vincent du Mans e do Liceu de São Miguel de Annecy. Abri os vossos corações ao apelo de Cristo, por ocasião da vossa peregrinação e não tenhais medo de ser suas testemunhas em cada dia!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua espanhola, em particular as Irmãs Missionárias Servas do Espírito Santo e o grupo mexicano do Instituto Montini. Saúdo ainda os outros peregrinos vindos da Espanha, México e El Salvador. Convido-vos a todos a levar uma conduta honesta e justa na vossa vida. Obrigado!

Saúdo os peregrinos de língua polaca.

Nos próximos dias viveremos a solenidade de Todos-os-Santos e a comemoração litúrgica dos Fiéis Defuntos.

Quando visitamos os túmulos dos parentes e dos amigos, vivemos de modo especial a verdade "sobre as últimas coisas do homem": morte, juízo de Deus, céu ou inferno. A catequese de hoje foi dedicada ao Cântico tirado do Livro de Isaías, que preanuncia precisamente o julgamento de Deus. O Profeta afirma que aquele que caminha na justiça e é leal na sua palavra, o que rejeita um lucro que é fruto de opressão e não se deixa cair na corrupção, pode confiar, sem medo, na justiça de Deus. Que esta consciência acompanhe todos os meus concidadãos e seja fonte de esperança escatológica.

Deus vos abençoe!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua italiana, em particular os Diáconos da diocese de Milão. Caríssimos, exorto-vos a fundamentar a vossa vida sobre a Palavra de Deus, para serdes seus anunciadores corajosos aos homens do nosso tempo.

Saúdo depois os voluntários dentistas, que colaboram com os Missionários Combonianos em favor dos emigrantes e refugiados, bem como os representantes do Centro diocesano Sócio-Político de São Miniato, acompanhados do Bispo D. Eduardo Ricci. Caríssimos, encorajo-vos a continuar com renovado entusiasmo as vossas actividades apostólicas e faço votos para que o vosso testemunho possa conquistar quantos estão longe dos valores do espírito.

Dirijo, por fim, a minha saudação aos jovens, aos doentes e aos novos casais.

Caros jovens, procurai como objectivo primário a santidade de vida, para preparar um futuro cheio de bem.

Queridos doentes, o exemplo de virtude dos Santos e a sua intercessão vos ajudem a enfrentar com coragem as provações da vida.

Estimados novos casais, o pensamento da Patria celeste, a que todos somos chamados, oriente a vossa família para a fidelidade a Cristo e à plena e recíproca comunhão de amor.



                                                                            Novembro de 2002

PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


6 de novembro de 2002

A vitória do Senhor na sua vinda final




Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. O Salmo 97, há pouco proclamado, pertence a um género de hinos que já encontramos durante o itinerário espiritual, que estamos a percorrer à luz do Saltério.

Trata-se de um hino ao Senhor, rei do universo e da história (cf. v. 6). Ele define-se como "cântico novo" (v. 1), que na linguagem bíblica significa um cântico perfeito, pleno, solene, acompanhado por um complexo musical de festa. De faco, além do cântico coral recordam-se "as canções alegres" da cítara (cf. v. 5), as trombetas e o chifre (cf. v. 6), mas também uma espécie de aplauso cósmico (cf. v. 8).

Ressoa depois, repetidamente, o nome do "Senhor" (seis vezes), indicado como "nosso Deus" (v. 3). Por conseguinte, Deus está no centro do cenário com toda a sua majestade, enquanto realiza a salvação na história e é aguardado para "julgar" o mundo e os povos (v. 9). O verbo hebraico que indica o "julgamento" significa também "governo": por isso espera-se a acção eficaz do Soberano de toda a terra, que trará paz e justiça.

2. O Salmo abre-se com a proclamação da intervenção divina no âmbito da história de Israel (cf. vv. 1-3). As imagens da "direita" e do "braço santo" recordam o êxodo, a libertação da escravidão do Egipto (cf. v. 1). A aliança com o povo da eleição é, ao contrário, recordada pelas duas grandes perfeições divinas: "amor" e "fidelidade" (cf. v. 3).

Estes sinais de salvação são testemunhados "aos olhos dos povos" e em "todos os confins da terra" (vv. 2.3), para que toda a humanidade seja atraída por Deus salvador e se abra à sua palavra e à sua obra salvífica.

3. O acolhimento reservado ao Senhor que intervém na história distingue-se por um louvor coral: além da orquestra e dos cânticos do templo de Sião (cf. vv. 5-6), participa nele também o universo, que constitui uma espécie de templo cósmico.

São quatro os cantores deste enorme coro de louvor. O primeiro é o mar com tudo o que encerra, que parece fazer como que de baixo contínuo a esse grandioso cântico (cf. v. 7). Seguem-no a terra e todo o mundo (cf. vv. 4.7) com todos os seus habitantes, unidos numa harmonia solene. A terceira personificação é a dos rios que, sendo considerados como os braços do mar, parece que, com o seu fluxo rítmico, batem as mãos num aplauso (cf. v. 8). Por fim, eis as montanhas que parecem dançar de alegria diante do Senhor, apesar de serem as criaturas mais maciças e imponentes (cf. v. 8; Ps 28,6 Ps 113,6).

Por conseguinte, um coro colossal que tem uma única finalidade: exaltar o Senhor, rei e juiz justo. O final do Salmo, como se dizia, apresenta de facto Deus "que vem julgar (e governar) a terra... com justiça e equidade" (cf. Sl Ps 97,9).

Eis a grande esperança e a nossa invocação: "Venha a nós o Vosso reino!", um reino de paz, de justiça e de serenidade, que reconcilie a harmonia originária da criação.

4. Neste Salmo, o apóstolo Paulo reconheceu com profunda alegria uma profecia da obra de Deus no mistério de Cristo. Paulo serviu-se do v. 2 para exprimir o tema da sua grande carta aos Romanos: no Evangelho "foi revelada a justiça de Deus" (cf. Rm Rm 1,17), "foi manifestada" (cf. Rm Rm 3,21).

A interpretação feita por Paulo confere ao Salmo maior plenitude de sentido. Lido na perspectiva do Antigo Testamento, o Salmo proclama que Deus salva o seu povo e que todas as nações, ao verem isto, ficam admiradas. Ao contrário, na perspectiva cristã, Deus realiza a salvação em Cristo, filho de Israel; todas as nações o vêem e são convidadas a aproveitar esta salvação, porque o Evangelho "é poder de Deus para a salvação de todos os que crêem, primeiro do Judeu e, depois, do Grego", ou seja, do pagão (Rm 1,16). Agora, "todos os confins da terra" não só "viram a salvação do nosso Deus" (Ps 97,3), mas receberam-na.

5. Nesta perspectiva, Orígenes, escritor cristão do terceiro século, num texto retomado depois por São Jerônimo, interpreta o "cântico novo" do Salmo como uma celebração antecipada da novidade cristã do Redentor crucificado. Sigamos então o seu comentário que entrelaça o cântico do salmista com o anúncio evangélico.

"Cântico novo é o Filho de Deus que foi crucificado e isto jamais se tinha ouvido. Uma realidade nova deve ter um cântico novo. "Cantai ao Senhor um cântico novo". Aquele que sofreu a paixão, na realidade é um homem; mas vós cantai ao Senhor: suportou a paixão como homem, mas salvou como Deus". Orígenes continua: Cristo "fez milagres entre os judeus: curou paralíticos, purificou leprosos, ressuscitou mortos. Mas também outros profetas fizeram isto. Transformou poucos pães num grande número, e deu de comer a um povo sem número. Mas também Eliseu fez isto. Então, o que fez de novo para merecer um cântico novo? Quereis saber o que fez de novo? Deus morreu como homem, para que os homens tivessem a vida; o Filho de Deus foi crucificado, para nos elevar até ao céu" (74 homilias sobre o livro dos Salmos, Milão 1993, pág. 309-310).

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãos
de língua portuguesa

Saúdo, com votos de paz e alegria, os peregrinos de língua portuguesa. De modo especial, saúdo os brasileiros da Comunidade Canção Nova, que está celebrando vinte e cinco anos de fundação. Peço a Deus que esta visita a Roma possa contribuir para evangelizar, com renovado ardor missionário, as vossas famílias e comunidades. Com a minha Bênção apostólica, extensiva aos vossos entes queridos.

Uma cordial saudação aos peregrinos húngaros, especialmente ao grupo do Liceu Cisterciense de Pécs.
Ontem celebrastes a memória de Santo Emérico, Padroeiro da juventude húngara. Implorando a sua intercessão, concedo-vos de bom grado a Bênção apostólica.
Louvado seja Jesus Cristo!

Saúdo os peregrinos oriundos da Polónia. Uma vez mais, agradeço-vos por terdes vindo na ocasião da festividade de São Carlos.

Hoje, ainda na atmosfera da comemoração litúrgica dos defuntos, meditemos sobre as palavras do Salmo 97, que falam da vinda do Senhor no fim dos tempos e da derradeira salvação do homem que, de certa forma, se estende a toda a terra e a todo o mundo criado: "Todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus. Aclame ao Senhor a terra inteira; gritai, exultai com cânticos de alegria [...] [Ele] julgará o mundo com justiça e os povos com equidade". Baseando-nos nestas palavras, podemos rezar com esperança: "Venha a nós o vosso Reino", um Reino de justiça, de paz, de alegria e de harmonia, restabelecida em toda a criação. Deus vos abençoe e todos!

É-me grato acolher-vos, a vós peregrinos francófonos aqui presentes, hoje de manhã, nomeadamente os que vieram da França, da Suíça e do Canadá. Possa a vossa permanência aqui confirmar a vossa fé e fazer de vós testemunhas do Evangelho!

Dirijo uma especial saudação aos peregrinos de língua italiana.

Em particular, saúdo os participantes no "Curso de formação permanente para missionários", promovido pela Pontifícia Universidade Salesiana. Caríssimos, faço votos por que estes dias de estudo sobre temas ligados ao trabalho missionário suscitem em vós um renovado entusiasmo no anúncio de Cristo a todos os povos.

Depois, saúdo os representantes da Comunidade de Santo Egídio, vindos a Roma de vários continentes para participar no encontro internacional sobre o tema: "O Evangelho da paz". Caríssimos, este encontro reavive em cada um de vós o compromisso na promoção da justiça e da paz em todos os ambientes.

Agora, o meu pensamento volta-se para os jovens os doentes e os novos casais. Caros jovens, projectai o futuro em plena fidelidade ao Evangelho e crescei no ensinamento e no exemplo de Jesus. E vós, dilectos doentes, oferecei as vossas dores ao Senhor para que, graças também à vossa participação nos seus sofrimentos, Ele estenda a sua obra salvífica ao mundo inteiro. E no caminho que empreendestes, estimados novos casais, possais ser orientados por uma fé viva, a fim de que a vossa família seja animada por um intenso fervor evangélico.



PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


13 de novembro de 2002

Jerusalém, mãe de todos os povos




Amados irmãos e irmãs,

1. O cântico a Jerusalém, cidade da paz e mãe universal, que agora ouvimos ressoar, encontra-se infelizmente em contraste com a experiência histórica que a cidade está a viver. Tarefa da oração é semear confiança e gerar esperança.

A perspectiva universal do Salmo 86 pode levar a pensar no Hino do Livro de Isaías, que vê convergir para Sião todos os povos para ouvir a Palavra do Senhor e redescobrir a beleza da paz, transformando "as espadas em relhas de arados" e "as suas lanças em foices" (cf. 2, 2-5). Na realidade, o Salmo coloca-se numa perspectiva muito diferente, a de um movimento que, em vez de convergir para Sião, parte de Sião; o Salmista vê em Sião a origem de todos os povos. Depois de ter declarado a primazia da cidade santa não por méritos históricos ou culturais, mas apenas devido ao amor que Deus tem por ela (cf. Sl Ps 86,1-3), o Salmo abre-se precisamente para uma celebração deste universalismo que irmana todos os povos.

2. Sião é cantada como mãe de toda a humanidade e não só de Israel. Esta afirmação possui uma audácia extraordinária. O Salmista está consciente disto e fá-lo notar: "Gloriosas coisas se apregoam de ti, ó cidade de Deus" (v. 3). Como pode uma modesta capital de uma pequena nação ser apresentada como a origem de povos muito poderosos? Por que pode ter, Sião, esta grande pretensão? A resposta é dada na mesma frase: Sião é mãe de toda a humanidade, porque é a "cidade de Deus"; por conseguinte, está na base do projecto de Deus.

Todos os pontos cardeais da terra estão em relação com esta mãe: Raab, ou seja, o Egipto, o grande estado ocidental; Babilónia, a conhecida potência oriental; Tiro, que personifica o povo comercial do norte, enquanto a Etiópia representa o sul profundo e a Palestina a área central, também ela filha de Sião.

Na repartição de registo espiritual de Jerusalém estão inscritos todos os povos da terra: é repetida três vezes a frase "Ali nasceram / Este nela nasceu" (vv. 4.5.6). É a expressão jurídica oficial com a qual na época se declarava que uma pessoa tinha nascido numa determinada cidade e, como tal, gozava da plenitude dos direitos civis daquele povo.

3. É sugestivo observar que até as nações consideradas hostis a Israel subiam a Jerusalém e nela eram recebidas não como estrangeiros mas como "familiares". Aliás, o Salmista transforma a procissão destes povos rumo a Sião num cântico coral e numa dança gloriosa: eles encontram as suas "fontes" (cf. v. 7) na cidade de Deus da qual promana um torrente de água viva que fecunda todo o mundo, em sintonia com quanto foi proclamado pelos profetas (cf. Ez Ez 47,1-12 Za 13,1 Za 14,8 Ap 22,1-2).

Todos devem descobrir em Jerusalém as suas raízes espirituais, sentir-se na sua pátria, sentir-se membros da mesma família, abraçar-se como irmãos, que voltaram para a sua casa.

4. O Salmo 86, página de verdadeiro diálogo inter-religioso, reúne a herança universal dos profetas (cf. Is 56,6-7 Is 60,6-7 Is 66,21 Jb 4,10-11 Ml 1, 11, etc. ) e antecipa a tradição cristã que aplica este Salmo à "Jerusalém lá de cima", da qual São Paulo proclama que "é livre e é a nossa mãe" e tem mais filhos do que a Jerusalém terrena (cf Ga 4,26-27). O Apocalipse fala do mesmo modo quando canta a "Jerusalém que desce do Céu, de junto de Deus" (21, 2.10).

Em continuidade com o Salmo 86 também o Concílio Vaticano II vê na Igreja universal o lugar em que se encontram reunidos "todos os justos a começar por Adão, desde o justo Abel, até ao último eleito". Ela será "consumada na glória no fim dos séculos" (Lumen gentium, LG 2).

5. Esta leitura eclesial do Salmo abre-se, na tradição cristã, a uma nova leitura em chave mariológica. Jerusalém era, para o Salmista uma verdadeira "metrópole", isto é, uma "cidade-mãe", dentro da qual se encontrava o próprio Senhor (cf. Sof So 3,14-18). A esta luz, o cristianismo canta Maria como a Sião viva, em cujo seio é gerado o Verbo encarnado e por conseguinte são regenerados os filhos de Deus. As vozes dos Padres da Igreja de Ambrósio de Milão a Atanásio de Alexandria, de Máximo, o Confesso,r a João Damasceno, de Cromácio de Aquileia a Germano de Constantinopla concordam com esta nova leitura cristã do Salmo 86.

Preparemo-nos agora para ouvir um mestre da tradição arménia, Gregório de Narek (c. 950-1010), que no seu Discurso panegírico da bem-aventurada Virgem Maria assim se dirige à Virgem: "Refugiando-nos sob a tua digníssima e poderosa intercessão, estamos protegidos, ó santa Mãe de Deus, encontrando alívio sob a sombra de tua protecção como protegidos por um muro bem fortificado: muro ornamentado, embutido graciosamente por brilhantes puríssimos; muro envolvido de fogo e, por isso, invencível perante os assaltos dos ladrões; muro resplandecente de centelhas, ao qual os cruéis traidores não podem chegar nem aceder; muro circundado por todos os lados, segundo David, cujas bases foram lançadas pelo Altíssimo (cf. Sl Ps 86,1 Sl Ps 86,5); muro poderoso da cidade do alto, segundo São Paulo (cf. Gl Ga 4,26 He 12,22), onde recebeste todos como habitantes, porque mediante o nascimento corporal de Deus fizestes filhos da Jerusalém lá do alto os filhos da Jerusalém terrena. Por isso, os seus lábios bendizem o teu seio virginal e todos te proclamam morada e templo d'Aquele que é consubstancial ao Pai. Por isso, justamente se adapta bem a ti a frase do profeta: "Foste para nós refúgio e fortaleza, ajuda sempre pronta nas angústias" (cf. Sl Ps 45,2)" (Textos marianos do primeiro milénio, IV, Roma 1991, pág. 589).

Saudações

Amados Irmãos e Irmãs

Queridos romeiros de língua portuguesa, com menção especial do grupo brasileiro de Siderópolis e do Colégio de Santa Doroteia, em Lisboa: hoje os vossos passos de peregrinos cruzam-se com os do Papa, que a todos saúda e encoraja a não perder de vista a meta final, a Jerusalém do Alto, onde já vos esperam tantos amigos e aliados vossos, cuja única preocupação é o êxito feliz dos vossos dias junto do nosso Deus e Pai.

É-me grato saudar os peregrinos francófonos presentes nesta Audiência. A vossa peregrinação a Roma seja para vós uma ocasião para rezar pela paz e confiar a Cristo os esforços de todos aqueles que, no mundo inteiro, trabalham em benefício da fraternidade e da justiça entre os homens!

Dou as minhas especiais boas-vindas aos estudantes do Instituto Ecuménico de Bossey, na Suíça, aos membros do Colégio de Defesa da NATO e da Fraternidade Católica das Comunidades e Associações da Aliança Carismática. Estes dias, passados em Roma, vos fortaleçam nas vossas vidas espirituais e no compromisso em relação às vossas respectivas vocações. Sobre os visitantes de língua inglesa, especialmente os que vieram de Maurício e dos Estados Unidos da América, invoco a paz duradoura de nosso Senhor Jesus Cristo.

Saúdo com afecto os peregrinos de língua espanhola, de forma particular os fiéis das Paróquias da Assunção, em Aravaca e em Ocaña, e de Santa Catarina Labouré, em Madrid, e também a Associação Real de Nossa Senhora de Sales, de Sueca (Valência), assim como os peregrinos do México e da Guatemala. A eles e aos outros grupos, faço-lhes votos a fim de que esta visita a Roma seja uma ocasião propícia para confirmar a sua fé.

Dou as minhas boas-vindas aos peregrinos de expressão italiana e saúdo em particular os sacerdotes, inscritos na FACI, que recordam os significativos aniversários da sua Ordenação presbiteral. Caros Irmãos no Sacerdócio, exorto-vos a perseverar no cumprimento generoso do vosso ministério sagrado ao serviço do povo cristão.

Por fim, dirijo a minha saudação aos jovens, aos doentes e aos novos casais.

Caríssimos, a graça do Senhor vos ajude a realizar em cada dia a vossa vocação cristã. Ela vos anime a vós, dilectos jovens, no esforço em ordem a ser artífices de justiça e de reconciliação, vos ajude a vós, estimados doentes, a não perder a confiança em Deus, que nunca nos abandona na prova, e vos ilumine a vós, queridos novos casais, a fim de encontrar no Evangelho a alegria de acolher e de servir com generosidade a vida, como grande dádiva de Deus.

Apelo em favor da paz na Colômbia

Continuam a chegar notícias dolorosas da Colômbia, que desta vez se referem ao rapto de D. Jorge Enrique Jiménez Carvajal, Bispo de Zipaquirá e Presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano, juntamente com um sacerdote que o acompanhava.

Este acto, que aumenta o clima de afronta dos direitos humanos e angustia profundamente, tanto a população civil como a Igreja, leva-me a expressar uma vez mais a minha rejeição de toda a violência e desprezo pela dignidade humana, que jamais pode ser um caminho de paz. Enquanto peço com veemência a libertação de todas as pessoas raptadas, e que estes Pastores possam voltar a exercer o seu serviço ao Povo de Deus, elevo as minhas preces para que Ele conceda à Colômbia a paz a que tanto aspira.



PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


20 de novembro de 2002

O Bom Pastor: o Deus Altíssimo e Sapientíssimo

Caríssimos irmãos e irmãs:


1. No livro do grande profeta Isaías, que viveu no oitavo século a. C., encontram-se também reunidas as vozes de outros profetas, seus discípulos e sucessores. É o caso daquele que os estudiosos da Bíblia chamaram "o Segundo Isaías", o profeta do regresso de Israel do exílio na Babilónia, que se verificou no sexto século a. C. A sua obra constitui os capítulos 40-55 do livro de Isaías e, precisamente, do primeiro destes capítulos é tirado o Cântico que entrou na Liturgia das Laudes há pouco proclamado.

Este Cântico é composto por duas partes: os primeiros dois versículos provêm do final de um belíssimo oráculo de consolação que anuncia o regresso dos exilados a Jerusalém, sob a orientação do próprio Deus (cf. Is Is 40,1-11). Os versículos seguintes formam o começo de um discurso apologético, que exalta, por um lado, a omnisciência e a omnipotência de Deus e, por outro, submete os fabricantes de ídolos a uma dura crítica.

2. Por conseguinte, no começo do texto litúrgico aparece a figura poderosa de Deus, que volta a Jerusalém precedido dos seus troféus, assim como Jacob tinha voltado à Terra Santa precedido pelos seus rebanhos (cf. Gn Gn 31,17 Gn 32,17). Os troféus de Deus são os Hebreus exilados, que Ele arrancou das mãos dos seus conquistadores. Por conseguinte, Deus é apresentado "como um pastor" (Is 40,11). Muito frequentemente na Bíblia e noutras tradições antigas, esta imagem recorda a ideia de orientação e de domínio, mas aqui as características são sobretudo ternas e apaixonadas, porque o pastor é também companheiro de viagem das suas ovelhas (cf. Sl Ps 22). Ele cuida do rebanho, não só alimentando-o e preocupando-se para que não se tresmalhe, mas também inclinando-se com ternura sobre os cordeiros e as ovelhas-mães (cf. Is Is 40,11).

3. Concluída a descrição da entrada em cena do Senhor rei e pastor, eis a reflexão sobre o seu agir como Criador do universo. Ninguém pode estar ao seu nível nesta obra grandiosa e extraordinária: não o homem, sem dúvida, e muito menos os ídolos, seres mortos e impotentes. O profeta recorre depois a uma série de interrogações retóricas, nas quais já está incluída a resposta. Elas são pronunciadas numa espécie de processo: ninguém pode competir com Deus e apropriar-se do seu imenso poder ou da sua ilimitada sabedoria.

Ninguém está em condições de medir o imenso universo criado por Deus. O profeta faz compreender como os intrumentos humanos são ridiculamente desapropriados para esta tarefa. Por outro lado, Deus foi um artífice solitário; ninguém foi capaz de o ajudar ou de o aconselhar num projecto tão imenso como o da criação cósmica (cf vv. 13-14).

Na sua décima oitava Catequese baptismal, São Cirilo de Jerusalém, com base no nosso Cântico, convida a não medir Deus com o metro da nossa limitação humana: "Para ti, homem tão pequeno e frágil, a distância que vai da Gótia à Índia, da Espanha à Pérsia, é grande, mas para Deus, que tem nas suas mãos o mundo inteiro, qualquer terra está próxima" (As catequeses, Roma 1993, pág. 408).

4. Depois de ter celebrado a omnipotência de Deus na criação, o profeta traça o seu senhorio sobre a história, ou seja, sobre as nações, sobre a humanidade que povoa a terra. Os habitantes dos territórios conhecidos, mas também os das regiões remotas, que a Bíblia chama "ilhas" distantes, são uma realidade microscópica em relação à grandeza infinita do Senhor. As imagens são brilhantes e intensas: os povos são "como uma gota de água num balde", "como o grão na balança", como "o pó fino" (Is 40,15).

Ninguém seria capaz de preparar um sacrifício digno deste grandioso Senhor e rei: não seriam suficientes todas as vítimas sacrificais da terra, nem sequer todas as florestas de cedros do Líbano para acender o fogo deste holocausto (cf. v. 16). O profeta conduz o homem à consciência do seu limite face à grandeza infinita e à omnipotência soberana de Deus. A conclusão é lapidar: "Todos os povos são, diante dele, como se não existissem; diante dele são apenas nada e vacuidade" (v. 17).

5. Por conseguinte, o fiel é convidado, desde o início do dia, a adorar o Senhor omnipotente. São Gregório de Nissa, Padre da Igreja da Capadócia (IV século), meditava assim as palavras do Cântico de Isaías: "Todas as vezes que ouvimos pronunciar a palavra "omnipotente", pensamos no facto de que Deus mantém unidas todas as coisas na existência, tanto as inteligíveis, como as que pertencem à criação material. De facto, por isso, ele mantém o círculo da terra, tem nas suas mãos os confins da terra, contém o céu dentro de um mão-cheia, mede a água com a mão, engloba em si mesmo toda a criação intelectual: para que todas as coisas permaneçam na existência, mantidas com força pelo poder que as abraça" (Teologia trinitária, Milão 1994, pág. 625).

São Jerónimo, por seu lado, manifesta-se estupefacto face a outra verdade surpreendente: a de Cristo, que, "era de condição divina... despojou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens" (Ph 2,6-7). Aquele Deus infinito e omnipotente observa ele fez-se pequenino e limitado. São Jerónimo contempla-o no presépio de Belém e exclama: "Ele que contém o universo numa mão-cheia, ei-lo encerrado numa estreita manjedoura" (Carta 22, 39, em Obras escolhidas, I, Turim 1971, pág. 379).

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs

Ao convidar os ouvintes e peregrinos de língua portuguesa aqui presentes, a aproximarem-se de Deus com confiança e paz, invoco para todos, abundantes dons de conforto espiritual, enquanto caminham em direcção à Casa do Pai, ao conceder-vos de coração minha Bênção Apostólica.

Dirijo as minhas cordiais boas-vindas ao grupo de peregrinos eslovacos, provenientes de Nitra.
Caros irmãos e irmãs, formulo-vos votos a fim de que a festividade de hoje, da consagração da Catedral de Nitra, seja para vós uma ocasião propícia para irdes às raízes cristãs da vossa Nação.
Concedo-vos de coração a minha Bênção apostólica.
Louvado seja Jesus Cristo!

É-me grato saudar os peregrinos de língua francesa, presentes nesta Audiência. A vossa peregrinação a Roma vos ajude a crescer na fé e a ser testemunhas generosas do Evangelho.

Saúdo cordialmente os peregrinos oriundos da Polónia e dos outros países do mundo. Na catequese de hoje meditámos sobre as palavras do Cântico do Profeta Isaías. Trata-se do canto em que o Profeta consola Israel e anuncia o retorno dos exilados para Jerusalém. Esta consolação tem como base a verdade sobre a omnipotência e a omnisciência de Deus. O Todo-Poderoso não só criou o mundo e os homens mas, como omnisciente, governa a criação e, ao longo dos séculos, debruça-se como pastor sobre o homem, protegendo-o e conduzindo-o ternamente para a vida.
Esta consciência nos acompanhe sempre e suscite a esperança em todos, e sobretudo naqueles que se sentem sozinhos e confusos. Deus vos abençoe!

Dou as minhas especiais boas-vindas aos peregrinos de Sioux City, nos Estados Unidos da América, acompanhados do seu Bispo residencial e do seu Bispo emérito, bem como ao coro e aos fiéis da Paróquia de São Francisco Borja, na Arquidiocese de São Luís. Sobre todos os peregrinos de língua inglesa, presentes na Audiênca de hoje, invoco a graça e a paz de nosso Senhor Jesus Cristo.

Por fim, saúdo os jovens, os doentes e os novos casais.

No próximo domingo, o último do tempo comum, celebraremos a solenidade de Cristo Rei do Universo. Caros jovens, ponde Jesus no centro da vossa vida e dele haveis de receber luz para cada uma das vossas opções. Cristo, que fez da Cruz um trono real, vos ajude a vós, doentes, para compreenderdes o valor redentor do sofrimento, vivido em união com Ele. E a vós, queridos novos casais, faço-vos votos a fim de que reconheçais a presença do Senhor na vossa família, de maneira a participar na edificação do seu Reino de amor e de paz.

Dia das Monjas de Clausura

Amanhã, memória da Apresentação da Bem-Aventurada Virgem Maria no Templo, a Igreja pensará com especial afecto nas monjas de clausura. A sua presença orante em muitas regiões do mundo é uma exortação a todos os cristãos, para que não se esqueçam do primado de Deus na vida.

Estas religiosas quiseram dedicar-se totalmente à oração e vivem daquilo que a Providência lhes concede mediante a generosidade dos fiéis. Enquanto lhes dirijo um profundo agradecimento pela contribuição indispensável que oferecem à evangelização, convido-vos a todos a ajudá-las tanto espiritual como materialmente.




AUDIÊNCIAS 2002