AUDIÊNCIAS 2002

PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


27 de novembro de 2002

Santo é o Senhor nosso Deus




1. "O Senhor reina". Esta aclamação, que abre o Salmo 98 que acabamos de escutar, revela o seu tema fundamental e o seu género literário característico. Trata-se de um cântico elevado pelo Povo de Deus ao Senhor, que governa o mundo e a história como soberano transcendente e supremo. Ele relaciona-se com outros hinos análogos os Salmos 95-97, que já foram objecto da nossa reflexão que a Liturgia das Laudes coloca como oração ideal da manhã.

Com efeito, o fiel, ao começar o seu dia sabe que não é abandonado a um poder cego e obscuro, nem deixado na incerteza da sua liberdade, nem confiado às decisões alheias, nem dominado pelas vicissitudes da história. Ele sabe que acima de qualquer realidade terrena se eleva o Criador e Salvador na sua grandeza, santidade e misericórdia.

2. São várias as hipóteses feitas pelos estudiosos sobre o uso deste Salmo na liturgia do templo de Sião. Contudo, ele tem um tom de louvor contemplativo que se eleva ao Senhor, sentado na glória celeste diante de todos os povos da terra (cf. v. 1). E contudo, Deus torna-se presente num espaço e no meio da comunidade, isto é em Jerusalém (cf. v. 2), mostrando que é "Deus-connosco".

São sete os títulos solenes atribuídos a Deus pelo Salmista logo nos primeiros versículos: ele é rei, grande, excelso, terrível, santo, poderoso, justo (cf. vv. 1-4). Mais adiante, Deus é apresentado também com a qualificação de "paciente" (v. 8). A ênfase é posta sobretudo sobre a santidade de Deus: de facto, por três vezes é repetido quase em forma de antífona que "ele é santo" (vv. 3.5.9). A palavra indica, na linguagem bíblica, sobretudo a transcendência divina. Deus é superior a nós, e situa-se infinitamente acima de todas as suas criaturas. Mas esta transcendência não faz dele um soberano indiferente e estranho: quando é invocado, responde (cf. v. 6). Deus é aquele que pode salvar, o único que pode libertar a humanidade do mal e da morte. De facto, ele "ama a justiça" e "exerce o direito e a justiça em Jacob" (v. 4).

3. Sobre o tema da santidade de Deus os Padres da Igreja fizeram numerosas reflexões, celebrando a inacessibilidade divina. Contudo, este Deus transcendente e santo fez-se próximo do homem. Aliás, como diz Santo Ireneu, "habituou-se" ao homem já no Antigo Testamento, manifestando-se com aparições e falando por meio dos profetas, enquanto o homem "se habituava" a Deus aprendendo a segui-lo e a obedecer-lhe. Também, Santo Efrém, num dos seus hinos, realça que através da encarnação "o Santo tomou a sua habitação no seio (de Maria) de forma corpórea, / agora ele toma a sua habitação na mente de maneira espiritual" (Hinos sobre a Natividade, 4, 130). Além disso, pelo dom da Eucaristia, em analogia com a encarnação, "o Remédio de Vida desceu do alto / para habitar naqueles que são dignos dele. / Depois de ele ter entrado, / assumiu a sua habitação connosco, / assim santificamo-nos a nós próprios dentro dele" (Hinos conservados em arménio, 47, 27.30).

4. Este vínculo profundo entre "santidade" e proximidade de Deus é desenvolvido também no Salmo 98. De facto, depois de ter contemplado a perfeição absoluta do Senhor, o Salmista recorda que Deus estava em perene contacto com o seu povo através de Moisés e de Aarão, seus mediadores, como também através de Samuel, seu profeta. Ele falava e era escutado, castigava os delitos mas também perdoava.

Desta sua presença entre o povo era sinal "o escabelo dos seus pés", isto é, o trono da arca do templo de Sião (cf. vv. 5-8). Por conseguinte, o Deus santo e invisível tornava-se disponível para o seu povo através de Moisés, o legislador, Aarão, o sacerdote, Samuel, o profeta. Ele revelava-se em palavras e actos de salvação e de juízo, e estava presente em Sião através do culto celebrado no templo.

5. Poderemos então dizer que o Salmo 98 se realiza hoje na Igreja, sede da presença de Deus santo e transcendente. O Senhor não se retirou no espaço inacessível do seu mistério, indiferente à nossa história e às nossas expectativas. Ele "vem governar a terra. Governará o mundo com justiça e os povos com equidade" (Ps 97,9).

Deus veio para o meio de nós sobretudo no seu Filho, que se fez um de nós para infundir em nós a sua vida e a sua santidade. Por isso nós agora aproximamo-nos de Deus, não com terror, mas com confiança. De facto, temos em Cristo o sumo sacerdote santo, inocente, sem mancha. Ele "pode salvar perpetuamente os que por Ele se aproximam de Deus, vivendo sempre para interceder em seu favor" (He 7,25).Então, o nosso cântico enche-se de serenidade e de alegria: exalta o Senhor rei, que habita entre nós, enxugando todas as lágrimas dos nossos olhos (cf. Apoc Ap 21,3-4).

Saudações

Queridos Irmãos e Irmãs

Uma saudação afectuosa também aos peregrinos e ouvintes de língua portuguesa. Deus vos faça cada vez mais zelosos mensageiros e testemunhas da fé, que viestes afirmar com esta peregrinação, que para todos desejo rica de graças, ao abençoar-vos, a vós e a quantos vos são queridos.

É-me grato acolher os fiéis francófonos presentes hoje de manhã, nomeadamente os peregrinos provenientes do Iraque. Possa a vossa permanência aqui confirmar a vossa fé e fazer aumentar em vós o desejo da santidade!

Dou as minhas especiais boas-vindas aos peregrinos de expressão inglesa, hoje aqui presentes, de modo particular aos grupos dos Estados Unidos. Estou grato ao Coro da escola secundária "Freedom", que elevou o nosso coração ao Senhor com os seus cânticos de louvor. Sobre todos vós, invoco a graça e a paz de nosso Senhor Jesus Cristo.

Dirijo uma cordial saudação aos peregrinos húngaros, especialmente ao grupo de Brasov. Enquanto faço votos para que esta peregrinação romana vos fortaleça na fé, esperança e caridade, concedo-vos de bom grado a Bênção apostólica. Louvado seja Jesus Cristo!
Saúdo com afecto os peregrinos de língua espanhola, de modo particular as Irmãs Dominicanas da Apresentação e os fiéis da Paróquia de São Martinho de Porres, de Sabinas (México). Já próximos do tempo do Advento, animo-vos a louvar a Deus que, vindo habitar no meio de nós, constitui uma fonte de consolação e de júbilo. Muito obrigado pela vossa atenção!

É com cordialidade que dirijo a minha saudação aos fiéis da Roménia, garantindo a cada um a lembrança na oração. Abençoo-vos de coração, a vós e os vossos entes queridos.

Dirijo uma saudação carinhosa aos peregrinos de Zdar nad Sázavou.
Com a solenidade de Cristo Rei, entrámos na última semana do ano litúrgico. Vivemos de maneira a podermos ouvir estas palavras: "Vindo, benditos do meu Pai, o meu Reino está preparado para vós..." (cf. Mc Mc 25,34).
A bênção de Deus vos acompanhe. Louvado seja Jesus Cristo!

Saúdo cordialmente todos os peregrinos de língua polaca.

O Salmo 98, que nos orientou na meditação da catequese de hoje, começa com estas palavras: "O Senhor reina". Esta afirmação adquire um significado singular no contexto da solenidade de Cristo Rei do Universo, que celebrámos no domingo passado. Esta afirmação é não apenas uma expressão da fé em Deus, que está presente no mundo e governa toda a criação, mas também um anúncio do Reino cuja posse foi tomada pelo Filho de Deus, através da oferenda da cruz "do Reino eterno e universal, Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz" (Prefácio).
Deus vos abençoe!

Dirijo as cordiais boas-vindas ao grupo de peregrinos eslovacos provenientes de Piestany.
Caros irmãos e irmãs, agradeço-vos este encontro, sinal de unidade com o Sucessor de Pedro.
Abençoo-vos a todos do íntimo do coração. Louvado seja Jesus Cristo!

Por fim, saúdo os jovens, os doentes e os novos casais. A figura do Apóstolo Santo André, cuja festividade será celebrada nos próximos dias, seja para vós, dilectos jovens, um modelo de fidelidade e de testemunho cristãos. Santo André interceda por vós, estimados doentes, a fim de que a consolação divina cumule os vossos corações e revigore a vossa fé. E vos ajude a vós, queridos novos casais, a fim de poderdes corresponder fielmente ao projecto de amor, de que Cristo vos tornou participantes mediante o sacramento do matrimónio.



                                                                       Dezembro de 2002

PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


4 de dezembro de 2002

Tende piedade de mim, ó Senhor!



1. Em cada semana a Liturgia das Laudes propõe de novo o Salmo 50, o célebre Miserere. Já o meditámos outras vezes nalgumas das suas partes. Também agora nos detemos de modo particular numa parte deste grandioso pedido de perdão: os versículos 12-16.

Antes de mais, é significativo notar que, no original hebraico, ressoa três vezes a palavra "espírito", pedido a Deus como dom e acolhido pela criatura arrependida do seu pecado: "Renovai ao meu interior um espírito recto... nem me priveis do Vosso santo espírito... sustentai-me com um espírito generoso" (vv. 12.13.14). Quase se poderia falar recorrendo a um termo litúrgico de uma "epiclese", ou seja, de uma tríplice invocação do Espírito que, como na criação se libertava sobre as águas (cf. Gn Gn 1,2), agora penetra na alma do fiel infundindo nova vida e elevando-o do reino do pecado para o céu da graça.

2. Os Padres da Igreja, no "espírito" invocado pelo Salmista, vêem a presença eficaz do Espírito Santo. Assim, Santo Ambrósio está convencido de que se trata do único Espírito Santo "que fermentava com fervor nos profetas, foi dado [por Cristo] aos apóstolos e foi unido ao Pai e ao Filho no sacramento do baptismo" (O Espírito Santo, I, 4, 55: SAEMO 16, pág. 95). A mesma convicção é expressa por outros Padres como Dídimo, o Cego, de Alexandria do Egipto, e Basílio de Cesareia, nos respectivos tratados sobre o Espírito Santo (Dídimo o Cego, O Espírito Santo, Roma 1990, pág. 59; Basílio de Cesareia, O Espírito Santo, IX, 22, Roma 1993, pág. 117 s.).
E ainda Santo Ambrósio, observando que o Salmista fala da alegria da qual a alma está invadida quando recebe o Espírito generoso e poderoso de Deus, comenta: "A alegria e a felicidade são frutos do Espírito e o Espírito Soberano é aquilo sobre o que nós, principalmente, nos baseamos. Portanto, quem é fortalecido com o Espírito soberano não é submetido pela escravidão, não sabe ser escravo do pecado, não hesita, não vagueia aqui e acolá, não é incerto nas escolhas mas, alicerçado na rocha, está firme em pés que não vacilam" (Apologia do Profeta David a Teodísio Augusto, 15, 72: SAEMO 5, pág. 129).

3. Com esta tríplice menção do "espírito", o Salmo 50, depois de ter descrito nos versículos precedentes a prisão obscura da culpa, abre-se sobre a razão luminosa da graça. É uma grande mudança, comparável a uma nova criação: como nas origens Deus tinha insuflado o seu espírito na matéria e dera origem à pessoa humana (cf. Gn Gn 2,7), assim agora o mesmo Espírito divino regenera (cf. Sl Ps 50,12), renova, transfigura e transforma o pecador arrependido, abraça-o de novo (cf. v. 13) e o faz participante da alegria da salvação (cf. v. 14). Agora o homem, animado pelo Espírito divino, encaminha-se pelas estradas da justiça e do amor, como se diz noutro Salmo: "Ensinai-me a cumprir a Vossa vontade, porque sois o meu Deus. Seja guiado pelo Vosso Espírito bondoso em terra plana" (Ps 142,10).

4. Tendo experimentado este renascimento o orante transforma-se em testemunha; promete a Deus que ensinará "aos ímpios os Seus caminhos" do bem (Ps 50,15), de maneira que eles possam, como o filho pródigo, voltar à casa do Pai. Do mesmo modo, Santo Agostinho, depois de ter percorrido os caminhos tenebrosos do pecado, tinha depois sentido a necessidade nas suas Confissões de confirmar a liberdade e a alegria da salvação.

Quem conheceu o amor misericordioso de Deus torna-se uma sua testemunha fervorosa, sobretudo em relação a quantos ainda estão aprisionados nas redes do pecado. Pensamos na figura de Paulo que, iluminado por Cristo no caminho de Damasco, se torna um incansável missionário da graça divina.

5. Pela última vez o orante olha para o seu passado obscuro e brada a Deus: "Livrai-me, Senhor, das acções sanguinárias, Deus da minha salvação" (v. 16). O "sangue", ao qual ele se refere, é interpretado na Escritura de vários modos. A alusão, posta nos lábios do rei David, refere-se à morte de Urias, o marido de Betsabé, a mulher que tinha sido objecto da paixão do soberano. Em sentido mais geral, a invocação indica o desejo de purificação do mal, da violência, e do ódio, sempre presentes no coração humano com força tenebrosa e maléfica. Mas agora, os lábios do fiel, purificados do pecado, cantam ao Senhor.

E o trecho do Salmo 50, que hoje comentámos, termina precisamente com o empenho de proclamar a "justiça" de Deus. A palavra "justiça" aqui, como muitas vezes na linguagem bíblica, não designa propriamente a acção punitiva de Deus em relação ao mal, mas antes indica a reabilitação do pecador, porque Deus manifesta a sua justiça ao fazer dos pecadores homens justos (cf. Rm Rm 3,26). Deus não sente prazer pela morte do mau, mas deseja que desista do seu modo de se comportar e de viver (cf. Ez Ez 18,23).

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs
de língua portuguesa

Em cada semana a Igreja propõe, através do salmista, a voz de Jesus, nosso Salvador que, do alto da Cruz, carrega sobre si o peso dos pecados da humanidade. Imploremos a graça de Deus para que, purificados pelo Espírito consolador, caminhemos em direcção à luz que surgirá do Presépio de Belém, no Natal do Senhor. Com estes votos, abençoo os peregrinos e ouvintes, juntamente com as famílias.

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua francesa, hoje presentes nesta audiência. Que o tempo do Advento abra os vossos corações à alegria do perdão recebido, para acolher como homens novos Aquele que vem ao nosso encontro!

Dou as boas-vindas aos membros do grupo Budista Japonês Rissho Kosei Kai. Saúdo também os grupos de estudantes vindos da Dinamarca e dos Estados Unidos. Sobre todos os peregrinos e visitantes de língua inglesa presentes nesta Audiência, invoco cordialmente as bênçãos de Deus, de justiça e paz.

Apresento as minhas cordiais saudações de boas-vindas a todos os peregrinos da Espanha e da América Latina, de modo particular ao Cardeal Rouco Varela, Arcebispo de Madrid, às paróquias de Nossa Senhora da Soledade de Torrejón de Ardoz, de Nossa Senhora de Sonsoles e de São Sebastião, de Madrid, assim como ao grupo de Militares do Exército de Terra espanhol e aos sacerdotes participantes no curso de Espiritualidade, promovido pelo CIAM. Animados pelo Espírito divino, preparai, neste tempo de Advento, o caminho para o Senhor, com obras de amor, de justiça e de paz. Que Deus vos abençoe!

Dirijo uma cordial saudação aos peregrinos ucranianos.

Caríssimos, agradeço-vos a vossa visita e, enquanto invoco de boa vontade sobre vós e sobre as vossas famílias a contínua protecção divina, concedo-vos uma especial Bênção Apostólica, que faço extensiva a todo o povo ucraniano.
Seja louvado Jesus Cristo!

Saúdo os peregrinos provenientes da Polónia e de outros Países. Saúdo em particular o Cardeal Franciszek, os Bispos e os organizadores da minha peregrinação à Polónia no passado mês de Agosto. Agradeço novamente a todos pelo seu esforço neste excepcional acontecimento de denso conteúdo espiritual, que se gravou no meu coração.

Acabamos de meditar em conjunto o mistério da divina Misericórdia. Na Catequese de hoje, também nos detivemos sobre este mistério, reflectindo sobre as palavras do Salmo "Miserere". Conhecemo-lo bem, na belíssima tradução de Franciszek Karpinski:

"Tem piedade de mim, ó Deus,
segundo a tua misericórdia,
na tua grande bondade
apaga o meu pecado".

Que estas palavras nos acompanhem durante o Advento, na preparação do encontro com Cristo. Deus vos abençoe!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua italiana participantes nesta Audiência.

Saúdo os jovens aqui presentes. Exorto-vos, caríssimos, a alimentar-vos com frequência do pão de vida que Cristo nos oferece todos os dias na celebração eucarística.

Dirijo-me afectuosamente a vós, queridos doentes, e convido-vos a olhar para Aquele que, neste tempo de Advento, esperamos como Salvador, conscientes de que se lhe oferecermos os nossos sofrimentos, participaremos também da sua glória.

Exorto-vo, por fim, a vós, caros novos casais, que saúdo com sentida cordialidade, a que torneis mais vivo na vossa vida de casal o clima da família de Nazaré, graças à recitação frequente do Santo Rosário.

Apelo em favor da paz na Venezuela

Diante das notícias que chegam da Venezuela, rezo ao Deus de toda a consolação a fim de que, neste momento difícil da história desta querida Nação, faça imperar a paz e a concórdia social, e todos se comprometam num diálogo que beneficie o País e que, assim, se possa alcançar uma justiça autêntica, fundamentada na verdade e na solidariedade.

PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

11 de dezembro de 2002

A lamentação do povo em tempos de fome e de guerra

1. O cântico que o profeta Jeremias, do seu horizonte histórico, eleva ao céu (cf. 14, 17-21), é de amargura e de sofrimento. Ouvimo-lo ressoar agora como invocação, enquanto a Liturgia das Laudes o propõe no dia em que comemora a morte do Senhor, a sexta-feira. O contexto que dá origem a esta lamentação é representado por um flagelo que muitas vezes atinge a terra do Próximo Oriente: a seca. Mas a este drama natural o profeta junta outro não menos aterrador, a tragédia da guerra: "Se saio aos campos, eis que encontro homens atravessados pela espada; se regresso à cidade, eis que vejo outros dizimados pela tortura da fome" (v. 18). Infelizmente, a descrição é tragicamente actual em muitas regiões do nosso pleneta.


2. Jeremias entra em cena com o rosto molhado de lágrimas: o seu choro é um choro ininterrupto pela "filha do seu povo", isto é, por Jerusalém. De facto, segundo um símbolo bíblico muito conhecido, a cidade é representada com uma imagem feminina, "a filha de Sião". O profeta participa profundamente na "calamidade" e na "ferida mortal" do seu povo (v. 17). Muitas vezes as suas palavras estão marcadas pelo sofrimento e pelas lágrimas, porque Israel não se deixa envolver na mensagem misteriosa que o sofrimento encerra em si. Noutra página, Jeremias exclama: "Se não ouvirdes isto, a minha alma chorará em segredo por causa do vosso orgulho, e os meus olhos chorarão amargamente, por causa da deportação do rebanho do Senhor" (13, 17).

3. Devemos procurar o motivo da invocação dilacerante do profeta, como se dizia, em dois acontecimentos trágicos: a espada e a fome, isto é, a guerra e a carestia (cf. Jer Jr 14,18). Por conseguinte, encontramo-nos numa situação histórica atormentada e é significativo o retrato do profeta e do sacerdote, os guardas da Palavra do Senhor, os quais "vagueiam pela terra sem nada compreenderem" (ibid.).

A segunda parte do Cântico (cf. vv. 19-21) já não é uma lamentação individual, na primeira pessoa do singular, mas uma súplica colectiva dirigida a Deus: "Por que nos feristes sem esperança de cura?" (v. 19). Além da espada e da fome, há, de facto, uma tragédia maior, a do silêncio de Deus, que já não se revela e parece ter-se fechado no seu céu, quase desgotoso pelo agir da humanidade. As perguntas que lhe são dirigidas tornam-se, por isso, tensas e explícitas em sentido tipicamente religioso: "Acaso, rejeitaste inteiramente Judá? A Vossa alma aborreceu Sião?" (v. 19). Agora, sentimo-nos sozinhos e abandonados, privados de paz, de salvação e de esperança. O povo, abandonado a si mesmo, encontra-se quase perdido e invadido pelo terror.

Não é porventura esta solidão existencial a fonte profunda de tanta insatisfação, com que nos deparamos também nos nossos dias? Tanta insegurança e tantas reacções desconsideradas têm a sua origem no facto de terem abandonado Deus, rochedo de salvação.

4. Neste ponto verifica-se a mudança: o povo volta para Deus e dirige-lhe uma intensa oração. Reconhece antes de mais o próprio pecado com uma breve mas sentida confissão da culpa: "Senhor! Conhecemos a nossa malícia... Pecámos realmente contra Vós" (v. 20). O silêncio de Deus era, por conseguinte, provocado pela recusa do homem. Se o povo se converte e volta para o Senhor, também Deus se mostrará disponível para ir ao seu encontro e para o abraçar.

No final, o profeta usa duas palavras fundamentais: a "recordação" e a "aliança" (v. 21). Deus é convidado pelo seu povo a "recordar-se", ou seja, a retomar a continuidade da sua benevolência generosa, manifestada tantas vezes no passado com intervenções decisivas para salvar Israel. Deus é convidado a recordar-se de que ele se uniu ao seu povo através de uma aliança de fidelidade e de amor. Precisamente devido a esta aliança, o povo pode esperar que o Senhor há-de intervir para o libertar e salvar. O compromisso por ele assumido, a honra do seu "nome", o facto da sua presença no templo, "o trono da sua glória", estimulam Deus depois do juízo pelo pecado e pelo silêncio a estar de novo próximo do seu povo para lhe dar de novo vida, paz e alegria.

Por conseguinte, juntamente com os Israelitas, também nós podemos ter a certeza de que o Senhor não nos abandona para sempre mas, depois de todas as provas purificadoras, ele volta a fazer "resplandecer a Sua face sobre ti e é benevolente... e concede a paz" (cf. 6, 25-26).

5. Em conclusão, podemos comparar com a súplica de Jeremias uma comovedora exortação dirigida por São Cipriano aos cristãos de Cartago, Bispo daquela cidade no terceiro século. Em tempos de perseguição, São Cipriano exorta os seus fiéis a implorar o Senhor. Esta imploração não é idêntica à súplica do profeta, porque não contém uma confissão dos pecados, não sendo a perseguição um castigo pelos pecados, mas uma participação na paixão de Cristo. De igual modo, trata-se de uma imploração também premente como a de Jeremias. "Imploremos o Senhor, diz São Cipriano, com sinceridade e em harmonia, sem nunca deixar de pedir e confiantes de obter.

Imploremo-lo gemendo e chorando, como é justo que implorem os que são colocados entre os desventurados que choram e outros que temem as desventuras, entre os numerosos prostrados pelo massacre e os poucos que permanecem em pé. Peçamos que nos seja restituída depressa a paz, que sejamos ajudados nos nossos esconderijos e nos perigos, que se cumpra o que o Senhor se digna mostrar aos seus servos: a restauração da sua Igreja, a segurança da nossa salvação eterna, o céu azul depois da chuva, a luz depois das trevas, a tranquilidade depois das tempestades e os remoinhos, a ajuda piedosa do seu amor de pai, as grandezas que conhecemos da majestade divina" (Epístola 11, 8, em S. Pricoco M. Simonetti, A oração dos cristãos, Milão 2000, PP 138-139).

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa

De coração a todos saúdo, agradecido pela vossa presença e com votos de que esta romagem à Cidade Eterna predisponha o vosso coração para ir, com alegre disponibilidade, ao encontro do Senhor que vem. E o segredo para bem acolher e servir Jesus é, como diz a Virgem Maria, "fazer tudo o que Ele vos disser". Para isso, escutai-O! Acompanho-vos com a minha oração e a minha Bênção.

Saúdo cordialmente os peregrinos eslovacos, provenientes de Zilina.
Caros Irmãos e Irmãs, faço votos a fim de que vivais este tempo de Advento como a Virgem Maria, na alegre espera do Salvador que vem.
É de bom grado que vos abençoo a todos, bem como as vossas famílias.
Louvado seja Jesus Cristo!

Dirijo uma especial saudação aos Irmãos Maristas, que participam num programa de renovação espiritual: a vossa permanência em Roma vos confirme no vosso serviço ao Senhor e à sua Igreja. Sobre todos os visitantes de expressão inglesa, invoco a alegria e a paz em nosso Senhor Jesus Cristo, e rezo para que este período do Advento vos prepare para a celebração de um Natal verdadeiramente abençoado!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua polaca e, de modo especial, os peregrinos de Zakopane que, como de costume, vieram trazer as árvores de Natal como um presente para o Papa. Obrigado por estas árvores! Elas recordar-me-ão a minha Pátria e a atmosfera polaca do Natal. Retribuo a vossa benevolência e formulo-vos os melhores votos natalícios, a vós aqui presentes, às vossas famílias e a todas as paróquias de Zakopane.

Na catequese do dia de hoje meditámos sobre as palavras da lamentação do Profeta Jeremias, que constituem uma parte do breviário. É com amargura que o Profeta descreve a nefasta visão de guerra e de carestia, como efeito do afastamento do homem em relação a Deus. Neste contexto, afirma com frequência que o homem experimenta o seu afastamento de Deus, como se o próprio Deus o abandonasse, mergulhando na tristeza e na inquietude.

O Profeta Jeremias indica o caminho para sair desta situação: é necessário dirigir-se a Deus com uma oração ardente, pedir-lhe o perdão dos pecados e, em nome da Aliança de amor, implorar que nos permita sentir a sua presença, que se tornará fonte de paz e alegria interiores.
Esta oração nos acompanhe a todos, durante o Advento, na nossa preparação para o encontro com Cristo.

Abençoo-vos a todos de coração!

Por fim, dirijo a minha saudação aos jovens, aos doentes e aos novos casais. No clima espiritual do Advento, tempo de esperança que nos prepara para o Natal, está particularmente presente Maria, a Virgem da expectativa. É a Ela que vos confio, a vós queridos jovens, para que possais acolher com impulso o convite de Cristo a realizar plenamente o seu Reino. Exorto-vos a vós, estimados doentes, a oferecer o vosso sofrimento, juntamente com Maria, pela salvação da humanidade. A intercessão materna de Nossa Senhora vos ajude a todos, dilectos novos casais, a fim de fundamentardes a vossa família sobre um amor fiel e aberto ao acolhimento da vida.



PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

18 de dezembro de 2002

Compreender plenamente o valor e o significado do mistério do Natal




Caríssimos Irmãos e Irmãs:

1. Neste tempo de Advento acompanha-nos o convite do profeta Isaías: "Dizei aos que têm o coração pusilânime: "Tomai ânimo, não temais... o nosso Deus... vem em pessoa salvar-nos"" (Is 35,4). Ele torna-se mais envolvente com a aproximação do Natal, enriquecendo-se com a exortação a preparar o coração para o acolhimento do Messias. Aquele que o povo espera virá certamente e a sua salvação será para todos os homens.

Na Noite Santa recordaremos o seu nascimento em Belém, reviveremos de certa forma as emoções dos pastores, a sua alegria e admiração. Contemplaremos com Maria e José a glória do Verbo que se fez homem para a nossa redenção. Rezaremos para que todos os homens acolham a vida nova que o Filho de Deus trouxe ao mundo assumindo a nossa condição humana.

2. A liturgia do Advento, repleta de evocações constantes da expectativa jubilosa do Messias, ajuda-nos a compreender plenamente o valor e o significado do mistério do Natal. Não se trata de comemorar apenas o acontecimento histórico, que se verificou há mais de dois mil anos numa pequena aldeia da Judeia. Ao contrário, é preciso compreender que toda a nossa vida deve ser um "advento", uma expectativa vigilante da vinda definitiva de Cristo. Para predispor o nosso coração para receber o Senhor que, como dizemos no Credo, virá um dia para julgar os vivos e os mortos, devemos aprender a reconhecê-lo, Ele que está presente nos acontecimentos da existência quotidiana. Então o Advento é, por assim dizer, um treino intenso que nos orienta decisivamente para Aquele que já veio, que virá e que vem continuamente.

3. Com estes sentimentos a Igreja prepara-se para contemplar extasiada, daqui a uma semana, o mistério da Encarnação. O Evangelho narra a concepção e o nascimento de Jesus, e conta as numerosas circunstâncias providenciais que precederam e rodearam um acontecimento tão prodigioso: o anúncio do Anjo a Maria, o nascimento do Baptista, o coro dos anjos em Belém, a vinda dos Reis Magos do Oriente, as visões de São José. Todos eles são sinais e testemunhos que realçam a divindade deste Menino. Nasce em Belém o Emanuel, o Deus connosco.

A Igreja oferece-nos, na liturgia destes dias, três "guias" particulares, que nos indicam as atitudes que devemos assumir para ir ao encontro deste "hóspede" divino da humanidade.
4. Antes de mais, Isaías, o profeta do conforto e da esperança. Ele proclama um verdadeiro e próprio evangelho para o povo de Israel, escravo na Babilónia, e exorta a estar vigilantes na oração, para reconhecer "os sinais" da vinda do Messias.

Há, depois, João Baptista, precursor do Messias, que se apresenta como "voz de alguém que grita no deserto", pregando "um baptismo de conversão para o perdão dos pecados" (cf. Mc Mc 1,4). É a única condição para reconhecer o Messias que já está presente no mundo.
E por fim, Maria, que, nesta novena de preparação para o Natal, nos guia rumo a Belém. Maria é a Mulher do "sim" que, ao contrário de Eva, assume sem hesitar o projecto de Deus. Torna-se assim uma luz clara para os nossos passos e o modelo mais nobre no qual nos inspirarmos.
Caríssimos Irmãos e Irmãs, deixemo-nos acompanhar pela Virgem até ao Senhor que vem, permanecendo "vigilantes na oração e exultantes no louvor".

Desejo a todos uma boa preparação para as próximas festas do Natal.

Saudações

Ao desejar um Feliz Natal para todos os peregrinos de língua portuguesa, formulo votos de paz e de alegria para as suas famílias e comunidades, com uma propiciadora Bênção Apostólica.

Caros peregrinos croatas, saúdo-vos a todos com amizade, juntamente com os vossos Bispos e os Representantes da Autoridade civil do vosso País, aqui presentes. Sede bem-vindos!

Estou grato à República da Croácia pelo dom da árvore de Natal, oferecida como sinal das ligações profundas do Povo croata com a Sé de Pedro, que duram há catorze séculos. Agradeço de modo particular a todos os que se empenharam para levar a bom termo a ideia da árvore, lançada há quatro anos pela Conferência Episcopal Croata, nos dias seguintes à minha Visita pastoral a Zagrábia, Marija Bistrica, Split e Solin.

A gentil homenagem da Croácia recordará nos próximos dias aos que entrarem nesta Sala e aos peregrinos que passarem pela Praça de São Pedro no Vaticano, o Mistério da Encarnação, que iluminou os horizontes da humanidade com uma nova esperança. Que a luz dessa esperança possa ajudar os homens e os povos do nosso tempo a reconhecer o Menino nascido em Belém, o Emanuel, o Deus connosco, e a acolhê-lo na própria vida de cada dia para continuar, com confiança, o caminho nas sendas da história.

Confio novamente o vosso Povo à Bem-Aventurada Virgem, Rainha do Santo Rosário. Ela, Mãe do Verbo Encarnado, vos guie a vós e aos vossos compatriotas na novena de preparação para o Natal, começada há dois dias, a fim de poderdes ouvir cheios de esperança o alegre anúncio de que "nasceu para nós o Rei dos céus".

A todos vós, às vossas famílias e a todo o Povo croata, na Pátria ou no estrangeiro, concedo do coração a Bênção Apostólica.
Sejam louvados Jesus e Maria!

Saúdo cordialmente os peregrinos vindos da Polónia e de outros países.

Gloria in excelsis Deo et pax hominibus bonae voluntatis! Glória a Deus no alto dos céus e paz na terra aos homens de boa vontade.

Com estas palavras, na noite de Belém, os Anjos anunciaram a vinda do Salvador ao mundo. Vivendo o mistério do Natal, cheios de alegria, vamos generosamente ao encontro das necessidades dos outros, partilhemos o pão natalício e formulemos os nossos bons votos. Também eu quero fazer chegar até vós aqui presentes e a todos os meus concidadãos no País e no mundo os meus votos mais cordiais: que o tempo do Natal seja para todos cheio de graça; que leve a todos a bênção de paz, de prosperidade e de felicidade.
Que esta bênção vos acompanhe sempre.


AUDIÊNCIAS 2002