Discursos João Paulo II 2002 - 24 de Janeiro de 2002

DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS REPRESENTANTES DAS RELIGIÕES DO MUNDO


NO INÍCIO DO ÁGAPE FRATERNO


Sexta-feira, 25 de janeiro de 2002


Ilustres Hóspedes
Queridos Amigos

Aquilo que ontem teve lugar em Assis viverá por muito tempo nos nossos corações e, esperamo-lo, terá um profundo eco entre os povos do mundo inteiro. Permiti-me cumprimentar cada um de vós, pela generosidade com que quisestes responder ao meu convite. Reconheço que a vossa presença aqui exigiu um esforço enorme. Estou-vos grato sobretudo pela vossa disponibilidade para trabalhar pela paz, e pela coragem com que declarastes diante do mundo que a violência e a religião jamais podem caminhar a par e passo.

Das colinas da Úmbria viemos às colinas de Roma, e é com grande alegria que que vos recebo em minha casa. A porta desta casa está aberta a todas as pessoas, e vindes a esta mesa não como forasteiros, mas como amigos. Ontem, reunimo-nos à sombra de São Francisco. Encontramo-nos aqui congregados à sombra de Pedro, o pescador. Assis e Roma, Francisco e Pedro: os lugares e os homens são diferentes. Contudo, ambos foram portadores da mensagem da paz, cantada pelos Anjos em Belém: Glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na terra aos homens de boa vontade!

Com todas as nossas diferenças, sentamo-nos a esta mesa unidos no nosso compromisso na causa da paz. Este empenhamento, nascido do sentimento religioso sincero, é sem dúvida o que Deus espera de nós. É o que o mundo procura nos religiosos e nas religiosas. Este compromisso é a esperança que devemos oferecer nesta época singular. Deus nos conceda a todos ser instrumentos humildes e eficazes da sua paz.

Que Ele nos abençoe a nós e este alimento que nos provém da generosa abundância da terra por Ele criada.

Amen!



DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DE FIÉIS PROVENIENTES DA


DIOCESE ITALIANA DE ORIA


Sábado, 26 de Janeiro de 2002

Venerado Irmão no Episcopado
Caríssimos Sacerdotes
Irmãos e Irmãs

1. É-me grato dirigir as minhas cordiais boas-vindas a cada um de vós. Com a peregrinação deste dia, desejais preparar-vos para a Visita pastoral, que o Bispo está prestes a realizar à Diocese. Agradeço-vos esta presença festiva aqui, que realiza o vosso desejo de "ver Pedro".

Em primeiro lugar, saúdo o vosso Pastor, D. Marcello Semeraro que, na recente Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, desempenhou a função de Secretário Especial, oferecendo uma preciosa contribuição para essa importante reunião. Estou-lhe profundamente grato pelas palavras afectuosas que acaba de me dirigir em nome de todos. Saúdo os sacerdotes, os religiosos, as religiosas, os leigos activamente comprometidos nas actividades apostólicas, as crianças, os jovens e as famílias aqui presentes.

Além disso, dirijo o meu respeitoso pensamento para as Autoridades civis e militares, que quiseram participar neste encontro.

2. A Visita pastoral, praxe eclesial que teve início a partir do Concílio de Trento, representa, como pôde dizer o meu predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, "uma procura de almas necessitadas de saber que são amadas e orientadas; uma busca da Igreja, a fim de ser verdadeiramente Igreja" (Insegnamenti di Paolo VI, vol. V, pág. 155).

Estou persuadido de que também para vós, caríssimos Irmãos e Irmãs, a visita do vosso Pastor constituirá uma intensa oportunidade de encontrar Cristo e de escutar a sua voz. O Senhor abençoou-vos com inúmeros dons de graça e de santidade, enquanto vos chama a todos para um renovado compromisso de fidelidade evangélica. Ele convida-vos a "fazer-vos ao largo" rumo a novas fronteiras apostólicas, seguindo o exemplo do Beato Bartolo Longo, exímio filho da vossa Terra, devotíssimo da Mãe de Deus, a quem quis dedicar o Santuário de Pompeia.

3. Formulo votos a fim de que, a partir deste acontecimento providencial, nasça um vigoroso impulso missionário, especialmente para as paróquias, onde a comunhão eclesial encontra a sua expressão mais imediata e visível. Com efeito, nelas se encontra "a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas" (Christifideles laici CL 26).

Possa cada comunidade paroquial ser um privilegiado lugar de escuta e de anúncio da Palavra; casa de oração, congregada à volta da Eucaristia; verdadeira escola da comunhão, onde o ardor da caridade vença a tentação de uma religiosidade epidémica e folclorística, constituindo um ambiente apto para educar os fiéis na medida alta da vida cristã ordinária, que é a santidade (cf. Novo millennio ineunte, 31). Assim estimulados, os fiéis não se contentarão com uma existência vivida no sinal da mediocridade e do minimalismo ético mas, pelo contrário, assumirão uma consciência mais forte dos compromissos do seu Baptismo.

Quando aumenta a preocupação pela santidade, ultrapassa-se todo o cansaço e toda a decepção, revigorando-se a "fantasia da caridade" e amadurecendo a atenção para com quantos são afligidos por formas de pobreza antiga e nova. O cristão comprometido sente a necessidade de enfrentar com coragem e competência os graves problemas sociais e culturais do momento presente e está pronto para enfrentar os desafios apresentados pelo ambiente em que vive, oferecendo uma contribuição pessoal para fazer com que aumente a qualidade da convivência civil.

4. Caríssimos Irmãos e Irmãs, no compromisso que deve caracterizar a vossa acção apostólica, reservai uma atenção especial à família, célula primária da sociedade e sustentáculo para o futuro da humanidade, reagindo com determinação às graves pressões culturais que ofendem e tornam relativo o valor do matrimónio.

É nas famílias cristãs que facilmente desabrocham as vocações para o sacerdócio e a vida consagrada. Deus abençoe a Diocese de Oria com um abundante florescimento vocacional, a fim de que não lhe faltem ministros e apóstolos de Cristo, totalmente dedicados à construção do Reino.

5. Rezo ao Senhor a fim de que a Visita pastoral do vosso Bispo constitua um tempo de graça singular, ajudando todos os fiéis a crescer na escuta de Deus e na comunhão fraternal. Se for assim vivida, ela despertará nos presbíteros e nos diáconos um zelo apostólico mais vivo. Para as pessoas consagradas, será um estímulo a um testemunho evangélico mais intenso. Constituirá um encorajamento também para os fiéis leigos de maneira particular para os que se encontram comprometidos nas várias agregações laicais, como as Confrarias, as Associações e os novos Movimentos eclesiais caminharem em plena sintonia com as directrizes dos párocos e do Bispo. Para toda a comunidade diocesana, será uma ocasião de edificação recíproca.

Caríssimos Irmãos e Irmãs, oxalá vos acompanhem os vossos padroeiros celestiais; sustente-vos, de maneira particular, a protecção maternal da Virgem Maria, venerada com títulos especiais nas várias igrejas e santuários da vossa Diocese. Enquanto vos asseguro o conforto da minha oração, é com afecto que concedo uma especial Bênção apostólica ao Bispo e a toda a querida Igreja de Oria.



DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS PRELADOS AUDITORES, OFICIAIS


E ADVOGADOS DO TRIBUNAL DA ROTA ROMANA


NA INAUGURAÇÃO DO ANO JUDICIÁRIO


28 de Janeiro de 2002

1. Agradeço profundamente ao Senhor Bispo Decano que, interpretando bem os vossos sentimentos e as vossas preocupações, com breves observações e dados em números realçou o vosso trabalho quotidiano e as graves e complexas questões, objecto das vossas opiniões.

A solene inauguração do ano judiciário oferece-me a agradável ocasião para um cordial encontro com todos vós, que trabalhais no Tribunal da Rota Romana Prelados Auditores, Promotores de Justiça, Defensores do Vínculo, Oficiais e Advogados para vos manifestar o meu grato apreço, a minha estima e o meu encorajamento. A administração da justiça no âmbito da comunidade cristã é um serviço precioso, porque constitui a premissa indispensável para uma autêntica caridade.

A vossa actividade judiciária, como realçou o vosso Decano, refere-se sobretudo às causas de nulidade do matrimónio. Nesta matéria, juntamente com os outros tribunais eclesiásticos e com uma função muito especial entre eles, por mim posta em evidência na Pastor Bonus (cf. art. 126), constituís uma manifestação institucional específica da solicitude da Igreja ao julgar, segundo a verdade e a justiça, a delicada questão referente à própria existência ou não de um matrimónio.

Esta tarefa dos tribunais na Igreja insere-se, como um contributo imprescindível, no contexto de toda a pastoral matrimonial e familiar. Precisamente a óptica da pastoralidade requer um esforço constante de aprofundamento da verdade acerca do matrimónio e da família, mesmo como condição necessária para a administração da justiça neste âmbito.

2. As características essenciais do matrimónio a unidade e a indissolubilidade (cf. CIC, cân. 1056; CCEO, cân. 776 3) oferecem a oportunidade para uma reflexão proveitosa sobre o próprio matrimónio. Por isso hoje, recordando quanto tive ocasião de tratar no meu discurso do ano passado sobre a indissolubilidade (cf. AAS, 92 [2000], págs. 350-355), desejo considerar a indissolubilidade como bem para os cônjuges, para os filhos, para a Igreja e para a humanidade inteira.

É importante a apresentação positiva da união indissolúvel, para redescobrir o seu bem e a sua beleza. Antes de mais, é necessário superar a visão da indissolubilidade como um limite à liberdade dos contraentes, e por isso, como um peso, que por vezes se pode tornar insuportável. A indissolubilidade, nesta concepção, é vista como lei extrínseca ao matrimónio, como "imposição" de uma norma contra as "legítimas" expectativas de uma ulterior realização da pessoa. A isto acrecenta-se a ideia bastante difundida, segundo a qual o matrimónio indissolúvel seria característico dos crentes, e por conseguinte não podem pretender "impô-lo" à sociedade civil no seu conjunto.

3. Para dar uma resposta válida e satisfatória a este problema é necessário partir da palavra de Deus. Penso concretamente no trecho evangélico de Mateus que narra o diálogo de Jesus com alguns fariseus, e depois com os seus discípulos, acerca do divórcio (cf. Mt Mt 19,3-12). Jesus supera radicalmente os debates de então sobre os motivos que poderiam autorizar o divórcio, afirmando: "Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres, mas ao princípio não foi assim" (Mt 19,8).

Segundo o ensinamento de Jesus, foi Deus quem uniu com o vínculo conjugal o homem e a mulher.

Certamente esta união realiza-se através do livre consentimento de ambos, mas esse consentimento humano consiste num desígnio que é divino. Por outras palavras, é a dimensão natural da união, e mais concretamente a natureza do homem plasmada pelo próprio Deus, que fornece a indispensável chave de leitura das prioridades fundamentais do matrimónio. O seu ulterior fortalecimento no matrimónio cristão através do sacramento (cf. cân. 1056) baseia-se num fundamento de direito natural que, se dele fosse privado, a própria obra salvífica e a elevação que Cristo realizou de uma vez para sempre a respeito da realidade conjugal tornar-se-iam incompreensíveis.

4. Com este desígnio divino natural conformaram-se numerosos homens e mulheres de todos os tempos e lugares, mesmo antes da vinda do Salvador, e com ele se conformaram muitos outros, mesmo sem o conhecerem. A sua liberdade abre-se ao dom de Deus, quer no momento do matrimónio quer durante todo o tempo da vida conjugal. Subsiste sempre, contudo, a possibilidade de se insurgir contra aquele desígnio de amor: apresenta-se então aquela "dureza do coração" (cf. Mt Mt 19,8) devido à qual Moisés consentiu o repúdio, mas que Cristo venceu definitivamente. É preciso responder a estas situações com a coragem humilde da fé, de uma fé que apoia e corrobora a própria razão, a fim de a pôr em condições de dialogar com todos na busca do verdadeiro bem da pessoa humana e da sociedade. Considerar a indissolubilidade não como uma norma jurídica natural, mas como um simples ideal, esvazia o sentido da inequívoca declaração de Jesus Cristo, que recusou absolutamente o divórcio porque "no início não era assim" (Mt 19,8).

O matrimónio "é" indissolúvel: esta prioridade exprime uma dimensão do seu próprio ser objectivo, não é um mero facto subjectivo. Por conseguinte, o bem da indissolubilidade é o bem do próprio matrimónio; e a incompreensão da índole indissolúvel constitui a incompreensão do matrimónio na sua essência. Disto deriva que o "peso" da indissolubilidade e os limites que ela comporta para a liberdade humana mais não são do que o reverso, por assim dizer, da medalha em relação ao bem e às potencialidades inerentes à instituição matrimonial como tal. Nesta perspectiva, não tem sentido falar de imposição por parte da lei humana, porque ela deve reflectir e tutelar a lei natural e divina, que é sempre verdade libertadora (cf. Jo Jn 8,32).

5. Esta verdade acerca da indissolubilidade do matrimónio, como toda a mensagem cristã, destina-se aos homens e às mulheres de todos as épocas e lugares. Para que isto se realize, é preciso que esta verdade seja testemunhada pela Igreja e, sobretudo, pelas famílias individualmente, enquanto "igrejas domésticas", nas quais marido e esposa se reconhecem reciprocamente unidos para sempre, com um vínculo que requer um amor sempre renovado, generoso e pronto para o sacrifício.

Não nos podemos deixar vencer pela mentalidade divorcista: impede-o a confiança nos dons naturais e sobrenaturais de Deus ao homem. A actividade pastoral deve apoiar e promover a indissolubilidade. Os aspectos doutrinais devem ser transmitidos, esclarecidos e defendidos, mas são ainda mais importantes as acções coerentes. Quando um casal atravessa dificuldades, a compreensão dos Pastores e dos outros fiéis deve ser acompanhada da clareza e da fortaleza ao recordar que o amor conjugal é o caminho para resolver positivamente a crise. Precisamente porque Deus os uniu mediante um vínculo indissolúvel, marido e esposa, usando todos os seus recursos humanos com boa vontade, mas sobretudo confiando na ajuda da graça divina, podem e devem sair dos momentos de perturbação renovados e fortalecidos.

6. Quando se considera o papel do direito nas crises matrimoniais, demasiadas vezes se pensa quase exclusivamente nos processos que sancionam a nulidade matrimonial ou a dissolução do vínculo. Esta mentalidade por vezes alarga-se também ao direito canónico, que, desta forma, se apresenta como o caminho para encontrar soluções de consciência para os problemas matrimoniais dos fiéis. Isto possui a sua verdade, mas estas eventuais soluções devem ser examinadas de forma a que a indissolubilidade do vínculo, quando este se mostrar validamente contraído, continue a ser salvaguardada. Aliás, a atitude da Igreja é favorável a confirmar, se for possível, os matrimónios nulos (cf. CIC, cân. 1676; CCEO, cân. 1362). Não há dúvida de que a declaração de nulidade matrimonial, segundo a verdade adquirida através do legítimo processo, dá paz às consciências, mas tal declaração o mesmo é válido para a dissolução do matrimónio ratificado e não consumado e para o privilégio da fé deve ser apresentada e realizada num contexto eclesial profundamente a favor do matrimónio indissolúvel e da família nele fundada. Os próprios cônjuges devem ser os primeiros a compreender que unicamente na busca leal da verdade se encontra o seu bem verdadeiro, sem excluir antecipadamente a possível legitimação de uma união que, mesmo não sendo ainda matrimonial, contém elementos de bem, para eles e para os filhos, que devem ser atentamente avaliados em consciência antes de tomar uma decisão diferente.

7. A actividade judiciária da Igreja, que na sua especificidade é, também ela, uma actividade verdadeiramente pastoral, inspira-se no princípio da indissolubilidade do matrimónio e tende para garantir a efectividade no Povo de Deus. Com efeito, sem os processos e as sentenças dos tribunais eclesiásticos, a questão sobre a existência ou não de um matrimónio indissolúvel dos fiéis seria confinada unicamente à consciência dos mesmos, correndo o risco evidente de subjectivismo, sobretudo quando existe na sociedade civil uma profunda crise acerca da instituição do matrimónio.

Qualquer sentença justa de validade ou nulidade do matrimónio é um contributo para a cultura da indissolubilidade tanto na Igreja como no mundo. Trata-se de um contributo muito relevante e necessário; de facto, ele coloca-se num nível imediatamente prático, dando certeza não só às pessoas envolvidas individualmente, mas também a todos os matrimónios e às famílias. Por conseguinte, a injustiça de uma declaração de nulidade, em oposição à verdade dos princípios normativos ou dos factos, reveste uma particular gravidade, porque o seu vínculo oficial com a Igreja favorece a difusão de atitudes nas quais a indissolubilidade é defendida com palavras, mas obscurecida na vida.

Por vezes, nos últimos anos, o tradicional "favor matrimonii" foi impugnado em nome de um "favor libertatis" ou "favor personae". É óbvio que, nesta dialética, o tema base é o da indissolubilidade, mas a antítese é ainda mais radical porque diz respeito à própria verdade acerca do matrimónio, mais ou menos abertamente relativizada. Contra a verdade de um vínculo conjugal não é correcto invocar a liberdade dos contraentes que, ao assumi-lo livremente, se comprometeram a respeitar as exigências objectivas da realidade matrimonial, que não pode ser alterada pela liberdade humana. Por conseguinte, a actividade judiciária deve inspirar-se num "favor indissolubilitatis", o que não significa, obviamente, preconceito contra as justas declarações de nulidade, mas a convicção operativa sobre o bem que está em jogo nos processos, juntamente com o optimismo sempre renovado que provém da índole natural do matrimónio e do amparo dado pelo Senhor aos esposos.

8. A Igreja e cada cristão devem ser luz do mundo: "Brilhe a vossa luz diante dos homens de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai, que está nos Céus" (Mt 5,16). Estas palavras de Jesus encontram hoje uma aplicação singular a respeito do matrimónio indissolúvel. Poderia quase parecer que o divórcio está de tal forma enraizado em certos ambientes sociais, que quase não vale a pena continuar a combatê-lo, difundindo uma mentalidade, um hábito social e uma legislação civil favorável à indissolubilidade. E valeria a pena! Na realidade, este bem encontra-se precisamente na base de toda a sociedade, como condição necessária da existência da família. Por conseguinte, a sua ausência tem consequências devastadoras, que se difundem no tecido social como uma chaga segundo a palavra usada pelo Concílio Vaticano II para descrever o divórcio (cf. Gaudium et spes, GS 47) e influenciam negativamente as novas gerações, perante as quais é obscurecida a beleza do verdadeiro matrimónio.

9. O testemunho fundamental acerca do valor da indissolubilidade é dado com a vida matrimonial dos cônjuges, na fidelidade ao seu vínculo, através das alegrias e das provas da vida. Mas o valor da indissolubilidade não pode ser considerado o objecto de uma mera escolha privada: ele diz respeito a um dos pontos de referência de toda a sociedade. E por isso, enquanto devem ser encorajadas quer as iniciativas que os cristãos com outras pessoas de boa vontade promovem para o bem das famílias (por exemplo, a celebração dos aniversários do matrimónio), deve evitar-se o risco do permissivismo em questões de fundo que se referem à essência do matrmónio e da família (cf. Carta às Famílias, LF 17).

Entre estas iniciativas não podem faltar as que se destinam ao reconhecimento público do matrimónio indissolúvel nos ordenamentos jurídicos civis (cf. ibid., 17). A oposição decidida a todas as medidas legais e administrativas que introduzam o divórcio ou que igualem ao matrimónio as uniões de facto, até as homossexuais, deve ser acompanhada por uma atitude propositiva, mediante medidas jurídicas que tendam para melhorar o reconhecimento social do verdadeiro matrimónio no âmbito das organizações jurídicas que, infelizmente, admitem o divórcio.

Por outro lado, todos os que estão empenhados no direito em âmbito civil devem evitar envolver-se pessoalmente em tudo o que pode implicar uma cooperação para o divórcio.Para os juízes isto pode ser difícil, porque as organizações jurídicas não reconhecem uma objecção de consciência que os exima de julgar. Devido a graves e proporcionados motivos eles podem, portanto, agir de acordo com os princípios tradicionais da cooperação material para o mal. Mas eles também devem encontrar meios eficazes para favorecer as uniões matrimoniais, sobretudo através de uma obra de conciliação sabiamente realizada.

Os advogados, enquanto livres profissionais, devem eximir-se sempre de usar a sua profissão para uma finalidade contrária à justiça como é o divórcio; podem apenas colaborar numa acção neste sentido quando ela, na intenção do cliente, não se orienta para a ruptura do matrimónio, mas unicamente para outros efeitos legítimos, que só por este caminho judiciário se possam obter num determinado ordenamento (cf. Catecismo da Igreja Católica, CEC 2383). Desta forma, com a sua obra de ajuda e pacificação das pessoas que atravesssam crises matrimoniais, os advogados servem verdadeiramente os direitos das pessoas, e evitam tornar-se meros técnicos ao serviço de qualquer interesse.

10. Confio à intercessão de Maria, Rainha da família e Espelho de justiça, o crescimento da autoconsciência de todos sobre o bem da indissolubilidade do matrimónio. Também confio a ela o empenho da Igreja e dos seus filhos, juntamente com o de muitas outras pessoas de boa vontade, nesta causa tão decisiva para o futuro da humanidade.

Com estes votos, ao invocar a assistência divina sobre a vossa actividade, queridos Padres Auditores, Oficiais e Advogados da Rota Romana, concedo a todos com afecto a minha Bênção.

DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II

AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE

FORMOSA EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


Terça-feira, 29 de Janeiro de 2002

: Estimado Cardeal Shan
Prezados Irmãos Bispos

1. É com grande alegria que vos dou as boas-vindas, a vós Bispos de Formosa, por ocasião da vossa visita ad limina Apostolorum, uma visita que exprime e fortalece os vínculos de comunhão eclesial que unem os Pastores das Igrejas particulares ao Sucessor de Pedro no serviço ao Evangelho de Jesus Cristo. Ao rezardes junto dos túmulos dos Apóstolos e reflectirdes sobre o vosso próprio ministério à luz do seu ensinamento e exemplo, a minha oração ardente é para que encontreis renovadas inspiração e força para realizardes a vossa obra na edificação do Corpo de Cristo, a Igreja, nas vossas Dioceses. Penso com afecto nos fiéis católicos de Formosa e peço ao nosso Pai celestial que os leve a conhecer cada vez mais perfeitamente "o grandioso poder com que Ele age em favor de nós, que acreditamos" (Ep 1,19).

2. O Grande Jubileu do Ano 2000 constituiu um acontecimento jubiloso para toda a Igreja, dado que nos levou a reflectir com renovada admiração sobre as obras da graça de Deus e o seu poder de realizar muito mais do que podemos pedir ou imaginar (cf. Ef Ep 3,21-22). Durante o Jubileu, um elevado número de pessoas veio em peregrinação a Roma ou foi a outros lugares santos, em ordem a renovar o seu compromisso com Cristo, através da oração e dos Sacramentos, e de modo particular para alcançar a sua graça, especialmente mediante o Sacramento da Penitência.

No encerramento da Porta Santa, afirmei que "o cristianismo nasceu e haure vida nova constantemente da... contemplação da glória de Deus que brilha no rosto de Cristo" (Homilia no encerramento da Porta Santa, 6 de Janeiro de 2001), n. 6). Dei expressão à esperança de que toda a comunidade cristã volte a partir desta contemplação de Cristo com renovado entusiasmo e um novo compromisso na busca da santidade, em ordem a dar testemunho do seu amor, "levando uma vida cristã caracterizada pela comunhão, pela caridade e pelo testemunho diante do mundo" (Ibid., n. 8). Esta é a tarefa que confiei à atenção das Igrejas particulares na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, como modo de construir sobre aquilo que o Jubileu realizou na vida dos indivíduos e das comunidades.

A longo do ano passado, a comunidade católica de Formosa assumiu esta missão, reflectindo sobre o tema Novo século, nova evangelização", com a finalidade de contribuir com iniciativas concretas para a renovação da vida da Igreja nas vossas Dioceses. Agora, chegou o momento de pôr estas propostas em prática, para enfrentar os desafios do novo milénio.

3. As vossas iniciativas darão fruto, se reflectirem as duas dimensões necessárias em todas as actividades da Igreja: a dimensão ad intra e a dimensão ad extra. Ad intra: um espírito de oração e de contemplação, vital para a vida cristã, devem ser a característica predominante de tudo o que dissermos ou fizermos: "Nada é igual à oração, pois ela torna possível o que é impossível, e fácil o que é difícil" (São João Crisóstomo, De Anna, 4, 5). Ad extra: o dever de proclamar Cristo, na convicção de que a difusão do Evangelho é "um serviço primário, que a Igreja pode prestar a cada indivíduo e a toda a humanidade no mundo moderno" (Redemptoris missio RMi 2). As duas são inseparáveis, porque a espiritualidade mostra a sua autenticidade na proclamação e no testemunho de Cristo, enquanto a actividade missionária só pode dar resultados positivos se estiver enraizada na íntima comunhão com Deus: sem a oração, a nossa evangelização seria vã; sem a missão, a comunidade cristã perderia o seu sabor e o zelo.

Diante das dificuldades que atingem a vida da fé nos dias de hoje, poderia representar uma tentação para os pastores, adoptar uma atitude de resignação e dizer como o Apóstolo Pedro: "Mestre, trabalhámos a noite inteira" (Lc 5,5). Porém, mesmo quando não vemos os resultados dos nossos esforços pastorais, não nos devemos desanimar: somos nós que plantamos e irrigamos, mas é Deus que dá o crescimento (cf. 1Co 3,6). O Senhor Jesus convida-nos constantemente a superar o nosso medo e a "fazer-nos ao largo" (Lc 5,4). Persuadidos de que Jesus Cristo, o Caminho, a Verdade e a Vida (cf. Jo Jn 14,6) é a Boa Nova para os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares, na sua procura do significado da vida e da verdade da sua humanidade (cf. Ecclesia in Asia ), jamais deveríamos ter medo de proclamar a verdade integral acerca dele, em todos os desafios da sua realidade. A Boa Nova possui um poder intrínseco de atracção.

4. Durante a recente Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, a figura de Cristo Bom Pastor emergiu como "ícone" do ministério episcopal, modelo a que nos devemos conformar de modo cada vez mais íntimo. Como Pastores do Povo de Deus em Formosa, vós representais Cristo nas vossas Igrejas particulares, uma vez que é dele que recebeis a missão e o poder sagrado de agir in persona Christi capitis e de ensinar e governar com autoridade no seu nome. Isto exige uma profunda e sincera intimidade com o Senhor, de tal maneira que, assumindo a forma de Cristo servidor (cf. Fl Ph 2,7) sereis capazes de trabalhar com humildade, generosidade e empenhamento pelo bem dos fiéis confiados ao vosso cuidado pastoral. Ao desempenhar o seu dever primeiro e essencial, que é o cuidado das almas, cura animarum, o Bispo precisa de estar próximo do seu povo e de o conhecer, para poder promover o bem e o optimismo, sustentar e orientar aqueles que são frágeis na fé (cf. Rm Rm 14,1) e, quando é necessário, intervir para desmascarar as falsidades e os abusos correntes (cf. Homilia no encerramento da X Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, 27 de Outubro de 2001, n. 4). A vossa missão é sobretudo uma missão de esperança, porque sabeis que a verdadeira solução para os problemas complicados que pesam sobre a humanidade está na recepção oferecida à mensagem salvífica do Evangelho. Por este motivo, o vosso programa pastoral para os primeiros anos do novo milénio deveria ter em vista, sobretudo, fazer com que a proclamação de Cristo "alcance os povos, forme as comunidades e tenha uma influência decisiva para incutir os valores evangélicos na sociedade e na cultura" (Novo millennio ineunte, 29).

5. Naturalmente, não trabalhais sozinhos: a missão pertence a todo o povo de Deus. Os vossos sacerdotes são os vossos mais próximos colaboradores na missão de evangelização e, se quiserdes obter bom êxito, deveis fazer tudo o que podeis para promover, nas vossas Dioceses, laços estreitos de fraternidade presbiteral e um sentido de finalidade conjunta. A vida devota e dedicada dos sacerdotes, em contacto directo com os cristãos e os não-cristãos, nas paróquias e nos vários lugares onde exercem o seu ministério pastoral, constitui a medida da vitalidade de cada uma das comunidades. O respeito tradicional pelos assuntos do espírito, característico da cultura asiática, é um ulterior motivo para eles serem homens de oração, verdadeiramente peritos nos caminhos de Deus, ansiosos por compartilhar com os outros o amor de Deus, que eles descobriram na sua própria vida. Desta maneira, serão capazes de saciar a fome de Deus que caracteriza a sociedade contemporânea e penetrar cada vez mais profundamente nas esperanças e nas necessidades daqueles a quem oferecem o seu ministério. Reconheceis de modo bastante óbvio que devem ser feitos renovados esforços para apresentar o ideal da vida sacerdotal como uma opção válida para os jovens que alcançam um conhecimento mais profundo do Senhor. Estou convicto de que o vosso povo vos ajudará, se lhe pedirdes que reze de forma mais intensa pelas vocações e se lhe explicardes a grande graça e privilégio que significa, quando Deus chama um membro da família ao sacerdócio ou à vida consagrada.

6. Desejo dizer uma palavra de agradecimento, estima e encorajamento aos homens e às mulheres que pertencem aos numerosos institutos de vida consagrada em Formosa. Os consagrados e as consagradas oferecem uma contribuição singular para o trabalho da evangelização, vivendo a sua consagração através da oração e do apostolado, em conformidade com o carisma próprio de cada um dos institutos. Mediante o seu estado de vida, que exige o dom total de si mesmos a Deus, amado acima de tudo, e que requer uma consagração mais íntima ao seu serviço, eles dão um significado e proclamam na Igreja a glória do mundo que há-de vir (cf. Código de Direito Canónico, cân. 573) e dão testemunho da nova criação inaugurada por Cristo e que se tornou possível em nós através da graça e do poder do Espírito Santo. Mediante a sua dedicação generosa às obras sociais e caritativas, nos campos da educação e da assistência médica, eles foram e continuam a ser um grandioso recurso para a vida das vossas Igrejas particulares.
Deveis encorajar os consagrados, homens e mulheres, a permanecer na linha de vanguarda do apostolado da oração, que constitui o segredo de um cristianismo verdadeiramente vital (cf. Novo millennio ineunte, 32). Actualmente, há uma grande exigência de espiritualidade autêntica, que se exprime sobretudo como uma renovada necessidade de oração. Isto é particularmente verdade nas sociedades como a vossa que, por um lado, possui uma rica herança de tradições espirituais e, por outro, é ameaçada pelas correntes do materialismo e do individualismo. Por este motivo, os contemplativos e as contemplativas deveriam não só cultivar com grande esmero a vida de oração a que foram chamados, mas tornar-se também verdadeiros mestres de oração, tanto para os sacerdotes como para os leigos em geral.

7. Na missão da Igreja, os leigos têm uma responsabilidade própria e uma missão específica: eles são chamados a ser "sal da terra" e "luz do mundo" (cf. Mt Mt 5,13-14). Em virtude do seu Baptismo e da sua Confirmação, todos os leigos são missionários, e é no mundo que eles são chamados a espalhar o Evangelho de Jesus Cristo. Na Igreja particular de Formosa, o seu papel é ainda mais crucial: embora, por comparação, o seu número seja pequeno, eles agem como fermento na sociedade, transformando-a em conformidade com os valores do Evangelho. Mediante a sua fé, generosidade e serviço amoroso, eles podem promover a difusão de uma cultura cristã autêntica, caracterizada pelo respeito pela vida em cada um dos seus estádios, uma vida familiar vibrante, o premuroso cuidado reservado aos doentes e aos idosos, a harmonia, a cooperação e a solidariedade no meio de todos os sectores da sociedade, o respeito pelas pessoas que pensam de modo diverso e o compromisso na promoção do bem comum. Ao viverem a sua vocação cristã, os leigos contam com o vosso apoio, encorajamento e orientação. Com efeito, eles têm de enfrentar os desafios da sociedade contemporânea "não apenas com a sabedoria e eficácias deste mundo, mas com um coração renovado e fortalecido pela verdade de Cristo" (Ecclesia in Asia ). A vossa tarefa consiste em ensiná-los e inspirá-los, mediante a palavra e o exemplo, a fim de que levem uma vida plenamente cristã e, de tal maneira, se tornem capazes de dar testemunho de Cristo nos seus lares, nos seus lugares de trabalho e em todas as suas actividades.

8. Dado que pertence à essência de cada Igreja particular viver em comunhão com a Igreja universal, o Bispo não pode deixar de ser sensível perante as necessidades da Igreja no mundo inteiro. Esta é a sollicitudo omnium Ecclesiarum de que fala o Apóstolo Paulo (cf. 2Co 11,28). A Igreja que está em Formosa respondeu de várias formas às necessidades e aspirações dos cristãos em toda a parte, de maneira muito especial a nível regional, oferecendo oportunidades de educação e de assistência financeira ao pessoal da Igreja de outras áreas da Ásia, além de recursos para a actividade missionária. A vossa solicitude exprime-se de modo particular na atenção que prestais aos vossos irmãos e irmãs no Continente que, juntamente convosco, possuem muitos valores culturais, espirituais e históricos. Nisto, os vossos esforços estão orientados para a promoção do entendimento mútuo, a reconciliação e o amor fraterno entre todos os católicos da grandiosa família chinesa. Estou persuadido de que estes esforços, levados a cabo em comunhão com as outras Igrejas particulares e com a Sé de Pedro, hão-de ajudar-vos a superar as dificuldades do passado, de maneira que surjam sempre novas oportunidades para o diálogo e o enriquecimento humano e espiritual recíproco.

9. Queridos Irmãos Bispos, cada situação constitui uma oportunidade para os cristãos mostrarem o poder que a verdade de Cristo se tornou nas suas vidas. Embora a secularização crescente possa dar a impressão de que a sociedade moderna está fechada para os valores espirituais e transcendentes, muitas pessoas estão à procura de um significado para a sua vida e da felicidade que só Deus pode dar. A convicção que me tem acompanhado ao longo de todo o meu Pontificado é a seguinte: "O poder absoluto, e contudo dócil e manso, do Senhor corresponde a toda a profundidade da pessoa humana, às aspirações mais excelsas da sua inteligência, vontade e coração" (Homilia de 22 de Outubro de 1978, n. 4). Este poder, que encontra o seu manancial não na força deste mundo, mas no mistério da Cruz e da Ressurreição, é a verdadeira fonte da confiança no exercício do nosso ministério. Sabemos que o Senhor jamais nos abandonará na nossa missão pastoral, contanto que depositemos a nossa confiança nele e contemos com Ele. Por conseguinte, fazei-vos ao largo com ânimo, na certeza de que Cristo, que conhece o coração de cada ser humano, está convosco.

Caríssimos Irmãos, é com afecto pastoral no Senhor por todos aqueles que vivem sob os vossos cuidados pastorais, que confio toda a Igreja que está em Formosa à protecção maternal de Maria, luminosa Estrela da Evangelização em todos os tempos e, a cada um de vós, concedo cordialmente a minha Bênção apostólica.




Discursos João Paulo II 2002 - 24 de Janeiro de 2002