Discursos João Paulo II 2002 - Quinta-feira, 21 de Novembro de 2002

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO NOVO EMBAIXADOR DO HAITI


POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO


DAS CARTAS CREDENCIAIS


Sexta-feira, 22 de Novembro de 2002



Senhor Embaixador

1. É com prazer que recebo Vossa Excelência, por ocasião da apresentação das Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República do Haiti junto da Santa Sé.

Agradeço-lhe as amáveis palavras que me dirigiu, assim como as saudações que me transmitiu da parte de Sua Ex.cia o Senhor Jean-Bertrand Aristide, Presidente da República. Peço-lhe a amabilidade de retribuir os votos, que formulo pelo cumprimento do seu alto cargo ao serviço da Nação. Através da sua pessoa, desejo saudar também com afecto todo o povo haitiano, que me é tão querido.

2. Senhor Embaixador, muito me sensibilizou a decisão com que as mais altas Autoridades do seu Estado quiseram designar de novo, na sua pessoa, um Embaixador residente. Esta vontade manifesta a solicitude do Estado do Haiti, em ordem a desenvolver cada vez mais as relações de amizade e de compreensão, que ele já mantém com a Santa Sé, a fim de ajudar todos os haitianos nos seus esforços por uma participação cada vez mais concreta nos progressos humanos e espirituais do seu País.

3. O Senhor Embaixador acaba de recordar a iminência do bicentenário de independência da sua Nação, que será celebrado no ano de 2004. Vossa Excelência refere-se também à profunda crise dos valores, à crise da sociedade em geral. Faço votos ardentes, a fim de que o aniversário desse acontecimento, de que o povo haitiano se sente extremamente orgulhoso dado que o Haiti foi o primeiro País de toda a América Latina e do Caribe a proclamar a independência constitua uma ocasião privilegiada para aprofundar um "poder-viver" conjunto. Isto exige opções por parte da sociedade, que se fundamentem sobre os valores humanos, morais e espirituais. Do mesmo modo, é importante ter em consideração as justas aspirações da população, ao respeito pelas pessoas, à paz, à segurança, à justiça e à equidade. A vasta maioria dos habitantes do País sofre de uma pobreza cada vez mais insuportável, que leva muitos dos seus compatriotas a emigrar ou a abandonar o contexto rural, com vista a encontrar um refúgio nos grandes centros aglomerados do País. Esta urbanização selvagem, que gera o desenraizamento cultural e a desintegração dos vínculos familiares, faz aumentar as desigualdades entre ricos e pobres, mergulhando no desespero as pessoas, as famílias e as comunidades, de modo particular as comunidades camponesas.

4. A aprendizagem de um caminho democrático vigoroso e a consolidação do estado de direito são os poderosos antídotos contra este desespero, dado que tornam todos os cidadãos responsáveis e actores do seu próprio desenvolvimento, favorecendo a unidade da Nação. A cultura da fraternidade e da solidariedade do povo do Haiti, fundamentado sobre os seus valores humanos e culturais, constitui um recurso importante para estabelecer relacionamentos solidários entre os cidadãos, para além dos seus limites internos. É importante não abandonar este rico terreno, em proveito de uma abordagem do desenvolvimento que se limite exclusivamente aos sectores económicos e financeiros. A fim de trabalhar para o crescimento global e moral da sociedade, é necessário favorecer uma política de abertura das áreas rurais, quer mediante a intensificação das redes de comunicação, quer pela realização de estruturas sanitárias, educativas e de desenvolvimento agrário. Com efeito, favorecer as relações, prestar atenção aos cuidados primários da saúde e da formação, são outros tantos elementos que não podem deixar de contribuir para o desenvolvimento da sociedade rural, unindo-a cada vez mais às áreas urbanas. Os desequilíbrios existentes no seio de uma sociedade são sempre prejudiciais e, ao mesmo tempo, constituem fontes de descontentamento no meio das populações.

A luta contra a injustiça e a arbitrariedade exige também a garantia de um sistema judiciário cada vez mais independente e equitativo, que promova o respeito pelos direitos dos mais pobres. Por fim, toda a sociedade deve estar particularmente atenta aos seus jovens, que são como que a "menina dos olhos", porque eles constituem a primeira riqueza nacional. A sua educação e a sua formação contêm em si mesmas o sabor da esperança, oferecendo-lhes a possibilidade de participar na transformação do País, a vários níveis institucionais. Os valores morais e espirituais constituem um tesouro que se transmite de geração em geração, e que prepara o futuro de um povo. É necessário fazer com que os jovens tomem consciência do bem comum e da solidariedade, do respeito pela vida desde a sua concepção e da grandeza da criação, posta nas mãos do homem para que ele a administre de maneira oportuna.

Diante do escândalo endémico e cada vez mais surpreendente da miséria, que gera uma instabilidade permanente no País e desagrega o seu tecido social, o povo do Haiti sempre soube dar provas de coragem e de tenacidade nos momentos de dificuldade. Como eu já disse durante a minha viagem ao seu País, em 1983 (cf. Homilia na Missa de encerramento do Congresso Eucarístico do Haiti), é importante que as pessoas às quais o povo confiou a nobre missão de organizar e de gerir a res publica, tenham cada vez mais em conta o grito dos pobres, e não decepcionem a sua esperança. Eliminar as profundas causas da miséria e do desespero, em ordem a dar a cada homem a sua dignidade fundamental, constitui um dever sagrado para todas as nações e, de maneira especial, para quem as governa. Nesta perspectiva, é particularmente importante que as tomadas de posição políticas dos dirigentes tenham como finalidade o bem e o serviço ao povo do Haiti, e não se deixem condicionar pelos interesses particulares ou ocultos, que impedem o bom funcionamento das Instituições e, ao mesmo tempo, alimentam as desigualdades. Formulo votos sinceros para que sejam encorajadas todas as formas de expressão e cada uma das iniciativas que hão-de permitir aos haitianos edificar o seu País e progredir pelos caminhos de uma esperança renovada.

5. Como Vossa Excelência realçou, Senhor Embaixador, a Igreja católica que está no Haiti, no contexto da missão pastoral que lhe é própria e ao longo da história da Nação, nunca poupou esforços com vista a promover através das suas próprias estruturas, mas também mediante a educação que ela propõe o bem comum de todo o povo haitiano. Ela deseja dar continuidade a esta missão, em espírito de diálogo e em colaboração com as instituições interessadas e com todos os homens de boa vontade, participando desta forma plenamente na vida nacional, no respeito da autonomia das diferentes instâncias e segundo o papel específico que lhe compete. Nesta circunstância solene, através da sua pessoa, gostaria de saudar calorosamente os membros da comunidade católica do Haiti. Convido-os a permanecer unidos à volta dos seus Pastores, que tive a ventura de receber no ano passado, por ocasião da sua visita ad Limina, a fim de que sejam o fermento da fraternidade e da reconciliação, no seio de uma Nação unida e solidária, onde cada um se sinta plenamente acolhido e respeitado!

6. No momento em que o Senhor Embaixador inaugura a sua missão junto da Sé Apostólica, formulo-lhe os meus bons votos pelo feliz cumprimento da mesma. Tenha a certeza de que, junto dos meus colaboradores, Vossa Excelência encontrará sempre o acolhimento atento e compreensível, de que poderá ter necessidade.

Sobre Vossa Excelência, a sua família e todo o povo do Haiti, assim como sobre os seus dirigentes, invoco do íntimo do coração a abundância das Bênçãos divinas.



MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO CAPÍTULO GERAL


DA ORDEM FRANCISCANA SECULAR


Sexta-feira, 22 de Novembro de 2002

: Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Recebo-vos a todos com alegria e dirijo a cada um as minhas cordiais boas-vindas: aos membros da Presidência do Conselho Internacional da Ordem Franciscana Secular, quer da nova quer da anterior, a todos os participantes no Décimo Capítulo Geral e, através de vós, a todos os Franciscanos Seculares e aos membros da Juventude Franciscana presentes no mundo.

Neste Capítulo Geral concretizastes a actualização da vossa legislação fundamental. Tendes agora nas mãos a Regra, aprovada pelo meu predecessor Paulo VI, de venerada memória, a 24 de Junho de 1978; o ritual, aprovado a 9 de Março de 1984; as Constituições gerais, aprovadas definitivamente a 8 de Dezembro de 2000; e o Estatuto Internacional, aprovado neste Capítulo. Agora, é preciso olhar para o futuro e fazer-se ao largo: Duc in altum!

A Igreja espera da Ordem Franciscana Secular, una e única, um grande serviço à causa do Reino de Deus no mundo de hoje. Ela deseja que a vossa Ordem seja um modelo de união orgânica, estrutural e carismática a todos os níveis, a fim de se apresentar ao mundo como "comunidade de amor" (Regra OFS 26). A Igreja espera de vós, Franciscanos Seculares, um testemunho corajoso e coerente de vida cristã e franciscana, orientada para a construção de um mundo mais fraterno e evangélico, para a realização do Reino de Deus.

2. A reflexão feita neste Capítulo sobre a "Comunhão vital recíproca na Família franciscana" estimula-vos a empenhar-vos cada vez mais na promoção do encontro e do entendimento, antes de mais, no âmbito da vossa Ordem, e depois em relação aos outros irmãos e irmãs franciscanos e, por fim, com o maior cuidado, como desejava São Francisco, na relação com a autoridade hierárquica da Igreja.

A vossa legislação renovada dá-vos óptimos instrumentos para realizar e exprimir plenamente a unidade da vossa ordem e a comunhão com a Família franciscana dentro de coordenadas bem definidas. Nela está previsto, em primeiro lugar, o serviço de animação e orientação das Fraternidades, "coordenadas e realacionadas segundo a Regra e as Constituições"; este serviço é indispensável para a comunhão entre as Fraternidades, para a ordenada colaboração entre elas e para a unidade da Ordem Franciscana Secular (cf. Constituições Gerais OFS 29.1). Depois, é importante "a assistência espiritual como elemento fundamental de comunhão", a ser desempenhada colegialmente nos níveis regional, nacional e internacional (Constituições Gerais OFS 90.3). De realce decisivo é, por fim, o serviço colegial do altius moderamen, "confiado pela Igreja à Primeira Ordem Franciscana e à Terceira Ordem Regular", com as quais está relacionada há séculos a Fraternidade Secular (cf. Constituições Gerais OFS 85.2; 87.1).

Faço fervorosos votos para que a nova Presidência do Conselho Internacional da Ordem Franciscana Secular (CIOFS) continue o caminho empreendido pela precedente em direcção à meta de um verdadeiro e único corpo, em fidelidade ao carisma recebido de São Francisco e em coerência com as orientações fundamentais da legislação renovada pela vossa Ordem.

3. No encontro que tive há mais de vinte anos, no dia 27 de Setembro de 1982, com os participantes na Assembleia Geral do vosso Conselho Internacional, exortei-vos: "Estudai, amai, vivei a Regra da Ordem Franciscana Secular, aprovada para vós pelo meu Predecessor Paulo VI.

Ela é um autêntico tesouro nas vossas mãos, sintonizada com o espírito do Concílio Vaticano II e corresponde a tudo o que a Igreja espera de vós" (Insegnamenti, V/3, 1982, pág. 613). Sinto-me feliz por poder, hoje, dirigir-vos palavras análogas: estudai, amai, vivei também as vossas Constituições Gerais! Elas exortam-vos a aceitar a ajuda que, para cumprir a vontade do Pai, vos é oferecida pela mediação da Igreja, por todos os que nela foram constituídos em autoridade e pelos Irmãos de hábito.

Estais chamados a oferecer um contributo próprio, inspirado na pessoa e na mensagem de São Francisco de Assis, para apressar o advento de uma civilização na qual a dignidade da pessoa humana, a corresponsabilidade e o amor sejam realidades vivas (cf. Gaudium et spes, s.). Deveis aprofundar os verdadeiros fundamentos da fraternidade universal e criar em toda a parte o espírito de acolhimento e a atmosfera de fraternidade. Empenhai-vos com firmeza contra qualquer forma de exploração, de discriminação e de marginalização e contra todas as atitudes de indiferença em relação ao próximo.

4. Vós, Franciscanos Seculares, viveis por vocação a pertença à Igreja e à sociedade como realidades inseparáveis. Por isso, é-vos pedido, antes de mais, o testemunho pessoal no ambiente em que viveis: "diante dos homens; na vida de família; no trabalho, na alegria e nos sofrimentos; no encontro com os homens, todos irmãos no mesmo Pai; na presença e na participação na vida social; na relação fraterna com todas as criaturas" (Constituições Gerais OFSS 12.1). Talvez não vos seja pedido o martírio do sangue, mas é-vos pedido, sem dúvida, o testemunho de coerência e firmeza no cumprimento das promessas feitas no Baptismo e no Crisma, renovadas e confirmadas com a profissão na Ordem Franciscana Secular. Em virtude desta profissão, a Regra e as Constituições Gerais devem representar, para cada um de vós, o ponto de referência da experiência quotidiana, a partir de uma específica vocação e de uma identidade bem determinada (cf. Promulgação das Constituições Gerais da OFS). Se sois verdadeiramente estimulados pelo Espírito a atingir a perfeição da caridade no vosso estado secular, "seria contraditório contentar-se com uma vida medíocre, vivida no sinal de uma ética minimalista e de uma religiosidade superficial" (Novo millennio ineunte, 31). É preciso empenhar-se com convicção naquela "medida alta da vida cristã ordinária" para a qual convidei os fiéis no final do Grande Jubileu do ano 2000 (Ibid.).

5. Não quero concluir esta Mensagem sem vos recomendar que considereis a vossa família como o âmbito prioritário no qual viver o empenho cristão e a vocação franciscana, dando nela espaço à oração, à Palavra de Deus e à catequese cristã, e empenhando-vos pelo respeito de qualquer vida, desde a sua concepção e em todas as situações. É preciso fazer com que as vossas famílias "ofereçam um exemplo convicto da possibilidade de um matrimónio vivido totalmente conforme o desígnio de Deus e as verdadeiras exigências da pessoa humana: das dos cônjuges e sobretudo da mais frágil, dos filhos" (Novo millennio ineunte, 47).

Neste contexto, exorto-vos a readquirir o hábito do Santo Rosário, que, por antiga tradição, "se presta particularmente para ser oração na qual a família se reencontra. Cada um dos seus membros, precisamente lançando o olhar sobre Jesus, recuperam também a capacidade de se olharem sempre de novo nos olhos, para comunicar, solidarizar, perdoar-se reciprocamente, para voltar a partir com um pacto de amor renovado pelo Espírito de Deus" (Rosarium Virginis Mariae RVM 41). Fazei isto com o olhar posto na Virgem Maria, serva humilde do Senhor, disponível para a Palavra e para todos os seus apelos, que foi circundada de indizível amor por Francisco, e designada Protectora e Advogada da Família franciscana. Testemunhai-lhe o vosso amor fervoroso com a imitação da sua incondicionada disponibilidade e na efusão de uma confiante e consciente oração (cf. Regra OFS 9).

Com estes votos concedo-vos de coração a vós, Franciscanos Seculares, e a vós, membros da Juventude Franciscana, uma especial Bênção apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NA ASSEMBLEIA PLENÁRIA


DO PONTIFÍCIO CONSELHO PARA OS LEIGOS


Sábado, 21 de Novembro de 2002

1. "A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós" (2Co 13,13).


Dirijo-vos esta saudação do apóstolo Paulo a todos vós, caríssimos Irmãos e Irmãs, reunidos nestes dias para a vigésima Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para os Leigos.
Saúdo antes de mais o Presidente, Senhor Cardeal James Francis Stafford, o Secretário, o Subsecretário e todos os colaboradores do Conselho. Saúdo-vos, caros Membros e Consultores deste Pontifício Conselho, vindos de diversos países e continentes.

Também um pensamento para vós, caros Irmãos e Irmãs, que representais as diversas experiências dos fiéis leigos, e prestais o vosso serviço ao Sucessor de Pedro no âmbito das competências do vosso Conselho. Dando a cada um a saudação cordial de boas-vindas, desejo manifestar uma profunda gratidão pela generosa disponibilidade com que ofereceis a vossa fiel e competente colaboração.

2. Os trabalhos da Assembleia plenária desenrolam-se no 40º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, o maior acontecimento eclesial dos nossos tempos, que fez convergir na Igreja uma vasta corrente de promoção do laicado, no seio da renovada consciência da Igreja de ser mistério de comunhão missionária. Por ocasião do Jubileu do Apostolado dos Leigos no ano 2000, convidei todos os baptizados a voltar ao Concílio, para retomar em suas mãos os documentos do Concílio Vaticano II e para redescobrir as sua riqueza de estímulos doutrinais e pastorais.

Como há dois anos, renovo hoje este convite aos fiéis leigos. Foi a eles que "o Concílio abriu extraordinárias perspectivas de envolvimento e de compromisso na missão da Igreja", recordando a particular participação na função sacerdotal, profética e real de Cristo (cf. ed. port. de L'Osservatore Romano de 2 de Dezembro de 2000, pág. 5). Voltar ao Concílio significa, portanto, colaborar no prosseguimento da sua actuação segundo as orientações traçadas na Exortação apostólica Christifideles laici e na Carta Apostólica Novo millennio ineunte. Há necessidade, hoje, de fiéis leigos conscientes da sua vocação evangélica e da responsabilidade que lhes vem de ser discípulos de Cristo, para testemunhar a caridade e a solidariedade em todos os âmbitos da sociedade moderna.

3. Escolhestes como tema da vossa Assembleia: "É preciso continuar a caminhar voltando a partir de Cristo, isto é, da Eucaristia". É um tema que vem completar o percurso sobre os Sacramentos da iniciação cristã, começado com o aprofundamento do Baptismo e da Confirmação no decurso das duas Plenárias anteriores. A reflexão sobre os Sacramentos da iniciação cristã leva naturalmente a atenção para a paróquia, comunidade onde são celebrados estes grandes mistérios. A comunidade paroquial é o coração da vida litúrgica; é o lugar privilegiado da catequese e da educação para a fé (cf. Catecismo da Igreja Católica, CEC 2226). Na paróquia se desenrola o itinerário da iniciação e da formação para todos os cristãos. Quão importante é descobrir o valor e a importância da paróquia como lugar em que são transmitidos os conteúdos da tradição católica!

Muitos baptizados, também pelo impacto de fortes correntes de descristianização, parecem ter perdido o contacto com este património religioso. A fé torna-se, muitas vezes, confinada a episódios e fragmentos da vida. Um certo relativismo tende a alimentar atitudes discriminatórias nos confrontos dos conteúdos da doutrina e da moral católica, aceites ou rejeitados na base de preferências subjectivas e arbitrárias. A fé recebida deixa, assim, de ser vivida como dom divino, como oportunidade de crescimento humano e cristão, como acontecimento de sentido e de conversão de vida. Somente uma fé que lança as raízes na estrutura sacramental da Igreja, que se sacia nas fontes da Palavra de Deus e da Tradição, que se torna nova vida e inteligência renovada da realidade, pode tornar os baptizados efectivamente capazes de aguentar o impacto da cultura secularizada dominante.

4. A Eucaristia completa e coroa a iniciação cristã, ela que é "fonte e convergência de toda a vida cristã" (Lumen gentium LG 11). Ela aumenta a nossa união com Cristo, desvia-nos e preserva-nos do pecado, reforça os vínculos da caridade, sustenta as forças ao longo da peregrinação da vida, faz antegozar a glória a que estamos destinados. Os fiéis leigos, participantes da missão sacerdotal de Cristo, entregam a sua existência os afectos e os sofrimentos, a vida conjugal e familiar, o trabalho e os compromissos que assumem na sociedade como oferta espiritual agradável ao Pai, consagrando assim o mundo a Deus (Ibid., n. 34).

Igreja e Eucaristia interpenetram-se no mistério da comunhão, milagre de unidade entre os homens num mundo onde as relações humanas são, tantas vezes, ofuscadas pela estranheza, se não verdadeiramente dilaceradas pela inimizade.

Encorajo-vos, caríssimos, a ter sempre presente esta centralidade da Eucaristia na formação e na participação na vida das comunidades paroquiais e diocesanas. É importante voltar a partir sempre de Cristo, isto é, da Eucaristia, em toda a densidade do seu mistério.

5. Uma oração que ajuda a penetrar o mistério de Cristo com o olhar da Virgem é o Rosário, tornado para mim e para inúmeráveis fiéis uma experiência contemplativa. Confiai-vos, caríssimos Irmãos e Irmãs, a Maria, com esta oração. No seu seio imaculado se formou o corpo humano de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, que vem ao nosso encontro na Eucaristia.

É a Eucaristia, caros Membros e Consultores do Pontifício Conselho para os Leigos ao qual me sinto particularmente ligado por ter sido, como Arcebispo de Cracóvia, um dos seus Consultores que vos tornará capazes de desempenhar a vossa importante missão ao serviço de uma "epifania madura e fecunda do laicado católico" (Audiência geral de 25 de Novembro de 1998).

Com estes sentimentos, concedo-vos uma especial Bênção Apostólica, a vós e às pessoas que vos são queridas.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO REGIONAIS SUL III E IV


DO BRASIL EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


Terça-feira, 26 de novembro de 2002



Venerados Irmãos no Episcopado

1. Formados para uma fé adulta, os discípulos do Senhor são chamados a anunciar e promover no mundo, dominado hoje por crescentes incertezas e temores, as transcendentes realidades da vida nova em Cristo. Ao mesmo tempo eles devem sentir-se empenhados em contribuir ativamente para a promoção integral do homem, para a afirmação do diálogo e da compreensão entre os indivíduos e os povos, para o progresso da justiça e da paz. Como recorda a Carta a Diogneto, os cristãos são «a alma do mundo» (6, 1). Que todo fiel compreenda, com renovada consciência, a sua tarefa de ser alma do mundo!

Esta é a vossa preocupação prioritária, caríssimos Irmãos, Pastores das diletas Igrejas dos Regionais Sul - 3 e 4. A ela voltais insistentemente nos vossos planos pastorais, vendo nisto um exigente desafio missionário pelo qual toda a comunidade se deve sentir seriamente interpelada. Enquanto vos exprimo apreço pelo vosso generoso trabalho apostólico, dirijo a cada um a minha fraterna e grata saudação. Agradeço em particular a D. Dadeus Grings, Arcebispo de Porto Alegre e Presidente do Regional Sul 3, os sentimentos cordiais que me expressou em vosso nome; envio um pensamento afetuoso também aos Bispos que já deixaram o direto ministério pastoral. O Senhor da messe, que vos chamou para trabalhar no seu campo, cumule todos vós da sua benevolência.

2. Num ambiente em que não raramente a liberdade de palavra é usada como arma para difundir mensagens contrárias aos ensinamentos da moral cristã, não falte a franca presença pública do pensamento católico. Fiel ao mandato de Cristo, a Igreja insiste em que a verdadeira e perene «novidade das coisas» provém do poder infinito de Deus: é Deus que faz novas todas as coisas (cf. Ap Ap 21,5). Os homens e mulheres redimidos por Cristo são participantes desta novidade e seus dinâmicos colaboradores. Uma fé socialmente insignificante já não seria a fé exaltada pelos Atos dos Apóstolos e pelos escritos de Paulo e de João.

A Igreja não pretende usurpar tarefas e prerrogativas do poder político; mas sabe que deve oferecer também à política sua contribuição específica de inspiração e de orientação acerca dos grandes valores morais. A imperiosa distinção entre Igreja e poderes públicos não deve fazer esquecer que uma e outros se dirigem para o homem; e a Igreja, «perita em humanidade», não pode renunciar de inspirar as atividades políticas a fim de orientá-las ao bem comum da sociedade. Uma missão tão comprometedora requer audácia, paciência e confiança; não é uma empresa fácil, não o é sobretudo nos dias de hoje, porque, como vós próprios notais, a sociedade moderna está marcada por uma evidente desorientação ideal e espiritual.

3. No nº 12 da Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, destinada a preparar o Grande Jubileu do Ano 2000, quis recordar a tradição dos anos jubilares de Israel, tempos dedicados especialmente a Deus, nos quais, ao mesmo tempo, previa-se a emancipação dos presos, a redistribuição das terras e o resgate das dívidas (TMA 12). Tratava-se da implementação de uma eqüidade e uma justiça, que fossem o reflexo da alegria de saber-se escolhidos e amados por Deus. Por isso, «na tradição do ano jubilar, encontra uma das suas raízes a doutrina social da Igreja» (Ibid. TMA 13), isto é, esse conjunto de princípios e critérios que, como fruto da Revelação e da experiência histórica, foram decantando-se para facilitar a formação da consciência cristã e da implementação da justiça na convivência humana.

Estes princípios e critérios são das mais distintas formas. Por exemplo, o amor preferencial pelos pobres, com a finalidade de que alcancem um nível mais digno de vida; o cumprimento das obrigações assumidas em contratos e convênios; a proteção dos direitos fundamentais exigidos pela dignidade humana; o uso correto dos próprios bens, que redundem no benefício individual e coletivo, coerentemente com o objetivo social que corresponde à propriedade; o pagamento dos impostos; o desempenho adequado e honesto - com espírito de serviço - dos cargos e funções que se exercem; a veracidade, tanto na palavra dada quanto nos processos e juízos; o cumprimento do trabalho com competência e dedicação; o respeito pela liberdade das consciências; a universalização da educação e da cultura; a atenção aos inválidos e aos desempregados.

Porém, desde uma perspectiva negativa, pode-se assinalar entre as violações da justiça, a insuficiência salarial para a sustentação do trabalhador e da sua família; a injusta apropriação dos bens alheios; a discriminação no trabalho e os atentados contra a dignidade da mulher; a corrupção administrativa ou empresarial; o afã exagerado de riqueza e de lucro; os planos urbanísticos concretizados em moradias que, na prática, levam ao controle da natalidade devido às pressões econômicas; as campanhas que violam a intimidade, a honra ou o direito à informação; as tecnologias que degradam o ambiente, e assim por diante.

No exercício do tríplice múnus de santificar, ensinar e governar, os bispos ajudam os fiéis a ser autênticas testemunhas de Jesus ressuscitado. Nem sempre resulta fácil orientá-los na busca de respostas adequadas, segundo os ensinamentos de Jesus Cristo, aos desafios do contexto econômico e social.

4. Não é nenhuma novidade a constatação de que vosso País convive com um déficit histórico de desenvolvimento social, cujos traços extremos são o imenso contingente de brasileiros vivendo em situação de indigência e uma desigualdade na distribuição da renda que atinge patamares muito elevados. Mesmo assim, por seu volume total, a economia brasileira se coloca entre as dez primeiras do mundo e a renda média per capita é bem superior à dos países mais pobres. O Brasil apresenta, então, o paradoxo de possuir um grau de desenvolvimento industrial científico-tecnológico equiparável, em certos estágios, ao primeiro mundo, embora deva conviver com uma crônica marginalização econômica de grandes setores sociais, como a massa de trabalhadores rurais sem terra, os microproprietários rurais empobrecidos e endividados e os grandes contingentes de trabalhadores urbanos marginais, fruto das migrações internas e das rápidas mudanças na estrutura do emprego.

5. A pobreza e as injustiças sociais do Brasil têm início no período colonial e nos primeiros anos de vida independente. Os planos de desenvolvimento aplicados durante o século XX asseguraram o conjunto do crescimento material do País, e o florescimento de uma economia urbano-industrial diversificada e a correspondente classe média, rica de criatividade e iniciativa. Todavia, eles não foram capazes de eliminar a pobreza e a miséria, nem de reduzir as desigualdades de riqueza e de renda, que vem acentuando-se no período mais recente.

Talvez a própria história econômica brasileira seja uma boa demonstração da ineficácia dos sistemas econômicos destinados a resolver por si só os problemas do desenvolvimento humano, quando não são acompanhados e corrigidos por um forte compromisso ético e pelo empenho constante de serviço à dignidade humana.

Faz alguns anos, a propósito da queda do muro de Berlim e do fracasso do marxismo, quis recordar que «não é possível compreender o homem a partir de uma visão econômica unilateral, e nem mesmo poderá ser definido de acordo com a divisão de classes» (Centesimus Annus CA 24). Do mesmo modo, ele não pode ser julgado como um elemento a mais da economia de mercado, porque «antes da lógica da comercialização dos valores equivalentes e das formas de justiça, que lhe são próprias, existe algo que é devido ao homem porque é homem, com base na sua eminente dignidade. Esse algo que é devido comporta inseparavelmente a possibilidade de sobreviver e de dar uma contribuição ativa para o bem comum da humanidade» (Ibid., 34).

As experiências econômicas registradas no Brasil a partir dos anos 40 do século passado - substituição das importações, industrialização protegida, ação empresarial do Estado, expansão subsidiada da fronteira agrícola, etc... -, procuraram combinar elementos técnicos dos grandes sistemas econômicos então vigentes, favorecendo, sem dúvida, o crescimento global. Porém, elas não acertaram no objetivo fundamental de reduzir substancialmente a pobreza. Os recentes planos de estabilização monetária, modernização tecnológica e de abertura comercial, apesar da sua relativa eficácia, permitiram alcançar tal objetivo somente em parte.

Na verdade, a par de insuficientes medidas de proteção social e de redistribuição da renda, o que verdadeiramente pode ter faltado foi uma concepção ética da vida social. A simples instrumentação de planos e medidas a longo prazo, para corrigir os desequilíbrios existentes, não pode jamais prescindir do empenho de solidariedade institucional e pessoal de todos os brasileiros. A tal fim, os católicos, que constituem a maioria da população brasileira, podem dar uma contribuição fundamental.

6. O novo cenário internacional devido à globalização, impõe aos Estados importantes decisões quanto à sua capacidade de intervir na vida econômica também na tentativa de corrigir desequilíbrios e injustiças sociais.

Já em 1967 Meu venerado predecessor Paulo VI chamava a atenção sobre a crescente interdependência dos povos e sobre a impossibilidade dos países viverem isolados; ressaltava-se então que este processo de interdependência poderia ser equacionado por uma globalização solidária, na qual as nações mais fortes garantissem certas vantagens financeiras e comerciais aos mais débeis, a fim de ajudar a nivelar, na medida do possível, o marco internacional de referência, ou pelo contrário, poderia servir para acentuar as distorções (cf. Populorum progressio PP 54-55). Infelizmente, ainda hoje a globalização age muitas vezes a favor do mais forte, fazendo que as vantagens decorrentes do desenvolvimento tecnológico sejam vinculadas ao quadro normativo internacional.

Vosso País está também condicionado pelo entorno internacional como os demais Estados, mas possui uma economia suficientemente forte que, até hoje, permitiu enfrentar as recorrentes crises financeiras globais. A população, aliás, tem confiança na própria moeda e no funcionamento das instituições. Deve-se agradecer a Deus, portanto, que existam no conjunto da sociedade os elementos básicos para resolver os problemas sociais, à margem dos condicionamentos externos. E’ possível trabalhar no Brasil por uma sociedade mais justa, e o compromisso nesse trabalho é parte das exigências derivadas da difusão da mensagem evangélica.

7. A vós, veneráveis Irmãos, como hierarquia do povo de Deus, vos compete promover a busca de soluções novas e cheias de espírito cristão. Uma visão da economia e dos problemas sociais, desde a perspectiva da doutrina social da Igreja, leva a considerar as coisas sempre do ponto de vista da dignidade do homem, que transcende o simples jogo dos fatores econômicos. Por outro lado, ajuda a compreender que, para alcançar a justiça social, se requer muito mais do que a simples aplicação de esquemas ideológicos originados pela luta de classes como, por exemplo, através da invasão de terras - já reprovada na minha Viagem Pastoral em 1991 - e de edifícios públicos ou privados, ou, por não citar outros, a adoção de medidas técnicas extremas, que podem ter conseqüências bem mais graves do que a injustiça que pretendiam resolver, como no caso de um incumprimento unilateral dos compromissos internacionais.

O mais importante, segundo a missão que Jesus Cristo confiou aos Bispos e, também, o mais eficaz é estimular toda a potencialidade e riqueza do povo de Deus, especialmente dos leigos, para que, na medida do possível, reine no Brasil uma autêntica justiça e solidariedade, que seja fruto de uma coerente vida cristã.

Numa democracia verdadeira sempre deve haver espaço legal para que grupos, longe de recorrerem à violência, possam fazer valer processos de justa pressão para se acelerar o estabelecimento da tão almejada eqüidade e justiça para todos.

8. Deve-se, por isso, trabalhar incansavelmente para a formação dos políticos, de todos os brasileiros que têm algum poder decisório, grande ou pequeno e, em geral, de todos os membros da sociedade, de modo que assumam plenamente as próprias responsabilidades e saibam dar um rosto humano e solidário à economia.

Ocorre formar nas classes políticas e empresariais um autêntico espírito de veracidade e de honestidade. Quem assume uma liderança na sociedade, deve procurar prever as conseqüências sociais, diretas e indiretas, a curto e a longo prazo, das próprias decisões, agindo segundo critérios de maximização do bem comum, ao invés de procurar ganâncias pessoais. Os cristãos devem estar dispostos a renunciar a qualquer vantagem econômica ou social se não for por meios absolutamente honestos, não somente de acordo com as leis civis, mas segundo o excelso padrão moral marcado pelo próprio nome de cristãos, que seguem o rasto de Cristo sobre a terra.

9. Viver coerentemente como cristãos significa converter a própria vida num constante e generoso serviço ao próximo.

Na minha Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de 2002, falando do sacramento da Penitência, procurei estimular nos meus irmãos sacerdotes aquela amizade de Jesús com Zaqueu: de homem que vivia da exploração dos seus irmãos, àquele que decide dar generosamente parte dos seus bens aos pobres e remediar as injustiças cometidas. O episódio de Zaqueu, narrado pelo evangelista Lucas, indica o caminho do exercício da opção preferencial pelos pobres. Ela não é uma opção classista, mas serve de base de aproximação a todos os cristãos e a todos os homens, ricos e pobres, de qualquer partido ou opinião política com o espírito de Cristo, para provocar neles o milagre da misericórdia. Conseguireis desse modo, veneráveis Irmãos, fazer que todos os brasileiros, façam como Zaqueu, uma opção de vida em favor de seus irmãos, e abrireis nos cristãos, e em todos os homens de boa vontade do Brasil, as infinitas potencialidades do amor de Deus.

No pensamento e na ação política e econômica, com a finalidade de zelar pelo bem comum, florescerão numerosas iniciativas - economia de comunhão e participação, iniciativas assitênciais e educacionais, formas inovadoras de auxílio à população carente, etc...- que expressarão a variedade do povo de Deus e a incomensurável riqueza humana e espiritual do povo dessa grande Nação.

10. Venerados Irmãos no Episcopado, os desafios do trabalho não esmoreçam nunca o vosso entusiasmo; sede antes apóstolos do otimismo e da esperança, infundindo confiança aos mais diretos colaboradores e à inteira sociedade da vossas Regiões episcopais.

Na exaltante fadiga da edificação do Reino de Deus assistam-vos os Santos e Bem-aventurados da Terra de Santa Cruz. Proteja-vos Nossa Senhora Aparecida, venerada com particular e intensa devoção pelo vosso povo. À sua vigilante e materna proteção, confio os vossos planos apostólicos e as necessidades materiais e espirituais das Dioceses de que sois Pastores. Recebam a minha Bênção Apostólica que, de bom grado, estendo a quantos vos estão confiados.




Discursos João Paulo II 2002 - Quinta-feira, 21 de Novembro de 2002