Discursos João Paulo II 2002 - Sábado, 15 de junho de 2002

DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS PEREGRINOS QUE VIERAM A ROMA


PARA PARTICIPAR NA CERIMÓNIA


DE CANONIZAÇÃO DO PADRE PIO


Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. É uma grande alegria encontrar-me de novo convosco, no dia seguinte à solene canonização do humilde Capuchinho de San Giovanni Rotondo. Saúdo-vos com afecto, queridos peregrinos e devotos que viestes a Roma em tão grande número para esta ocasião particular. Dirijo o meu pensamento, em primeiro lugar aos Bispos presentes, aos sacerdotes e aos religiosos. Uma especial recordação aos queridos Frades Capuchinhos que, em comunhão com toda a Igreja, louvam e agradecem ao Senhor as maravilhas por ele realizadas neste seu exemplar irmão de hábito. O Padre Pio é um modelo autêntico de espiritualidade e de humanidade, características peculiares da tradição franciscana e capuchinha.

Saúdo os que pertencem aos "Grupos de Oração Padre Pio" e os representantes da família da "Casa Alívio do Sofrimento", grande obra de cura e assistência aos doentes, que surgiu da caridade do novo Santo. Abraço-vos a vós, queridos peregrinos provenientes da nobre Terra natal do Padre Pio, das outras regiões da Itália e de todas as partes do mundo. Com a vossa presença testemunhais como a devoção e a confiança em relação ao santo Frade de Gargano estão ampalmente difundidas na Igreja e em cada Continente.

2. Mas qual é o segredo de tanta admiração e amor a este novo Santo? Ele é, em primeiro lugar, um "frade do povo", característica tradicional dos Capuchinhos. Além disso, ele é um santo taumaturgo, como testemunham os extraordinários acontecimentos que adornam a sua vida. Mas, sobretudo, Padre Pio é um religioso sinceramente apaixonado de Cristo crucificado. Ele participou no mistério da Cruz também de maneira física ao longo da sua vida.

Ele gostava de juntar a glória do Tabor ao mistério da Paixão, como lemos numa das suas cartas: "Antes de exclamar também nós com São Pedro "Oh!, como é bom estarmos aqui", é preciso primeiro passar pelo Calvário, onde não se vê mais do que morte, pregos, espinhos, sofrimentos, trevas extraordinárias, abandonos e afrontas" (Epistolário III, pág. 287).

O Padre Pio realizou este seu caminho exigente de ascese espiritual em profunda comunhão com a Igreja. As incompreensões momentâneas com algumas Autoridades eclesiais não conseguiram diminuir esta sua atitude de filial obediência. O Padre Pio foi, em igual medida, um filho da Igreja fiel e corajoso, seguindo também nisto o luminoso exemplo do Pobrezinho de Assis.

3. Este santo Capuchinho, ao qual muitas pessoas se dirigem de todas as partes da terra, indica-nos os meios para alcançar a santidade, que é o fim da nossa vida cristã. Quantos fiéis de qualquer condição social, provenientes dos lugares mais diversos e das situações mais difíceis, iam ter com ele para lhe pedir ajuda! A todos ele sabia oferecer aquilo de que tinham mais necessidade, e que por vezes procuravam às apalpadelas, não tendo disso plena consciência. Ele transmitia-lhes a Palavra confortadora e iluminadora de Deus, permitindo que cada um fosse beber às fontes da graça mediante a assídua dedicação ao mistério das Confissões e a fervorosa celebração da Eucaristia.

Escrevia assim a uma sua filha espiritual: "Não receies aproximar-te do altar do Senhor para te saciares com a carne do Cordeiro imaculado, porque ninguém reunirá melhor o teu espírito como o seu rei, nada o aquecerá melhor do que o seu sol, e nada melhor que o seu bálsamo o suavizará" (Ibid., pág. 944).

4. A Missa do Padre Pio! Era para os sacerdotes uma chamada eloquente à beleza da vocação presbiteral; para os religiosos e os leigos, que acorriam a San Giovanni Rotondo, até em horas muito matutinas, uma extraordinária catequese sobre o valor e a importância do Sacrifício eucarístico.

A Santa Missa era o centro e a fonte de toda a sua espiritualidade: "Encontra-se na Missa costumava dizer todo o Calvário". Os fiéis, que se aglomeravam em redor do seu Altar, sentiam-se profundamente atingidos pela intensidade da sua "imersão" no Mistério e sentiam que "o Padre" participava em primeira pessoa nos sofrimentos do Redentor.

5. São Pio de Pietrelcina apresenta-se assim diante de todos sacerdotes, religiosos e leigos como uma testemunha credível de Cristo e do seu Evangelho. O seu exemplo e a sua intercessão estimulam todos a um amor cada vez maior a Deus e à solidariedade concreta para com o próximo, sobretudo para com os mais necessitados.

Ajude-nos a Virgem Maria, que o Padre Pio invocava com o bonito título de "Santa Maria das Graças", a seguir os passos deste religioso tão amado pelo povo!

Com estes votos, abençoo-vos de coração a vós aqui presentes, às pessoas que vos são queridas e a todos os que se empenham a caminhar na esteira espiritual do querido Santo de Pietrelcina.



MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DO ENCERRAMENTO


DO CONGRESSO EUCARÍSTICO


DA ARQUIDIOCESE DE BENEVENTO (ITÁLIA)


Ao venerado Irmão D. SERAFINO SPROVIERI
Arcebispo de Benevento


1. Foi com alegria que tomei conhecimento de que esta Arquidiocese concluiu com particular solenidade, na festa litúrgica do Corpus Domini, a celebração do Congresso Eucarístico. Por isso, sinto-me muito feliz por enviar, através do querido Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que presidirá à celebração, a minha cordial saudação a Vossa Excelência, venerado Irmão, e a toda a querida Igreja que está em Benevento, profundamente unida por múltiplos laços à Sé de Pedro. Penso na visita que, há cerca de doze anos, pude realizar à Comunidade eclesial de Benevento e, enquanto penso com gratidão no Arcebispo Carlos Minchiatti, seu predecessor de venerada memória, recordo a estadia no novo Seminário, que tive a possibilidade de benzer.

Juntamente com Vossa Excelência, venerado Irmão, saúdo os presbíteros, os religiosos e as religiosas, os associados da Acção Católica, os membros das associações e movimentos eclesiais e toda a Comunidade cristã, que enfrenta com coragem, sob a sua orientação iluminada e clarividente, os desafios da pós-modernidade. Uno-me com afecto a todos quantos estão reunidos na Praça, a maior da Cidade, para a solene concelebração, como conclusão das várias manifestações em honra da Eucaristia, a que se seguirá a consagração a Cristo, para finalizar todo o Congresso. Encorajo a todos para oferecer ao "Senhor dos senhores" um coração sincero e um ânimo renovado, confiando-se a Ele com uma segura esperança.

2. Sei que esta semana de intensas celebrações foi preparada com muitas iniciativas, de harmonia com as indicações e sugestões presentes na Carta apostólica Novo millennio ineunte. Congratulo-me com Vossa Excelência, com o clero, os religiosos e os fiéis desta antiga Igreja particular, desejando a todos que prossigam em comum o caminho iniciado com o Grande Jubileu, "não só como lembrança do passado, mas também como profecia do futuro" (n. 3). Tudo deve ser feito em convergência para o Tabernáculo, nova "tenda da reunião" e lugar privilegiado para contemplar, "até se chegar a um coração verdadeiramente apaixonado" (Ibid., n. 33), o rosto do Senhor; o rosto doloroso de Cristo crucificado, "no qual se esconde a vida de Deus e se oferece a salvação do mundo" (Ibid., n. 28); o rosto glorioso de Cristo em quem a Igreja, "a Esposa, contempla o seu tesouro e a sua alegria" (Ibidem).

Desejo repetir-vos a vós, hoje, quanto já dizia no início do meu Pontificado: "Cristo é o Redentor do homem!". Ele, que permanece o mesmo no decorrer dos séculos (cf. Hb He 13,18), é verdadeiramente o Salvador do homem, porque "não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar" (Ac 4,12). A vida cristã, pois, não pode deixar de se desenvolver a partir d'Ele. Devemos "partir de Cristo" todos os dias, olhando para uma "medida alta" do viver evangélico, pondo em acção uma "verdadeira e própria pedagogia da santidade" (Novo millennio ineunte, 31).

3. Igreja de Benevento, reunida à volta de Cristo vivo na Eucaristia! Prossegue, com constância e generosidade no compromisso da adoração eucarística semanal, recentemente retomado, pondo em acção numerosas e participadas "escolas de oração", onde acolher os muitos jovens, desejosos de descobrir em Jesus o seu companheiro de viagem. Valoriza os "centros de escuta" para aprofundar o mistério eucarístico com os irmãos de fé, mobilizando as famílias para que assumam com responsabilidade a difícil mas exaltante missão da educação dos próprios filhos na fé.

Multiplica os teus cuidados e o testemunho de solidariedade para com os doentes e os idosos, os pobres e os marginalizados, envolvendo a todos numa cruzada de orações pelo triunfo de Cristo e da sua Igreja.

Igreja de Benevento! Esforça-te por pôr em acção tudo quanto eu quis propor a todo o Povo de Deus acerca da centralidade da Eucaristia, pondo todo o esforço pastoral em dar um impulso cada vez maior à celebração comunitária da Eucaristia dominical (cf. Novo millennio ineunte, 35), para valorizar o "dia do Senhor" como "dia da Igreja e do homem", tirando dele um novo sopro de comunhão para todos os que fazem parte da Comunidade eclesial, que então estará mais pronta para intervir eficazmente, para encarar as múltiplas formas de pobreza presentes sobre o terreno, com outras tantas numerosas iniciativas de solidariedade e de amor concreto.

Igreja de Benevento! Sê um verdadeira e própria "comunidade eucarística", que procura a recuperação dos "afastados" através da obra contínua da "cadeia dos mensageiros", iniciativa cada vez mais oportuna, a fim de aperfeiçoar a reconversão ambiental, beneficiando Sannio e Irinia dos resíduos de superstição e de inadequadas concepções de religiosidade.

4. Amada Igreja de Benevento! A Santíssima Virgem das Graças e tantos santos que velam por ti desde o apóstolo São Bartolomeu a São Januário e São Barbato, de São Pompílio a São José Moscati e Santo Albérico Crescitelli ao Beato (agora Santo, n.t.) Pio de Pieterlcina te ajudem a prosseguir com renovado impulso no teu caminho de fé e de testemunho dos perenes valores cristãos. Obtenham-te muitas e santas vocações sacerdotais e de especial consagração, para que nunca faltem aos teus filhos quem lhes parta o pão da Palavra e da Eucaristia.

Com estes sentimentos e votos, concedo de boa vontade ao Senhor Cardeal Joseph Ratzinger, portador desta Mensagem, a Si, venerado Irmão, ao clero, aos religiosos, às religiosas, aos seminaristas, às Autoridades civis a quem está confiado os futuro caminho destas terras e à amada Comunidade de Benevento a implorada Bênção apostólica.

Vaticano, 1 de Junho de 2002.



DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AO ARCEBISPO DE CANTUÁRIA


E PRESIDENTE DA COMUNHÃO ANGLICANA


SUA GRAÇA REV.DO DR. GEORGE CAREY


21 de Junho de 2002



Excelência
Queridos Amigos

É com grande prazer que vos dou as boas-vindas, na "graça e a paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo" (Ph 1,3). Estou-vos muito grato por terdes desejado homenagear-me aqui com esta visita de despedida, antes da vossa retirada, já iminente. A vossa visita é, por assim dizer, um sinal vivo dos íntimos relacionamentos que, ao longo dos anos, continuaram a desenvolver-se entre a Comunhão anglicana e a Igreja católica.

Analisando os últimos onze anos, durante os quais Vossa Graça foi Arcebispo de Cantuária, penso de maneira particular na Declaração conjunta, por nós assinada em 1996. Embora reconhecendo os obstáculos que nos mantiveram afastados da comunhão plena, decidimos "dar continuidade às consultas sobre o modo de fazer progredir os relacionamentos entre a Comunhão anglicana e a Igreja católica". Nos últimos meses, começámos a ver os frutos deste espírito de perseverança, através da instituição da nova Comissão internacional de anglicanos e romano-católicos para a unidade e a missão, destinada a acompanhar a obra constante da Comissão internacional de anglicanos e romano-católicos.

É de bom grado que reitero aqui o que escrevi na minha Encíclica Ut unum sint, ou seja, que "verdadeiramente o Senhor nos tomou pela mão e está a orientar-nos" (n. 25). Com a esperança que nasce do Espírito, façamos votos a fim de que as iniciativas e os instrumentos de reconciliação, por nós promovidos e encorajados, sejam orientados sempre pelo próprio Espírito Santo, que é sempre capaz de conceder graças em abundância.

Quando reflectimos sobre os perigos e os desafios que o mundo deve enfrentar no momento presente, não podemos deixar de sentir a necessidade urgente de trabalhar em conjunto na promoção da paz e da justiça. Bem sei que Vossa Graça é muito activo, quando se trata de promover o diálogo na Terra Santa e de reunir os líderes cristãos, judeus e muçulmanos para procurar uma solução duradoura. Oxalá esta e todas as suas iniciativas em ordem à promoção da paz e da justiça recebam o devido apoio e infundam a esperança nos ambientes onde há luta e sofrimento.

Excelência, rezo para que a próxima fase da sua vida lhe ofereça novas possibilidades de compartilhar os seus dons no caminho de reconciliação que empreendemos. Asseguro-lhe as minhas orações, a Vossa Graça e à Senhora Carey, juntamente com toda a Comunhão anglicana.
Deus vos abençoe a todos com abundância!



MENSAGEM DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NA III SESSÃO PLENÁRIA


DA PONTIFÍCIA ACADEMIA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO


Aos participantes
na III Sessão Plenária
da Pontifícia Academia
de São Tomás de Aquino

1. Sinto-me feliz por vos enviar esta Mensagem, queridos sócios ordinários da Pontifícia Academia de São Tomás de Aquino, por ocasião da vossa Sessão plenária. Saúdo-vos cordialmente, dirigindo um pensamento particular ao Senhor Cardeal Paul Poupard, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, que preside às actividades das Academias Pontifícias, ao Presidente e ao Secretário da vossa benemérita Academia. Além disso, desejaria recordar o saudoso D. Antonio Piolanti, ex-Presidente da vossa Academia, que prestou à Igreja durante muitos anos um precioso serviço.

A vossa ilustre Associação, renovados os Estatutos e enriquecida pela presença de estudiosos de fama internacional, continua a dedicar-se com fruto ao estudo da obra de São Tomás, sempre "proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao recto modo de fazer teologia" (Fides et ratio FR 43). Nesta Assembleia plenária a vossa reflexão tem por tema "O diálogo sobre o bem", na perspectiva transcendente, que perscruta a relação do bem com o ser e por isso também com Deus.

2. Prossegui, queridos e estimados pesquisadores, por este caminho. Hoje, em paralelo com as maravilhosas descobertas científicas e com os surpreendentes progressos tecnológicos, não faltam no panorama da cultura e da investigação sombras e lacunas. Estamos a assistir a alguns grandes esquecimentos: o de Deus e o do ser, o da alma e da dignidade do homem. Isto gera por vezes situações de angústia, às quais é necessário oferecer respostas ricas de verdade e de esperança. Face a pensadores pagãos que, estando privados da luz superior da Revelação, não eram capazes de dar soluções aos problemas radicais do homem, São Tomás exclamava: "Quantam angustiam patiebantur hinc et inde illa praeclara ingenia!" (ScG, III, 48, n. 2261).

Antes de mais, é necessário voltar à metafísica. Na Encíclica Fides et ratio, entre as exigências e tarefas actuais da filosofia, eu indiquei como "é necessária uma filosofia de alcance autenticamente metafísico, isto é, capaz de transcender os dados empíricos para chegar, na sua busca da verdade, a algo de absoluto, definitivo, básico" (n. 83). O tema sobre o bem postula uma reflexão metafísica. De facto, no ser, a verdade tem o seu fundamento e o bem tem a sua consistência. Entre o ser, a verdade e o bem Tomás descobre uma circularidade real e profunda.

3. Na compreensão do bem encontra-se também a solução para o mistério do mal. Tomás dedicou toda a sua obra à reflexão sobre Deus, e é neste contexto que se desenvolvem as dezasseis perguntas acerca do mal (De Malo). Seguindo Agostinho, ele pergunta: "Unde malum, unde hoc monstrum?". No célebre artigo da Summa Theologiae sobre os cinco caminhos pelos quais a inteligência humana alcança a existência de Deus, ele reconhece como grande obstáculo neste caminho a realidade do mal no mundo (cf. q. I, 2, ob. 3).

Muitos dos nossos contemporâneos perguntam-se: Se é verdade que Deus existe, como é possível que permita o mal? Então é necessário fazer-lhes compreender que o mal é privação do bem devido, e o pecado é aversão do homem a Deus, fonte de qualquer bem.

Um problema antropológico, tão central para a cultura de hoje, não encontra uma solução a não ser na luz daquela que poderíamos definir "meta-antropologia". Isto é, trata-se da compreensão do ser humano como ser consciente e livre, homo viator, que ao mesmo tempo é e se torna. Conciliam-se nele as diversidades; o um e os muitos, corpo e alma, homem e mulher, pessoa e família, indivíduo e sociedade, natureza e história.

4. São Tomás, além de ser um ilustre filósofo e teólogo, foi mestre de humanidade. Em 1980 eu defini-o Doctor humanitatis, precisamente devido a esta sua característica compreensão do homem na sua racionalidade e na sua condição de ser livre. Em Paris, ao comentar a obra das Sentenças de Pedro Lombardo, descobriu o papel da razão prática no ser e no tornar-se do homem. Enquanto a razão especulativa visa o conhecimento da verdade, a razão prática está ordenada para realizar, isto é para orientar o agir humano.

O homem, que recebeu de Deus como dom a existência, tem nas suas mãos a tarefa de a gerir em conformidade com a verdade, descobrindo o seu autêntico sentido (cf. Fides et ratio FR 81). Nesta busca surge a interrogação moral constante, formulada no Evangelho com a pergunta: "Mestre, que hei-de fazer de bom? (Mt 19,16). A cultura do nosso tempo fala muito do homem e dele sabe muitas coisas, mas com frequência dá a impressão de que ignora o que ele é verdadeiramente. De facto, o homem só se compreende plenamente a si mesmo à luz de Deus. Ele é "imago Dei", criado por amor e destinado a viver na eternidade em comunhão com Ele.

O Concílio Ecuménico Vaticano II ensina que o mistério do homem só tem solução à luz do mistério de Cristo (cf. Gaudium et spes, GS 22). Seguindo este caminho, na Encíclica Redemptor hominis também eu quis recordar que o homem é o primeiro e principal caminho que a Igreja percorre (cf. n. 14). Perante a tragédia do humanismo ateu, é tarefa dos crentes anunciar e testemunhar que o verdadeiro humanismo se manifesta em Cristo. Só em Cristo a pessoa se pode realizar em plenitude.

5. Ilustres e queridos sócios da Pontifícia Academia de São Tomás, a força do Espírito oriente os vossos trabalhos e torne eficaz a vossa investigação.

Ao invocar a constante protecção de Maria, Sedes Sapientiae, e de São Tomás de Aquino sobre cada um de vós e sobre a vossa Academia, a todos abençoo de coração.

Vaticano, 21 de Junho de 2002.



MENSAGEM DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO ENCONTRO DE ESTUDOS


SOBRE O TEMA: "RUMO A UMA CONSTITUIÇÃO EUROPEIA?"


Ilustres Senhores
Gentis Senhoras

1. É-me grato transmitir-vos a minha cordial saudação, por ocasião do Encontro europeu de estudos, que o Departamento para a Pastoral universitária do Vicariato de Roma promoveu em colaboração com a Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia e a Federação das Universidades católicas da Europa.

A interrogação levantada como tema do Encontro "Rumo a uma constituição europeia?" realça a fase particularmente importante em que entrou o processo de construção da "casa comum europeia". Com efeito, parece que chegou o momento de realizar relevantes reformas institucionais, desejadas e preparadas ao longo dos últimos anos e que se tornaram ainda mais urgentes e necessárias em virtude da prevista adesão de novos Estados membros.

O alargamento da União Europeia ou, melhor ainda, o processo de "europeização" de toda a região continental, que encorajei muitas vezes, constitui uma prioridade, a perseguir com coragem e prontidão, dando uma resposta efectiva à expectativa de milhões de homens e mulheres que sabem que estão unidos por uma história comum e que esperam num destino de unidade e de solidariedade. Isto exige uma nova consideração das estruturas institucionais da União Europeia, que as tornem apropriadas às novas exigências e, ao mesmo tempo, requer a identificação de uma nova orientação em que se tornem explícitos os objectivos da construção europeia, as competências da União Europeia e os valores sobre os quais ela se deve fundamentar.

2. Diante das várias e possíveis soluções deste complexo e importante "processo" europeu, a Igreja, fiel à sua identidade e missão evangelizadora, aplica aquilo que já disse em relação aos Estados individualmente, ou seja, que não tem a "competência de manifestar a sua preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional" e que deseja respeitar com coerência a autonomia legítima da ordem democrática (cf. Centesimus annus CA 47). Ao mesmo tempo, precisamente em virtude dessa identidade e missão, ela não pode permanecer indiferente perante os valores que inspiram as diversas opções institucionais. Efectivamente, não há dúvida de que nas opções, que de vez em quando se realizam a este propósito, existem dimensões de ordem moral, dado que tais escolhas, com as determinações a elas ligadas, inevitavelmente dão expressão, num particular contexto histórico, às concepções da pessoa, da sociedade e do bem comum, das quais elas nascem e que lhe estão latentes. É nesta consciência específica que se fundamenta o direito-dever da Igreja, de intervir oferecendo a contribuição que lhe é própria e que remete para a visão da dignidade da pessoa humana com todas as suas consequências, como são expressas pela doutrina social católica.

Nesta perspectiva, devem apreciar-se como passos de per si positivos a investigação e a configuração de uma nova ordem, para a qual estão orientados também os trabalhos da "Convenção" instituída pelo Conselho europeu de Dezembro de 2001 em Laeken. Com efeito, estão orientados para o revigoramento desejável do quadro institucional da União Europeia que, mediante uma rede livremente assumida, feita de vínculos e de cooperações, pode contribuir de forma eficaz para o desenvolvimento da paz, da justiça e da solidariedade para o Continente inteiro.

3. Todavia, para ser verdadeiramente adequada à promoção do bem comum autêntico, esta nova ordem europeia deve reconhecer e tutelar os valores que constituem o património mais precioso do humanismo europeu, que assegurou e continua a garantir à Europa uma irradiação singular na história da civilização. Estes valores representam o contributo intelectual e espiritual mais característico que formou a identidade europeia ao longo dos séculos e pertencem ao tesouro cultural próprio deste Continente. Como já recordei noutras ocasiões, eles dizem respeito à dignidade da pessoa, ao carácter sagrado da vida humana; ao papel central da família fundamentada sobre o matrimónio; à importância da educação; à liberdade de pensamento, de palavra e de profissão das próprias convicções e da própria religião; à salvaguarda legal dos indivíduos e dos grupos; à colaboração de todos em ordem ao bem comum; ao trabalho considerado como bem pessoal e social; ao poder político entendido como serviço, submetido à lei e à razão, e "limitado" pelos direitos da pessoa humana e dos povos.

Em particular, será necessário reconhecer e salvaguardar em cada situação a dignidade humana e o direito à liberdade religiosa, compreendido na sua tríplice dimensão: individual, colectiva e institucional. Além disso, dever-se-á dar espaço ao princípio de subsidiariedade nas suas dimensões horizontal e vertical, assim como a uma visão dos relacionamentos sociais e comunitários assentes sobre uma autêntica cultura e ética da solidariedade.

4. As raízes culturais que contribuíram para a afirmação dos valores, até aqui recordados, são múltiplas: do espírito da Grécia ao espírito da romanidade, das contribuições dos povos latinos, célticos, gemânicos, eslavos e fino-ugrianos, aos contributos da cultura judaica e do mundo islâmico. Estes diferentes factores encontraram na tradição judaico-cristã uma força capaz de os harmonizar, consolidar e promover. Reconhecendo este dado histórico, no processo em curso, rumo a uma nova ordem institucional europeia, não se poderá ignorar a sua herança cristã, dado que uma boa parte daquilo que ela produziu nos campos artístico, literário e filosófico foi influenciada pela mensagem evangélica.

Assim, sem ceder a qualquer tentação nostálgica e sem se contentar com uma duplicação mecânica dos modelos do passado, mas abrindo-se para os novos desafios do presente, será preciso inspirar-se com fidelidade criativa nas raízes cristãs que marcaram a história europeia. Exigem-no a memória histórica e também, sobretudo, a missão da Europa, que hoje é chamada a ser mestra de verdadeiro progresso, a promover uma globalização na solidariedade e sem marginalizações, a concorrer para a instauração de uma paz justa e duradoura no seu interior e no mundo inteiro, a unir as diversas tradições culturais para dar vida a um humanismo em que o respeito pelos direitos, a solidariedade e a criatividade permitam a cada homem realizar as suas aspirações mais nobres.

5. Uma tarefa verdadeiramente difícil apresenta-se aos políticos europeus! Para a assumir de maneira adequada será necessário que, no respeito de uma justa concepção da laicidade das instituições políticas, eles saibam dar aos valores supramencionados aquele profundo enraizamento de tipo transcendental, que se exprime na abertura para a dimensão religiosa.

Isto permitirá, entre outras coisas, confirmar o carácter não absoluto das instituições políticas e dos poderes públicos, precisamente em virtude da "pertença" prioritária e inata da pessoa humana a Deus, cuja imagem está impressa de maneira indelével na própria natureza de cada homem e de cada mulher. Se isto não acontecesse, correr-se-ia o perigo de tornar legítimas as orientações de laicismo e de secularismo agnóstico e ateu, que levam à exclusão de Deus e da lei moral natural dos vários âmbitos da vida humana. Tragicamente prejudicada por isto como no-lo demonstrou a própria história europeia ficaria, em primeiro lugar, toda a convivência civil do Continente.

6. Em todo este processo, devem ser também reconhecidos e salvaguardados a identidade específica e o papel social das Igrejas e das Confissões religiosas. Com efeito, elas sempre revestiram e continuam a desempenhar um papel sob muitos aspectos determinante na educação para os principais valores da convivência, na proposta de respostas às interrogações fundamentais acerca do sentido da vida, na promoção da cultura e da identidade dos povos, na oferta à Europa daquilo que ajuda a dar-lhe um fundamento espiritual desejável e necessário. De resto, elas não se podem reduzir a meras actividades particulares, mas realizam-se com um valor institucional específico, que merece ser apreciado e juridicamente valorizado, respeitando e não prejudicando o estatuto de que beneficiam na ordem dos vários Estados membros da União.

Por outras palavras, trata-se de reagir à tentação de edificar a convivência europeia excluindo a contribuição das comunidades religiosas com a riqueza da sua mensagem, da sua acção e do seu testemunho: entre outras coisas, isto privaria o processo de construção europeia de importantes energias para a fundação ético-cultural da convivência civil. Por isso, formulo votos a fim de que em conformidade com a lógica da "sadia colaboração" entre a comunidade eclesial e a comunidade política (cf. Gaudium et spes, GS 76) as instituições europeias, ao longo deste caminho, saibam entrar em diálogo com as Igrejas e Confissões religiosas segundo formas oportunamente reguladas, recebendo a contribuição que delas, sem dúvida, pode derivar em virtude da sua espiritualidade e do seu compromisso de humanização da sociedade.

7. Enfim, desejo dirigir-me às próprias comunidades cristãs e a todos os crentes em Cristo, pedindo-lhes que ponham em prática uma vasta e complexa acção cultural. Com efeito, é urgente e necessário mostrar com a força de argumentações convincentes e de exemplos válidos que edificar a nova Europa, fundamentando-a sobre os valores que a modelaram ao longo de toda a sua história e que mergulham as suas raízes na tradição cristã, é vantajoso para todos, independentemente da tradição filosófica ou espiritual a que pertencem, e constitui a base sólida para uma convivência mais humana e mais pacífica, porque é respeitadora de todos e de cada um.
Tendo como fundamento estes valores comuns, será possível alcançar as formas de consenso democrático necessárias para delinear, inclusive a nível institucional, o projecto de uma Europa que seja verdadeiramente a casa de todos, em que nenhuma pessoa e nenhum povo se sintam excluídos, mas todos possam sentir-se chamados a participar na promoção do bem comum no Continente e no mundo inteiro.

8. Nesta perspectiva, é lícito esperar muito das Universidades católicas europeias, que não deixarão de desenvolver uma reflexão aprofundada sobre os vários aspectos de uma problemática tão estimuladora. Sem dúvida, também o Encontro em acto dará a esta investigação a sua valiosa contribuição.

Enquanto invoco a luz e o conforto de Deus sobre o compromisso de cada um, transmito-vos a todos uma especial Bênção apostólica.

Vaticano, 20 de Junho de 2002.



DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NA ASSEMBLEIA ANUAL


DA REUNIÃO DAS OBRAS DE AJUDA


ÀS IGREJAS ORIENTAIS (R.O.A.C.O.)


Quinta-feira, 27 de Junho de 2002

: Senhor Cardeal
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Queridos Membros e Amigos
da R.O.A.C.O.!

1. É muito agradável para mim dar a cada um de vós as minhas cordiais boas-vindas, exprimindo-vos a minha gratidão por esta gentil visita, por ocasião da Assembleia anual da Reunião das Obras de Ajuda às Igrejas Orientais (R.O.A.C.O.).

Saúdo cordialmente o Senhor Cardeal Ignace Moussa I Daoud, Prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais e Presidente da R.O.A.C.O., e juntamente com ele saúdo o Secretário, D. Antonio Maria Vegliò, e todos os Colaboradores da Congregação, assim como os Responsáveis das várias Agências. A todos agradeço a activa participação na solicitude do Papa pelas Igrejas orientais.

Realçando que, não obstante as actuais dificuldades, não diminui o empenho generoso das Obras por vós aqui representadas, desejaria repetir o que afirmei na Carta apostólica Orientale Lumen: "As comunidades do Ocidente considerarão, antes de mais, um dever de partilhar, onde for possível, projectos de serviço com os irmãos das Igrejas do Oriente, ou de contribuir para a realização de tudo aquilo que elas empreenderão ao serviço dos seus povos" (n. 23).

2. Neste momento, volto com a memória à recente visita à Bulgária, e sobretudo a Plovdiv, onde pude proclamar beatos os mártires Pe. Pavel Djidjov, Kamen Vitchev e Josaphat Chichkov. Como a muitos outros, com frequência desconhecidos, a estas testemunhas autênticas de Cristo atribui-se o mérito de terem mantido acesa a chama da fé durante o rígido inverno ateísta do século passado e de a terem transmitido mais viva do que nunca às gerações posteriores.

A sua beatificação não foi só o auge de toda a minha peregrinação, mas o sinal mais evidente e luminoso da estima e do afecto que me liga ao nobre povo búlgaro, pelo qual vos convido a rezar para que Deus lhe conceda longos dias de progresso, prosperidade e paz.

Permiti que eu vos indique aquelas queridas Comunidades cristãs, para que elas estejam ainda mais no centro das vossas solicitudes e possais continuar a apoiá-las nas suas necessidades. Exorto-vos, sobretudo, a não deixar de atender as expectativas dos jovens, a ajudar as famílias cristãs e a favorecer de todos os modos a formação dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa.

3. A atenção especial com que a Sé Apostólica segue o desenrolar da situação na Terra Santa e, mais em geral, o prolongamento do estado de tensão no Médio Oriente, estimula-me a recomendar do íntimo do coração à vossa solicitude os irmãos na fé que ali vivem. Estou persuadido de que o vosso esforço, graças também à tradicional Colecta para a Terra Santa, fará chegar àquelas regiões martirizadas os sinais concretos da solidariedade cristã de todas as partes do mundo. Também estou persuadido de que encontrareis, nesta vossa benéfica acção, uma grata correspondência nos Pastores e nos fiéis das Igrejas Católicas Orientais e da Comunidade latina da Terra Santa. Aquela terra abençoada, na qual o Salvador nasceu, viveu, morreu e ressuscitou, é um património mundial de espiritualidade e um tesouro cujo valor é inegável.

Os peregrinos que vão todos os anos aos lugares santos sabem isto muito bem. Eles, depois de terem rezado e confrontado com o Evangelho na sugestiva moldura daquele cenário, regressam às suas comunidades enriquecidos por uma experiência extraordinária. Sobretudo dão-se conta de que, ao lado dos Santuários, existe e trabalha uma activa Comunidade de crentes, composta por fiéis pertencentes a vários ritos, com tradições que fundam as suas raízes na pluralidade típica da Igreja dos primeiros séculos.

4. Caríssimos Irmãos e Irmãs! O vosso compromisso é responder de maneira sempre mais atenta e imediata às urgências das Igrejas Orientais católicas, procurando envolver oportunamente as Comunidades locais. Através de sessões especiais de reflexão e encontros de estudo, ajudais a programar intervenções e a detectar planos pastorais de acordo com reconhecidas prioridades de evangelização, de caridade e de empenho educativo. Rejubilo convosco e desejo encorajar-vos a continuar com generosidade e clarividência o caminho empreendido, que dá bons frutos para toda a Igreja.

Neste processo tão importante, está convosco a Congregação para as Igrejas Orientais, que apoia as várias iniciativas por vós promovidas no âmbito dos estudos, do aprofundamento da liturgia, no empenho formativo e na programação pastoral prática.

Esta Congregação tem também o dever de ir ao encontro das exigências dos Seminaristas e dos Sacerdotes, dos Religiosos e das Religiosas, e dos Leigos enviados a Roma pelos seus Bispos e Superiores para completar a formação espiritual e pastoral, conhecer realidades eclesiais diferentes e completar os estudos superiores nas várias disciplinas eclesiásticas.

Oxalá as Comunidades eclesiais do Oriente, ajudadas pela Congregação para as Igrejas Orientais e pela R.O.A.C.O., realizem uma vida evangélica e um renovado impulso apostólico cada vez mais intensos.

5. Caríssimos Irmãos e Irmãs! A Mãe de Deus, Maria Santíssima, vos confirme nos bons propósitos. Vos ampare no esforço por conjugar a caridade da palavra com a caridade das obras, expressa em tantos sinais de solidariedade e de fraternidade.

Também eu estou convosco com o afecto e com a oração, e concedo de coração a cada um de vós aqui presentes uma especial Bênção apostólica, que de bom grado faço extensiva aos vossos queridos, às Igrejas a que pertenceis, às Agências que representais e a quantos beneficiam das iniciativas que estais a promover.




Discursos João Paulo II 2002 - Sábado, 15 de junho de 2002