AUDIÊNCIAS 1978



      

                                                                AUDIÊNCIAS 1978

                                                                            Outubro de 1978

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 25 de Outubro de 1978

A virtude da prudência


Quando na quarta-feira, 27 de Setembro, o Santo Padre João Paulo I falou aos que tomavam parte na audiência geral, ninguém podia imaginar que se tratasse da última vez. A sua morte — depois de 33 dias de pontificado — surpreendeu e encheu o mundo inteiro de luto profundo. Ele que despertou na Igreja tão grande alegria e inspirou nos corações dos homens tanta esperança, em tão breve tempo consumou e levou a termo a sua missão. Na morte que teve, verificaram-se as palavras tão repetidas do Evangelho: Estai preparados, porque o Filho do homem virá na hora em que menos pensardes (Mt 24,44). João Paulo I vigiava sempre. A chamada do Senhor não o surpreendeu. Seguiu-a com a mesma vibrante prontidão com que, a 26 de Agosto, tinha aceitado a eleição para o sólio de São Pedro.

Hoje apresenta-se a vós, pela primeira vez, João Paulo II. À distância de quatro semanas daquela audiência geral, deseja saudar-vos e falar convosco. Deseja continuar os temas já iniciados por João Paulo I. Recordamos que falou das três virtudes teologais — fé, esperança e caridade. Acabou tratando da caridade. Esta virtude — que formou o seu último ensinamento — é na terra a maior, como ensinou São Paulo ( Cor. 13, 13); é a que atravessa o limiar entre a vida e a morte. Pois, quando termina o tempo da fé e da esperança, continua o Amor. João Paulo I .iá passou o tempo da fé e da esperança; e também o de a caridade se expressar na terra tão magnificamente, a caridade cuja plenitude só na eternidade se revela.

Hoje devemos falar doutra virtude, porque dos apontamentos do Pontífice falecido conclui que era sua intenção tratar, não só das três virtudes teologais — fé, esperança e caridade —, mas também das quatro virtudes chamadas cardeais. João Paulo I queria falar das "sete lâmpadas" da vida cristã; assim lhes chamava o Papa João XXIII.

Pois bem, hoje eu quero continuar esse esquema, que o Papa desaparecido preparara, e falar brevemente da virtude da prudência. Desta virtude não pouco trataram já os antigos. Devemos-lhes, por isso, reconhecimento profundo e gratidão. Em certo sentido ensinaram-nos que o valor do homem deve medir-se com o metro do bem moral, que ele realiza durante a vida. É isto exactamente o que, em primeiro lugar, assegura a virtude da prudência. O homem prudente, que se aplica a tudo o que é verdadeiramente bom, esforça-se por medir todas as coisas, todas as situações e todo o seu operar, pelo metro do bera moral. Prudente não é pois aquele que — como muitas vezes se entende — sabe arranjar-se na vida e sabe tirar dela o maior proveito; mas aquele que sabe construir toda a sua existência segundo a voz da recta consciência e segundo as exigências da moral justa.

Assim a prudência constituí a chave para a realização do encargo fundamental que Deus confiou a cada um. Este encargo é a perfeição do próprio homem. Deus entregou a cada um de nós a humanidade que tem. necessário que nós correspondamos ao encargo recebido programando-o como ele requer.

Mas o cristão tem o direito e o dever de observar a virtude da prudência, também noutra perspectiva. A prudência é como imagem e semelhança da Providência de Deus nas dimensões do homem concreto. Porque o homem sabemo-lo pelo livro do Génesis — foi criado à imagem e semelhança de Deus. E Deus realiza o Seu plano na história da criação e sobretudo na história da humanidade. A finalidade deste desígnio é — como ensina São Tomás — o bem último do universo. O mesmo desígnio torna-se na história da humanidade simplesmente o desígnio da salvação, o desígnio que diz respeito a todos nós. No ponto central da sua realização encontra-se Jesus Cristo no Qual se expressou o eterno amor e a solicitude do próprio Deus, Pai, pela salvação do homem. Esta é, ao mesmo tempo, a plena expressão da Divina Providência.

Pois bem, o homem que é a imagem de Deus, deve ser — como de novo ensina São Tomás — de certo modo, a providência. Mas na medida da sua vida. Ele pode participar neste grande caminho de todas as criaturas para o termo, que é o bem do que foi criado. Deve — exprimindo-nos ainda mais na linguagem da fé — participar no divino desígnio da salvação. Deve caminhar para a salvação e ajudar os outros a salvarem-se. Ajudando os outros, salva-se a si mesmo.

Peço a quem me escuta que pense agora, a esta luz, na própria vida. Sou prudente? Vivo em consequência com o que sou, responsavelmente? O programa que realizo serve para o verdadeiro bem? Serve para a salvação que querem de nós Cristo e a Igreja? Se hoje me escuta um estudante ou uma estudante, um filho ou uma filha, olhe a esta luz para as próprias obrigações de escola, as leituras, os interesses, os passatempos e o ambiente dos amigos e das amigas. Se me escuta um pai ou uma mãe de família, pense um pouco nos seus deveres conjugais e de progenitura. Se me escuta um ministro ou homem de Estado, olhe para a extensão dos seus deveres e responsabilidades. Procura ele o bem verdadeiro da sociedade, da nação e da humanidade? Ou só interesses particulares e parciais? Se me escuta um jornalista, um publicista, uni homem que exerce influxo na opinião pública, reflicta sobre o valor e sobre o fim desta sua influência.

Também eu que vos falo, eu o Papa, que devo fazer para actuar prudentemente? Vêm-me ao espírito as cartas de Albino Luciani, então Patriarca de Veneza, a São Bernardo. Na sua resposta ao Cardeal Luciani, o Abade de Claraval — Doutor da Igreja — recorda com grande insistência que deve ser "prudente" quem governa. Que há-de fazer então o novo Papa a fim de proceder prudentemente? Sem dúvida muito deve fazer neste sentido. Deve sempre aprender e sempre meditar em tais problemas. Mas, além disso, que pode Ele fazer? Deve orar e fazer o possível por ter aquele dom do Espírito Santo que se chama dom do conselho. E todos quantos desejam que o novo Papa seja Pastor prudente da Igreja, peçam para Ele o dom do conselho. E para si mesmos, peçam também este dom, por meio da especial intercessão da Mãe do Bom Conselho. Porque deve desejar-se muito que todos os homens se comportem prudentemente e que procedam com verdadeira prudência aqueles que exercem o poder. Para que a Igreja — prudentemente, fortificando-se com os dons do Espírito Santo e em particular com o dom do conselho — participe com eficácia neste grande itinerário para o bem de todos, e para que a todos mostre o caminho da salvação eterna.
* * *


Saudações

Aos doentinhos:

Dirijo-me aos doentinhos com todo o meu coração. Não é só palavra de consolação, mas sobretudo de conforto proveniente da fé. Caríssimos irmãos e irmãs, vós sois enfermos, humanamente falando perdestes muitas das possibilidades que se apresentam na vida às pessoas sãs, mas por outro lado sois, ousaria dizer, privilegiados no sentido sobrenatural, no sentido de uma semelhança especial com Nosso Senhor Jesus Cristo Crucificado. Deste modo, sois muito poderosos porque sois tão semelhantes a Ele. E eu apoio-me em vós.

Aos jovens casais:

Para vós já abençoados pela Igreja no sacramento do matrimónio, à já recebida acrescente-se hoje uma bênção especial do Papa para a vossa vida em comum, para a vida de amor e de fé que prometestes viver. Abençoo-vos de todo o coração.

A todos:

Já vi que não basta um Papa para abraçar a todos. Mas tem que existir só um. E este não sei como multiplicá-lo. Graças a Deus os apóstolos não eram só um, mas doze. E com a colegialidade é possível abraçar a todos. Seja louvado Jesus Cristo.



                                                                      Novembre de 1978

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 8 de Novembro de 1978

"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça"


1. Durante estas primeiras audiências em que tenho a felicidade de encontrar-me convosco vindos aqui de Roma, da Itália e de tantos outros países — desejo, como já disse a 25 de Outubro, continuar a desenvolver os temas estabelecidos por João Paulo I, meu Predecessor. Ele queria falar não só das três virtudes teologais — fé, esperança e caridade — a mas também das quatro virtudes cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança. Via nelas todas juntas — como sete lâmpadas cla vida cristã. Tendo-o Deus chamado à eternidade, só Ode falar das trás principais — fé, esperança e caridade —, que iluminam toda a vida do cristão. O seu indigno Sucessor, ao encontrar-se convosco para reflectir, no espírito do seu saudoso Predecessor, sobre as virtudes cardeais, quer acender, em certo sentido, as outras lâmpadas junto do seu ti. mulo.

2. Toca-me hoje falar da justiça. Bom é talvez que este seja o tema da primeira catequese no mês de Novembro. De facto, este mês leva-nos a fixar os olhos sobre a vida de cada homem, e ao mesmo tempo sobre a vida de toda a humanidade, na perspectiva da justiça final. Todos, em certo modo, sabemos que, na transitoriedade deste mundo, não é possível realizar a medida plena da justiça. Talvez que as palavras tantas vezes ouvidas, "Não ha justiça neste mundo", sejam fruto dum simplismo demasiado fácil. Há nelas, porém, ao mesmo tempo um principio de profunda verdade. A justiça é, em certo modo, maior que o homem, que as dimensões da sua vida terrena, que as possibilidades de estabelecer nesta vida relações plenamente justas entre os homens, os ambientes, as sociedades e grupos sociais, as nações, e assim por diante. Cada homem vive e morre com certa sensação de a justiça não estar completa, porque o mundo não é capaz de satisfazer completamente um ser criado à imagem de Deus, de o satisfazer nem na profundidade da sua pessoa nem nos vários aspectos da sua vida humana. E assim, por meio desta fome de justiça, o homem abre-se a Deus que "é a justiça mesma". Jesus, no Sermão da Montanha, expressou isto dum modo claro e conciso, dizendo: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (Mt 5,6).

3. Tendo diante dos olhos este sentido evangélico da justiça, devemos considerá-la ao mesmo tempo como dimensão fundamental da vida humana sobre a terra: vida do homem, da sociedade e da humanidade. Esta é a dimensão ética. A justiça é princípio fundamental da existência e da coexistência dos homens, como também das comunidades humanas, das sociedades e dos povos. Além disso, a justiça é princípio da existência da Igreja como Povo de Deus, e princípio de coexistência da Igreja e das várias estruturas sociais, em particular do Estado, como também das organizações internacionais. Neste terreno vasto e diferenciado, o homem e a humanidade procuram continuamente justiça: é um processo perene e um encargo de suprema importância.

Segundo as diversas relações e os diversos aspectos, a justiça obteve, através dos séculos, definições mais apropriadas. Daqui o conceito da justiça comutativa, distributiva, legal e social. Tudo isto mostra a grandeza do significado fundamental que tem a justiça para a ordem moral entre os homens, nas relações sociais e internacionais. Pode dizer-se que até o sentido da existência do homem sobre a terra está ligado à justiça. Definir correctamente "quanto é devido" a cada um por todos, e ao mesmo tempo a todos por cada um "o que é devido" (debitum) ao homem pelo homem em diversos sistemas e relações — definir, e antes de mais realizar! é grande coisa, pela qual cada homem vive e graças à qual a sua vida tem sentido.

Mantém-se portanto, durante os séculos da existência humana na terra, um esforço contínuo e uma luta contínua para ordenar com justiça o conjunto da vida social nos seus vários aspectos. É necessário olhar com respeito para a multiplicidade de programas e para a actividade, às vezes reformadora, de diversas tendências e sistemas. É necessário, ao mesmo tempo, ter consciência de não se tratar aqui primeiramente dos sistemas, mas da justiça e do homem. Não pode ser o homem para o sistema, mas o sistema deve ser para o homem. Por isso é necessário defendermo-nos do enquilosamento do sistema. Refiro-me aos sistemas sociais, económicos, políticos e culturais, que devem ter conta do homem, do seu bem integral, e devem ser capazes de se reformar a si mesmos, as suas estruturas próprias, segundo as exigências da verdade plena sobre o homem. Deste ponto de vista é que há-de medir-se o grande esforço dos nossos tempos, que tende a definir e a consolidar "os direitos do homem" na vida da humanidade hodierna, dos povos e dos Estados.

A Igreja do nosso século mantém-se em diálogo contínuo sobre a grande frente do mundo contemporâneo, como o testemunham numerosas encíclicas dos Papas e a doutrina do Concílio Vaticano II. O actual Papa terá certamente de voltar outras vezes a estes argumentos. Na breve exposição de hoje basta porém limitar-me a assinalar apenas este vasto e diferenciado terreno.

4. É necessário para cada um de nós poder viver num contexto de justiça, e ainda mais, ser cada um de nós justo e actuar com justiça a respeito dos que estão perto e dos que estão longe, da comunidade, da sociedade de que é membro... e a respeito de Deus.

A justiça tem de atender a muitas coisas e reveste muitas formas. Há também uma forma de justiça que tem em vista aquilo que o homem "deve" a Deus. Já só este tema é principal e vasto. Não o desenvolverei agora, ainda que não possa fugir a indicá-lo.

Detenhamo-nos entretanto sobre os homens. Cristo deixou-nos o manda-mento do amor do próximo. Neste mandamento inclui-se também tudo o que diz respeito à justiça. Não pode haver amor sem justiça. O amor "supera" a justiça, mas, ao mesmo tempo, encontra a sua verificação na justiça. Até o pai e a mãe, amando o próprio filho, devem ser justos com ele. Vacilando a justiça, também o amor corre perigo.

Ser justo significa dar a cada um o que lhe é devido. Isto diz respeito aos bens temporais, de natureza material. O melhor exemplo pode ser, neste particular, a retribuição do trabalho ou o chamado direito aos frutos do próprio trabalho ou da própria terra. Mas ao homem deve-se, além disso, o bom nome, o respeito, a consideração e a fama, que para si mereceu. Quanto mais conhecemos o homem, tanto mais se nos revelam a sua personalidade, o seu carácter, a sua inteligência e o seu coração, E tanto mais nos damos conta — e devemos dar-nos conta! — do critério com que devemos "medi-lo" e o que significa sermos justos para com ele.

É por isso, necessário aprofundar-mos continuamente o conhecimento da justiça. Não se trata duma ciência teórica. É virtude, é capacidade do espírito humano, da vontade humana e também do coração. Requer-se ainda que oremos para sermos justos e sabermos ser justos. Não podemos esquecer as palavras de Nosso Senhor. Com a medida cora que medirdes sereis medidos (Mt 7,2).

Homem justo, homem de "justa medida".

Sejamo-lo todos! Tendamos todos sem descanso para o virmos a ser!

A todos a minha bênção.
* * *


Aos jovens casais disse:

"Que Cristo esteja convosco, através do caminho cia rira que escolhestes para percorrerdes juntos até à morte".





AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 15 de Novembro de 1978

A virtude da fortaleza


Caríssimos Filhos e Filhas

O Papa João Paulo I, falando da varanda da Basílica de São Pedro, no dia seguinte à sua eleição, recordou em especial que durante o Conclave de 26 de Agosto, quando tudo já indicava que ele precisamente seria escolhido, os Cardeais que lhe estavam ao lado lhe sussurraram ao ouvido: "Coragem!". Provavelmente esta palavra, naquele momento, era necessária para ele e imprimiu-se-lhe no coração, uma vez que logo no dia seguinte a recordou. João Paulo I me perdoará se agora me sirvo da sua confidência. Creio que ela conseguirá introduzir-nos do melhor modo, a nós todos aqui presentes, no tema que desejo desenvolver. De facto, desejo falar hoje da terceira virtude cardeal, isto é, da fortaleza. Exactamente a esta virtude nos referimos quando queremos exortar alguém a ter coragem, como fez o Cardeal vizinho a João Paulo I no Conclave, quando lhe disse: "Coragem!".

Quem julgamos nós ser homem forte, corajoso? Esta palavra evoca ordinariamente o soldado que defende a Pátria, expondo ao perigo a sua saúde e até a sua vida em tempo de guerra. Damo-nos porém conta que, mesmo em tempo de paz, precisamos de fortaleza. Por isso alimentamos grande estima pelas pessoas que se distinguem pela chamada "coragem civil". Um testemunho de fortaleza é-nos oferecido por quem expõe a própria vida para salvar alguém que está para afogar-se, ou pelo homem que traz o seu auxílio nas calamidades naturais, como incêndios, inundações, etc.

Certamente se distinguia por esta virtude São Carlos, o meu Patrono, que durante a peste de Milão exercia o seu ministério pastoral entre os habitantes dessa cidade. Mas pensemos também com admiração naqueles homens que escalam os píncaros do Everest ou nos cosmonautas quando pela primeira vez põem o pé na lua.

Como se conclui de tudo isto, as manifestações da virtude da fortaleza são numerosas. Algumas delas são muito conhecidas e gozam de certa fama. Outras são menos conhecidas, ainda que muitas vezes exijam uma virtude ainda maior. A fortaleza, de facto, como dissemos no princípio, é uma virtude, uma virtude cardeal. Permiti-me que atraia a vossa atenção para exemplos em geral pouco conhecidos, mas que em si mesmos testemunham grande virtude, às vezes mesmo heróica.

Penso, por exemplo, numa mulher, mãe de família já numerosa, a quem é "aconselhado" por muitos suprimir uma nova vida concebida no seu seio, submetendo-se "à intervenção" que interrompe a maternidade: e ela responde com firmeza: "não". Sem dúvida sente toda a dificuldade que este "não" traz consigo, dificuldade para ela, para o marido, para toda a família; apesar de tudo, responde: "não". A nova vida humana nela concebida é um valor demasiado grande, demasiado "sagrado", para ela poder sujeitar-se a tais pressões.

Mais um exemplo: um homem a quem é prometida a liberdade e até uma carreira fácil, contanto que renegue os seus princípios ou aprove alguma coisa que seja contra a sua honestidade para com os outros. E também ele responde: "não", mesmo defronte a ameaças, por um lado, e atractivos, por outro. Eis uni homem corajoso!

Muitas, muitíssimas são as manifestações de fortaleza, muitas vezes heróicas, de que não se escreve nos jornais ou de que pouco se sabe. Só a consciência humana as conhece... e Deus sabe-o!

Desejo prestar homenagem a todos estes corajosos desconhecidos. A todos os que têm a coragem de dizer "não" ou "sim", quando custa! Aos homens que dão testemunho singular de dignidade humana e profunda humanidade. Precisamente porque são desconhecidos, merecem homenagem e um reconhecimento particular.

Segundo a doutrina de São Tomás, a virtude da fortaleza encontra-se no homem,

— que está pronto a "aggredi pericula", isto é, a afrontar o perigo;

— que está pronto a "sustinere mala", isto é, a suportar a adversidade por uma causa justa, pela verdade, pela justiça, etc.

A virtude da fortaleza requer sempre alguma superação da fraqueza humana e sobretudo do medo. O homem, de facto, por natureza teme espontaneamente o perigo, os dissabores e os sofrimentos. preciso, por isso, procurar os homens corajosos não só nos campos de batalha, mas também nas salas dum hospital ou num leito de dor. Tais homens podiam-se encontrar muitas vezes nos campos de concentração e nos locais de deportação. Eram autênticos heróis.

O medo tira às vezes a coragem cívica aos homens que vivem num clima de ameaça, de opressão ou de perseguição. Especial valor têm então os homens que são capazes de transpor a chamada barreira do medo, com o fim de testemunhar a verdade e a justiça. Para chegar a tal fortaleza, o homem deve em certo modo "ultrapassar" os próprios limites e "superar-se" a si mesmo, correndo "o risco" de uma situação desconhecida, o risco de ser mal visto, o risco de expor-se a consequências desagradáveis, injúrias, degradações, perdas materiais, talvez a prisão ou as perseguições. Para conseguir tal fortaleza, o homem precisa de ser sustentado por grande amor pela verdade e pelo bem, a que se dedica. A virtude da fortaleza anda a par com a capacidade de cada um a sacrificar-se. Esta virtude tinha .já para os antigos um perfil bem definido. Com Cristo adquiriu um perfil evangélico, cristão. O Evangelho dirige-se aos homens fracos, pobres, mansos e humildes, mensageiros de paz, misericordiosos e, ao mesmo tempo, contém em si constante apelo à fortaleza. Repete muitas vezes: Não tenhais medo (Mt 14,27). Ensina ao homem que, por uma justa causa, pela verdade, pela justiça, é preciso saber dar a vida (Jn 15,13).

Desejo aqui referir-me a outro exemplo, que provém de há 400 anos, mas se conserva sempre vivo e actual. Trata-se da figura de São Estanislau Kostka, patrono dos jovens, cujo túmulo se encontra na igreja de Santo André ao Quirinal, em Roma. Aqui, de facto, terminou a sua vida aos 18 anos de idade este santo, por natureza muito sensível e terno, todavia muito corajoso.

A fortaleza levou-o, a ele proveniente de nobre família, a escolher ser pobre, seguindo o exemplo de Cristo, e a colocar-se ao seu serviço exclusivo. Embora a sua decisão encontrasse firme oposição. por parte do ambiente, conseguiu com grande amor, mas também com grande firmeza, realizar o seu propósito, expresso no mote: "Ad maiora natus sum" ("nasci para coisas maiores"). Chegou ao noviciado dos Jesuítas, percorrendo a pé o caminho de Viena a Roma e procurando fugir aos seus perseguidores que desejavam, pela força, afastar este "obstinado" jovem, dos seus intentos.

Sei que no mês de Novembro muitos jovens de toda Roma — especialmente estudantes, alunos, noviços — visitam o túmulo de Santo Estanislau na igreja de Santo André. Estou unido a eles, porque também a nossa geração precisa de homens que saibam com santa "obstinação" repetir: "Ad maiora natus sum". Temos necessidade de homens fortes!

Temos necessidade de fortaleza para ser homens. De facto, só é homem verdadeiramente prudente aquele que possui a virtude da fortaleza; assim como também só é homem verdadeiramente justo aquele que tem a virtude da fortaleza.

Peçamos este dom do Espírito Santo que se chama o "dom da fortaleza". Quando ao homem faltam as forças para "superar-se" a si mesmo em vista de valores superiores — como a verdade, a ,justiça, a vocação e a fidelidade matrimonial — é necessário que este "dom do alto" faça de cada um de nós um homem forte e, no devido momento, nos diga "no íntimo": coragem!
* * *


Saudações

Ao Conselho Superior das Pontifícias Obras Missionárias

Com particular intensidade de afecto dirijo agora a minha saudação aos Membros do Conselho Superior das Pontifícias Obras Missionárias, acompanhados a esta Audiência pelo Prefeito da Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos, o Eminentíssimo Cardeal Agnelo Rossi.

A vossa presença, filhos caríssimos, oferece-me oportunidade para exprimir, juntamente com a gratidão por este vosso gesto de sincera dedicação, a alta estima que dedico à actividade inteligente e industriosa por vós exercida com admirável dedicação, em serviço da causa missionária. Para o crente, deve esta ser a causa superior a todas, porque diz respeito ao destino eterno dos homens, porque obedece ao desígnio misterioso de Deus sobre o significado da vida e da história da humanidade, e porque habilita as diversas culturas a tenderem para a meta dum verdadeiro e completo humanismo.

Continuai, portanto, com entusiasmo inalterado, o vosso trabalho de animação missionária, em estreita relação, por um lado, com as Conferências Episcopais dos vossos Países e, por outro, com a Congregação de "Propaganda Fide", à qual pertence o encargo de coordenar os esforços de todos para metas comuns.

O Espírito de Cristo vos ilumine e ampare, juntamente com todos os que representais aqui, nesta vossa obra delicada e importantíssima para a vida da Igreja. O Papa está ao vosso lado com a sua oração e a sua Bênção.

Aos jovens casais

Uma saudarão e cordiais bons-votos aos jovens casais presentes na audiência. O sacramento do matrimónio leva o amor humano á perfeição constituindo-o símbolo da aliança que existe entre Cristo e a Igreja. Vivei-o a esta luz com fidelidade recíproca e com generosa confiança na ajuda de Cristo.

Aos doentinhos

O Papa abençoa-vos do coração. Atenção particular deseja o Papa reservar aos doentes, para lhes levar uma saudarão afectuosa e uma palavra de conforto e de ânimo. Vós, caros doentes, tendes um lugar importante na Igreja, se sabeis interpretar a vossa situação difícil à luz da fé e se, a esta luz, sabeis viver a vossa doença com coração generoso e forte. Cada um de vós pode então afirmar com São Paulo: "Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo, em favor do seu Corpo que é a Igreja" (Col 1,24).

Falando do sofrimento humano, desviaria mencionar o caso da Senhora Marcella Boroli Balestrini, sequestrada em Milão a 9 de Outubro último e ainda não restituída às pessoas que lhe são caras, apesar do estado de gravidez avançada e das precárias condições de saúde. O Papa dirige a sua oração sentida ao Senhor, para que infunda — no coração dos raptores, e de todas as pessoas implicadas nos numerosos episódios de violência em todas as partes da Itália e do mundo — pensamentos de humana sensibilidade, a fim de que ponham fim a tantos, demasiados, sofrimentos atrozes, e indignos de Países civilizados. Entretanto, às vítimas e aos seus parentes chegue o conforto da minha Bênção paternal.

A um grupo de japoneses pertencentes à religião Tenrikyo

Desejaria dizer uma palavra especial aos jovens vindos do Japão e pertencentes à religião Tenrikyo. Aprendeis a dar testemunho de pobreza e de serviço aos outros, para terdes uma vida de felicidade e harmonia. Certifico-vos do meu respeito e das minhas orações ao Deus único, que reconhecemos como Criador de tudo, a fins de que Ele vos guie, vos acompanhe e vos de todas as bênçãos.





AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 22 de Novembro de 1978

A virtude da temperança




1. Na sucessão das Audiências do meu ministério pontifício, procurei executar o "testamento" do meu estimado Predecessor João Paulo I. Como é sabido, ele não deixou testamento escrito, porque a morte o arrebatou inesperada e improvisamente, mas deixou alguns apontamentos de que se conclui ter-se proposto, nos primeiros encontros das quartas-feiras, falar dos princípios fundamentais da vida cristã, ou seja, das três virtudes teologais — e isto teve tempo de o realizar — e depois das quatro virtudes cardeais — isto o está fazendo o seu indigno sucessor. Hoje é a vez de falar da quarta virtude cardeal, a "temperança", acabando de cumprir assim, dalgum modo, o programa de João Paulo I, programa em que pode ver-se como que um testamento do Pontífice falecido.

2. Quando falamos das virtudes — não só das cardeais, mas de todas e cada uma das virtudes — devemos conservar sempre diante dos olhos o homem real, o homem concreto. A virtude não é alguma coisa de abstracto, separado da vida, mas, pelo contrário, tem profundas "raízes" na vida mesma, dela brota, é ela que forma. A virtude incide na vida do homem, nas suas acções e no seu comportamento. Disto resulta que, em todas estas nossas reflexões, não falamos tanto da virtude quanto do homem que vive e procede "virtuosamente"; falamos do homem prudente, justo, corajoso e, por fim, hoje exactamente, falamos do homem "temperante" (ou "sóbrio").

Acrescentemos imediatamente que todos estes atributos, ou melhor atitudes do homem, provenientes de cada uma das virtudes cardeais, estão entre si conexas. Não se pode, por conseguinte, ser homem verdadeiramente prudente, nem autenticamente justo, nem realmente forte, se não se tem ainda a virtude da temperança. Pode-se dizer que esta virtude condiciona indirectamente todas as outras virtudes; mas deve-se dizer também que todas as outras virtudes são indispensáveis para que o homem possa ser "temperante" (ou "sóbrio").

3. O próprio vocábulo "temperança" parece em certo modo referir-se ao que está "fora do homem". Dizemos, de facto, que temperante é aquele que não abusa de alimentos, de bebidas e de prazeres, que não toma imoderadamente bebidas alcoólicas, não se priva da consciência pelo uso de estupefacientes, etc. Esta referência a elementos externos ao homem tem contudo a sua base dentro do homem. É como se em cada um de nós existisse um "eu superior" e um "eu inferior". No nosso "eu inferior" exprime-se o nosso "corpo" e tudo o que lhe pertence: as suas carências, os seus desejos, as suas paixões de natureza prevalentemente sensual. A virtude da temperança garante a cada homem o domínio do "eu superior" sobre o "eu inferior". Temos aqui humilhação do nosso corpo? ou diminuição? Pelo contrário, este domínio valoriza o corpo. A virtude da temperança leva o corpo e os nossos sentidos a encontrarem o justo lugar que lhes pertence no nosso ser humano.

O homem temperante é aquele que é senhor de si mesmo. Aquele em que as paixões não tornam a supremacia sobre a razão, sobre a vontade e também sobre o "coração". O homem que sabe dominar-se a si mesmo! Se assim é, facilmente nos damos conta do valor fundamental e radical que tem a virtude da temperança. É absolutamente indispensável, para que o homem "seja" plenamente homem. Basta reparar nalguém que, arrastado pelas suas paixões, delas se torna "vítima", renunciando ele próprio ao uso da razão (como, por exemplo, um alcoolizado, um drogado). Verificamos então com evidência que "ser homem" significa respeitar a própria dignidade e, por isso, em particular deixar-se guiar pela virtude da temperança.

4. Esta virtude é chamada também "sobriedade". E é bem justo chamá-la assim! De facto, para podermos dominar as paixões — a concupiscência da carne, as explosões da sensualidade (por exemplo nas relações com o outro sexo) etc., devemos não ultrapassar o justo limite que se põe a nós próprios e ao nosso "eu inferior". Se não respeitamos este justo limite, não seremos capazes de dominar-nos. Não quer isto dizer que o homem virtuoso, sóbrio, não possa ser "espontâneo", não possa gozar, não possa chorar, não possa manifestar os próprios sentimentos, isto é, não significa que deva tornar-se insensível, "indiferente", como se fosse de gelo ou de pedra. Não, de nenhum modo! Basta olharmos para Jesus e convencer-nos-emos. A moral cristã nunca se identificou com a estóica. Pelo contrário, considerando toda a riqueza dos afectos e das emotividades de que é dotado cada homem — cada um aliás de modo diverso: dum modo o homem, doutro a mulher por causa da sensibilidade de cada um — é necessário reconhecer que o homem não pode chegar a esta espontaneidade madura, senão através de um trabalho intenso sobre si mesmo e uma especial "vigilância" sobre todo o seu comportamento. Nisto está de facto a virtude da "temperança", da "sobriedade".

5. Julgo que esta virtude exige de cada um de nós uma especial humildade quanto aos dons que Deus colocou na nossa natureza humana. Diria, "a humildade do corpo" e a "do coração". Esta humildade é condição necessária para a "harmonia" interior do homem: para a beleza "interior" do homem. Cada um reflicta bem neste ponto, em especial reflictam os jovens, e mais ainda as jovens, na idade em que tanto se tem a peito ser belo ou bela, para agradar aos outros! Recordemo-nos que o homem deve ser belo sobretudo interiormente. Sem esta beleza, todos os esforços que tenham em vista só o corpo não farão — nem dele nem dela — uma pessoa verdadeiramente bela.

E não é, por sinal, precisamente o corpo que sofre prejuízos sensíveis e muitas vezes até notáveis quanto à saúde, se falta ao homem a virtude da temperança, da sobriedade? A este propósito, muito poderiam dizer as estatísticas e as fichas clínicas de todos os hospitais do mundo. Disso possuem também grande experiência os médicos ocupados nos consultórios, a quem muitas vezes se dirigem noivos e jovens em geral. É verdade que não podemos julgar a virtude baseando-nos exclusivamente no critério da saúde psicofísica, abundam todavia as provas de a falta da virtude da temperança, da sobriedade, vir a prejudicar a saúde.

6. É preciso que eu termine aqui, embora esteja convencido de este assunto ficar mais interrompido do que esgotado. Talvez um dia se apresente a ocasião de a ele voltar.

Por agora, basta isto.

Deste modo procurei, como pude, executar o testamento de João Paulo I.

Rogo-lhe que peça por mim, quando tiver de passar a outros assuntos durante as audiências da quarta-feira.
* * *


Saudações

Aos jovens casais

Tenho o prazer de agora dirigir uma palavra aos jovens casais aqui presentes e a todos os casais ainda jovens que iniciaram nova vida com o seu amor abençoado e santificado pela virtude do Sacramento do Matrimónio. Digo-vos: não receeis dar um carácter cristão à vossa nova família: Cristo está convosco! Está perto de vós para tornar estável e indissolúvel o vínculo que vos une na doação recíproca: está perto de vós para vos sustentar no meio das dificuldades e das provas, que não podem faltar sim, mas nunca são invencíveis, nunca destruidoras do amor conjugal quando ele é autêntico e não egoísta.

Com estes alegres votos, o Papa abençoa-vos na alegria do Senhor.

Aos doentinhos

Vá agora uma saudação particularmente afectuosa para os doentes. Todos vós que sofreis, ficai sabendo que o Papa vos ama especialmente porque fostes chamados a participar mais de perto na Paixão redentora do Salvador e porque diz respeito a vós a bem-aventurança evangélica: "Bem-aventurados os que estão aflitos porque serão consolados" (cfr. Mt Mt 5,4). Coragem! O Papa está convosco: a vossa dor não é vã, constitui a riqueza da Igreja. Seja para vós de conforto a minha especial Bênção.





AUDIÊNCIAS 1978