AUDIÊNCIAS 1978


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 29 de Novembro de 1978

O cristianismo vive o mistério da vinda real de Deus

1. Apesar de o tempo litúrgico do Advento começar só no próximo domingo, quero falar desse ciclo a partir de hoje.


Já estamos habituados à palavra "advento". Sabemos o que significa, mas precisamente pelo facto de nos termos familiarizado com ela, talvez não cheguemos a compreender toda a riqueza que esse conceito encerra.

Advento significa "chegada".

Assim, devemos perguntar-nos: quem é que chega? e por quem vem?

Para esta pergunta, encontramos logo a resposta. Até os pequeninos sabem que é Jesus que vem, para eles e para todos os homens. Vem numa noite a Belém, nasce numa gruta que servia de estábulo para os animais.

Isto, que as crianças sabem, sabem-no igualmente os adultos que compartilham a alegria dos pequeninos e que na Noite de Natal parece tornarem-se, também eles, criancinhas. Contudo, muitas são as interrogações que devemos pôr-nos. O homem tem o direito, e mesmo o dever, de perguntar, para saber. Há ainda, porém, quem duvide, e, embora compartilhe a alegria do Natal, pareça estranho à verdade que ele encerra.

É por isso que temos o tempo do Advento, de modo que todos os anos possamos penetrar de novo nesta verdade essencial do cristianismo.

2. A verdade do cristianismo corresponde a duas realidades fundamentais que não podemos nunca perder de vista. Ambas estão intimamente ligadas entre si. E, precisamente, este ligame, tão íntimo que uma realidade parece explicar a. outra, é a nota característica do cristianismo. A primeira realidade chama-se "Deus"; a segunda, "o homem".

O cristianismo nasce de uma relação particular entre Deus e o homem. Nos últimos tempos — especialmente durante o Concílio Vaticano II — discutia-se muito sobre se essa relação era teocêntrica ou antropocêntrica. Para tal pergunta não teremos nunca uma resposta satisfatória se continuarmos a considerar separadamente os dois termos da questão. Porque, o cristianismo é antropocêntrico precisamente porque é plenamente teocêntrico; e ao mesmo tempo é teocêntrico graças ao seu singular antropocentrismo.

Ora, é precisamente o mistério da Encarnação que, por si mesmo, explica esta relação.

E é por isso que o cristianismo não é só uma "religião de advento", mas é o próprio Advento. O cristianismo vive o mistério da vinda de Deus até ao homem, e com esta realidade palpita e pulsa constantemente. Ela é, simplesmente, a vida mesma do cristianismo. Trata-se de uma realidade ao mesmo tempo profunda e simples, aberta à compreensão e à sensibilidade de cada um dos homens e sobretudo de quem, por ocasião da noite de Natal, sabe tornar-se criança. Não foi em vão que, uma vez, Jesus disse: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não entrareis no reino dos céus (Mt 18,3).

3. Para compreender plenamente, esta dupla realidade com que o cristianismo cada dia palpita e pulsa, é necessário remontar às próprias origens da Revelação, ou mais ainda, quase até à nascente do humano pensar.

Quanto ao início do pensar humano pode haver duas concepções diferentes. O pensar de cada indivíduo tem a própria história na sua vida, desde a infância. Ao falar, porém, do "início", não nos propomos propriamente tratar da história do pensamento. Queremos só dizer que na base mesma do pensar, isto é, nas suas nascentes, se encontram o conceito de "Deus" e o conceito de "homem". Por vezes eles encontram-se encobertos por um estrato de muitos outros conceitos diferentes (em particular na hodierna civilização de "coisificação materialista" e também "tecnocrática"), mas isso não significa que aqueles conceitos não existam ou que se não encontrem na base do nosso pensar. Até mesmo o mais elaborado sistema ateu só tem sentido se se pressupõe que ele conhece o significado da ideia de "Theos", isto é, de Deus. A este propósito, justamente nos ensina a Constituição Pastoral do Vaticano II, que muitas formas de ateísmo derivam da falta de uma adequada relação com este conceito de Deus. Elas são, pois, ou pelo menos podem ser, negações de alguma coisa, ou melhor, de Algum outro que não corresponde ao Deus verdadeiro.

4. O Advento — como tempo litúrgico do ano eclesial — faz-nos voltar aos inícios da Revelarão. E precisamente nos inícios encontramo-nos logo com o ligame fundamental destas duas realidades: Deus e o homem.

Abrindo o primeiro livro da Sagrada Escritura, o Génesis, começamos a leitura com as palavras: Beresit bara! — No princípio criou... Logo depois vem o nome de Deus, que neste texto bíblico soa "Elohim". No princípio, criou; e Aquele que criou é Deus. Estas três palavras constituem como que o limiar da Revelação. Deus, no livro de Génesis não é definido só com o nome "Elohim"; outras partes deste livro usam também o nome "Jahvé". Mais claramente ainda fala d'Ele o verbo "criou". Efectivamente, este verbo revela Deus, quem é Deus. Exprime a sua substância não tanto em si mesma quanto em relação com o inundo, isto é, com o conjunto das criaturas sujeitas às leis do tempo e do espaço. O complemento circunstancial "ao princípio" indica Deus como Aquele que é antes deste princípio, que não é Limitado nem pelo tempo nem pelo espaço; e que "cria", isto é, que "dá início" a tudo o que não é Deus, àquilo que constitui o mundo visível e invisível (segundo o Génesis: o céu e a terra). Neste contexto, o verbo "criou" afirma de Deus, primeiro que tudo, que Ele mesmo existe, que é, que ele é a plenitude do ser, que tal plenitude se manifesta como Omnipotência, e que esta Omnipotência é ao mesmo tempo Sabedoria e Amor. Tudo isto nos diz sobre Deus a primeira frase da Sagrada Escritura. De tal modo se forma na nossa inteligência o conceito de "Deus", se nos referimos aos inícios da Revelação.

Seria interessante examinar em que relação está o conceito de "Deus", assim como o encontramos nos inícios da Revelação, com o que encontramos como base do pensamento humano (até mesmo no caso da negação de Deus, isto é, do ateísmo). Hoje, porém, não desejamos desenvolver este assunto.

5. Queremos, porém, verificar que nos inícios da Revelação — no mesmo livro do Génesis e já no primeiro capítulo — encontramos a verdade fundamental sobre o homem, que Deus (Elohim) cria à sua "imagem e semelhança". Aí lemos, na verdade: Deus disse: façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança (Gn 1,26), e, em seguida: Deus criou o homem à sua imagem; a imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou (Gn 1,27).

Ao problema do homem voltarei na próxima quarta-feira. Mas já hoje devemos assinalar esta relação especial entre Deus e a sua imagem, isto é, o homem.

Esta relação ilumina-nos até sobre as bases do cristianismo.

Permite-nos também dar uma resposta fundamental a duas perguntas: primeira, que significa "o Advento"; segunda, porque faz precisamente "o Advento" parte da substância mesma do cristianismo?

Estas perguntas deixo-as à vossa reflexão. A elas voltaremos nas nossas futuras meditações e mais de uma vez. A realidade do Advento está cheia da mais profunda verdade sobre Deus e sobre o homem.

Saudações

Aos doentinhos

Agora quero dirigir uma saudação especial aos doentes. Com sincera benevolência de pai e pastor convido-vos a renovardes a vossa adesão total a Jesus crucificado, de cujos sofrimentos todos um. como cristãos, haurimos a realidade da nossa salvação. A Igreja, por conseguinte, conta também convosco. O Senhor vos ajude a conservar firmes a vossa fé e a vossa esperança, a fim de que se cumpra a Sua vontade quer no sofrimento quer na cura.

Aos jovens casais

Visto que se encontra aqui presente um numeroso grupo de Jovens Casais, desejo também saudá-los com particular afecto. O Senhor vos conceda um amor mutuo indefectível, que o tempo não dilua nunca mas torne fecundo, quer com a maturação recíproca perante a vida, quer com a procriarão responsável de filhos bons e sadios. O Senhor vos ajude com a Sua graça, e a minha Bênção vos acompanhe sempre.



                                                                           Dezembro de 1978

PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 6 de Dezembro de 1978

O homem "imagem de Deus"


Irmãs e Irmãos caríssimos

Volto ao assunto de quarta-feira passada.

1. Para penetrar na plenitude bíblica e litúrgica do significado do Advento, é preciso seguir duas direcções. É necessário "tornar a subir" aos inícios, e ao mesmo tempo descer em profundidade. Já o fizemos, pela primeira vez, na quarta-feira passada, escolhendo para tema da nossa meditação as primeiras palavras do livro do Génesis: No princípio criou Deus (Beresit tiara Elohim). Quase no fim do desenvolvimento do tema da outra semana, fizemos também notar que, para entender o Advento no seu primeiro significado, se requer que nos introduzamos também no tema do "homem". O significado pleno do Advento deriva da reflexão sobre a Realidade de Deus que cria — e criando se revela a Si mesmo (esta é a primeira e fundamental revelação, e também a primeira e fundamental verdade do nosso Credo). O pleno significado do Advento deriva ao mesmo tempo da profunda reflexão sobre a realidade do homem. Desta segunda realidade que é o homem um pouco mais nos aproximaremos durante a presente meditação.

2. Há uma semana detivemo-nos nas palavras do livro do Génesis, em que o homem é definido imagem e semelhança de Deus. Necessário se torna reflectir com maior intensidade sobre os textos que disso falam. Fazem parte do primeiro capítulo do livro do Génesis, em que a descrição da criação do mundo é apresentada na sucessão de sete dias. A narrativa da criação do homem, no sexto dia, diversifica-se um pouco das descrições precedentes. Nestas somos testemunhas só do acto da criação, expresso com as palavras: Disse Deus - seja...; quando se trata do homem, o autor inspirado quer primeiro colocar em evidência a intenção e o desígnio do Criador (de Deus-Elohim); lemos de facto: Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança (Gn 1,26). Como se o Criador entrasse em Si mesmo; como se, criando, não só chamasse do nada à existência com a palavra "seja", mas como se, de modo particular, tirasse o homem do mistério do seu próprio ser. Isto é compreensível, porque não se trata somente do Ser, mas da Imagem. A imagem deve "espelhar", deve, em certo modo, quase reproduzir "a substância" do seu Protótipo. O Criador diz, além disso: à nossa semelhança. É óbvio que não se deve entender como um "retrato" mas como um ser vivo, que viva uma vida semelhante à de Deus.

Só depois destas palavras, que testemunham, por assim dizer, o desígnio de Deus-Criador, a Bíblia fala do acto mesmo da criação do homem:

Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher (Gn 1,27).

Esta descrição completa-se com a bênção. Há portanto: o desígnio, o acto mesmo da criação, e a bênção:

Abençoando-os, Deus disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra (Gn 1,28).

As últimas palavras da descrição, Deus, vendo toda a sua obra considerou-a muito boa (Gn 1,31), parecem ser o eco desta bênção.

3. Certamente o texto do Génesis é dos mais antigos: segundo os especialistas da Bíblia, foi escrito cerca do século IX antes de Cristo. Contém a verdade fundamental da nossa fé, o primeiro artigo do Credo apostólico. A parte do texto, que apresenta a criação do homem, é estupenda na simplicidade e ao mesmo tempo na profundidade. As afirmações que ela encerra correspondem à nossa experiência e ao nosso conhecimento do homem. É claro para todos, sem distinção de ideologia sobre a concepção do mundo, que o homem — embora pertencendo ao mundo visível, à natureza — se diferencia dalgum modo da mesma natureza. De facto, o mundo visível existe "para ele" e ele "exerce o domínio"; embora seja, em vários modos, "condicionado" pela natureza, ele "domina-a". Domina-a, com a força do que ele é, das suas capacidades e faculdades de ordem espiritual, que o distinguem do mundo natural. São exactamente estas faculdades que constituem o homem. Sobre tal ponto o livro do Génesis é extraordinariamente preciso. Definindo o homem "imagem de Deus", evidencia aquilo que faz que o homem seja homem; aquilo que faz que seja um ser distinto de todas as outras criaturas do mundo visível.

São conhecidas as numerosas tentativas que a ciência fez — e continua a fazer — nos vários campos, para demonstrar os laços do homem com o mundo natural e a sua dependência deste, com o fim de o inserir na história da evolução das diversas espécies. Se bem que respeitemos tais investigações, não podemos limitar-nos a elas. Se analisamos o homem no mais profundo do seu ser, vemos que ele mais se diferencia do mundo da natureza do que a ele se assemelha. Neste sentido procedem também a antropologia e a filosofia, quando procuram analisar e compreender a inteligência, a liberdade, a consciência e a espiritualidade do homem. O livro do Génesis parece ir contra todas estas experiências da ciência, e, falando do homem como "imagem de Deus", dá a entender que a resposta ao mistério da sua humanidade não se encontra no caminho da semelhança com o mundo da natureza. O homem parece-se mais com Deus do que com a natureza. Neste sentido diz o Salmo 62, 6: Vós sois deuses, palavras que depois retomará Jesus (Cfr. Jo Jn 10,34).

4. Esta afirmação é audaz. Requer-se fé para aceitá-la. Todavia a razão, sem preconceitos, não se opõe a tal verdade sobre o homem; pelo contrário, vê nela um complemento do que resulta da análise da realidade humana, e sobretudo do espírito humano.

É muito significativo que já o mesmo livro do Génesis, na longa narrativa da criação do homem, obriga o homem — o primeiro homem criado (Adão) — a fazer semelhante análise. O que nela Lemos pode "escandalizar" alguns, devido ao modo arcaico de expressão, mas ao mesmo tempo é impossível não admirar a actualidade dessa narração, quando se repara no ponto essencial do problema.

Eis o texto:

O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. Depois o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que havia formado. O Senhor Deus fez desabrochar da terra toda a espécie de árvores belas à vista e de saborosos frutos para comer, a árvore da vida ao meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal .Um rio nascia no Éden e ia regar o jardim, dividindo-se, a seguir, em quatro braços...

O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e também para o guardar... Depois o Senhor disse: Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele. Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo não encontrou para ele uma auxiliar adequada (Gn 2,7-20).

A que coisa assistimos nós? A isto: o primeiro "homem" efectua o primeiro e fundamental acto de conhecimento do mundo. Ao mesmo tempo, este acto permite-lhe conhecer-se e diferençar-se a si mesmo, "o homem", de todas as outras criaturas, e sobretudo daquelas que como "seres vivos" — dotados de vida vegetativa e sensitiva — mostram proporcionalmente a maior semelhança com ele, "com o homem", dotado também ele de vida vegetativa e sensitiva. Poder-se-ia dizer que este primeiro homem faz o que ordinariamente executa todo o homem de qualquer época; quer dizer: reflecte sobre o próprio ser e pergunta-se quem é ele.

Resultado de tal processo cognoscitivo é a verificação da diferença fundamental e essencial: sou diverso. Sou mais "diverso" do que "semelhante". A descrição bíblica termina: o homem não encontrou para ele uma auxiliar adequada (Gn 2,20).

5. Porque falamos hoje de tudo isto? — Fazemo-lo para melhor compreender o mistério do Advento, para o compreender partindo dos seus fundamentos — e assim penetrar com maior profundidade no nosso cristianismo.

O Advento significa "a Vinda".

Se Deus "vem" ao homem, fá-lo porque no seu ser humano preparou uma "dimensão de expectativa" por meio da qual o homem pode "acolher" a Deus, é capaz de o fazer.

Já o livro do Génesis, e sobretudo este capitulo, o explica quando, falando do homem, afirma que Deus o criou... à sua imagem (Gn 1,27).
* * *


Saudações

Aos doentinhos

Dirijo agora um pensamento cordial aos doentes para dizer que estou perto deles com particular afecto, para os exortar vivamente a que ofereçam o seu precioso sofrimento ao Senhor, como participação na obra da Sua Redenção e meio seguro de purificação, elevação e mérito para as suas almas; c, por último, para os certificar de que os recordo na oração ã Virgem Santíssima Imaculada, a fim de que eles sintam sempre a sua valiosa protecção e sejam confortados pelo seu maternal sorriso.

Aos jovens casais

Vão ainda uma ardente saudação, um sincero augúrio e uma bênção especial para os jovens casais, presentes nesta Audiência geral.

Benvindos, caros esposos, à casa do Pai Comum! A vós, que recebestes o "grande Sacramento" do Matrimónio, como o define o Apóstolo Paulo, desejamos cordialmente que o vivais "em Cristo e na Igreja".

Sede bons, sede piedosos, sede verdadeiramente cristãos; e o Senhor vos ampare e acompanhe com a sua graça.



PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 13 de Dezembro de 1978

A Criação é dom do Amor de Deus


1. Já pela terceira vez nestes nossos encontros das quartas-feiras, escolho o tema do Advento, seguindo o ritmo da liturgia, que, do modo mais simples e ao mesmo tempo mais profundo, nos introduz na vida da Igreja. O Concílio Vaticano II, que nos deu uma doutrina rica e universal sobre a Igreja, chamou a nossa atenção também para a Liturgia. Por meio dela conhecemos não só o que é a Igreja, mas experimentamos, dia após dia, aquilo de que ela vive. Também nós disso vivemos porque somos a Igreja: "A Liturgia... contribui no mais alto grau para que os fiéis, pela sua vida, exprimam e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja. F. próprio desta, ser humana ao mesmo tempo que divina, visível e dotada de elementos invisíveis, ardente em acção e ocupada na contemplação, presente e no mundo e todavia peregrina" (Const. Sacrosanctum Concilium SC 2).

Ora a Igreja vive o Advento e por isso os nossos encontros das quartas-feiras estão centrados em tal período litúrgico. Advento significa "Vinda". Para penetrar na realidade do Advento, procurámos até agora olhar na direcção de quem chega e para quem chega. Falámos portanto dum Deus que, ao criar o inundo, se revela a si mesmo: dum Deus Criador. E na quarta-feira passada falámos do homem. Hoje continuaremos para encontrar resposta mais completa à pergunta: Porquê "o Advento"? Porque vem Deus? Porque quer vir ao homem?

A liturgia do Advento funda-se principalmente sobre textos dos Profetas do Antigo Testamento. Nela fala quase todos os dias o profeta Isaías. Era este, na história do Povo de Deus da Antiga Aliança, especial "intérprete" da promessa, que tal Povo tinha anteriormente obtido de Deus na pessoa do seu tronco de família: Abraão. Como todos os outros profetas, e talvez mais que todos, Isaías reforçava nos seus contemporâneos a fé nas promessas de Deus confirmadas pela Aliança no sopé do monte Sinai. Ensinava sobretudo a perseverança na espera e na fidelidade: Povo de Sião o Senhor virá e fará ouvir a sua voz majestosa para alegria do vosso coração (Cfr. Is Is 30,19 Is Is 30,30).

Quando Cristo estava no mundo várias vezes se referiu às palavras de Isaías. Dizia claramente: Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir (Lc 4,21).

3. A liturgia do Advento é de carácter histórico. A expectativa da vinda do Ungido (Messias) foi um processo histórico. Penetrou, com efeito, toda a história de Israel, que foi escolhido precisamente a fim de que preparasse a vinda do Salvador.

As nossas considerações vão porém, em certo modo, além da liturgia quotidiana do Advento. Voltemos portanto à pergunta basilar. Porque vem Deus? Por que motivo quer Ele vir ao homem, humanidade? A estas perguntas buscamos respostas adequadas e buscamo-las nos inícios mesmos, isto é, antes ainda de começar a história do Povo eleito. Este ano, a nossa atenção dirige-se aos primeiros capítulos do livro do Génesis. O advento "histórico" não seria compreensível sem cuidadosa leitura e análise daqueles capítulos.

Por conseguinte, ao buscar uma resposta á pergunta "porquê?" o advento, devemos uma vez mais reler atentamente toda a narrativa da criação do mundo e, em especial, da criação do homem. É significativo (como já tive ocasião de insinuar) que os dias da criação, cada um deles termine com a afirmação "Deus viu que isto era bom"; mas, depois da criação do homem, está: "... viu que isto era muito bom". Esta verificação, como já disse na semana passada, une-se à bênção da criação e sobretudo a uma bênção explícita do homem.

Em toda esta descrição ,está diante de nós um Deus que, para usar a expressão de São Paulo, se compraz da verdade, do bem (Cfr. 1Cor 1Co 13,6). Onde está a alegria, que promana do bem, ai há amor. E só onde há amor, há a alegria que promana do bem. O livro do Génesis, desde os seus primeiros capítulos, revela-nos Deus que é Amor (embora de tal expressão se venha a servir muito mais tarde São João). Ele é Amor, pois goza com o bem. A criação é, portanto, ao mesmo tempo doação autêntica: onde há amor, há dom.

O livro do Génesis indica o início da existência do mundo e do homem. Interpretando-a, devemos sem dúvida, como fez São Tomás de Aquino, construir uma filosofia consequente do ser, filosofia em que virá expressa a ordem mesma da existência. Todavia o livro do Génesis fala da criação como dom. Deus, criador do mundo visível, é dador; e o homem é aquele que recebe o dom. É aquele para o qual Deus cria o mundo visível, aquele que Deus, desde os inícios, introduz não só na ordem da existência, mas também na ordem da doação. Ser o homem "imagem e semelhança" de Deus significa, além do mais, ser ele capaz de receber o dom, ser sensível a este dom e ser capaz de o retribuir. Exactamente por isso Deus, desde o principio, estabelece com o homem, e só com ele, a aliança. O livro do Génesis revela-nos não só a ordem natural da existência, mas ao mesmo tempo, desde o principio, a ordem sobrenatural da graça. Da graça só podemos falar se admitimos a realidade do Dom. Do catecismo recordemos: a graça é o dom sobrenatural de Deus pelo qual nos tornamos filhos de Deus e herdeiros do céu.

4. Que relação tem tudo isto com o Advento? Podemos com razão perguntar-nos. Respondo: o Advento desenhou-se pela primeira vez no horizonte da história do homem; quando Deus se revelou a Si mesmo como Aquele que se compraz do bem, que ama e que dá. Neste dom ao homem, Deus não se limitou a "dar-lhe" o mundo visível — isto é claro desde o princípio — mas, dando ao homem o mundo visível, Deus quer dar-se-lhe também a Si mesmo, assim como o homem é capaz de dar-se, assim como "se dá a si mesmo" a outro homem: de pessoa a pessoa; isto é, dar-se a Si mesmo a ele, admitindo-o à participação dos Seus mistérios, mais, à participação da Sua vida. Isto pratica-se de modo tangível nas relações entre familiares: marido-esposa, pais-filhos. Eis porque os profetas se referem muitas vezes a tais relações, para mostrarem a verdadeira imagem de Deus.

A ordem da graça é possível só "no mundo das pessoas". Diz respeito ao dom que tende sempre à formação e à comunhão das pessoas; de facto, o livro do Génesis apresenta-nos uma tal doação. A forma, desta "comunhão de pessoas" está nele desenhada desde o princípio. O homem é chamado à familiaridade com Deus, à intimidade e amizade cone Ele. Deus quer estar perto dele. Quer torná-lo participante dos seus desígnios. Quer torná-lo participante da sua vida. Quer torná-lo feliz da sua mesma felicidade (do seu mesmo Ser).

Por tudo isto é necessária a Vinda de Deus, e a expectativa do homem: a disponibilidade do homem.

Sabemos que o primeiro homem, que desfrutava da inocência original e duma especial vizinhança com o seu Criador, não demonstrou essa disponibilidade. A primeira aliança de Deus com o homem foi interrompida, mas não cessou da parte de Deus a vontade de salvar o homem. Não se desfez a ordem da graça, e por isso o Advento dura sempre.

A realidade do Advento é expressa também pelas seguintes palavras de São Paulo: "Deus... quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade" (1Tm 2,4).

Esse "Deus quer" é exactamente o Advento, e encontra-se na base de todos os adventos.
* * *


Saudações

À Academia Sistina

Desejo agora dirigir uma saudação especial ao Senhor Cardeal Palazzini e aos Membros da "Academia Sistina" por ele acompanhados.

Sei que já o meu muito amado Predecessor Paulo VI encontrou modo, o ano passado, de manifestar o Seu apreço pela vossa Associação, nessa altura constituída. Também eu tenho o prazer de confirmar tal sentimento, animando-vos nesta vossa actividade de investigação a respeito da grande figura do Papa Sisto V e, em geral, da promoção cultural e humana no nome e na memória deste ilustre e ainda hoje admirado Pontífice da Igreja Romana.

Convosco Sócios da Academia, desejo também saudar e abençoar os peregrinos que se reuniram aqui, vindos da sua terra natal.

Aos jovens casais

Dirijo depois uma saudação cordial e um augúrio sincero aos jovens esposos que também hoje estão aqui presentes em bons número. Abençoe o Senhor o vosso amor, esteja Ele perto de vós e vos acompanhe durante a vida, que escolhestes percorrer juntos, até à morte.

Aos doentinhos

Uma saudação e uma bênção especial aos doentinhos que estão aqui presentes e a todos os que sofrem. O meu pensamento corre e chega a toda a parta onde a dor física ou moral atormenta e mortifica no mundo seres humanos.

Seguindo as crónicas quotidianas, encontram-se dramas e sofrimentos que apertam o coração. Em especial desejaria recordar todos aqueles que se encontram na aflição por causa duma forma de violência que se tornou, por desgraça, tão frequente nestes últimos anos: a dos sequestros.

É uma praga indigna de Países civilizados, que chegou infelizmente a formas de crueldade que horrorizam.

Em nome de Deus suplico aos responsáveis queiram dar liberdade àqueles que retêm em sequestro e lembro-lhes que Deus castiga as más acções dos homens. Toque o Senhor verdadeiramente os seus corações e leve a que triunfe aquela centelha de humanidade que não pode faltar aos seus ânimos, obtendo-se deste modo remate plausível pala um acto muito lastimoso.



AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 20 de Dezembro de 1978

A dimensão ética na vida do homem

1. O nosso encontro de hoje oferece-nos ensejo para a quarta e turma meditação sobre o Advento. O Senhor está perto, recorda-no-lo, todos os dias, a liturgia do Advento. Esta vizinhança do Senhor todos a sentimos: tanto nós, sacerdotes, rezando todos os dias as admiráveis "antífonas maiores" do Advento, como todos os cristãos que procuram preparar os corações e consciências para a Sua vinda. Sei que neste período os confessionários nas igrejas da minha pátria, a Polónia, são assediados, não menos que durante a Quaresma. Penso que assim será certamente também aqui na Itália e em toda a parte onde o espírito de fé faz sentir a necessidade de abrir a alma ao Senhor que está para vir. A alegria maior desta expectativa do Advento é a que vivem as crianças. Lembro-me que elas precisamente gostavam de se apressar nas paróquias da minha pátria para as Missas que se celebram à aurora (chamadas "Rorate...", da palavra com que se inicia a liturgia: Rorate coeli: destilai, ó céus, lá das alturas, o orvalho [ Is 45 .


Contavam todos os dias quantos "degraus" faltavam ainda na "escada do céu", pela qual Jesus desceria à terra, para O poderem encontrar à meia-noite do Natal no presépio de Belém.

O Senhor está perto!

2. Há uma semana, falámos já desta aproximação do Senhor. Este foi, com efeito, o tema terceiro das considerações das quartas-feiras, escolhidas para o Advento deste ano. Fomos meditando, referindo-nos aos princípios mesmos da humanidade, isto é ao livro do Génesis, as verdades fundamentais do Advento: Deus criador (Elohim) e nesta criação revela-se simultaneamente a Si mesmo; o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, "é espelho" de Deus no mundo visível criado. Estes foram os primeiros e fundamentais temas das nossas meditações durante o Advento. Depois o terceiro tema que pode resumir-se brevemente na palavra "graça". Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4). Deus quer que o homem seja participante da Sua verdade, do Seu amor e do Seu mistério, a fim de poder tomar parte na vida do próprio Deus. "A árvore da vida" simboliza esta realidade já desde as primeiras páginas da Sagrada Escritura. Todavia, encontramo-nos também nas mesmas paginas com outra árvore: o livro do Génesis chama-lhe "árvore do conhecimento do bem e do mal" (Gn 2,16). Para que possa comer o fruto da árvore da vida, o homem não deve tocar no fruto da árvore "do conhecimento do bem e do mal". Pode esta expressão parecer lenda arcaica. Mas quanto mais penetramos na "realidade do homem", como nos foi dado deduzi-la da sua história terrena — assim como dela falam a cada um de nós a nossa experiência humana interior e a nossa consciência moral —, tanto mais advertimos que não podemos ficar indiferentes, sacudindo os ombros diante destas imagens bíblicas primitivas. Que enorme carga de verdade existencial, sobre o homem, não incluem elas! Verdade que sente cada um de nós como própria. Ovídio, o antigo poeta romano, pagão, não disse porventura de modo explícito: "Video meliora proboque, deteriora sequor" — Vejo o que é melhor, aprovo-o, mas sigo o que é pior (Metamorfoses. VII. 20). As suas palavras não andam muito longe do que mais tarde escreveu São Paulo: "Não compreendo o que faço, pois não faço aquilo que quero, mas sim aquilo que aborreço" (Cfr. Rom. Rm 7 Rom. Rm 15). O homem, depois do pecado original, está entre "o bem e o mal".

"A realidade do homem" — a mais profunda "realidade do homem" — parece desenvolver-se continuamente entre o que desde o princípio foi definido como a "árvore da vida" e aquilo que foi definido como "a árvore do conhecimento do bem e do mal". Por isso, nas nossas meditações sobre o Advento, que dizem respeito às leis fundamentais, às realidades essenciais, não se pode excluir outro tema: aquele que se exprime coro a palavra pecado.

3. Pecado. O catecismo diz-nos, de modo simples e fácil de recordar, que ele é transgressão do mandamento de Deus. O pecado é, sem dúvida, transgressão dum princípio moral, violação duma "norma'' — e sobre isto estão todos de acordo, mesmo os que não querem ouvir falar de "mandamentos de Deus". Também eles estão concordes em admitir que as principais normas morais, os mais elementares princípios de comportamento, sem os quais a vida e a convivência entre os homens não é possível, são precisamente aqueles que nós conhecemos como "mandamentos de Deus" (em particular o quarto, o quinto, o sexto, o sétimo e o oitavo). A vida do homem, a convivência entre os homens, decorre numa dimensão ética, e nisto está a sua característica essencial, e é também a dimensão essencial da cultura humana.

Desejaria contudo que hoje nos concentrássemos naquele "primeiro pecado" que — apesar do que ordinariamente se pensa — é descrito no livro do Génesis com tanta precisão que demonstra toda a profundidade da "realidade do homem" nele encerrada. Este pecado tem origem contemporaneamente "fora" (na tentação) e "dentro". A tentação é expressa nas seguintes palavras do tentador: Deus sabe que, no dia em que o comerdes (o fruto), abrir-se-vos-ão os olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal (Gn 3,5). A tentação atinge precisamente aquilo que o Criador plasmou no homem — porque, na realidade, ele foi criado à "semelhança de Deus", o que significa "assim como Deus". Atinge também o desejo do conhecimento que está no homem, o desejo da dignidade. Só que um e outro são falsificados, de maneira que o desejo do conhecimento como o da dignidade — isto é, da semelhança com Deus — são usados, no acto da tentação, para contrapor o homem a Deus. O tentador coloca o homem contra Deus, sugerindo-lhe que Deus é o seu adversário, que procura mantê-lo, ao homem, no estado de ignorância; que procura "limitá-lo" para submetê-lo. O tentador diz: Não, não morrereis; mas Deus sabe que, no dia em que o comerdes, se vos abrirão os olhos e vos tornareis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal (Segundo a antiga tradução: "sereis como deuses") (Gn 3 Gn 4-5).

É necessário, e não uma vez só, meditar esta descrição "arcaica". Não sei se na Sagrada Escritura se podem encontrar muitos outros passos em que a realidade do pecado seja descrita não só na sua forma de origem mas também na sua essência, isto é, onde a realidade do pecado seja apresentada em dimensões tão plenas e profundas, demonstrando como o homem usou contra Deus exactamente o que nele era de Deus. o que devia servir para avizinhá-lo a Deus.

É necessário, e não uma vez só, meditar esta descrição "arcaica". Não sei se na Sagrada Escritura se podem encontrar muitos outros passos em que a realidade do pecado seja descrita não só na sua forma de origem mas também na sua essência, isto é, onde a realidade do pecado seja apresentada em dimensões tão plenas e profundas, demonstrando como o homem usou contra Deus exactamente o que nele era de Deus, o que devia servir para avizinhá-lo a Deus.

4. Porque falamos hoje de tudo isto? Para melhor se compreender o Advento. Advento quer dizer: Deus que vem, porque quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4). Vem porque criou o mundo e o homem por amor, e estabeleceu com ele a ordem da graça.

Vem contudo "por causa do pecado"
vem "apesar do pecado"
vem para tirar o pecado.

Não nos admiremos que, na Noite de Natal, não encontre acolhimento nas casas de Belém e tenha de nascer num curral (na gruta que servia de abrigo aos animais).

Por isso, tanto mais importante é o facto de ele vir.

O Advento recorda-nos, todos os anos, que a graça, isto é a vontade de Deus de salvar o homem, tem mais poder que o pecado.
* * *


Saudações

Aos Doentinhos e aos Anciãos

Permiti que dirija agora o meu pensamento especial a vós, doentes e inválidos, que trazeis no vosso corpo ferido c dorido os sinais da paixão do Senhor, e a vós anciãos das barracas da periferia romana. que sois amorosamente assistidos hoje aqui acompanhados — pelas boas Irmãs da Madre Teresa de Calcutá.

Dir-vos-ei com afecto muito especial: sabei suportar o sofrimento com fortaleza cristã, sem nunca perder ânimo. O Senhor está perto de vós: atribuí valor eminente ã vossa dor, santificai-a com os vossos sofrimentos, abandonando-vos com confiança Àquele que misteriosamente vos prova, para saberdes "sofrer com Ele, afim de serdes com Ele glorificados" (cfr. Rm 8,17). A alegria do Natal, anunciada pelos anjos aos pastores de Belém, procure-vos conforto e alívio, juntamente com a paz que é o dom mais belo trazido aos homens pelo recém-nascido Redentor. Dê eficácia a estes votos a especial bênção apostólica que de todo o coração concedo a vós e a todos quantos vos assistem.

Aos jovens casais

Saúdo cm seguida os jovens casais que estão aqui presentes. A eles e à nova família cristã dirijo os meus votos. Caríssimos filhos, o Senhor abençoou o vosso amor e acompanha-vos no vosso caminho. Insisti cada vez mais no colóquio com Deus e na santificação da vossa vida, também e exactamente porque o Senhor fez que vos encontrásseis e porque vos uniu.

A todos a minha bênção.





AUDIÊNCIAS 1978