Discursos João Paulo II 1978 - Quinta-feira, 9 de Novembro de 1978

E a segunda esperança que eu desejaria expressar hoje, é a esperança da preservação da grande disciplina da Igreja — esperança eloquentemente formulada por João Paulo I no dia seguinte à sua eleição: "Queremos conservar intacta a grande disciplina da Igreja, na vida dos sacerdotes e dos fiéis, tal, como a história da Igreja, enriquecida pela experiência, a apresentou através dos séculos, com exemplos de santidade e heroísmo, quer no exercício das virtudes evangélicas, quer no serviço dos pobres, dos humildes e dos indefesos".

Estas duas esperanças não constituem as nossas únicas aspirações ou o objecto único das nossas preces, mas são merecedoras de esforços pastorais intensos e de apostólica diligência. Tais esforços e diligência da nossa parte são ainda uma expressão do amor real e da solicitude pelo rebanho confiado ao nosso cuidado por Jesus Cristo, o Pastor supremo — cargo pastoral para ser exercido dentro da unidade da Igreja universal e no contexto da colegialidade do Episcopado.

Estas esperanças quanto à vida da Igreja — pureza de doutrina e sólida disciplina — dependem intimamente de cada nova geração de sacerdotes, que com generosidade de amor continuem a obrigação da Igreja quanto ao Evangelho. Por este motivo, Paulo VI mostrou grande sabedoria pedindo aos Bispos Americanos: "Desempenhai com amorosa atenção pessoal a vossa grande responsabilidade pastoral com os seminaristas mantendo-vos informados dos estudos deles; animai-os a que amem a palavra de Deus e a que nunca se envergonhem da aparente loucura da cruz" (Alocução de 20 de Junho de 1977). E é hoje o meu grande desejo que nova insistência, na importância da doutrina e disciplina, seja o contributo pós-conciliar dos vossos seminários, de maneira que a palavra de Deus se propague rapidamente e seja acolhida com honra (2Th 3,1).

E, em todos os vossos trabalhos pastorais, podeis estar seguros que o Papa está unido convosco e perto de vós no amor de Jesus Cristo. Todos nós temos uma obrigação única: mostrarmo-nos fiéis ao cargo pastoral que nos foi confiado, levarmos o Povo de Deus por sendas direitas por amor do seu nome (Ps 23,3), de maneira que, pastoralmente responsabilizados, possamos com Jesus dizer ao Pai: Enquanto estava com eles no mundo, guardava-os em teu nome. Guardei aqueles que me deste e nenhum deles se perdeu... (Jn 17,12).

Em nome de Jesus, esteja a paz convosco e com todo o vosso povo. Com a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO CLERO ROMANO


Sala das Bênçãos

Quinta-feira, 9 de Novembro de 1978

Senhor Cardeal

Desejo agradecer de todo o coração as palavras que me foram dirigidas no principio deste nosso encontro de hoje. Juntamente com o Cardeal Vigário, com Monsenhor Vice-Gerente e os Bispos Auxiliares, está aqui presente o Clero da Diocese de Roma para encontrar-se com o novo Bispo de Roma, designado por Cristo por meio do voto dos Cardeais no Conclave de 16 de Outubro, depois da morte improvisa do tão amado Papa João Paulo I. Devo confessar-vos, caros Irmãos, que muito desejei este encontro e muito o esperei. Todavia, recebendo a herança dos meus Veneráveis Predecessores — de facto, apenas três meses nos separam também da morte do grande Papa Paulo VI — pensava convir que o fosse realizando gradualmente. Tanto mais que as circunstâncias são bem insólitas.

A sucessão dos Bispos de Roma há 455 anos que não incluía um Papa que viesse de fora dos limites da Itália. Por isso julguei necessário que a tomada de posse da Diocese de Roma, unida ao solene ingresso na Basílica de São João de Latrão, viesse em seguida a um período de preparação. Entretanto, quis inserir-me nesta esplêndida corrente da tradição cristã da Itália, expressa pelas figuras dos seus Patronos: São Francisco de Assis e Santa Catarina de Sena. Depois desta preparação, desejo cumprir o dever fundamental do meu pontificado, isto é, tornar posse de Roma como Diocese, como Igreja desta Cidade, assumir oficialmente a responsabilidade desta Comunidade, desta tradição em cujas origens se encontra o Apóstolo São Pedro. Estou profundamente convencido de que me tornei Papa da Igreja universal, porque Bispo de Roma. O ministério (múnus) do Bispo de Roma, como Sucessor de Pedro, é a raiz da universalidade.

O nosso encontro de hoje, na festa da Dedicação da Basílica Lateranense, é quase inauguração do acto solene que se realizará no próximo domingo. Saúdo o Cardeal Vigário, Monsenhor Vice-Gerente, os Bispos e todos os Sacerdotes aqui reunidos, quer diocesanos quer religiosos. A todos dirijo as minhas cordiais boas-vindas em nome de Cristo Salvador.

Com grande atenção escutei o discurso do Cardeal Vigário. Acrescento que já antes do nosso encontro de hoje, ele teve a bondade de me comunicar várias questões relativas à Diocese de Roma, e em especial à actividade pastoral que nela, primeira em dignidade entre as dioceses da Igreja, pesa sobre os vossos ombros, caros Irmãos Sacerdotes.

Enquanto ouvia o discurso, verificava com alegria que estou perto dos problemas mais essenciais. Fazem parte de toda a minha experiência precedente. 20 anos de serviço episcopal e quase 15 de direcção pastoral numa das mais antigas dioceses da Polónia, a Arquidiocese de Cracóvia, levam a que esses problemas revivam agora nas minhas recordações, obrigando-me a compará-los com os actuais, conservando porém — como é óbvio — a consciência da diversidade das situações. Sei bem o que significa a evangelização e actividade pastoral numa cidade, cujo centro histórico é rico de igrejas que se despovoam, enquanto surgem ao mesmo tempo novos bairros e povoados, a que é necessário prover, muitas vezes lutando mesmo para obter novas igrejas, novas paróquias e as outras condições fundamentais para a evangelização. Lembro-me dos admiráveis, zelosos e frequentemente heróicos sacerdotes, com quem me foi dado partilhar a solicitude e as lutas. Neste caminho, a fé, alimentada pela tradição, adquire força nova. A laicização, programada ou nascida de hábitos e predisposições dos habitantes duma grande cidade, detém-se quando encontra um testemunho vivo de fé, que sabe evidenciar também a dimensão social do Evangelho.

Sei também, caros Irmãos, o significado que tem cada uma das instituições e estruturas a que o Cardeal Vigário teve a bondade de aludir. Quer dizer, a Cúria — no nosso caso, o Vicariato de Roma —, as Prefeituras e o correspondente Conselho dos Párocos Prefeitos e o Conselho Presbiteral. Aprendi a atribuir o devido valor a todas estas formas de trabalho em grupo. Não são apenas estruturas administrativas, mas centros .por meio dos quais se exprime e se realiza a nossa comunhão sacerdotal, e ao mesmo tempo a união do serviço pastoral e da evangelização. No meu precedente trabalho episcopal prestou-me grande serviço o Conselho Presbiteral, seja como comunidade seja como lugar de encontro para compartilhar, juntamente com o Bispo, a solicitude comum acerca de toda a vida do "presbiterium" e para a eficácia da sua actividade pastoral.

Entre as instituições que enumerou o Cardeal Vigário no seu discurso, estiveram-me sempre muito próximas e muito as estimei sempre, no meu precedente serviço de Bispo, estas três: o Seminário diocesano, a Universidade de Ciências Teológicas e a Paróquia.

Quanto não desejaria contribuir para que se desenvolvessem! O Seminário é de facto "a pupila dos olhos" não só dos Bispos, mas de toda a Igreja local e universal. A Universidade de Ciências Teológicas — neste caso a Universidade Lateranense — ser-me-á tão querida quanto me era e continua a ser a Faculdade de Teologia em Cracóvia, com os estudos anexos. Quanto à Paróquia, quão profunda razão encontro para afirmar que o Bispo se sente mais à sua vontade "na paróquia"! As vi-sitas às paróquias — fundamentais células organizadoras da Igreja e ao mesmo tempo da comunidade do Povo de Deus — quanto as estimava eu! Espero poder continuá-las também aqui, para conhecer os vossos problemas e os das paróquias. A este propósito, já tivemos conversas preliminares com Sua Eminência e os Seus Bispos.

Tudo isto que digo refere-se a vós e toca-vos directamente, caros Irmãos Sacerdotes Romanos. Enquanto estou aqui convosco pela primeira vez e vos saúdo com sincero afecto, tenho diante dos olhos e no coração o "presbiterium" da Igreja de Cracóvia — todos os nossos encontros em várias ocasiões —, os numerosos colóquios que tiveram início já nos anos do Seminário — os encontros dos sacerdotes, companheiros de Ordenação de cada um dos cursos seminaristicos, a que sempre fui convidado e em que participei com alegria e proveito!

Sem dúvida que não será possível transferir tudo isto para aqui, nas novas condições de trabalho, mas devemos fazer todo o possível para estarmos perto, para formarmos o "unum", a comunhão sacerdotal, composta de todo o Clero diocesano e religioso, e de todos os Sacerdotes provenientes das várias partes do mundo que trabalham na Cúria Romana e que também se dedicam com solicitude ao ministério pastoral. Esta comunhão dos Sacerdotes entre si e com o Bispo é a condição fundamental da união entre todo o Povo de Deus. Constrói a sua unidade no pluralismo e na solidariedade cristã. A união dos Sacerdotes com o Bispo deve tornar-se a fonte da união recíproca dos sacerdotes entre si e dos grupos de sacerdotes. Esta união, em cuja base encontramos a consciência da nossa grande missão, exprime-se mediante a troca de serviços e de experiências, a disponibilidade para a colaboração, o empenho em todas as actividades pastorais, tanto na Paróquia como na catequese ou também em dirigir a acção apostólica dos leigos.

Caros Irmãos, devemos amar do mais profundo da alma o nosso Sacerdócio, como grande `"sacramento social". Devemos amá-lo como essência da nossa vida e da nossa vocação, como base da nossa identidade cristã e humana. Nenhum de nós pode ser dividido em si mesmo. O sacerdócio sacramental, o sacerdócio ministerial, exige especial fé, especial actividade de todas as forças da alma e do corpo, exige especial consciência da própria vocação, como vocação excepcional. Cada um de nós deve, de joelhos, agradecer a Cristo o dom desta vocação: Como agradecerei ao Senhor tudo quanto Ele me deu? Elevarei o cálice da salvação, invocando o nome do Senhor (Ps 115).

Devemos tomar, caros Irmãos, "o cálice da salvação". Somos necessários aos homens, somos imensamente necessários, e não a meio serviço, a metade do tempo, como "empregados". Somos necessários como quem dá testemunho e desperta nos outros a necessidade de darem testemunho. E se às vezes pode parecer que não somos necessários, quer dizer que devemos começar a dar um testemunho mais claro, e então nos capacitaremos de quanto o mundo de hoje tem necessidade do nosso testemunho sacerdotal, do nosso sacerdócio,

Devemos dar e oferecer aos homens do nosso tempo, aos nossos fiéis, ao povo de Roma, este nosso testemunho com toda a nossa existência humana, com todo o nosso ser. O testemunho sacerdotal, o teu, caríssimo irmão sacerdote, e o meu, requerem toda a nossa pessoa. Sim, o Senhor parece, de facto, dizer-nos:

"Preciso das tuas mãos para continuar a abençoar, / Preciso dos teus lábios para continuar a falar, / Preciso do teu corpo para continuar a sofrer. / Preciso do teu coração para continuar a amar, / Precisa de ti para continuar a salvar" (Michel Quoist, Oração).

Não nos iludamos julgando servir o Evangelho se tentamos "diluir" o nosso carisma sacerdotal mediante um interesse exagerado pelo vasto campo dos problemas temporais, se desejamos "laicizar" o nosso modo de viver e de proceder, se apagamos até os sinais exteriores da nossa vocação sacerdotal. Devemos conservar o sentido da nossa singular vocação, e tal "singularidade" deve exprimir-se também no nosso vestuário exterior. Não nos envergonhemos! Sim, estejamos no mundo! Mas não sejamos do inundo!

O Concilio Vaticano II recordou-nos esta esplêndida verdade sobre o "sacerdócio universal" de todo o Povo de Deus, que deriva da participação no Sacerdócio único de Jesus Crista. q nosso sacerdócio "ministerial", radicado no Sacramento da Ordem, distingue-se essencialmente do sacerdócio universal dos fiéis. E foi constituído com o fim de iluminar mais eficazmente os nossos irmãos e irmãs que vivem no mundo — isto é, os leigos — sobre o facto de sermos todos, em Jesus Cristo, "reino de sacerdotes" para o Pai. O sacerdote atinge tal finalidade por meio do ministério da palavra e dos sacramentos que lhe é próprio, e sobretudo por meio do sacrifício eucarístico, para o qual só ele está autorizado, tudo isto realiza o sacerdote, mas graças a um estilo adequado de vida. Por isso o nosso sacerdócio deve ser límpido e expressivo. E se ele está, na tradição da nossa Igreja, estreita: mente ligado ao celibato, está-o exactamente pela limpidez e expressividade "evangélica", a que se referem as palavras de Nosso Senhor sobre o celibato "para o reino dos céus" (Cfr. Mt Mt 19,12).

O Concílio Vaticano II e um dos primeiros Sínodos Episcopais, o de 1971, prestaram grande atenção às sobreditas questões. Recordemo-nos, além disso, que, durante esse Sínodo, o Papa Paulo VI elevou aos altares o Beato Maximiliano Kolbe, sacerdote. Hoje desejo referir-me a tudo o que foi então enunciado, como também a este testemunho sacerdotal do meu compatriota.

Queria confiar-vos ainda outro problema que tenho muito a peito: as vocações sacerdotais para esta nossa cara Cidade e amada Diocese de Roma! Tornai-vos participantes, caros sacerdotes, desta minha preocupação e solicitude! Retomai as vossas recordações mais pessoais. Não esteve acaso na origem da vossa vocação um sacerdote exemplar que vos guiou, nos vossos primeiros passos para o sacerdócio? O vosso primeiro pensamento, o vosso primeiro desejo de seguir o Senhor, não está ligado a uma pessoa concreta dum sacerdote-confessor, dum sacerdote-amigo? Volte a esse sacerdote o vosso pensamento reconhecido, o vosso coração repleto de gratidão. Sim, o Senhor precisa de intermediários, de instrumentos para fazer que se oiça a Sua voz, o Seu chamamento. Caros Sacerdotes, oferecei-vos ao Senhor para serdes os Seus instrumentos em chamar novos operários para a Sua vinha. Não faltam jovens generosos.

Com grande humildade e amor peço a Cristo, único e eterno Sacerdote, por intercessão da Sua e nossa Mães, tão venerada na imagem conhecida no mundo inteiro como "Salus Populi Romani", que o nosso serviço sacerdotal e pastoral nesta — que é a mais venerável Diocese da Igreja Universal — seja abençoado e dê copiosos frutos. Referindo-me portanto à oração sacerdotal de Jesus Cristo, termino com estas palavras: Pai Santo, guarda em Teu nome aqueles que Me deste, para que sejam uma só coisa... para que eles sejam também consagrados na verdade (Jn 17,11 Jn 17,19).



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


ÀS RELIGIOSAS RESIDENTES EM ROMA


Sexta-feira, 10 de Novembro de 1978

Queridas Irmãs

1. Ontem, na festividade da dedicação da Basílica do Santíssimo Salvador no Latrão, iniciei a preparação para o grande acto da tomada de posse dessa Basílica — Cátedra do Bispo de Roma —, acto que se realizará no próximo domingo. Para isso encontrei-me ontem com o Clero da Diocese de Roma, com os Sacerdotes ocupados sobretudo na pastoral diocesana. Hoje encontro-me convosco, Religiosas. Desejei que este encontro seguisse imediatamente o de ontem. Assim, como novo Bispo de Roma, posso aproximar-me daqueles que formam, em certo modo, as principais reservas espirituais desta Diocese, que é a primeira entre todas as dioceses da Igreja, e posso ter ao menos um primeiro contacto com elas. Esta aproximação e este conhecimento tenho-os muito a peito.

Viestes aqui numerosíssimas! Talvez nenhuma cátedra episcopal do mundo possa contar tantas. O Cardeal Vigário de Roma informou-me que no território da Diocese há cerca de 20.000 Religiosas, cerca de 200 Casas Generalícias e cerca de 500 Casas Provinciais de várias Ordens e Congregações femininas. Estas Casas estão ao serviço das vossas Famílias religiosas no raio de toda a Igreja, ou das províncias que ultrapassam o território da cidade de Roma. Durante os anos do meu ministério episcopal, encontrei-me muitas vezes com as Ordens femininas (Cracóvia é na Polónia a mais rica nessas Ordens) e tive a possibilidade de verificar quanto: cada Congregação deseja ter uma Casa, e sobretudo a Casa Generalícia, precisamente em Roma, perto do Papa. Disto me alegro e vos estou agradecido, embora seja de parecer que vos devíeis conservar sempre fiéis ao lugar do vosso nascimento, onde está a Casa-Mãe, onde, pela primeira vez, se acendeu a luz da nova comunidade, da nova vocação, da nova missão na Igreja.

2. Dou as boas-vindas a todas vós, Irmãs, que hoje estais aqui reunidas. Quero saudar-vos em primeiro lugar como novo Bispo de Roma e desejo indicar claramente o vosso lugar nesta "Igreja local", nesta Diocese concreta, de que me preparo a tornar solenemente posse no próximo domingo. Baseando-me na viva tradição secular da Igreja, na recente doutrina do Concílio Vaticano II e também nas minhas antecedentes experiências de Bispo, venho aqui com a convicção profunda de este ser "um lugar" especial.

Isto resulta da visão do homem e da sua vocação, que o próprio Cristo nos manifestou. Qui potest capere, capiat — Quem pode compreender, compreenda (Mt 19,12), assim disse Ele aos seus discípulos, que lhe faziam perguntas insistentes sobre a legislação do Antigo Testamento e sobretudo sobre a legislação relativa ao matrimónio. Nestas perguntas, como também na tradição do Antigo Testamento, incluía-se certa limitação daquela liberdade dos filhos de Deus que nos trouxe Cristo e que, depois, São Paulo encareceu com tanta energia. A vocação religiosa é precisamente fruto desta liberdade de espírito, despertada por Cristo, da qual brota a disponibilidade da doação total a Deus. A vocação religiosa está na aceitação duma disciplina severa, que não provém dum mandamento mas dum conselho evangélico: conselho de castidade, conselho de pobreza e conselho de obediência. E tudo isto, abraçado conscientemente e radicado no amor pelo Divino Esposo, constitui de facto a revelação particular de quanto é profunda a liberdade do espírito humano. Liberdade dos filhos de Deus: filhos e filhas.

Tal vocação deriva duma fé viva, coerente até às últimas consequências, a qual abre ao homem a perspectiva final, isto é a perspectiva do que é digno dum amor "acima de todas as coisas", amor exclusivo e esponsal. Este amor consiste na doação de todo o nosso ser humano, alma e corpo, Àquele que se deu completamente a nós homens, mediante a Encarnação, a Cruz e a aniquilação, mediante a pobreza, a castidade e a obediência: fez-se pobre por nós... para que nós nos tornássemos ricos (Cfr. 2Co 8,9). Assim portanto, desta riqueza da fé viva nasce a vocação religiosa.

Esta vocação é como a centelha que acende na alma uma "viva chama de amor", como escreveu São João da Cruz. Esta vocação, uma vez que é aceita, uma vez que é confirmada solenemente por meio dos votos, deve ser continuamente alimentada pela riqueza da fé, não só quando leva consigo a alegria interior, mas também quando está unida às dificuldades, à aridez, ao sofrimento interior, chamado "noite" da alma. Esta vocação é tesouro peculiar da Igreja, que não pode nunca interromper de orar para que o Espirito de Jesus Cristo suscite nas almas vocações religiosas. De facto, elas são tanto para a comunidade do Povo de Deus quanto para o "mundo", sinal vivo do "século futuro": sinal que ao mesmo tempo se radica (mesmo por meio do vosso hábito religioso) na vida quotidiana da Igreja e da sociedade, e penetra os seus tecidos mais delicados. As pessoas que amaram a Deus sem reserva são de modo particular capazes de amar o homem e de a ele se darem sem interesses pessoais e sem limites. Temos acaso necessidade de provas? Encontramo-las em todas as épocas da vida da Igreja, encontramo-las também nos nossos tempos. Durante o meu precedente ministério episcopal, esses testemunhos encontrava-os a cada passo. Recordo-me dos Institutos e dos Hospitais para os doentes mais graves e para os diminuídos. Em toda a parte, onde ninguém podia já prestar serviço próprio do bom Samaritano, aí se encontrava ainda sempre uma Irmã.

3. Este é aliás um apenas dos campos da actividade, e portanto só um exemplo. Tais campos são na realidade muitos numerosos, sem dúvida. Pois bem, encontrando-me hoje convosco aqui pela primeira vez, queridas Irmãs, desejo dizer-vos antes de tudo que em toda a Igreja, especialmente aqui em Roma, nesta Diocese, é indispensável a vossa presença. Deve ser para todos sinal visível do Evangelho. Deve ser também a fonte de especial apostolado. Este apostolado é tão variado e rico, que se me torna mesmo difícil enumerar aqui todas as suas formas, os seus campos e as suas orientações. Está unido ao carisma especifico de cada Congregação, ao seu espírito apostólico, que a Igreja e a Santa Sé aprovam com alegria, vendo nele a expressão da vitalidade do próprio Corpo Místico de Cristo! Tal apostolado é ordinariamente discreto, oculto, próximo do ser humano, e por isso convém mais à alma feminina, sensível ao próximo, e portanto chamada à missão de irmã e de mãe. Ë exactamente esta vocação que se encontra no "coração" mesmo do vosso ser de Religiosas. Como Bispo de Roma peço-vos: sede espiritualmente mães e irmãs para todos os homens desta Igreja, que Jesus, na sua inefável misericórdia e graça, quis confiar-me. Sede-o para todos, sem excepção, mas sobretudo para os doentes, os que sofrem, os abandonados, as crianças, os jovens, as famílias que se encontram em situações difíceis... Ide-lhes ao encontro! Não espereis que venham ter convosco! Procurai vós mesmas! O amor impele-nos a isto. O amor deve procurar! Caritas Christi urget nos — o amor de Cristo impele-nos (2Co 5,14).

E o outro pedido vos faço ainda, no princípio deste meu ministério pastoral: empenhai-vos generosamente em colaborar com a graça de Deus, para que muitas almas juvenis oiçam o chamamento do Senhor e novas forças venham aumentar as vossas fileiras, para satisfazerdes às exigências crescentes, que vão nascendo nos vastos campos do apostolado moderno. A primeira forma de colaboração está certamente em invocar com assiduidade o Senhor da messe (Cfr. Mt Mt 9,38 Mt ), para que ilumine e oriente o coração de muita juventude que anda "à procura"; seguramente ainda hoje existem tais pessoas nesta diocese, como em todas as partes do mundo: oxalá elas compreendam que não existe ideal mais alto, para se lhe consagrar a vida, do que o dom total de si a Cristo para o serviço do Reino. Mas há um segundo modo, não menos importante, de favorecer a chamada de Deus: é o do testemunho que se desprende da vossa vida:

— testemunho, primeiramente, da coerência sincera com os valores evangélicos e com o carisma próprio do vosso Instituto: toda a cedência diante de compromissos é desilusão para quem de vós se aproxima, não o esqueçais!

— testemunho, depois, de personalidade humanamente realizada e madura, que sabe entrar em relação com os outros sem prevenções injustificadas nem ingénuas imprudências, mas com abertura cordial e sereno equilíbrio;

— testemunho, por fim, da vossa alegria, alegria que se leia nos olhos e na atitude além de se ler nas palavras, que manifeste claramente, a quem para vós olhar, a consciência de que possuis aquele "tesouro escondido", aquela "pérola preciosa", cuja aquisição não leva a que surjam lamentações por se ter renunciado a tudo, segundo o conselho evangélico (Cfr. Mt Mt 13,44-45 Mt ).

E agora, antes de concluir, desejo dirigir uma palavra especial às queridas Irmãs de clausura, às presentes neste encontro e às que estão na sua austera clausura, que foi objecto de escolha feita por um especial amor para com o Esposo Divino. Saúdo-vos a todas com especial intensidade de sentimentos e visito em espírito os vossos conventos, fechados na aparência mas na realidade tão profundamente abertos à presença de Deus, vivo no nosso mundo humano, e por isso tão necessários ao mundo. Recomendo-vos a Igreja e Roma, recomendo-vos os homens e o mundo! A vós, às vossas orações, ao vosso "holocausto" recomendo-me também a mim mesmo, Bispo de Roma. Estai comigo, perto de mim, vós que estais "no coração da Igreja"! Realize-se em cada uma de vós aquilo que foi o programa de Santa Teresa do Menino Jesus: "in corde Ecclesiae amor ero — no coração da Igreja serei o amor".

Assim termino o meu primeiro encontro com as Irmãs da Roma Santa. Em vós perdura a singular semente do Evangelho, singular expressão daquela chamada à santidade, que ultimamente nos recordou o Concílio na Constituição sobre a Igreja. De vós espero muito. Em vós espero muito. Tudo isto desejo encerrá-lo e exprimi-lo na Bênção que de coração vos concedo.

Recomendo-vos a Maria, Esposa do Espírito Santo, Mãe do amor mais formoso!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À PONTIFÍCIA COMISSÃO « JUSTITIA ET PAX »


Sábado, 11 de Novembro de 1978

Queridos Amigos

Conto convosco, conto com a Comissão Justitia et Pax, para me ajudar e ajudar a Igreja inteira a repetir aos homens do nosso tempo, com premente insistência, o apelo que lhes dirigi ao começar o meu ministério romano e universal, no domingo 22 de Outubro:

"Não tenhais medo! Abri, sim, escancarai as portas a Cristo! Ao Seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas económicos assim como os políticos, os vastos campos da cultura, da civilização e do progresso! Não tenhais medo! Cristo sabe bem o que está dentro do homem. Somente Ele o sabe".

Vivemos num tempo em que tudo devia levar à supressão de barreiras: a percepção mais viva de solidariedade universal dos homens e dos povos, a necessidade de salvaguardar o ambiente e o património comum da humanidade, a necessidade de reduzir o peso e a ameaça mortal dos armamentos, o dever de arrancar à miséria milhões de homens que tornariam a encontrar, com os meios de levar uma vida decente, a possibilidade de oferecer ao esforço comum energias novas. Ora, eis que, diante da amplidão e das dificuldades da tarefa, se observa por toda a parte um reflexo de endurecimento. Na origem está o medo; medo sobretudo do homem e da sua liberdade responsável, medo muitas vezes agravado pelo encadeamento das violências e das repressões. E, por fim, tem-se medo de Jesus Cristo, seja porque não se tem conhecimento d'Ele, seja porque, mesmo entre cristãos, não se faz suficiente experiência, exigente sim mas vivificante, duma existência inspirada no seu Evangelho.

O primeiro serviço que a Igreja deve prestar à causa da justiça e da paz, está em convidar os homens a abrirem-se a Jesus Cristo. N'Ele aprenderão de novo a própria dignidade essencial de filhos de Deus, feitos à imagem de Deus, dotados de possibilidades insuspeitadas que os tornam capazes de enfrentar as tarefas do momento, ligados uns aos outros por uma fraternidade enraizada na paternidade de Deus. N'Ele tornar-se-ão livres para um serviço responsável. Não tenham medo! Jesus Cristo não é um estranho nem um concorrente. Não faz sombra a nada do que é autenticamente humano, nem nas pessoas nem nas suas diversas realizações científicas e sociais. Também a Igreja não é nem estranha nem concorrente. "A Igreja, diz a Constituição Gaudium et Spes, que em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está: ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana" (Gaudium et Spes GS 76). Abrindo o homem para Deus, a Igreja impede-o de se fechar nalgum sistema ideológico, abre-o para si mesmo e para os outros, e torna-o disponível a coisas novas à medida das exigências presentes da evolução da humanidade.

Com o dom central de Jesus Cristo, a Igreja traz à obra comum não um modelo prefabricado, mas um património — doutrinal e prático — dinâmico, desenvolvido em contacto das situações mudáveis deste mundo, sob o impulso do Evangelho como fonte de renovação, com uma vontade desinteressada de serviço e uma atenção aos mais pobres (Cfr. Carta Octogesima adveniens, 42). Toda a comunidade cristã participa neste serviço. Mas o Concilio desejou com razão e Paulo VI realizou, por meio da Pontifícia Comissão "Justitia et Pax" a criação dum organismo da Igreja universal, incumbido de estimular a comunidade católica na promoção do progresso das regiões necessitadas e da justiça social entre as nações" (Const. Gaudium et Spes GS 90, Par. 3). A este serviço universal é que vós sois chamados, junto do Papa e sob a sua direcção. Exercei-lo num espírito de serviço e num diálogo — que é necessário aumentar ainda — com as Conferências Episcopais e os Organismos diversos que, em comunhão com elas, realizam a mesma incumbência. Vós exercei-la num espírito ecuménico, procurando incansavelmente e adoptando as formas de cooperação capazes de levar a que progrida a Unidade dos cristãos no pensamento e na acção.

Sem prejuízo de numerosas questões a que atende a Comissão, consagrastes esta Assembleia ao tema do desenvolvimento dos povos. A Igreja esteve presente, desde a partida, neste imenso esforço e seguiu-lhe as esperanças, as dificuldades e as decepções. Uma serena apreciação dos resultados positivos, ainda que insuficientes, deve ajudar a vencer as hesitações presentes. Tivestes a peito estudar todo o leque dos problemas que a continuação necessária da obra começada apresenta — ao nível da comunidade internacional, na vida interna de cada povo, ao nível também das comunidades elementares — na maneira de conceber e realizar novos modos de viver. Para que a Igreja possa dizer a palavra de esperança que dela se espera e fortificar os valores espirituais e morais indispensáveis para que possa haver desenvolvimento, ela deve escutar, com paciência e simpatia, os homens e as instituições que se aplicam à tarefa em todos os níveis, tomar a medida dos obstáculos que é preciso vencer. Não pode haver enganos sobre uma realidade que se pretende transformar.

A atenção prioritária aos que sofrem urna pobreza radical, aos que sofrem a injustiça, vem juntar-se indubitavelmente a urna preocupação radical da Igreja; do mesmo modo a solicitude de conceber modelos de desenvolvimento que, pedindo embora sacrifícios, procuram não sacrificar as liberdades e os direitos pessoais e sociais indispensáveis, cuja falta levaria esses modelos a um beco sem saída. E os cristãos gostarão de estar na vanguarda despertando convicções e modos de viver que fechem de maneira decisiva a porta a um frenesi de consumo, esgotante e sem alegria.

Obrigado, Senhor Cardeal, pelas palavras com que exprimistes os sentimentos filiais e dedicados de toda a Comissão. A vossa presença à frente deste Organismo é garantia de os povos pobres, mas ricos em humanidade, estarem muito a peito entre as suas preocupações. Obrigado aos meus irmãos Bispos, obrigado a vós todos, queridos amigos, que trazeis à Comissão e me trazeis a mim mesmo, a vossa competência e a vossa experiência humana e apostólica. Obrigado a todos os Membros da Cúria aqui presentes: a vós se deve que a dimensão da promoção humana e social consiga penetrar na actividade dos outros Dicastérios; em compensação, a actividade da Comissão Justitia et Pax poderá inserir-se cada vez mais profundamente na missão global da Igreja.

Sabeis, com efeito, quanto se empenharam o Concílio e os meus Predecessores em situar bem a acção da Igreja — em favor da justiça, da paz, do desenvolvimento e da libertação — no seu encargo evangelizador. Ao invés de confusões que sempre renascem, importa não reduzir a evangelização aos seus frutos para a cidade terrestre: a Igreja tem obrigação de fazer chegar os homens à fonte, a Jesus Cristo. Afinal a Constituição dogmática Lumen Gentium continua sendo a "magna carta" conciliar: à sua luz é que os outros textos assumem a sua plena dimensão. A Constituição pastoral Gaudium et Spes, com tudo quanto ela inspira, não fica sendo por isso coisa desvalorizada mas pelo contrário robustecida.

Em nome de Cristo vos abençoo, a vós e aos vossos colaboradores, aos que vos são queridos e aos vossos países muito amados, aqueles sobretudo que sofrem provações. Voltando ao tema da audiência de quarta-feira passada: o Senhor nos ajude, e ajude todos os nossos irmãos a embrenharmo-nos pelos caminhos da justiça e da paz!




Discursos João Paulo II 1978 - Quinta-feira, 9 de Novembro de 1978