Jó (CNB) 1


A história de Jó: como começou

 Jó: rico, porém correto

1 1 Havia na terra de Us um homem chamado Jó: era íntegro e reto, temia a Deus e mantinha-se afastado do mal. 2 Tinha sete filhos e três filhas. 3 Possuía também sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas, e servos em grande quantidade. Era, pois, o mais rico entre todos os habitantes do Oriente.
4
Seus filhos costumavam dar festas, um dia em casa de um, outro dia em casa de outro. E convidavam suas três irmãs para comerem e beberem com eles. 5 Terminados os dias de festa, Jó mandava-os chamar para orar por eles. De manhã cedo ele oferecia um holo­causto na intenção de cada um, pois dizia: “Talvez meus filhos tenham cometido pe­cado, maldizendo a Deus em seu coração”. Assim costumava Jó fazer todos os dias.

 Primeira série de provações

6 Um dia, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor. Entre eles, também Satanás. 7 O Senhor disse, então, a este: “De onde vens?” – “Acabo de dar umas voltas pela terra”, respondeu ele. 8 O Senhor disse-lhe: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e afasta-se do mal”.
9
Satanás respondeu ao Senhor: “É sem motivo, que Jó teme a Deus? 10 Não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abençoaste as obras de suas mãos, e seus bens cresceram na terra. 11 Estende, porém, um pouco a tua mão e toca em todos os seus bens, para ver se não te lançará maldições na cara!” 12 Então o Senhor disse a Satanás: “Pois bem, tudo o que ele possui está a teu dispor. Contra ele mesmo, porém, não estendas a mão”. E Satanás saiu da presença do Senhor.
13
Ora, num dia em que seus filhos e filhas comiam e bebiam na casa do irmão mais velho, 14 um mensageiro veio dizer a Jó: “Os bois estavam lavrando e as mulas, pastando a seu lado, 15 quando, de repente, apareceram os sabeus e roubaram tudo, passando os criados ao fio da espada. Só eu escapei, para trazer-te a notícia”.
16
Estava este ainda a falar, quando chegou outro e disse: “Caiu do céu o fogo de Deus e matou ovelhas e pastores, reduzindo-os a cinza. Só eu consegui escapar para trazer-te a notícia”. 17 Este ainda falava, quando chegou outro e disse: “Os caldeus, divididos em três bandos, lançaram-se por sobre os camelos e os levaram consigo, depois de passarem­ os criados ao fio da espada. Só eu escapei, para trazer-te a notícia”.
18
Este ainda falava, quando chegou mais outro e disse: “Teus filhos e tuas filhas estavam comendo e bebendo na casa do irmão mais velho, 19 quando um furacão se levantou das bandas do deserto e sacudiu os quatro cantos­ da casa. E ela desabou sobre os jovens e os matou. Só eu escapei, para trazer-te a notícia.” 20 Então Jó levantou-se, rasgou as vestes,­ rapou a cabeça, caiu por terra e, prostrado, em adoração, falou:
21
“Nu, saí do ventre de minha mãe
e nu, voltarei para lá.
O Senhor deu, o Senhor tirou;
como foi do agrado do Senhor, assim aconteceu.
Seja bendito o nome do Senhor!”
22
Apesar de tudo, Jó não pecou com seus lábios, nem disse coisa alguma insensata contra Deus.

 Segunda série de provações

2 1 Num outro dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se novamente ao Senhor, entre eles veio também Satanás. 2 O Senhor perguntou a Satanás: “De onde vens?” Ele respondeu: “Acabo de dar umas voltas pela terra”.
3
O Senhor disse a Satanás: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se mantém afastado do mal. Ele persevera em sua integridade. Tu, porém, me atiçaste contra ele, para eu o afligir sem motivo”. 4 Satanás respondeu ao Senhor: “Pele por pele! Para salvar a vida, o homem dá tudo o que tem. 5 Mas estende a tua mão e fere-o na carne e nos ossos, e então verás se ele não vai maldizer-te na cara!” 6 –“Pois bem, disse o Senhor a Satanás, faze o que quiseres com ele. Somente poupa-lhe a vida”.
7
Satanás saiu da presença do Senhor e feriu Jó com chagas malignas, desde a planta dos pés até o alto da cabeça. 8 Então Jó, sentado no meio do lixo, raspava o pus com um caco de telha. 9 Foi quando sua mulher lhe disse: “Ainda continuas na tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!” 10 Ele respondeu: “Falas como uma insensata.
Se recebemos de Deus os bens,
não deveríamos receber também os males?”
E apesar de tudo, Jó não pecou com seus lábios.

 Chegada dos três amigos

11 Ora, três amigos de Jó ficaram sabendo de todas as desgraças que o tinham afligido e vieram, cada um do seu lugar. Eram eles: Elifaz de Temã, Baldad de Suás e Sofar de Naamat, os quais combinaram vir juntos para visitá-lo e trazer-lhe consolo. 12 Quando levantaram os olhos, a certa distância, cus­taram a reconhecê-lo. Em alta voz come­ça­ram a chorar, rasgaram suas vestes e lan­çaram poeira para o céu, sobre as cabeças. 13 Sentaram-se no chão ao lado dele por sete dias e sete noites, sem dizer-lhe palavra, pois viam como era atroz a sua dor.


Queixa de Jó

 Monólogo inicial de Jó. “Pereça o dia em que nasci”

3 1 Depois , Jó abriu a boca e amaldiçoou o dia de seu nascimento. 2 Assim falou:
3
“Pereça o dia em que nasci,
e a noite em que anunciaram: ‘Nasceu um menino!’
4
Esse dia, que se torne em trevas;
Deus, do alto, não se lembre dele,
e sobre ele não brilhe a luz!
5
Que o obscureçam as trevas e a sombra da morte!
Que a escuridão o domine,
e seja envolvido pela amargura!
6
Aquela noite… um tenebroso redemoinho a arrase,
e não se conte entre os dias do ano,
nem se enumere entre os meses!
7
Que essa noite fique estéril e não seja digna de louvor.
8
Que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia,
os que estão prontos para despertar Leviatã!
9
Que se obscureçam as estrelas do seu crepúsculo.
\Essa noite espere pela luz – e a luz não venha,
ela não veja as pálpebras da aurora.
10
Pois não fechou a porta do ventre que me trouxe,
e não escondeu dos meus olhos tantos males!
11
Por que não morri no ventre materno,
ou não expirei logo ao sair das entranhas?
12
Por que em dois joelhos fui acolhido
e em dois peitos, amamentado?
13
Pois agora, dormindo, eu estaria calado e repousaria no meu sono,
14
com os reis e governadores da terra,
que constróem para si mausoléus,
15
ou com os nobres, que possuem ouro
e enchem de prata suas casas.
16
Ou, como um aborto ocultado, eu não existiria,
ou como os que, concebidos, nem chegaram a ver a luz.
17
Ali acaba o tumulto dos ímpios,
ali repousam os que esgotaram as forças.
18
E os que haviam sido prisioneiros não são mais molestados,
nem ouvem a voz do capataz.
19
Ali estão pequenos e grandes,
e o escravo está livre do seu senhor.
20
Por que foi dada a luz a um infeliz
e a vida, àqueles que têm a alma amargurada?
21
Eles aguardam a morte e ela não vem,
e até escavam, procurando-a mais que a um tesouro:
22
eles se alegrariam intensamente,
e ficariam muito felizes diante do sepulcro.
23
Por que, então, dar à luz alguém cujo caminho está oculto
e a quem Deus cercou de trevas?
24
Em vez de comer, fico suspirando
e o meu rugido é como águas de enxurrada.
25
O que eu mais temia, aconteceu comigo;
o que eu receava, me atingiu.
26
Não dissimulo, não me calo, não me aquieto:
a ira \de Deus veio sobre mim!”


PRIMEIRO DISCURSO DE ELIFAZ

 A impaciência de Jó é descabida

4 1 Tomando a palavra, disse Elifaz de Temã: 2 “Se começarmos a falar \contigo,
talvez leves a mal,
mas quem poderia reprimir o que tenho a dizer?
3
Foste o educador de muitos
e revigoraste mãos enfraquecidas;
4
tuas palavras firmaram os que vacilavam
e deste força a joelhos inseguros.
5
Agora veio sobre ti a desgraça, e desfaleces;
feriu-te, e te perturbas.
6
Não era a tua confiança o teu temor de Deus?
e a tua esperança não era a perfeição da tua conduta?
 A justiça de Deus está fora de dúvida
7
Lembra-te, por favor: acaso já pereceu alguém inocente?
ou quando é que os retos foram destruídos?
8
Ao contrário, tenho visto os que praticam a iniqüidade,
os que semeiam dores e as colhem:
9
esses pereceram ao sopro de Deus
e foram consumidos ao ímpeto de sua ira.
10
O rugido do leão e o bramido da leoa,
os dentes dos filhotes são quebrados.
11
Morre o leão, porque não há presa,
e as crias da leoa se dispersam.

 A visão de Elifaz: com Deus não se discute

12 Entretanto, uma palavra me foi trazida em segredo,
e meu ouvido percebeu seu leve sussurro.
13
No horror da visão noturna,
quando o sono domina as pessoas,
14
assaltou-me o medo e o pavor
e tremi em todos os meus ossos.
15
Um espírito passou, diante de mim,
arrepiando-me os pelos do corpo.
16
Parou alguém, cujo vulto não reconheci,
uma visão, diante de meus olhos,
e ouvi uma voz, como de brisa leve:
17
‘Poderia o ser humano ter razão em confronto com Deus,
ou seria a criatura mais pura que seu Criador?’
18
Pois até nos seus servos ele não pode confiar,
e em seus próprios anjos encontra defeito.
19
Quanto mais aqueles que moram em casas de barro,
cujo fundamento está no pó e que se consomem como a traça!
20
Entre a manhã e a tarde serão destroçados
e, sem que ninguém perceba, perecerão para sempre.
21
Acaso não se arrancaram as amarras de sua tenda?
Morrerão, sem atingir a sabedoria.

 A retribuição dos maus

5 1 Chama, pois, se é que alguém vai responder-te!
A qual dos santos te voltarás?
2
De fato, a raiva mata o insensato
e a inveja acaba com o imbecil.
3
Bem vi o insensato criar raízes,
mas logo amaldiçoei sua morada:
4
Seus filhos estarão longe da felicidade,
espezinhados no tribunal, sem alguém que os liberte.
5
Os famintos comerão da sua colheita,
assaltantes o seqüestrarão e sedentos sugarão seus bens.
6
Pois a maldade não sai do pó
e a dor não se origina do chão.
7
É a pessoa que gera a fadiga,
como os pássaros levantam o vôo.
8
Por esse motivo rogarei ao Senhor
e diante de Deus exporei minha fala.
9
Ele faz coisas grandes e misteriosas,
maravilhas que não se podem contar:
10
derrama a chuva sobre a terra
e com a água rega os campos;
11
é ele que levanta os abatidos
e aos tristes reanima com a salvação;
12
frustra os projetos dos malvados
para que não possam completar o que começaram;
13
apanha os sabidos na sua própria astúcia
e faz malograr o desígnio dos perversos.
14
Estes afrontarão as trevas em pleno dia
e ao meio-dia andarão às apalpadelas como de noite.
15
Assim Deus salvará, da língua cortante deles, o indigente
e, da mão violenta, o pobre;
16
e haverá esperança para o indigente,
enquanto a iniqüidade fechará sua própria boca.

 Feliz o homem a quem Deus corrige!

17 Feliz o homem a quem Deus corrige!
Não rejeites, pois, a repreensão do Poderoso,
18
porque ele fere, mas trata da ferida;
golpeia, mas suas próprias mãos curam.
19
De seis tribulações te livrará
e, na sétima, o mal não te atingirá.
20
Na fome, ele te livra da morte
e, na guerra, do perigo da espada.
21
Estarás a salvo do açoite da língua
e não terás medo da devastação, quando chegar.
22
Na desolação e na penúria hás de rir,
e dos animais selvagens não terás receio.
23
Até com as pedras do campo farás aliança
e os animais selvagens serão amistosos contigo.
24
Saberás que está em paz a tua tenda
e, visitando a tua propriedade, verás que nada falta.
25
Constatarás também que a tua descendência é numerosa
e tua posteridade é como a erva da terra.
26
Descerás ao sepulcro ainda em teu vigor,
como a colheita do trigo no tempo certo.
27
Olha que as coisas são assim, como investigamos a fundo:
escuta bem, e tira proveito para ti”.


RESPOSTA DE JÓ

 Jó não consegue admitir seu sofrimento

6 1 Então Jó respondeu:
2 “Quem dera que avaliassem a minha exasperação
e pusessem minha desgraça na balança!
3
Ela seria mais pesada que a areia do mar,
razão por que hesito nas minhas palavras.
4
Pois as flechas do Poderoso se encravaram em mim
e o meu espírito sorveu o seu veneno:
os terrores de Deus se arregimentam contra mim.
5
Porventura zurra o asno selvagem, quando tem erva?
ou muge o boi, diante do cocho repleto?
6
Pode alguém comer o que é sem sal, o que é insosso?
ou pode alguém saborear um legume sem tempero?
7
As coisas que eu antes nem quisera tocar,
agora, pela angústia, tornaram-se minha comida.
8
Quem me dera se cumprisse o meu pedido
e Deus me concedesse o que eu espero!
9
Oxalá Deus me esmagasse;
que soltasse a sua mão e acabasse comigo!
10
Isto seria um consolo para mim:
e eu exultaria, mesmo no pavor implacável,
e não ocultaria as palavras do Santo.
11
Pois, que força é a minha, para poder suportar?
ou qual o meu fim, para eu agir com paciência?
12
Acaso sou forte como as pedras?
e minha carne, será de bronze?
13
Ou não encontro mais apoio em mim mesmo,
e minha própria resistência estará longe de mim?

 Queixa acerca dos amigos

14 Quem recusa ao amigo a misericórdia,
abandonou o temor do Poderoso.
15
Meus irmãos me mentiram,
como o leito das torrentes que desaparecem.
16
Avolumadas pelo degelo,
quando sobre elas irrompe a neve,
17
no momento em que escorrem, secam
e, vindo o calor, evaporam-se.
18
Por causa delas, os caravaneiros desviam-se de suas rotas
e, subindo pelo deserto, perecem.
19
As caravanas de Temá as procuram,
os viandantes de Sabá nelas esperam.
20
Confundiram-se, porém, os que nelas esperavam;
lá chegando, cobriram-se de vergonha.
21
Assim vós sois, agora, para mim:
vendo a minha desgraça, ficais com medo!
22
Acaso eu pedi: ‘Trazei-me alguma coisa’,
ou: ‘Dai-me algo dos vossos bens’?
23
ou ainda: ‘Livrai-me das mãos do inimigo,
do poder dos fortes libertai-me’?
24
Esclarecei-me, e me calarei.
Se desconheço alguma coisa, instruí-me.
25
Por que contradissestes palavras verdadeiras,
quando não há ninguém entre vós que possa acusar-me?
26
Só para censurar elaborais discursos,
enquanto as palavras de um desesperado vão ao vento!
27
Vós atacais um órfão
e procurais derrubar vosso amigo.
28
Agora, pois, olhai para mim
e não mentirei diante de vós.
29
Voltai atrás, e não encontrareis perversidade!
Voltai atrás, pois a minha justiça está de pé!
30
Acaso há perversidade em minha língua?
Ou o meu paladar não discerne o que é amargo?

 A vida é uma escravidão

7 1 Não é acaso uma luta a vida do homem sobre a terra?
Seus dias não são como os de um assalariado?
2
Como o escravo suspira pela sombra,
como o assalariado aguarda o pagamento,
3
assim tive por ganho meses de decepção,
e o que computei foram noites de sofrimento.
4
Apenas me deito, digo: Quando irei levantar-me?
E então, espero novamente a tarde e me encho de sofrimentos até ao anoitecer.
5
Meu corpo cobre-se de pus e de feridas,
a pele rompe-se e supura.
6
Meus dias correm mais rápido que a lançadeira
e se consomem, tendo acabado o fio.
7
Lembra-te de que minha vida é apenas vento,
e meus olhos não voltarão a ver a felicidade!
8
O olhar de quem me via, não mais me verá;
teus olhos vão procurar-me, e não estarei mais aí.
9
Como a nuvem se desfaz e passa,
assim quem desce ao mundo dos mortos,
dali jamais subirá:
10
não voltará jamais à sua casa,
sua morada não mais o verá.
11
Por isso, não vou controlar minha língua;
com o espírito angustiado falarei,
com a alma amargurada me queixarei.

 Acaso sou um monstro?

12 Acaso sou eu o mar ou um monstro marinho,
para que me mantenhas sob custódia?
13
Se eu disser: ‘Meu leito me consolará,
e minha cama aliviará a minha queixa’,
14
então me assustas com sonhos
e me aterrorizas com pesadelos.
15
Por isso, minha alma preferiria a forca
e meus ossos, a morte.
16
Perdi a esperança; absolutamente, não quero mais viver.
Tem pena de mim, pois um sopro são meus dias!
17
Afinal, que é o ser humano, para lhe dares tanta importância?
por que se ocupa dele teu coração?
18
Já pela manhã o vigias e a cada momento o pões à prova.
19
Até quando não tirarás os olhos de mim,
e não me deixas nem engolir a saliva?
20
Se pequei, o que foi que te fiz,
ó espião da humanidade?
Por que me tomas por alvo,
a ponto de eu tornar-me um peso para mim mesmo?
21
Por que não tiras o meu pecado
e não retiras a minha iniqüidade?
Olha, vou agora adormecer no pó;
se me procurares pela manhã, já não existirei”.


PRIMEIRO DISCURSO DE BALDAD

 Os filhos foram culpados de sua sorte

8 1 Tomando a palavra por sua vez, Baldad de Suás falou:
2
“Até quando dirás tais coisas?
Tuas palavras parecem um furacão!
3
Acaso Deus passa por cima do direito
ou o Poderoso perverte aquilo que é justo?
4
Se teus filhos pecaram contra ele,
ele os entregou às conseqüências da iniqüidade que cometeram.
5
Tu, porém, se de manhã cedo te levantares para Deus,
se suplicares o Poderoso
6
e se caminhares com pureza e retidão,
ele imediatamente despertará em teu favor
e restaurará a tua legítima propriedade.
7
Desta forma, o que possuías antes parecerá pouca coisa,
em comparação com as tuas posses multiplicadas no futuro.

 “Somos de ontem…”

8 Interroga a geração passada
e investiga com cuidado a memória dos antigos.
9
Pois somos de ontem e nada sabemos,
e nossos dias sobre a terra são como a sombra.
10
pois eles, os antigos, vão te ensinar e te falar,
e do seu próprio coração vão extrair estas palavras:
11
Pode o papiro vicejar sem a umidade
ou o caniço crescer sem água?
12
Estando ainda em flor, e sem que alguém o colha,
seca antes de todas as ervas.
13
São assim os caminhos de todos os que se esquecem de Deus,
pois a esperança do ímpio se frustrará.
14
Sua esperança é como um fio tênue;
como teia de aranha, a sua confiança.
15
Ao se apoiar sobre a sua casa, ela não agüentará;
mesmo se lhe puser estacas, ela não ficará de pé.
16
Parece cheio de seiva antes de vir o sol
e seus brotos irrompem no seu jardim.
17
Suas raízes se entrelaçam sobre as rochas
e no meio das pedras persiste.
18
Mas, se o arrancam do seu lugar,
este o renega, dizendo: ‘Não te conheço’.
19
Assim termina sua alegre história:
outros brotarão do mesmo chão.
20
De fato, Deus não rejeita quem é íntegro,
como tampouco não estende a mão aos malvados.
21
Um dia a tua boca se encherá de riso
e os teus lábios, de alegria.
22
Quanto aos que te odeiam, se cobrirão de vergonha,
pois a tenda dos ímpios não ficará em pé”.


RESPOSTA DE JÓ

 Não adianta disputar com Deus

9 1 Respondendo-lhe, disse Jó:
2 “Sei muito bem que é assim:
Como poderia alguém prevalecer diante de Deus?
3
Se quisesse disputar com ele,
a mil razões eu não teria uma para responder.
4
Ele é sábio de coração e de força poderosa;
quem já o enfrentou e ficou ileso?
5
Ele desloca as montanhas sem que elas percebam,
e as derruba em sua ira.
6
Ele abala a terra em suas bases
e suas colunas vacilam.
7
Ele manda ao sol que não se levante
e guarda sob chave as estrelas.
8
Sozinho desdobra os céus,
e caminha sobre as ondas do mar.
9
É ele quem faz a Ursa e o Órion,
as Plêiades e as constelações do Sul.
10
Faz prodígios insondáveis,
maravilhas que não se podem contar!
11
Se passa junto de mim, não o vejo
e, quando se afasta, não percebo.
12
Se de repente irrompe, quem ousa impedi-lo?
Quem pode dizer-lhe: ‘Que estás fazendo?’
13
Deus não refreia sua cólera;
ao seu poder se curvam os aliados do monstro do mar.
14
Quem sou eu para replicar-lhe,
para dirigir-me a ele com palavras escolhidas?
15
Ainda que eu tivesse razão, eu não poderia replicar;
pelo contrário, pediria misericórdia ao meu Juiz.
16
Mesmo se me ouvisse, ao clamar por ele,
não creio que daria atenção à minha voz.
17
Pois ele me esmagaria como num redemoinho
e, sem motivo, multiplicaria minhas feridas.
18
Ele não permite que meu espírito descanse
e me farta de amarguras.
19
Se alguém procura a força, ele é o mais vigoroso;
se procura o direito, quem o traria ao tribunal?
20
Se eu quiser justificar-me, minha boca me condenará;
se mostrar que sou inocente, ele me convencerá de culpa.

 Deus está acima do direito?

21 Será que sou íntegro? Nem eu sei.
Aliás, desprezo a minha vida.
22
Uma só coisa é o que eu disse:
ele extermina tanto o inocente como o ímpio.
23
Se uma calamidade mata de repente,
ele se ri da aflição dos inocentes.
24
A terra está entregue às mãos do ímpio e ele cobre o rosto dos seus juízes:
se não é ele, quem será?
25
Meus dias correram mais rápidos que um atleta;
fugiram e não viram a felicidade.
26
Deslizaram como barcos de papiro,
como a águia que se abate sobre a presa.
27
Se digo: Vou esquecer minha tristeza,
mudar a expressão de meu rosto e mostrar-me alegre,
28
tenho medo de todas as minhas dores,
sabendo que não me absolverás.
29
Se, pois, mesmo assim, continuo sendo culpado,
para que me afadiguei em vão?
30
Ainda que eu me lavasse com águas de neve
e com soda purificasse minhas mãos,
31
tu, porém, me afundarias na imundície
e minhas roupas teriam nojo de mim.
32
Pois não estou respondendo a alguém que seja mortal como eu;
ele não é um ser humano, a quem eu possa processar.
33
Não existe quem possa ser árbitro entre os dois,
nem quem imponha sua mão sobre nós ambos.
34
Que ele retire de mim a vara
e o seu pavor não me atemorize:
35
então, eu falaria sem ter medo dele!
Mas tal não acontece: não sou mais eu.

 “Estou cansado de viver”

10 1 Minha alma está cansada de viver.
Soltarei contra mim mesmo o meu discurso,
expressando toda a minha amargura.
2
Direi a Deus: Não me condenes!
Faze-me, antes, saber, por que me julgas assim.
3
Por acaso, parece-te bom que me oprimas
e me calunies, a mim, obra de tuas mãos
e favoreças o desígnio dos perversos?
4
Acaso são de carne os teus olhos
e vês as coisas como as vê o ser humano?
5
Acaso são como os de um mortal os teus dias
e os teus anos, como as estações humanas,
6
para esquadrinhares a minha iniqüidade
e investigares o meu pecado?
7
No entanto, sabes que eu nada fiz de mal,
mas, por outro lado, ninguém pode
livrar do teu alcance.

 “Sou tua criatura, mas qual fera me espreitas”

8 As tuas mãos me fizeram,
plasmando todo o meu ser inteiramente,
e de súbito me fazes cair?
9
Lembra-te, por favor, que me fizeste como argila…
e agora, me reduzes ao pó?
10
Acaso não me derramaste como leite,
e me coalhaste como queijo?
11
De pele e carne me vestiste,
de ossos e de nervos me teceste.
12
Vida e misericórdia me concedeste
e teu cuidado guardou o meu espírito.
13
Embora escondas estas coisas no teu coração,
sei que as andavas remoendo em tua mente:
14
Se eu pecar, estarás me observando
e não consentirás que eu seja livre da minha iniqüidade.
15
Se eu fosse ímpio, ai de mim;
se justo, não levantaria a cabeça,
repleto que estou de aflição e miséria.
16
Se me deixo levar pelo orgulho,
me prendes como ao filhote do leão
e de novo te revelas admirável em mim.
17
Renovas contra mim tuas testemunhas
e redobras tua ira contra mim,
contra mim combatem teus castigos.
18
Por que então me tiraste do ventre materno?
Oxalá tivesse eu morrido, para que olho algum me visse.
19
E eu teria sido como quem não existiu,
transportado, já, do ventre ao túmulo.
20
Acaso a brevidade dos meus dias não acabará logo?
Deixa, pois, que se alivie um pouco a minha dor!
21
Mas isto, antes que eu vá, sem volta,
para a região das trevas e da sombra da morte,
22
a terra da escuridão e das trevas,
onde só há sombra de morte e caos,
e habita o horror sempiterno”.


PRIMEIRO DISCURSO DE SOFAR

 Os crimes de Jó e a justiça de Deus

11 1 Sofar de Naamat tomou a palavra e disse:
2
“Como não dar resposta a quem está falando tanto?
Ou alguém, só por falar muito, acaba tendo razão?
3
Tua vã linguagem calará os demais?
Tendo zombado dos outros, não serás refutado por ninguém?
4
Disseste: ‘Meu discurso é puro’
e ‘Aos teus olhos, sou inocente!’
5
Oxalá Deus mesmo falasse contigo
e abrisse os lábios para ti!
6
Quisesse ele revelar-te os segredos da Sabedoria
e seus misteriosos desígnios!
Então compreenderias que Deus exige, de ti,
muito menos do que merece a tua iniqüidade.
7
Acaso compreenderás os vestígios de Deus
e atingirás a perfeição do Poderoso?
8
Ele é mais alto do que o céu:
que poderás fazer?
É mais profundo que o abismo:
que poderás conhecer?
9
A sua medida é mais longa que a da terra
e mais larga do que o mar.
10
Se ele derruba, ou prende, ou aperta,
quem poderá impedi-lo?
11
Pois conhece a presunção dos mortais:
ao ver a maldade, portanto, não prestará atenção?
12
Até quem é tolo pode tornar-se prudente,
embora, ao nascer, pareça um filhote de asno selvagem.

 Jó tem de se converter

13 Se, pois, firmares teu coração
e para Deus estenderes as tuas mãos;
14
se lançares para longe de ti a maldade que está na tua mão
e não deixares alojar-se a injustiça em tua tenda,
15
então poderás levantar teu rosto sem mancha,
estarás firme e nada temerás;
16
e esquecerás tuas desgraças
ou delas te recordarás como de águas passadas.
17
À noite se levantará, sobre ti, uma luz como a do meio-dia
e, ao te imaginares coberto de escuridão,
surgirás como a estrela da manhã.
18
Estarás confiante, pela esperança que te será proposta
e, mesmo no esconderijo, dormirás tranqüilo.
19
Repousarás e ninguém te amedrontará,
e muitos procurarão o teu favor.
20
Quanto aos ímpios, os seus olhos desfalecerão,
seu refúgio falhará, e sua esperança é o último suspiro.”


RESPOSTA DE JÓ

 Jó sabe por experiência

12 1 Jó tomou a palavra e disse:
2
“Então vós sois os tais,
e convosco a Sabedoria vai morrer?
3
Mas também eu, como vós, tenho entendimento,
e não sou inferior a vós;
quem ignora aquilo que sabeis?
4
Quem é escarnecido, como eu, por seus amigos,
invocará a Deus, e ele o ouvirá,
pois é a integridade do justo que é escarnecida.
5
A lâmpada, desprezada pelos que estão seguros,
está a serviço dos que têm os passos vacilantes.
6
Estão tranqüilas as tendas dos ladrões,
e seguras, as dos que desafiam a Deus,
dos que têm Deus na palma da mão.
7
Pergunta, por exemplo, aos asnos, e te ensinarão;
às aves do céu, e te informarão;
8
volta-te para a terra e ela te instruirá,
os peixes do mar te hão de esclarecer.
9
Quem não ignora, em todas estas coisas,
que foi a mão do Senhor que fez tudo?
10
Em sua mão está a alma de todo ser vivo,
o espírito de toda carne mortal.
11
O ouvido não distingue as palavras
e o paladar não saboreia as iguarias?
12
A sabedoria não se encontra nos cabelos brancos?
E a prudência, não está nos anciãos?
13
Ora, é em Deus que está a sabedoria e a força:
ele tem o conselho e a inteligência.

 Deus desfaz a sabedoria humana

14 Se ele destrói, ninguém poderá reconstruir;
se ele aprisionar alguém, não haverá quem o solte;
15
se retiver as águas, virá a seca;
se as soltar, inundarão a terra.
16
Nele está a força e a sabedoria,
ele conhece quem engana e quem é enganado.
17
Manda embora os conselheiros sem nada,
e leva os juízes à demência.
18
Desata o cinturão dos reis
e amarra seus rins com uma corda.
19
Manda embora os sacerdotes sem nada,
e abate os poderosos.
20
Troca as palavras dos que falam com segurança
e tira o conhecimento dos anciãos.
21
Lança o desprezo sobre os nobres
e afrouxa o cinturão dos violentos.
22
Descobre o que há de mais oculto nas trevas
e traz à luz a sombra da morte.
23
Engrandece as nações e as arruina;
se destruídas, restaura-as integralmente.
24
Tira o entendimento aos chefes do povo e os engana,
deixando-os vaguear num deserto sem estradas.
25
E andarão às apalpadelas como nas trevas e não na luz,
pois ele os faz vaguear como bêbados.

 Forjadores de mentiras

13 1 Tudo isto meus olhos viram e meus ouvidos ouviram, e compreendi tudo.
2
O que vós sabeis, também eu sei:
não sou inferior a vós.
3
Contudo, quero falar ao Poderoso,
com o próprio Deus quero disputar.
4
Quanto a vós, mostrarei que sois forjadores de mentira,
todos vós sois curandeiros de nada.
5
Oxalá ao menos vos calásseis,
para que isto vos fosse creditado como Sabedoria.
6
Ouvi, pois, a minha defesa
e atentai para os argumentos de meus lábios.
7
Acaso é para defender a Deus que mentis,
e em seu favor apresentais enganos?
8
Acaso tomais o seu partido
e quereis defender em juízo a causa de Deus?
9
Não seria bom que ele vos examinasse?
Ireis zombar dele, como se zomba de qualquer um?
10
Ele mesmo vos repreenderá,
porque, às escondidas, sois parciais.
11
A majestade dele não vos perturbará
e não cairá sobre vós o seu terror?
12
Vossas máximas são como provérbios de cinza,
couraças de barro, as vossas couraças!

 Jó arrisca tudo

13 Calai-vos um pouco, para que agora eu fale
e venha sobre mim o que vier.
14
Por que eu morderia minha carne com os dentes
e poria minha vida em minhas mãos?
15
Ainda que fosse matar-me, eu nele esperaria;
apesar de tudo, na sua presença defenderei minha conduta.
16
Isto já seria a minha salvação,
pois nenhum ímpio comparece diante dele.
17
Escutai, pois, minhas palavras,
ouvi com vossos ouvidos o que vou expor.
18
Preparei meu julgamento,
e sei que vou ser declarado inocente.
19
Quem é que vai disputar comigo?
Só depois me calarei, e morrerei!
20
Apenas duas coisas não me faças, ó Deus,
e então não me esconderei da tua presença:
21
afasta de mim a tua mão,
e não me amedronte o teu terror.
22
Interpela-me, e eu te responderei,
ou deixa-me falar, e tu me responderás.
23
São tão grandes assim minhas
iniqüidades e meus pecados?
Mostra-me os meus crimes e delitos!
24
Por que escondes tua face
e me consideras teu inimigo?
25
Ages duramente contra uma folha que é levada pelo vento,
e persegues uma palha ressequida.
26
Pois proferes contra mim sentenças amargas
e me obrigas a assumir os pecados de minha juventude.
27
Prendeste meus pés ao cepo,
vigiaste todos os meus caminhos
e examinaste até minhas pegadas,
28
a mim, que sou como um odre que se desgasta,
como uma roupa que a traça corrói.

 A vida humana é caduca

14 1 O ser humano, nascido de mulher, tem a vida curta, mas cheia de inquietação.
2
É como a flor que se abre e logo murcha,
foge como sombra e não permanece.
3
E é sobre alguém assim que te dignas fixar os olhos
e o arrastas contigo para o julgamento?
4
Quem fará sair o puro do impuro?
Ninguém!
5
Os dias do ser humano já estão marcados,
e o número de seus meses está em tuas mãos:
Tu lhe fixaste um limite, que ele não passará.
6
Afasta, pois, os olhos, de cima dele, para que descanse,
para que possa terminar a sua jornada, como o assalariado.
7
Pois uma árvore tem esperança:
mesmo que a cortem, tornará a brotar,
e não faltarão os seus ramos.
8
Se envelhecer na terra a sua raiz
e morrer o seu tronco no pó,
9
ao cheiro da água rebrotará
e produzirá folhagem como planta nova.
10
O ser humano, porém, ao morrer, fica prostrado;
expira o mortal e, então, onde é que está?
11
As águas vão se evaporar do mar
e o rio, esgotado, fica seco.
12
Assim o ser humano, ao deitar-se, não se levanta mais;
até que o céu desapareça, não despertará,
não se levantará do seu sono.
13
Quem dera que me guardasses no mundo dos mortos
e me escondesses, até que passe o teu furor
e me estabelecesses um prazo, para então te lembrares de mim!
14
Pensas que o homem, depois de morrer, volte a viver?
Todos os dias, nos quais agora presto o meu serviço,
eu esperaria, até que viesse a minha mudança de turno.
15
Tu me chamarias e eu responderia;
sentirias falta da obra de tuas mãos.
16
Então, é verdade, contarias os meus passos,
mas não levarias em conta os meus pecados.
17
Esconderias como numa bolsa os meus delitos,
e passarias cal na minha iniqüidade.
18
A montanha desmorona e cai,
e o rochedo se move do seu lugar;
19
as águas escavam as pedras
e o terreno é inundado pelo aluvião:
assim destróis a esperança humana!
20
Prevaleces contra ele e ele se vai para sempre;
tu o desfiguras, e então o soltas.
21
Se os filhos recebem honra, ele não vai saber;
se forem desprezados, ele nem chega a perceber.
22
Mas enquanto vive, o seu corpo é que sofre,
e sua alma, por ele mesmo se lamenta.


SEGUNDO DISCURSO DE ELIFAZ

 Jó é impuro


Jó (CNB) 1