AUDIÊNCIAS 2000




                                                                           Janeiro de 2000

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 5 de Janeiro de 2000




Caríssimos Irmãos e Irmãs:

1. A poucos dias da inauguração do Grande Jubileu, sinto-me feliz por iniciar hoje a primeira Audiência geral do Ano 2000, apresentando a todos os presentes os meus mais cordiais bons votos para o Ano jubilar: que ele constitua deveras um "tempo forte" de graça, de reconciliação e de renovação interior.

No ano passado, o último dedicado à preparação imediata do Jubileu, aprofundámos juntos o mistério do Pai. Hoje, como conclusão daquele ciclo de reflexões e como especial introdução nas Catequeses do Ano Santo, ainda queremos deter-nos com amor a respeito da pessoa de Maria.
"Filha predilecta do Pai" (Lumen gentium LG 53), n'Ela se manifestou o desígnio divino de amor pela humanidade. Ao destiná-la a tornar-se a mãe de seu Filho, o Pai escolheu-a entre todas as criaturas e elevou-a à mais alta dignidade e missão ao serviço do seu povo.

Este desígnio do Pai começa a manifestar-se no "Proto-Evangelho" quando, a seguir à queda de Adão e de Eva, Deus anuncia que porá inimizade entre a serpente e a mulher: será o filho da mulher que esmagará a cabeça da serpente (cf. Gn Gn 3,15).

A promessa começa a cumprir-se na Anunciação, quando a Maria é dirigida a proposta de se tornar Mãe do Salvador.

2. "Alegra-Te, cheia de graça" (Lc 1,28). A primeira palavra que o Pai faz chegar a Maria, através do seu anjo, é uma fórmula de saudação que pode ser entendida como um convite à alegria, convite que ressoa aquele dirigido ao inteiro povo de Israel pelo profeta Zacarias: "Exulta de alegria, cidade de Sião, grita de alegria, cidade de Jerusalém! Eis que o teu Rei vem a ti" (9, 9; cf. também So 3,14-18). Com esta primeira palavra dirigida a Maria, o Pai revela a sua intenção de comunicar a verdadeira e definitiva alegria à humanidade. A alegria própria do Pai, que consiste em ter junto de Si o Filho, é oferecida a todos, mas antes de tudo é confiada a Maria para que dela se difunda na comunidade humana.

3. O convite à alegria está ligado através de Maria ao dom especial que recebera do Pai: "Cheia de graça". A expressão grega é muitas vezes traduzida, não sem razão, "plena de graça": com efeito, trata-se de uma abundância que atinge o máximo grau.

Podemos observar que a expressão soa como se ela constituísse o próprio nome de Maria, o "nome" que lhe foi dado pelo Pai desde a origem da sua existência. Desde a concepção, de facto, a sua alma é cumulada de todas as bênçãos, que lhe consentirão um caminho de santidade eminente ao longo da sua existência terrena. Divisa-se no rosto de Maria o reflexo do misterioso rosto do Pai. A infinita ternura de Deus-Amor revela-se nos traços maternos da Mãe de Jesus.

4. Maria é a única mãe que pode dizer, ao falar de Jesus, "meu filho", como diz o Pai: "Tu és o Meu Filho" (Mc 1,11). Por sua parte, Jesus diz ao Pai "Abbá", "Pai" (cf. Mc Mc 14,36), enquanto diz "mãe" a Maria, colocando neste nome todo o seu afecto filial.

Na vida pública, quando deixa a sua mãe em Nazaré, ao encontrá-la chama-lhe "mulher", para sublinhar que Ele já recebe ordens só do Pai, mas também para declarar que ela não é simples mãe biológica, mas antes tem uma missão a cumprir como "Filha de Sião" e mãe do povo da nova Aliança. Como tal, Maria permanece sempre orientada para a plena adesão à vontade do Pai.

Não era o caso da inteira família de Jesus. O quarto Evangelho revela-nos que os seus parentes "não acreditavam n'Ele" (Jn 7,5) e Marcos refere que "(os parentes de Jesus) foram segurá-l'O, porque eles mesmos diziam que Jesus tinha ficado louco" (Mc 3,21). Podemos estar certos de que as disposições íntimas de Maria eram completamente diversas. Assegura-lo-no o Evangelho de Lucas, no qual Maria se apresenta a si mesmo como a humilde "escrava do Senhor" (Lc 1,38).

Nesta luz deve ser lida a resposta dada por Jesus quando "Lhe foi anunciado: a Tua Mãe e os Teus irmãos estão lá fora e querem ver-Te" (Lc 8,20 cf. Mt Mt 12,46-47 Mc 3,32); Jesus respondeu: "Minha Mãe e Meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática" (Lc 8,21). Com efeito, Maria é um modelo de escuta da Palavra de Deus (cf. Lc Lc 2,19 Lc Lc 2,51) e de docilidade a ela.

5. A Virgem conservou e renovou com perseverança a completa disponibilidade que expressara na Anunciação. O imenso privilégio e a excelsa missão de ser Mãe do Filho de Deus não mudaram a sua conduta de humilde submissão ao desígnio do Pai. Entre os outros aspectos desse plano divino, Ela assumiu o empenho educativo implicado na sua maternidade. A mãe não é só aquela que dá à luz mas também aquela que se empenha activamente na formação e no desenvolvimento da personalidade do filho. O comportamento de Maria exerceu sem dúvida uma influência sobre a conduta de Jesus. Pode-se pensar, por exemplo, que o gesto de lavar os pés (cf. Jo Jn 13,4-5), deixado aos discípulos como modelo a seguir (cf. ibid., vv. 14-15), reflecte aquilo que Jesus mesmo tinha observado desde a infância no comportamento de Maria, quando Ela lavava os pés aos hóspedes, com espírito de humilde serviço.

Segundo o testemunho do Evangelho, no período transcorrido em Nazaré Jesus era "obediente" a Maria e José (cf. Lc Lc 2,51). Assim, recebeu de Maria uma verdadeira educação que plasmou a sua humanidade. Por outro lado, Maria deixava-se influenciar e formar pelo seu Filho. Na progressiva manifestação de Jesus, Ela descobriu sempre mais profundamente o Pai e prestou-Lhe a homenagem de todo o amor do seu coração filial. A sua missão, agora, é ajudar a Igreja a caminhar como ela, seguindo as pegadas de Cristo.


O anúncio de paz de Belém, que nos dias passados a Igreja repropôs ao mundo inteiro, ressoe com intensidade nos lugares provados por calamidades ou guerras e em particular nas Molucas, onde o conflito de carácter étnico e religioso, que há algum tempo aflige aquelas ilhas indonesianas, voltou a deflagrar em sangrentos combates nas últimas semanas.

"Paz na terra aos homens que Deus ama"! Este anúncio, acolhido por todos os corações, faça romper a cadeia das vinganças, cure as feridas do ódio e, afastando definitivamente a tentação da violência, incentive cristãos e muçulmanos a reconhecerem-se membros da única família humana e a reconstruírem entre si relações harmoniosas, na justiça e no perdão.

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua portuguesa, especialmente os brasileiros, "Meninos de rua" e os seus acompanhantes, que vieram do Rio de Janeiro, e convido-os a oferecer ao Menino Jesus, na expectativa da vinda dos Reis Magos na Epifania, um coração jovem apaixonado pelas coisas de Deus, sempre atento ao bem do irmão carente de afecto e necessitado de ajuda. Recebam todos a Bênção do Papa, extensiva aos vossos entes queridos, e que a Senhora Aparecida vos proteja.
* * *


No clima natalício, dirijo votos cordiais aos peregrinos de língua italiana. Saúdo, em particular, os neo-sacerdotes dos Legionários de Cristo com os seus familiares, os participantes na Assembleia promovida pela União "Pro Fidelitate", e o grupo da "Comunidade de Santa Cecília", vindos para recordar o vigésimo quinto aniversário de fundação. Caros Irmãos e Irmãs, exorto-vos todos a revigorar com sempre maior entusiasmo o vosso generoso empenho de testemunho evangélico.
Saúdo depois os meninos de coro e o grupo de fiéis de Borno, assim como os paroquianos de "Colli al Volturno".

Dirijo um pensamento muito especial aos dirigentes, aos artistas e ao pessoal do "Golden Circus", e convido-os a recordar sempre aos pequeninos e aos adultos que o Senhor ama quem O serve com alegria.

Dirijo, por fim, uma saudação cordial aos jovens, aos Doentes e aos jovens Casais.
Amanhã, solenidade da Epifania do Senhor, recordaremos o caminho dos Reis Magos rumo a Cristo, guiados pela luz da estrela.

O seu exemplo, caros jovens, alimente em vós o desejo de encontrar Jesus e de transmitir a alegria do seu Evangelho; vos conduza, queridos doentes, a oferecer ao Menino de Belém as vossas tristezas e sofrimentos, que se tornam preciososos pela fé; constitua para vós, prezados jovens esposos, um constante estímulo a tornar as vossas famílias "pequenas igrejas" e "lugar" acolhedor dos sinais misteriosos de Deus e do dom da vida.

A todos a minha Bênção.





JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 12 de Janeiro de 2000




Queridos irmãos e irmãs,

1. Completando a nossa reflexão sobre Maria como conclusão do ciclo de catequese dedicado ao Pai, queremos hoje ressaltar o seu papel no nosso caminho rumo ao Pai.

Ele mesmo quis a presença de Maria na história da salvação. Quando decidiu enviar o seu Filho ao mundo, quis que Ele viesse a nós nascendo de uma mulher (cf. Gl Ga 4,4). Deste modo quis que esta mulher, a primeira a acolher o seu Filho, O comunicasse à humanidade inteira.

Maria encontra-se, portanto, no caminho que do Pai vem à humanidade como mãe, que dá a todos o Filho Salvador. Ao mesmo tempo, Ela está no caminho que os homens devem percorrer para ir ao Pai, por meio de Cristo no Espírito (cf. Ef Ep 2,18).

2. Para compreendermos a presença de Maria no itinerário rumo ao Pai, devemos reconhecer com todas as Igrejas que Cristo é "o caminho, a verdade e a vida" (Jn 14,6) e o único Mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5). Maria está inserida na única mediação de Cristo, totalmente ao Seu serviço. Por isso, como o Concílio ressaltou na Lumen gentium, "a função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui essa única mediação de Cristo, manifesta antes a sua eficácia" (n. 60). Estamos bem longe de afirmar um papel de Maria na vida da Igreja fora da mediação de Cristo ou ao lado dela, como se se tratasse de uma mediação paralela ou concorrente.

Como eu disse expressamente na Encíclica Redemptoris Mater, a mediação maternal de Maria "é mediação em Cristo" (n. 38). O Concílio explica: "Todo o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens se deve ao beneplácito divino e não a qualquer necessidade; deriva da abundância dos méritos de Cristo, funda-se na Sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia; de modo nenhum impede a união imediata dos fiéis com Cristo, antes a favorece" (LG 60).

Também Maria foi remida por Cristo, ou melhor, é a primeira dos remidos porque a graça, que Lhe foi concedida por Deus Pai no início da sua existência, se deve "aos méritos de Jesus Cristo, Salvador do género humano", como afirma a Bula Ineffabilis Deus de Pio IX (DS 2803). Toda a cooperação de Maria na salvação está fundada na mediação de Cristo a qual, como esclarece ainda o Concílio, "não exclui, antes suscita nas criaturas cooperações diversas, que participam dessa única fonte" (LG 62).

Considerada nesta perspectiva, a mediação de Maria apresenta-se como o fruto mais excelso da mediação de Cristo e está essencialmente orientada a tornar mais íntimo e profundo o nosso encontro com Ele: "Esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la; sente-a constantemente e inculca-a aos fiéis, para mais intimamente aderirem, com esta ajuda materna, ao seu único Mediador e Salvador" (Ibidem).

3. Na realidade, Maria não quer atrair a atenção para a sua pessoa. Viveu sobre a terra com o olhar fixo em Jesus e no Pai celeste. O seu desejo mais intenso é fazer convergir os olhares de todos na mesma direcção. Quer promover um olhar de fé e de esperança no Salvador, que nos foi enviado pelo Pai.

Foi modelo de um olhar de fé e de esperança sobretudo quando, na tormenta da paixão do Filho, conservou no coração uma fé total n'Ele e no Pai. Enquanto os discípulos envolvidos pelos acontecimentos ficaram profundamente abalados na sua fé, Maria, embora provada pelo sofrimento, permaneceu íntegra na certeza de que se realizaria a predição de Jesus: "O Filho do Homem... ao terceiro dia, ressuscitará" (Mt 17,22-23). Uma certeza que não a abandonou nem sequer quando acolheu entre os seus braços o corpo sem vida do Filho crucificado.

4. Com este olhar de fé e de esperança, Maria encoraja a Igreja e os crentes a cumprirem sempre a vontade do Pai, que nos foi manifestada por Cristo.

As palavras dirigidas aos servidores, no milagre de Caná, ressoam para todas as gerações de cristãos: "Fazei o que Ele vos disser" (Jn 2,5).

O seu conselho foi seguido, quando os servidores encheram as talhas até à borda. O mesmo convite nos é dirigido hoje por Maria. É uma exortação a entrar no novo período da história, com a decisão de pôr em prática tudo quanto Cristo, em nome do Pai, disse no Evangelho e actualmente nos sugere mediante o Espírito que habita em nós.

Se fizermos aquilo que Cristo nos diz, o Milénio que teve início poderá assumir um novo aspecto, mais evangélico e mais autenticamente cristão, e corresponder assim à aspiração mais profunda de Maria.

5. As palavras: "Fazei o que Ele vos disser", indicando-nos Cristo, evocam portanto também o Pai, rumo ao Qual estamos a caminho. Elas coincidem com a voz do Pai, ressoada no monte da Transfiguração: "Este é o Meu Filho amado... ouvi-O sempre" (Mt 17,5). Este mesmo Pai, com a palavra de Cristo e a luz do Espírito Santo, nos chama, nos guia e nos espera.

A nossa santidade consiste em fazer tudo o que nos é dito pelo Pai. Eis o valor da vida de Maria: o cumprimento da vontade divina. Acompanhados e sustentados por Maria, com reconhecimento recebamos o novo Milénio das mãos do Pai e nos empenhemos em corresponder à sua graça com humilde e generosa dedicação.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, com menção particular da paróquia de São Conrado, no Rio de Janeiro, e do grupo de fiéis de Cuiabá: cheios de confiança, cruzai os átrios sagrados das Basílicas jubilares e deixai-vos abraçar por Cristo Salvador, acolhendo com alegria e generosidade o seu apelo à santidade, para serdes cada vez mais sinal de esperança na sociedade actual a caminho do terceiro milénio.

Obrigado pelas vossas orações e votos natalícios! De coração, a todos abençoo em nome do Senhor.

* * *



Apresento calorosas boas-vindas aos peregrinos e visitantes de língua inglesa aqui presentes, de modo especial aos da Noruega, Japão e Estados Unidos da América. Confio-vos e as vossas famílias à protecção de Maria, que é "um sinal de esperança segura e de consolação para o Povo de Deus ainda peregrinante" (Lumen gentium LG 68), e invoco sobre vós as abundantes bênçãos de Deus Altíssimo.

* * *



Desejo saudar os peregrinos de língua espanhola, em especial as Religiosas de Maria Imaculada Missionárias Claretianas, reunidas em Capítulo Geral, e as Irmãs da Caridade Cristã. Saúdo também a Associação Europeia de Doentes de Parkinson, assim como os peregrinos da diocese argentina de Morón, e os demais grupos da Espanha, Argentina e Colômbia. Ao convidar-vos a cumprir sempre, como Maria, a vontade divina, abençoo-vos com todo o meu afecto.
Muito obrigado!

* * *



Dirijo cordiais boas-vindas a todos os peregrinos de língua italiana. Em particular, saúdo os dirigentes do Comité provincial do Centro Desportivo Italiano de Bérgamo, assim como o Comandante, os Oficias e os Subtenentes do Curso "Sparviero Quarto" da Academia Aeronáutica de Pozzuoli.

Um afectuoso pensamento dirige-se ao Senhor Ernesto Olivero e aos jovens do Serviço Missionário Juvenil, cujo trigésimo quinto aniversário de fundação será comemorado amanhã. Caros jovens, prossegui com generosidade neste profético empenho ao serviço dos vossos coetâneos. Ajudai-os com o exemplo a redescobrir o inestimável dom da vida e a realizar as grandes potencialidades de bem, presentes em cada um. Sede sinais críveis da ternura de Deus neste nosso mundo, que se apresenta no terceiro milénio. Com o vosso entusiasmo e a vossa convicta adesão à lógica do Evangelho, contagiai todos os que são vítimas de uma perigosa cultura da violência ou vivem, na banalidade ou no desespero, o exultante período da juventude. No início deste extraordinário Ano jubilar, no qual o Senhor abre a todos as portas da sua misericórdia, confio-vos a tarefa de ser artífices da sua paz, indispensável para realizar no mundo aquela fraternidade na justiça, que restitui a cada um a alegria e a honra de ser chamado a fazer parte da família de Deus.

Uma particular saudação dirige-se, além disso, aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais, com os bons votos de viverem em plenitude o Ano jubilar.

Para muitos de vós, caros jovens, sobretudo de Velletri e de Montevidéu, o Jubileu é uma experiência nova: fazei-a vossa com alegria e empenho. Vós, queridos doentes, cooperai com a misericórdia divina, oferecendo em espírito de penitência as provações e dificuldades. E vós, prezados jovens esposos, aprofundai neste Ano Santo a graça recebida no sacramento do Matrimónio.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 19 de Janeiro de 2000

Caríssimos Irmãos e Irmãs,


1. "Trindade supra-essencial, infinitamente divina e boa, guardiã da sabedoria divina dos cristãos, levai-nos para além de toda a luz e de tudo aquilo que é desconhecido, até ao mais alto vértice das Escrituras místicas, lá onde os mistérios simples, absolutos e incorruptíveis da teologia se revelam nas trevas luminosas do silêncio". Com esta invocação de Dionísio, o Areopagita, teólogo do Oriente (Teologia mística I, 1), começamos a percorrer um itinerário árduo, mas fascinante, na contemplação do mistério de Deus. Depois de nos termos detido nos anos passados em cada uma das três Pessoas divinas - o Filho, o Espírito, o Pai - neste ano jubilar propomo-nos abraçar com um único olhar a glória comum dos Três, que são um único Deus "não na unidade de uma só pessoa, ma na Trindade de uma só substância" (Prefácio da solenidade da Santíssima Trindade). Esta escolha corresponde à indicação oferecida pela Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, que põe como objectivo da fase celebrativa do Grande Jubileu "a glorificação da Trindade, da Qual tudo procede e à Qual tudo se dirige no mundo e na história" (n. 55).

2. Ao inspirarmo-nos numa imagem oferecida pelo Livro do Apocalipse (cf. 22, 1), poderíamos comparar este percurso à viagem de um peregrino ao longo das margens do rio de Deus, isto é, da sua presença e revelação na história dos homens.

Hoje, em síntese ideal deste caminho, deter-nos-emos nos dois pontos extremos daquele rio: a sua fonte e o seu estuário, unindo-os entre si num único horizonte. Efectivamente, a Trindade divina está nas próprias origens do ser e da história e está presente na sua meta última. Ela constitui o início e o fim da história da salvação. Entre os dois extremos, o jardim do Éden (cf. Gn Gn 2) e a árvore de vida da Jerusalém celeste (cf. Ap Ap 22), corre uma longa vicissitude marcada pelas trevas e pela luz, pelo pecado e pela graça. O pecado afastou-nos do esplendor do paraíso de Deus; a redenção leva-nos à glória de um novo céu e de uma nova terra, onde "não haverá mais morte, nem pranto, nem gritos, nem dor" (ibidem, 21, 4).

3. O primeiro olhar sobre este horizonte é oferecido pela página inicial da Sagrada Escritura, que indica o momento em que o poder criador de Deus tira o mundo do nada: "No princípio, Deus criou os céus e a terra" (Gn 1,1). Este olhar aprofunda-se no Novo Testamento, remontando até ao coração da vida divina, quando João, no início do seu Evangelho, proclama: "No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" (Jn 1,1). Antes da criação e como fundamento dela, a revelação faz-nos contemplar o mistério do único Deus na trindade das pessoas: o Pai e o seu Verbo, unidos no Espírito.

O escritor bíblico que escreveu a página da criação não teria podido suspeitar a profundidade deste mistério. Menos ainda era capaz de o alcançar a pura reflexão filosófica, uma vez que a Trindade está acima das possibilidades do nosso intelecto, e só pode ser conhecida por revelação.
Contudo, este mistério que infinitamente nos supera é também a realidade mais próxima de nós, porque está nas fontes do nosso ser. Com efeito, em Deus nós "vivemos, nos movemos e existimos" (Ac 17,28), e às três Pessoas divinas deve ser aplicado quanto Santo Agostinho diz a respeito de Deus: Ele é "intimior intimo meo" (Conf. 3, 6, 11). Nas profundidades do nosso ser, aonde nem sequer o nosso olhar consegue chegar, a graça torna presentes o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o único Deus em três pessoas. O mistério da Trindade, longe de ser uma árida verdade entregue ao intelecto, é vida que habita em nós e nos sustém.

4. Desta vida trinitária, que precede e fundamenta a criação, recebe os impulsos a nossa contemplação neste ano jubilar. Mistério das origens de onde tudo deriva, Deus aparece-nos como Aquele que é a plenitude do ser e comunica o ser, como luz que "a todo o homem ilumina" (cf. Jo Jn 1,9), como Ser vivo e dador de vida. Aparece-nos sobretudo como Amor, segundo a magnífica definição da Primeira Carta de João (cf. 1Jn 4,8). Ele é amor na sua vida íntima, onde o dinamismo trinitário é precisamente expressão do eterno amor com que o Pai gera o Filho e ambos se doam reciprocamente no Espírito Santo. É amor na relação com o mundo, uma vez que a livre decisão de o tirar do nada é fruto deste amor infinito, que se irradia na esfera da criação. Se os olhos do nosso coração, iluminados pela revelação, se fizerem bastante puros e penetrantes, tornam-se capazes de encontrar na fé este mistério, no qual tudo aquilo que existe tem a sua raiz e o seu fundamento.

5. Mas como me referia no início, o mistério da Trindade está também diante de nós, como o objectivo para o qual a história tende, como a pátria a que anelamos. A nossa reflexão trinitária, seguindo os vários âmbitos da criação e da história, olhará para esta meta que o livro do Apocalipse, com grande eficácia, nos aponta como selo da história.

É esta a segunda e última parte do rio de Deus, que há pouco evocámos. A origem e o fim unem-se na Jerusalém celeste. Com efeito, aparece Deus Pai que está sentado no trono e diz: "Eu renovo todas as coisas" (Ap 21 Ap 5). Ao lado d'Ele está presente o Cordeiro, isto é, Cristo, no seu trono, com a sua luz, com o livro da vida que contém os nomes dos remidos (cf. ibidem, 21, 23.27; 22, 1.3). E, no final, num diálogo suave e intenso, eis o Espírito que ora em nós e juntamente com a Igreja, a esposa do Cordeiro, diz: "Vem, Senhor Jesus" (cf. ibidem, 22, 17.20).


Como conclusão deste primeiro delineamento da nossa longa peregrinação no mistério de Deus, retornamos, então, à oração de Dionísio, o Areopagita, que nos recorda a necessidade da contemplação: "De facto, é no silêncio que se aprendem os segredos destas trevas... que brilha com a luz mais fulgurante, enche de esplendores mais belos da beleza as inteligências que sabem fechar os olhos" (Teologia mística I, 1).

Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua portuguesa aqui presentes, com votos de paz e de serena alegria em vossos lares. De modo especial desejo saudar os portugueses da Paróquia de Cristo-Rei, de Algés-Miraflores: que o Ano jubilar seja fonte de generosa acolhida das graças divinas a benefício da sincera conversão do seu coração e da paz em suas famílias.
Com a minha Bênção Apostólica.

* * *



Dirijo agora uma cordial saudação aos peregrinos de língua italiana, em particular aos membros da Arquiconfraria da Misericórdia, de Florença, vindos para fazer benzer a cesta dos "panellini", que serão distribuídos às Autoridades religiosas e civis de Florença, e saúdo também as Sócias do "Soroptimist International" da Itália.

Saúdo, depois, os Jovens, os Doentes e os jovens Casais presentes.

Ontem, abri a Porta Santa da Basílica de São Paulo fora dos Muros, na presença de uma significativa representação de Irmãos de outras Igrejas e Comunidades cristãs, no dia em que é iniciada a anual Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos.

Neste Grande Jubileu, no qual somos convidados a dirigir ao Pai, com fé ainda mais intensa, a oração de Jesus: "Que todos sejam um só" (Jn 17,11), exorto-vos, caros jovens, a tornar-vos apóstolos de diálogo, de escuta e de perdão; peço-vos, queridos doentes, que ofereçais os vossos sofrimentos pela unidade de todos os crentes em Cristo; convido-vos, prezados jovens esposos, a ser artífices de comunhão a partir das vossas famílias.






AUDIÊNCIA

Quarta-feira 26 de Janeiro de 2000

Queridos irmãos e irmãs,


1. "Como são agradáveis todas as Suas obras, ainda que delas se veja apenas uma faísca!... Ele não fez nada incompleto... Ninguém se cansa de contemplar a glória de Deus... Por mais coisas que disséssemos nunca teríamos acabado. Mas, para concluir, podemos dizer: "Ele é tudo". Como poderíamos encontrar forças para O louvar? Ele é o Grande, e está acima de todas as Suas obras..." (Si 42,22 Si 42,24-25 Si 43,27-28). Com estas palavras repletas de admiração, um sábio bíblico, o Sirácide, punha-se diante do esplendor da criação, tecendo o louvor de Deus. É um pequeno traço do fio de contemplação e de meditação que percorre todas as Sagradas Escrituras, a partir das primeiras linhas do Génesis quando, no silêncio do nada, surgem as criaturas, convocadas pela Palavra eficaz do Criador.

"Deus disse: "Que exista a luz!" E a luz começou a existir" (Gn 1,3). Já nesta parte da primeira narração da criação se vê em acção a Palavra de Deus, do Qual João dirá: "No começo a Palavra já existia... a Palavra era Deus... Tudo foi feito por meio d'Ele, e, de tudo o que existe, nada foi feito sem Ele" (Jn 1,1 Jn 1,3). No hino da Carta aos Colossenses, Paulo reafirmará que "n'Ele (Cristo) foram criadas todas as coisas, tanto as celestes como as terrestres, tanto as visíveis como as invisíveis: tronos soberanias, principados e autoridades. Tudo foi criado por meio d'Ele e para Ele. Ele existe antes de todas as coisas, e tudo n'Ele subsiste" (CL 1,16-17). Mas no instante inicial da criação aparece velado também o Espírito: "O Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas" (Gn 1,2). A glória da Trindade - podemos dizer com a tradição cristã - resplandece na criação.

2. De facto, à luz da Revelação é possivel ver como o acto criativo está apropriado antes de tudo ao "Pai das luzes, no Qual não há mudança nem sombra de variação" (Jc 1,17). Ele resplandece sobre todo o horizonte, como canta o Salmista: "Javé, Senhor nosso, como é poderoso o Teu nome em toda a terra! Exaltaste a Tua majestade acima do céu" (Ps 8,2). Deus "firmou o mundo que jamais tremerá" (Ps 96,10) e diante do nada, representado simbolicamente pelas águas caóticas que levantam a sua voz, o Criador ergue-se dando consistência e segurança: "Levantam os rios, ó Javé, os rios levantam a sua voz, os rios levantam o seu rumor. Porém, mais que o estrondo das águas torrenciais, mais poderoso que a ressaca do mar, é Javé majestoso nas alturas" (Ps 93,3-4).

3. Na Sagrada Escritura a criação também está muitas vezes ligada à Palavra divina que irrompe e age: "O céu foi feito com a palavra de Javé, e o Seu exército com o sopro da Sua boca... Porque Ele diz e a coisa acontece... Ele envia as Suas ordens à terra, e a Sua palavra corre velozmente" (Ps 33,6 Ps 33,9 Ps 147,15). Na literatura sapiencial anticotestamentária é a Sabedoria divina personificada que dá origem ao cosmo, actuando o projecto da mente de Deus (cf. Pr Pr 8 Pr 22-31). Já foi dito que João e Paulo na Palavra e na Sabedoria de Deus verão o anúncio da acção de Cristo "por Quem tudo existe e por meio do Qual também nós existimos" (1Co 8,6), porque é "por meio d'Ele que (Deus) também criou o mundo" (He 1,2).

4. Outras vezes, por fim, a Escritura ressalta o papel do Espírito de Deus no acto criativo: "Envias o Teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra" (Ps 104,30). O mesmo Espírito é simbolicamente representado no sopro da boca de Deus. Ele dá vida e consciência ao homem (cf. Gn Gn 2,7) e restitui-lhe a vida na ressurreição, como anuncia o profeta Ezequiel numa página sugestiva, onde o Espírito está a agir ao fazer reviver ossos já ressequidos (cf. 37, 1-14). O mesmo sopro domina as águas do mar no êxodo de Israel do Egipto (cf. Êx Ex 15,8 Êx Ex 15,10). É ainda o Espírito que regenera a criatura humana, como dirá Jesus no diálogo nocturno com Nicodemos: "Eu te garanto: ninguém pode entrar no Reino de Deus se não nasce da água e do Espírito. Quem nasce da carne é carne, quem nasce do Espírito é espírito" (Jn 3,5-6).

5. Pois bem, diante da glória da Trindade na criação o homem deve contemplar, cantar, reencontrar a admiração. Na sociedade contemporânea tornamo-nos áridos "não por falta de maravilhas, mas por falta de maravilha (G. K. Chesterton). Para o crente, contemplar a criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa, como nos sugere o "Salmo do sol": "O céu manifesta a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra das Suas mãos. O dia passa a mensagem a outro dia, a noite sussura-a à outra noite. Sem fala e sem palavras, sem que a sua voz seja ouvida, a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua linguagem" (Ps 19,2-5).

A natureza torna-se, portanto, um evangelho que nos fala de Deus: "a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por comparação, chegar ao conhecimento do seu Autor" (Sg 13,5). Paulo ensina-nos que "desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, tais como o Seu poder eterno e a Sua divindade, podem ser contempladas, através da inteligência, nas obras que Ele realizou" (Rm 1,20). Mas esta capacidade de contemplação e conhecimento, esta descoberta de uma presença transcendente na criação, deve conduzir-nos também a redescobrir a nossa fraternidade com a terra, à qual estamos ligados a partir da nossa mesma criação (cf. Gn Gn 2,7). Precisamente esta meta o Antigo Testamento desejava para o Jubileu hebraico, quando a terra repousava e o homem colhia aquilo que espontaneamente o campo lhe oferecia (cf. Lv Lv 25,11-12). Se a natureza não for violentada e humilhada, ela voltará a ser irmã do homem.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, sede bem-vindos!

Sei que buscais a imensidade de Deus para horizontes demasiado estreitos onde a vida, por vezes, se perde e agoniza: entrai pela Porta Santa que é Cristo. Ele é o caminho para o infinito que buscais: pode parecer estreita a passagem, mas a saída, o resultado é deslumbrante.
Acompanha-vos a minha Bênção.

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É-me grato acolher as pessoas de língua francesa aqui presentes esta manhã. Que a vossa peregrinação vos permita maravilhar-vos cada vez mais diante das obras de Deus e render-Lhe graças por todo o vosso ser! A cada um concedo com afecto a Bênção Apostólica.

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Dou as minhas cordiais boas-vindas a todos os peregrinos de língua espanhola. De modo especial saúdo as Irmãs da Imaculada Conceição de Buenos Aires e os grupos provenientes da Espanha, Peru, Chile, Bolívia e de outros países da América Latina. Neste Ano Jubilar, invocando Deus Pai, Filho e Espírito Santo, abençoo todos vós. Muito obrigado!


Dirijo agora cordiais boas-vindas a todos os peregrinos de língua italiana, em particular aos sócios da Associação Nacional dos Promotores de Espectáculos Itinerantes, aos quais agradeço a presença e exorto a testemunhar com coragem os valores evangélicos. Saúdo com afecto o grupo de crianças bielo-russas, hóspedes da Paróquia Regina Pacis de Fiuggi. O Senhor vos proteja, queridas crianças, e a quantos vos acolheram.


Por fim, o meu pensamento dirige-se aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais. Hoje a liturgia faz memória dos Santos Timóteo e Tito que, formados na escola do apóstolo Paulo, anunciaram o Evangelho com incansável ardor.


O seu exemplo vos encoraje, caros jovens, a viver a vocação cristã de modo autêntico e coerente; e vós, queridos doentes, em representação dos enfermos de toda a Itália para a iniciativa jubilar do Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde, que vos reuniu ontem na Basílica de Santa Maria Maior, sabei encontrar no exemplo dos Santos a ajuda para oferecerdes os vossos sofrimentos em união aos de Cristo, para que o anúncio da salvação chegue a todos os homens; o exemplo dos Santos vos sustente, prezados jovens esposos, no empenho de evangelização das vossas famílias e de testemunhas do Evangelho da vida.



                                                                     Fevereiro de 2000

AUDIÊNCIAS 2000