Discursos João Paulo II 2000 35

PAPA JOÃO PAULO II




JOÃO PAULO II




CERIMÓNIA DE BOAS-VINDAS


NO AEROPORTO INTERNACIONAL DO CAIRO


24 de Fevereiro de 2000



Senhor Presidente
Sua Beatitude Patriarca Stephanos
Grão-Xeque Mohamed Sayed Tantawi
Querido povo do Egipto!
As-salámû 'aláikum!
A paz esteja convosco!

1. Desde há muito tempo ansiava por celebrar o bimilenário do nascimento de Jesus Cristo, indo aos lugares ligados em particular às intervenções de Deus na história e ali orando. A minha peregrinação jubilar inicia hoje no Egipto. Obrigado, Senhor Presidente, por me ter dado a possibilidade de vir aqui e aonde Deus revelou o Seu nome a Moisés e ofereceu a Lei como sinal da Sua grande misericórdia e do amor para com as Suas criaturas. Apreciei muito as cordiais palavras de boas-vindas.

Esta é a terra duma civilização que tem 5.000 anos, conhecida no mundo inteiro pelos seus monumentos e pelo seu conhecimento da matemática e da astronomia. Esta é a terra na qual diferentes culturas se encontraram e se mesclaram, tornando o Egipto famoso pela sua sabedoria e o seu saber.

2. Nos tempos cristãos, na cidade de Alexandria, onde o evangelista Marcos, discípulo de Pedro e de Paulo, fundou a Igreja, nasceram famosos escritores eclesiásticos como Clemente e Origenes e grandes Padres da Igreja como Atanásio e Cirilo. A fama de Santa Catarina de Alexandria sobrevive na devoção crista e no nome de muitas igrejas em todas as partes do mundo. O Egipto, com Santo António e Sao Pacómio, foi o lugar de nascimento do monaquismo, que exerceu um papel essencial na tutela das tradições espirituais e culturais da Igreja.

36 A chegada do Islao trouxe esplendidas obras de arte e ensinamentos que exerceram uma influência determinante sobre o mundo árabe e a África. O povo do Egipto perseguiu durante séculos o ideal da unidade nacional. As diferenças de religião jamais constituiram um obstáculo, mas antes uma forma de enriquecimento recíproco ao serviço da única comunidade nacional. Recordo bem as palavras do Papa Shenouda III: "O Egipto nao é a terra natal em que vivemos, mas a terra natal que vive em nós".

3. A unidade e a harmonia da nação são um valor precioso que todos os cidadãos deveriam tutelar e os responsáveis políticos e religiosos deveriam promover, na justiça e no respeito dos direitos de todos. Senhor Presidente, o seu empenho pela paz no Pais e em todo o Médio Oriente é bem conhecido. Vossa Excelência teve uma função importante em fazer progredir o processo de paz na região. Todos os homens e mulheres criteriosos apreciam os esforços realizados até agora e esperam que a boa vontade e a justiça prevaleçam, a fim de que todos os povos desta singular área do mundo vejam os próprios direitos respeitados e as suas legitimas aspirações satisfeitas.

A minha visita ao Mosteiro de Santa Catarina, aos pés do Monte Sinai, será um momento de oração intensa pela paz e a harmonia inter-religiosa. Fazer o mal, promover a violência e o conflito em nome da religião é uma contradição terrível e uma grande ofensa a Deus. Contudo, a história passada e presente oferece-nos muitos exemplos deste abuso da religião. Todos nós devemos trabalhar para fortalecer o empenho crescente a favor do diálogo inter-religioso, um grande sinal de esperança para os povos do mundo.

As-salámû 'aláikum A paz esteja convosco!

Eis a minha saudação a todos vós. Esta é a oração que elevo pelo Egipto e pelo seu povo.
Que o Altíssimo abençôe a vossa terra com harmonia, paz e prosperidade!





JOÃO PAULO II


HOMILIA NO ENCONTRO ECUMÉNICO


NA CATEDRAL DE NOSSA SENHORA DO EGIPTO


Cairo, 25 de fevereiro de 2000



"A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós!" (2Co 13,13).

Santidade Papa Shenouda
Beatitude Patriarca Stephanos
Bispos e Dignitários das Igrejas
37 e das Comunidades eclesiais
do Egipto

1. Com a bênção de São Paulo, que nos conduz directamente ao coração do mistério da comunhão trinitária, saúdo todos vós com profundo afecto e nos vínculos do amor que nos congrega no Senhor.

Para mim é uma grande alegria vir como peregrino ao país que ofereceu hospitalidade e protecção ao Senhor Jesus Cristo e à Sagrada Família; como está escrito no Evangelho de São Mateus: "José levantou-se à noite, tomou o Menino e sua Mãe e partiu para o Egipto. Lá ficou até à morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito por meio do profeta: "Do Egipto chamei o meu Filho"" (
Mt 2,14-15).

O Egipto foi a casa da Igreja desde o princípio. Fundada sobre a pregação apostólica e a autoridade de Marcos, a Igreja de Alexandria tornou-se imediatamente uma das principais comunidades no mundo cristão nascente. Bispos veneráveis como Santo Atanásio e São Cirilo deram testemunho da fé em Deus uno e trino e em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, como os primeiros Concílios ecuménicos o definiram. É no deserto do Egipto que a vida monástica encontra a sua origem, nas suas formas tanto solitária como comunitária, sob a paternidade espiritual de Santo António e de São Pacómio. Graças a eles e ao grandioso impacto dos seus escritos espirituais, a vida monástica tornou-se uma parte da nossa herança comum. Durante as últimas décadas, aquele mesmo carisma monástico floresceu novamente e agora difunde uma vital mensagem espiritual, para muito além das fronteiras do Egipto.

2. Hoje damos graças a Deus pelo facto de estarmos cada vez mais conscientes da nossa herança comum, na fé e na riqueza da vida sacramental. Também temos em comum aquela filial veneração pela Virgem Maria, Mãe de Deus, pela qual a Igreja copta e todas as Igrejas orientais são famosas. E "quando se fala de um património comum, devem-se inserir nele não só as instituições, os ritos, os meios de salvação, as tradições que todas as Comunidades conservaram e pelas quais elas estão plasmadas, mas também, e em primeiro lugar, esta realidade da santidade" (Carta Encíclica Ut unum sint UUS 84). A fim de conservar e anunciar fielmente este património, a Igreja no Egipto teve de enfrentar grandes sacrifícios e continua a fazê-lo. Quantos mártires aparecem no venerável Martirológio da Igreja copta, que remonta às terríveis perseguições dos anos 283-284! Através do seu infalível testemunho, eles louvaram a Deus no Egipto até à morte!

3. Desde o início, estas comuns tradição e herança apostólicas foram transmitidas e explicadas de várias formas, tendo em consideração a específica índole cultural dos povos. Contudo, até ao século V, os factores teológicos e não teológicos, amalgamados à falta de amor e compreensão fraternos, levou a dolorosas divisões na única Igreja de Cristo. Nasceram a desconfiança e a hostilidade entre os cristãos, em contradição com o fervoroso desejo de nosso Senhor Jesus Cristo, que pediu: "Para que todos sejam um só" (Jn 17,21).

Contudo, durante o século XX o Espírito Santo levou as Igrejas e as Comunidades cristãs a uma maior união, num movimento de reconciliação. Recordo com gratidão o encontro entre o Papa Paulo VI e Sua Santidade o Papa Shenouda III em 1973, bem como a Declaração Cristológica Comum, que eles assinaram nessa ocasião. Dou graças por todas aquelas pessoas que contribuíram para esse importante resultado, especialmente a Fundação Pró-Oriente de Viena e a Comissão Internacional Conjunta entre a Igreja romano-católica e a Igreja copto-ortodoxa. Queira Deus que esta Comissão Internacional Conjunta e a Comissão Internacional Conjunta para o Diálogo Teológico entre a Igreja romano-católica e a Igreja ortodoxa voltem imediatamente a ser activas, de modo especial a propósito de determinadas questões eclesiológicas fundamentais que ainda necessitam de um esclarecimento.

4. Reitero aqui o que escrevi na minha Carta Encíclica Ut unum sint, isto é, que tudo o que está relacionado com a unidade de todas as comunidades cristãs claramente faz parte integrante das solicitudes do Bispo de Roma (cf. n. 95). Por conseguinte, desejo renovar a exortação a fim de que todos "os responsáveis eclesiais e os teólogos instaurem comigo, sobre este argumento, um diálogo fraterno e paciente, no qual nos possamos ouvir, pondo de lado estéreis polémicas, tendo em mente apenas a vontade de Cristo para a sua Igreja" (n. 96). No que concerne ao ministério do Bispo de Roma, peço ao Espírito Santo que nos ilumine com a sua luz, esclarecendo todos os pastores e teólogos das nossas Igrejas, para juntos podermos buscar as formas de fazer com que este ministério concretize um serviço de amor, reconhecido por todas as pessoas interessadas (cf. Homilia de 6 de Dezembro de 1987, n. 3; cf. também Ut unum sint UUS 95). Dilectos Irmãos, não devemos perder tempo a este propósito!

5. A nossa comunhão no único Senhor Jesus Cristo, no único Espírito Santo e no único Baptismo já representa uma realidade profunda e essencial. Esta comunhão torna-nos capazes de dar um testemunho comum da nossa fé numa série de modos, e efectivamente exige que cooperemos na transmissão da luz de Cristo a um mundo que sente necessidade da salvação. Este testemunho comum é ainda mais importante no início de um novo século e milénio, que apresenta enormes desafios à família humana. Também por este motivo, não se deve perder tempo!

Como condição básica para este testemunho comum, devemos evitar tudo o que possa conduzir, uma vez mais, à desconfiança e à discórdia. Concordámos em evitar todas as formas de proselitismo ou métodos e atitudes opostos às exigências do amor cristão, o que deveria caracterizar os relacionamentos entre as Igrejas (cf. Declaração Comum assinada pelo Papa Paulo VI e pelo Papa Shenouda III, 1973). E recordamos que a verdadeira caridade, arraigada na total fidelidade ao único Senhor Jesus Cristo e no respeito mútuo pelas tradições eclesiais e pelas práticas sacramentais de cada um, constitui um elemento essencial desta busca da comunhão perfeita (Ibid.).

38 Não nos conhecemos uns aos outros de maneira suficiente: por conseguinte, esforcemo-nos por encontrar modos de nos encontrarmos! Procuremos formas viáveis de comunhão espiritual, tais como a oração e o jejum conjuntos, ou os intercâmbios mútuos e a hospitalidade entre os mosteiros. Busquemos formas de cooperação concreta, de maneira especial em resposta à sede espiritual de inúmeras pessoas no mundo de hoje, para o alívio da sua aflição, na educação dos jovens, na salvaguarda de condições de vida humanas, na recíproca promoção do respeito, da justiça e da paz, assim como no progresso da liberdade religiosa como direito humano fundamental.

6. No início da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, no dia 18 do passado mês de Janeiro, abri a Porta Santa da Basílica de São Paulo fora dos Muros em Roma e ultrapassei o seu limiar em companhia dos representantes de muitas Igrejas e Comunidades eclesiais. Juntamente comigo estavam Sua Excelência Amba Bishoi, da Igreja copta, enquanto os representantes das Igrejas ortodoxa e luterana elevaram o Livro dos Evangelhos em direcção aos quatro pontos cardeais. Tratava-se de uma expressão profundamente simbólica da nossa missão comum no novo milénio: juntos, devemos dar testemunho do Evangelho de Jesus Cristo, da mensagem salvífica de vida, amor e esperança para o mundo.

Durante essa mesma Liturgia, três representantes de diversas Igrejas e Comunidades eclesiais proclamaram o Credo apostólico, tendo a primeira parte sido anunciada pelo representante do Patriarcado greco-ortodoxo de Alexandria. Sucessivamente, oferecemo-nos uns aos outros o sinal da paz, e para mim esse momento jubiloso representou a antecipação e o antegozo da plena comunhão que nos estamos a esforçar por alcançar entre todos os seguidores de Cristo. Queira o Espírito de Deus conceder-nos sem tardar a unidade completa e visível à qual aspiramos!

7. Confio esta esperança à poderosa intercessão da Theotokos, Arquétipo da Igreja. Ela é a criatura toda pura, toda bela e toda santa, capaz de "ser Igreja" como nenhuma outra criatura jamais o pode ser. Sustentados pela sua presença maternal, devemos ter a coragem de admitir as nossas culpas e hesitações, buscando a reconciliação que nos há-de fazer "viver no amor, como Cristo nos amou" (cf. Ef
Ep 5,2). Veneráveis Irmãos, o terceiro milénio cristão seja o milénio da nossa plena unidade no Pai, no Filho e no Espírito Santo.

Enfim, desejo agradecer muito cordialmente ao Papa Shenouda as comovedoras palavras que me dirigiu. Compartilho as esperanças que ele expressou e quero retribuir-lhe com estas palavras: "Também nós vos amamos!".



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NO ENCERRAMENTO DO CONGRESSO INTERNACIONAL


SOBRE A ACTUAÇÃO DOS ENSINAMENTOS CONCILIARES


Domingo, 27 de Fevereiro de 2000

Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no Episcopado
e no Sacerdócio
Dilectos Irmãos e Irmãs

1. Estou feliz por me encontrar convosco no final da Assembleia que nestes dias se celebrou no Vaticano sobre o tema, deveras comprometedor e estimulante, da actuação do Concílio Ecuménico Vaticano II. Saúdo o Senhor Cardeal Roger Etchegaray, a quem agradeço as palavras que me dirigiu em nome de todos. As minhas boas-vindas dirigem-se, outrossim, aos Prefeitos de Dicastérios e aos demais Purpurados, assim como aos Arcebispos e Bispos que, com a sua presença, sublinham a importância deste encontro. Enfim, saúdo os especialistas que aqui vieram das várias partes do mundo, para oferecer a contribuição das suas experiências e reflexões.

39 O Concílio Vaticano II constituiu uma dádiva do Espírito à sua Igreja. É por este motivo que permanece como um evento fundamental não só para compreender a história da Igreja no fim do século mas também, e sobretudo, para verificar a presença permanente do Ressuscitado ao lado da sua Esposa no meio das vicissitudes do mundo. Mediante a Assembleia conciliar, que viu chegar à Sé de Pedro Bispos de todas as partes do mundo, pôde-se constatar que o património de dois mil anos de fé se conservou na sua originalidade autêntica.

2. Juntamente com o Concílio, a Igreja fez sobretudo uma experiência de fé, abandonando-se a Deus sem reservas, na atitude de quem confia e tem a certeza de ser amado. É precisamente este acto de abandono a Deus que, segundo um sereno exame das Actas, emerge com força. Quem desejasse aproximar-se do Concílio prescindindo desta chave de leitura, privar-se-ia da possibilidade de penetrar na sua alma mais profunda. É só numa perspectiva de fé que o evento conciliar se abre aos nossos olhos como um dom, do qual é necessário saber captar a riqueza ainda escondida.

Entretanto, voltam à mente as significativas palavras de São Vicente de Lérin: "A Igreja de Cristo, cuidadosa e cauta guardiã dos dogmas que lhe foram confiados, jamais os altera; em nada os diminui e nada lhes adiciona; não a priva do que é necessário, nem lhe acrescenta o que é supérfluo; não perde o que é seu, nem se apropria do que pertence aos outros, mas com todo o zelo, recorrendo com fidelidade e sabedoria aos antigos dogmas, tem como único desejo aperfeiçoar e purificar aqueles que antigamente receberam uma primeira forma e esboço, consolidar e reforçar aqueles que já foram evidenciados e desenvolvidos, salvaguardar aqueles que já foram confirmados e definidos" (Commonitorium, XXIII).

3. Aos Padres conciliares apresentou-se um verdadeiro desafio, que consistia no compromisso de compreender mais intimamente, num período de rápidas transformações, a natureza da Igreja e a sua relação com o mundo para prover à oportuna "actualização". Enfrentámos este desafio também eu me encontrava entre os Padres conciliares e demos-lhe uma resposta, procurando uma compreensão mais coerente da fé. No Concílio, tornámos manifesto o facto de que também o homem contemporâneo, se quiser compreender profundamente a si mesmo, tem necessidade de Jesus Cristo e da sua Igreja, que permanece no mundo como sinal de unidade e de comunhão.

Na realidade a Igreja, Povo de Deus que percorre os caminhos da história, é o perene testemunho de uma profecia que, enquanto atesta a novidade da promessa, torna evidente a sua actuação. O Deus que prometeu é o Deus fiel que cumpre a sua palavra.

Não é isto porventura o que a Tradição que remonta aos Apóstolos nos permite verificar todos os dias? Não nos encontramos acaso num constante processo de transmissão da Palavra que salva e leva ao homem, onde quer que ele esteja, o sentido da sua existência? Depositária da Palavra revelada, a Igreja tem a missão de anunciá-la a todos.

Esta sua missão profética comporta a assunção da responsabilidade de tornar visível aquilo que a Palavra anuncia. Devemos pôr em prática os sinais visíveis da salvação, para que o anúncio que transmitimos seja compreendido na sua integridade. Anunciar o Evangelho ao mundo é uma tarefa que os cristãos não podem delegar a outrem. Trata-se de uma missão que os identifica na responsabilidade própria da fé e da sequela de Cristo! O Concílio quis restituir esta verdade fundamental a todos os fiéis.

4. Para recordar o aniversário dos primeiros vinte anos do Concílio Vaticano II, em 1985 convoquei um Sínodo Extraordinário dos Bispos, com a finalidade de celebrar, verificar e promover o ensinamento conciliar. Na sua análise, os Bispos falaram das "luzes e sombras" que caracterizaram o período pós-conciliar. Por este motivo, na Carta Tertio millennio adveniente escrevi que "o exame de consciência não pode deixar de incluir também a recepção do Concílio" (n.
TMA 36). Hoje agradeço a todos vós que aqui viestes de várias partes do mundo para dar uma resposta a este pedido. O trabalho que realizastes nestes dias evidenciou o facto de que o ensinamento conciliar está eficazmente presente na vida da Igreja. Sem dúvida, ele exige um conhecimento cada vez mais profundo. Todavia, no interior desta dinâmica é necessário que não se perca de vista a intenção genuína dos Padres conciliares; pelo contrário, esta deve ser recuperada superando as interpretações desconfiadas e parciais que impediram de exprimir da melhor forma a novidade do Magistério conciliar.

A Igreja conhece desde sempre as regras para uma recta hermenêutica dos conteúdos do dogma. Trata-se de regras que se colocam no interior do tecido da fé e não fora dele. Interpretar o Concílio pensando que ele comporta uma ruptura com o passado, enquanto na realidade ele se põe na linha da fé de sempre, é decididamente desviar-se do caminho. Aquilo que foi acreditado por "todos, sempre e em cada lugar" é a autêntica novidade que permite a cada época sentir-se iluminada pela palavra da Revelação de Deus em Jesus Cristo.

5. O Concílio constitui um acto de amor: "Um grande e tríplice acto de amor" como disse Paulo VI no Discurso de abertura do IV período do Concílio um acto de amor "a Deus, à Igreja e à humanidade" (Insegnamenti, Vol. III [1965], pág. 475). A eficácia deste acto não se esgotou de forma alguma: ela continua a actuar através da rica dinâmica dos seus ensinamentos.

A Constituição dogmática Dei Verbum colocou com renovada consciência a Palavra de Deus no âmago da vida da Igreja. Esta centralidade deve-se à mais viva percepção da unidade da Sagrada Escritura e da Santa Tradição. A Palavra de Deus, que é mantida viva pela fé do santo povo dos fiéis sob a orientação do Magistério, exige também que cada um de nós assuma a própria responsabilidade, conservando íntegro o processo de transmissão.

40 A fim de que a primazia da Revelação do Pai à humanidade perdure com todo o vigor na sua novidade radical, é necessário que a teologia seja a primeira a tornar-se um instrumento coerente do seu entendimento. Na Encíclica Fides et ratio, escrevi: "Enquanto compreensão da Revelação a teologia, nas sucessivas épocas históricas, sempre sentiu como próprio dever escutar as solicitações das várias culturas, para as permear depois, através de uma coerente conceptualização, com o conteúdo da fé. Também hoje lhe compete uma dupla tarefa. Por um lado, deve cumprir a missão que o Concílio Vaticano II lhe confiou: renovar as suas metodologias, tendo em vista um serviço mais eficaz à evangelização (...) por outro lado, a teologia deve manter o olhar fixo na verdade última que lhe é confiada por meio da Revelação, não se contentando com paragens em etapas intermediárias" (n. 92).

6. Aquilo em que a Igreja acredita é o que ela assume como objecto da sua oração. A Constituição Sacrosanctum concilium explicou quais são as premissas para uma vida litúrgica que preste a Deus o verdadeiro culto que Lhe é devido por parte do povo, chamado a exercer o sacerdócio na nova Aliança. A acção litúrgica deve permitir a cada fiel entrar no íntimo do mistério para captar a beleza do louvor ao Deus uno e trino. Com efeito, na terra ela constitui uma antecipação do louvor que as plêiades dos Beatos prestam a Deus no céu. Por conseguinte, em cada celebração litúrgica deveria oferecer-se aos participantes a possibilidade de antegozar, não obstante seja sob o véu da fé, um pouco das doçuras que hão-de provir da contemplação de Deus no Paraíso. É por isso que cada ministro, consciente da responsabilidade que tem por todo o povo que lhe é confiado, deverá ater-se fielmente ao respeito pela sacralidade do rito, crescendo na compreensão daquilo que ele mesmo celebra.

7. "Cremos ter chegado a hora em que a verdade acerca da Igreja de Cristo há-de ser aprofundada, ordenada e expressa", afirmou o Papa Paulo VI no Discurso de abertura do II período do Concílio (Insegnamenti, Vol. I [1963],
PP 173-174). O inolvidável Pontífice identificou a principal tarefa do Concílio nesta expressão. A Constituição dogmática Lumen gentium foi um genuíno cântico de exaltação da beleza da Esposa de Cristo. Naquelas páginas, completámos a doutrina expressa pelo Concílio Vaticano I e imprimimos o selo para um renovado estudo do mistério da Igreja.

A communio é o fundamento no qual está assente a realidade da Igreja. Uma koinonia que tem a sua fonte no mistério mesmo de Deus uno e trino e alarga-se a todos os baptizados, que por isso são chamados à plena unidade em Cristo. Esta comunhão torna-se evidente nas várias formas institucionais em que se realiza o ministério eclesial e na função do Sucessor de Pedro como sinal visível da unidade de todos os fiéis. A ninguém passará despercebido o facto de que, com grande impulso, o Concílio Vaticano II fez seu o anélito "ecuménico". O movimento de encontro e clarificação, que se actuou com todos os irmãos baptizados, é irreversível. É a força do Espírito que chama os fiéis à obediência, para que a unidade seja um eficaz manancial de evangelização. A comunhão que a Igreja vive com o Pai, o Filho e o Espírito Santo é uma indicação do modo como os irmãos são chamados a viver juntos.

8. "O Concílio, que nos ofereceu uma rica doutrina eclesiológica, uniu organicamente o seu ensinamento acerca da Igreja àquele sobre a vocação do homem em Cristo": é quanto eu disse na Homilia para a abertura do Sínodo dos Bispos, no dia 24 de Novembro de 1985 (Insegnamenti, Vol. VIII, 2, pág. 1371). A Constituição pastoral Gaudium et spes, que levantava os interrogativos fundamentais aos quais cada pessoa é chamada a dar uma resposta, dirige hoje também a nós palavras que nada perderam da própria actualidade: "O mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado" (n. 22). Trata-se de palavras que me são mais caras do que nunca, e quis repropô-las nas passagens fundamentais do meu magistério. Aqui está a verdadeira síntese para a qual a Igreja deve sempre olhar, enquanto dialoga com o homem deste e de todos os tempos: ela está consciente de que possui uma mensagem que é síntese fecunda da expectativa de cada homem e da resposta que Deus lhe dirige.

Na Encarnação do Filho de Deus, que este Jubileu deseja celebrar no bimilenário deste evento, torna-se evidente a chamada do homem. Ele não renuncia à sua dignidade quando se abandona fielmente a Cristo, porque assim a sua humanidade é elevada à participação na vida divina.

Cristo é a verdade que não conhece ocaso: n'Ele Deus encontra cada homem, e é n'Ele que todo o homem pode ver Deus (cf. Jo Jn 14,9-10). Nenhum encontro com o mundo será fecundo, se o fiel deixar de fixar o olhar no mistério da Encarnação do Filho de Deus. O vazio que hoje muitos experimentam diante do interrogativo acerca do porquê da vida e da morte, sobre o destino do homem e o sentido do sofrimento só pode ser colmado com o anúncio da verdade que é Jesus Cristo. O coração do homem será sempre "inquieto", enquanto não repousar n'Ele, que é o verdadeiro alívio para os "cansados e oprimidos" (cf. Mt Mt 11,28).

9. A "pequena semente" que João XXIII lançou "com a alma e a mão trepidantes" (Constituição Apostólica Humanae salutis, 25 de Dezembro de 1961), na Basílica de São Paulo fora dos Muros no dia 25 de Janeiro de 1959, anunciando a intenção de convocar o XXI Concílio Ecuménico na história da Igreja, cresceu e deu vida a uma árvore que já alarga os seus ramos majestosos e frondosos na Vinha do Senhor. Ele já deu numerosos frutos nestes 35 anos de vida e ainda dará muitos outros nos anos vindouros. Uma nova estação abre-se diante dos nossos olhos: trata-se do tempo do aprofundamento dos ensinamentos conciliares, o período da colheita daquilo que os Padres conciliares semearam e a geração destes anos cuidou e esperou.

O Concílio Ecuménico Vaticano II constitui uma verdadeira profecia para a vida da Igreja; e continuará a sê-lo por muitos anos do terceiro milénio há pouco iniciado. A Igreja, enriquecida com as verdades eternas que lhe foram confiadas, ainda falará ao mundo, anunciando que Jesus Cristo é o único verdadeiro Salvador do mundo: ontem, hoje e sempre!



                                                                                 Março de 2000

MENSAGEM DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


PELA ABERTURA DA


CAMPANHA DA FRATERNIDADE


NO BRASIL




Caríssimos Irmãos e Irmãs do Brasil!

41 A Campanha da Fraternidade reveste-se de particular significado neste ano jubilar, em que se vêm juntar, nessa amada Terra da Santa Cruz, as celebrações dos quinhentos anos do seu descobrimento. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sugeriu como tema central "Dignidade Humana e Paz", e congratulo-me com a iniciativa, pois uma verdadeira paz não se pode construir senão através do respeito pela dignidade humana.

Na Quaresma, que hoje se inicia, abre-se promissor o sulco da graça de Deus que, através da observância quaresmal da Igreja, poderá contribuir para que os homens e as mulheres do nosso tempo possam viver, com maior empenho, os valores da paz, da liberdade, da vida divina e da perfeita comunhão com os irmãos. Neste tempo litúrgico, há um apelo premente a fim de que todos os cristãos se unam, em fraterna disponibilidade, para uma nova aurora de solidariedade e de respeito pela dignidade humana, que é a de filhos de Deus redimidos por Jesus, nosso Irmão e Redentor.

O Brasil festejará, dentro de pouco, cinco séculos de história, que coincidem com cinco séculos de evangelização. Ninguém deverá sentir-se excluído desta alegria. Possa o Divino Consolador fazer com que todos se sintam também comprometidos a partilhar plenamente deste júbilo com seus irmãos na fé, sendo co-responsáveis com a Igreja em sua missão pastoral e salvadora. Por isso, elevo a Deus, rico em misericórdia, ardentes preces para que este Ano Santo seja tempo de abertura, de diálogo e de aproximação entre todos os cristãos na caminhada ecumênica promovida pelo CONIC, Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil, para que todos os homens creiam em Cristo. "Se souberem seguir o caminho que Ele indica, terão a alegria de dar o próprio contributo para a presença d'Ele no próximo século e nos sucessivos" (
TMA 58).

Sejam estes votos penhor do apreço do Papa por todos os Brasileiros, para quem invoco abundantes graças de paz e de concórdia em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Vaticano, 2 de março de 2000.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS CAVALEIROS, DAMAS E ECLESIÁSTICOS


DAORDEM EQUESTRE DO SANTO SEPULCRO


DE JERUSALÉM


Quinta-feira, 2 de Março de 2000

1. Acolho-vos com grande alegria, queridos Cavaleiros, Damas e Eclesiásticos que representais a benemérita Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém. Viestes dos cinco continentes a Roma para celebrar o vosso Jubileu. A todos se dirige a minha saudação cordial!

Agradeço com afecto fraterno ao Senhor Cardeal Carlo Furno, que se fez intérprete dos comuns sentimentos. Nas suas palavras percebi o vosso desejo de responder de maneira adequada ao específico serviço à Terra Santa, que é próprio da Ordem. Trata-se duma missão importante: graças ao vosso generoso empenho espiritual e caritativo, em favor dos Lugares Santos e do Patriarcado Latino de Jerusalém, pôde-se fazer muito para a valorização do precioso património de testemunhos históricos que se conservam na Terra Santa. Para eles olha com renovado interesse a sociedade hodierna, tecnologicamente evoluída, mas necessitada como nunca de valores e de apelos espirituais.

2. A vossa Ordem Equestre, nascida há alguns séculos como "Guarda de honra" para a custódia do Santo Sepulcro de Nosso Senhor, gozou duma singular atenção por parte dos Romanos Pontífices. Foi o Papa Pio IX, de venerada memória, que em 1847 a reconstituiu, para favorecer a recomposição de uma Comunidade de fé católica na Terra Santa. Este grande Papa restituiu à vossa Ordem a sua função primitiva, mas com uma significativa diferença: a custódia do Túmulo de Cristo já não seria confiada à força das armas, mas ao valor dum constante testemunho de fé e de solidariedade para com os cristãos residentes nos Lugares Santos.

Ainda hoje é esta a vossa tarefa, caríssimos Cavaleiros e Damas do Santo Sepulcro de Jerusalém. A celebração do Jubileu vos ajude a crescer na prática assídua da fé, na exemplar conduta moral e na generosa colaboração nas actividades eclesiais a nível tanto paroquial como diocesano. O Ano Santo, que é tempo de conversão pessoal e comunitária, veja cada um de vós ocupado em desenvolver e aprofundar as três virtudes características da Ordem: "zelo à renúncia, no meio desta sociedade da abundância, generoso empenho pelos débeis e os desprotegidos e luta corajosa pela justiça e a paz" (Directrizes para a renovação da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém em vista do Terceiro Milénio, n. 18).

3. Um vínculo antigo e glorioso liga o vosso Sodalício cavalheiresco ao lugar do Sepulcro de Cristo, onde é celebrada de maneira muito particular a glória da ressurreição. É precisamente este o fulcro central da vossa espiritualidade. Para renovar esse milenário vínculo e tornar sempre mais vivo e eloquente este vosso testemunho evangélico, cuidastes de elaborar novas directrizes para a vossa actividade, no âmbito do Estatuto da vossa Ordem. Com efeito, estais conscientes de que, no início de um novo milénio, se impõe uma actualizada interpretação da regra de vida do vosso singular serviço. Também para vós, como aliás para todo o cristão, decisiva é a redescoberta do Baptismo, fundamento de toda a existência humana. E isto exige um cuidadoso aprofundamento catequético e bíblico, uma séria revisão de vida e um generoso impulso apostólico. Estareis assim abertos ao mundo de hoje sem diminuir o espírito da Ordem, cuja almejada renovação depende sobretudo da conversão pessoal de cada um. Como recitam as vossas insígnias: "Oportet gloriari in Cruce Domini Nostri Iesu Christi": é necessário gloriar-se da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seja Cristo o centro da vossa existência, de todos os vossos projectos e programas, tanto pessoais como associativos.


Discursos João Paulo II 2000 35