Discursos João Paulo II 2000 313


JOÃO PAULO II

DISCURSO AOS PARTICIPANTES NO

JUBILEU DAS UNIVERSIDADES


Sábado, 9 de setembro de 2000



Caríssimos Professores universitários

1. Grande é a minha alegria ao encontrar-vos, neste ano da graça, no qual Cristo fortemente nos chama a uma mais convicta adesão à fé e a uma profunda renovação de vida. Agradeço-vos sobretudo o empenho manifestado nos encontros espirituais e culturais que marcaram o ritmo destas jornadas. Ao olhar para vós, o meu pensamento alarga-se numa saudação cordial aos Professores universitários de todas as Nações, assim como aos estudantes confiados à sua orientação no caminho da investigação, que é cansativo e ao mesmo tempo jubiloso. Saúdo também o Senador Ortensio Zecchino, Ministro da Universidade, aqui connosco em representação do governo italiano.

Os ilustres Professores, que há pouco tomaram a palavra, permitiram-me ter uma ideia de quão rica e articulada foi a vossa reflexão. Agradeço-lhes de coração. Este encontro jubilar constituiu para cada um de vós uma ocasião propícia para verificar em que medida o grande evento que celebramos, a encarnação do Verbo de Deus, foi acolhido como princípio vital pelo qual a vida inteira é informada e transformada.

Sim, porque Cristo não é a expressão de uma vaga dimensão religiosa, mas o lugar concreto no qual Deus faz plenamente sua, na pessoa do Filho, a nossa humanidade. Com Ele "o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem" (Fides et ratio FR 12). Esta "kenosi" de Deus, até ao "escândalo" da Cruz (cf. Fl Ph 2,7), pode parecer uma loucura para uma razão ébria de si mesma. Na realidade, ela é "poder de Deus e sabedoria de Deus" (1Co 1,23-24) para quantos se abrem à surpresa do seu amor. Vós estais aqui para dar testemunho disto.

2. O tema fundamental sobre o qual reflectistes A universidade para um novo humanismo enquadra-se bem na redescoberta jubilar da centralidade de Cristo. Com efeito, o evento da encarnação refere-se ao homem em profundidade, ilumina as suas raízes e o seu destino, abre-o a uma esperança que não engana. Como homens de ciências, interrogais-vos continuamente sobre o valor da pessoa humana. Cada um poderia dizer, com o antigo filósofo: "Estou à procura do homem"!

Entre as inúmeras respostas dadas a esta pesquisa fundamental, acolhestes a resposta de Cristo: a que emerge das suas palavras, mas ainda antes brilha no seu rosto. Ecce homo: eis o homem (Jn 19,5)! Pilatos, ao mostrar à multidão inflamada o rosto martirizado de Cristo, não imaginava que se fazia, em certo sentido, voz de uma revelação. Sem o saber, indicava ao mundo Aquele no qual todo o homem pode reconhecer a sua raiz, e do qual todo o homem pode esperar a sua salvação. Redemptor hominis: esta é a imagem de Cristo que, desde a minha primeira Encíclica, quis "indicar" ao mundo, e que este Ano jubilar quer relançar nas mentes e nos corações.

3. Ao inspirardes-vos em Cristo, revelador do homem ao homem (cf. Gaudium et spes GS 22), nos Congressos celebrados nos dias passados quisestes reafirmar a exigência duma cultura universitária verdadeiramente "humanista". E isto, antes de tudo, no sentido de que a cultura deve estar à medida da pessoa humana, superando a tentação de um saber que cede ao pragmatismo ou está disperso nos infinitos veios da erudição, e portanto é incapaz de dar sentido à vida.

314 Por isso, reafirmastes que não há contradição, mas antes um nexo lógico, entre a liberdade da investigação e o reconhecimento da verdade, que precisamente a pesquisa tem em vista, embora entre os limites e as fadigas do pensamento humano. Trata-se de um aspecto a ressaltar, para não ceder ao clima relativista que insidia grande parte da cultura hodierna. Na realidade, sem orientação para a verdade, a ser procurada com atitude humilde mas, ao mesmo tempo, confiante, a cultura está destinada a cair no efémero, abandonando-se à volubilidade das opiniões e talvez se entregando à prepotência dos mais fortes, muitas vezes dissimulada.

Uma cultura sem verdade não é uma garantia, mas antes um perigo para a liberdade. Eu já o dizia noutra ocasião: "As exigências da verdade e da moralidade não humilham nem anulam a nossa liberdade, mas ao contrário permitem-lhe existir e libertam-na das ameaças que ela traz dentro de si" (Discurso no Encontro eclesial de Palermo, em: Insegnamenti, XVIII, 2, 1996, pág. 1198). Neste sentido, permanece peremptória a advertência de Cristo: "A verdade libertar-vos-á" (
Jn 8,32).

4. Enraizado na perspectiva da verdade, o humanismo cristão implica antes de tudo a abertura ao Transcendente. Está aqui a verdade e a grandeza do homem, a única criatura do mundo visível capaz de tomar consciência de si, reconhecendo-se envolvida por aquele Mistério supremo, ao qual a razão e também a fé dão o nome de Deus. É preciso um humanismo em que o horizonte da ciência e o da fé já não pareçam em conflito.

Contudo, não se pode contentar com uma aproximação ambígua, como a que é favorecida por uma cultura que duvide das próprias capacidades de verdade da razão. Por esta estrada, corre-se o perigo do equívoco de uma fé reduzida ao sentimento, à emoção, à arte, uma fé afinal privada de todo o fundamento crítico. Esta não seria a fé cristã, que ao contrário exige uma racional e responsável adesão a quanto Deus revelou em Cristo. A fé não germina nas cinzas da razão! Exorto vivamente todos vós, homens da Universidade, a envidardes todos os esforços para que seja reconstruído um horizonte do saber aberto à Verdade e ao Absoluto.

5. Contudo, seja claro que esta dimensão "vertical" do saber não implica o fechar-se em si mesmo; ao contrário, por sua natureza, abre-se às dimensões da criação. E como poderia ser doutra forma? Ao reconhecer o Criador, o homem reconhece o valor das criaturas. Ao abrir-se ao Verbo encarnado, acolhe também todas as coisas que n'Ele foram feitas (cf. Jn 1,3) e por Ele remidas. É necessário por isso redescobrir o sentido originário e escatológico da criação, respeitando-a nas suas exigências intrínsecas, mas ao mesmo tempo aproveitando-a em termos de liberdade, responsabilidade, criatividade, alegria, "repouso" e contemplação. Como nos recorda uma esplêndida página do Concílio Vaticano II, "aproveitando as criaturas em pobreza e liberdade de espírito, é introduzido no verdadeiro senhorio do mundo, como quem nada tem e tudo possui. "Todas as coisas são vossas; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus" (1Co 3,22-23)" (Gaudium et spes, GS 37).

Hoje, a mais atenta reflexão epistemológica reconhece a necessidade de que as ciências do homem e as da natureza voltem a encontrar-se, para que o saber encontre de novo uma inspiração profundamente unitária. O progresso das ciências e das tecnologias põe hoje nas mãos do homem possibilidades magníficas, mas também terríveis. A consciência dos limites da ciência, na consideração das exigências morais, não é obscurantismo, mas salvaguarda de uma pesquisa digna do homem ao serviço da vida.

Caríssimos homens da investigação científica, fazei com que as Universidades se tornem "laboratórios culturais" onde entre teologia, filosofia, ciências do homem e ciências da natureza se dialogue de maneira construtiva, considerando a norma moral como uma exigência intrínseca da pesquisa e condição do seu pleno valor no contacto com a verdade.

6. Longe de se afastar dos âmbitos do viver quotidiano, o saber iluminado pela fé habita-os com toda a força da esperança e da profecia. O humanismo que desejamos fomenta uma visão da sociedade centrada na pessoa humana e nos seus direitos inalienáveis, nos valores da justiça e da paz, numa correcta relação entre indivíduos, sociedade e Estado, de acordo com a lógica da solidariedade e da subsidiariedade. É um humanismo capaz de infundir uma alma ao próprio progresso económico, para que ele esteja voltado "para a promoção de todo o homem e do homem todo" (Populorum progressio, PP 14 cf. também Sollicitudo rei socialis, SRS 30).

Em particular, é urgente que nos esforcemos por que o verdadeiro sentido da democracia, autêntica conquista da cultura, seja plenamente salvaguardado. Com efeito, sobre este tema delineiam-se desvios preocupantes, quando se reduz a democracia a facto puramente processual, ou se pensa que a vontade expressa pela maioria basta para determinar a aceitação moral de uma lei. Na realidade, "o valor da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e promove (...) Na base desses valores não podem estar "maiorias" de opinião provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei moral objectiva que, enquanto "lei natural" inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de referência para a própria lei civil" (Evangelium vitae, EV 70).

7. Caríssimos Professores, também a Universidade, não menos que outras instituições, sente a dificuldade da hora presente. Entretanto, ela permanece insubstituível para a cultura, contanto que não perca a sua originária figura de instituição consagrada à pesquisa e ao mesmo tempo a uma vital função formativa e diria "educativa" em benefício sobretudo das jovens gerações. Esta função deve ser posta no centro das reformas e das adaptações de que também esta antiga instituição pode ter necessidade para se adaptar aos tempos.

Com o seu valor humanista, a fé cristã pode oferecer um contributo original à vida da Universidade e à sua tarefa educativa, na medida em que for testemunhada com energia de pensamento e coerência de vida, em diálogo crítico e construtivo com quantos são fautores de uma inspiração diferente. Faço votos por que esta perspectiva possa ser aprofundada também nos encontros mundiais, nos quais proximamente estarão empenhados os Reitores, os dirigentes administrativos das Universidades, os capelães universitários, os próprios estudantes no seu "fórum" internacional.

315 8. Ilustríssimos Professores! No Evangelho funda-se uma concepção do mundo e do homem que não cessa de desprender valores culturais, humanistas e éticos para uma correcta visão da vida e da história. Tende a profunda convicção disto e fazei dela um critério do vosso compromisso.

A Igreja, que historicamente teve um papel de primeiro plano no próprio nascer das Universidades, continua a olhar para elas com profunda simpatia, e de vós espera um contributo decisivo, para que esta entre no novo Milénio encontrando-se plenamente consigo mesma, como lugar em que se desenvolvem de modo qualificado a abertura ao saber, a paixão pela verdade, o interesse pelo futuro do homem. Que este encontro jubilar deixe dentro de cada um de vós um sinal indelével e vos infunda novo vigor para esta importante missão.

Com estes votos, no nome de Cristo, Senhor da história e Redentor do homem, ofereço a todos com grande afecto a Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À COMUNIDADE DA


UNIVERSIDADE JAGELÓNICA DE CRACÓVIA


(POLÓNIA)


Segunda-feira, 11 de Setembro de 2000




Ilustres e estimados
Senhores e Senhoras!

Dou cordiais boas-vindas a todos vós que, durante as celebrações romanas do Jubileu das Universidades representais, num grupo tão numeroso, a Comunidade da Universidade Jagelónica. Saúdo os Professores e o Senhor Reitor e também os Estudantes e os Representantes do pessoal administrativo aqui presentes.

Ao pensar na Universidade Jagelónica, evoco recordações antigas, ainda antes da guerra, e recentes, como por exemplo o nosso encontro na Colegiada de Sant'Ana e no Collegium Maius, em 1997. Apresentam-se diante dos meus olhos os rostos dos professores e dos estudantes, que formavam e formam a antiga e actual história desta Universidade. Este voltar atrás com o pensamento justifica-se porque ainda estamos a viver a atmosfera do 600º aniversário da fundação jagelónica e da renovação da Alma Mater de Cracóvia.

Contudo hoje, enquanto nos encontramos no âmbito do Grande Jubileu do Ano 2000, é preciso que mantendo viva na memória esta história de seis séculos nos detenhamos no hoje, em perspectiva do futuro. Parece ser um momento propício para reflectir, neste espaço de tempo entre os milénios, acerca do papel e das tarefas desta Universidade, que deu sempre estilo ao progresso da ciência e da cultura polacas.

Já durante o nosso encontro de 1997 iniciei, de certo modo, uma tentativa de reflexão deste género. Partindo precisamente do nome Alma Mater, disse naquela ocasião que a tarefa duma instituição académica, num certo sentido, é gerar o homem, gerar as almas para o conhecimento e para a sabedoria, para a formação das mentes e dos corações. Uma tarefa como esta não pode ser realizada doutra forma a não ser através dum generoso serviço à verdade, descobrindo-a e transmitindo-a ao próximo. Também disse que este serviço à verdade é posto em prática na dimensão social como serviço do pensamento, isto é, o afã de uma análise da realidade deste mundo que tem sempre como ponto de referência o supremo ideal da verdade, do bem e da beleza, e através dele pode tornar-se voz de uma consciência crítica em relação a quanto ameaça ou diminui o homem. Sem dúvida, esta missão requer uma particular responsabilidade, exige dos homens de ciência uma extraordinária sensibilidade ética.

Desejo voltar hoje à reflexão que fiz há três anos, para recordar os princípios sobre os quais chamava a atenção das gerações que se sucederam na Universidade Jagelónica. Em qualquer circunstância e, antes de tudo, nos períodos de perigo para a Pátria e para a Nação, tais princípios constituíram o fundamento e serviram de inspiração na grande obra da formação desta luminosa herança, com a qual nos identificamos hoje com orgulho. Estas regras são sempre actuais. Se a Universidade não se deve limitar a ser um lugar no qual se transmite a ciência, mas representar sobretudo o templo do saber, não se pode afastar delas.

316 Neste contexto, considerando o futuro da Polónia e da Europa, desejo ressaltar uma tarefa muito concreta, que se apresenta às instituições académicas na Polónia, e de modo particular à Universidade Jagelónica de Cracóvia. Trata-se de formar a nação num sadio espírito patriótico. A Alma Mater de Cracóvia foi sempre um ambiente no qual uma ampla abertura ao mundo estava em harmonia com um profundo sentido de identidade nacional. Foi sempre muito sentida a consciência de que a Pátria é um património que não engloba apenas uma certa reserva de bens materiais num determinado território, mas é sobretudo um tesouro, o único no seu género, de valores e conteúdos espirituais, isto é, de tudo o que concorre para a cultura de uma nação. As gerações que se sucedem, de mestres, professores, estudantes da Universidade, conservaram este tesouro e contribuíram para o formar, mesmo com o preço de grandes sacrifícios. Precisamente desta forma aprenderam o patriotismo, ou seja, o amor por aquilo que pertence à Pátria, por quanto é fruto do génio dos antepassados e do que distingue um povo dos outros povos, e que ao mesmo tempo constitui um ponto de encontro e de intercâmbio criativo na dimensão do génio humano.

Parece que hoje, enquanto assistimos a um processo de unificação das nações da Europa que suscita esperança, mas também apresenta perigos, a Universidade Jagelónica deveria assumir esta tradição com particular fervor. Que ela seja, enquanto ambiente excepcional onde se forma a cultura da nação, lugar de formação do espírito patriótico, de um amor pela Pátria que conserve o seu bem, mas não feche as portas; pelo contrário, construa pontes, a fim de multiplicar este bem, partilhando-o com outros. A Polónia precisa de patriotas iluminados, capazes de fazer sacrifícios por amor à Pátria e simultaneamente preparados para um intercâmbio criativo de bens espirituais com as nações da Europa que se está a unificar.

Estimados Senhores e Senhoras!

Viestes aqui como peregrinos do Ano jubilar, como quem acredita no amor infinito de Deus, que por nós e para a nossa salvação se fez Homem, morreu e ressuscitou. Peço a Deus para que a vossa estadia na Cidade Eterna seja um particular tempo de consolidação nesta fé. A sua luz vos conduza e vos inspire no afã da busca da verdade, da multiplicação do bem e da criação da beleza.

Com estes pensamentos e esta oração abraço também os representantes da Universidade Católica de Lublim. Sinto-me feliz por terdes vindo aqui e por dardes a este encontro um carácter interuniversitário. Sem dúvida, o discurso destinava-se directamente à Universidade Jagelónica, mas no seu conteúdo fundamental pode referir-se também à Universidade Católica de Lublim e a todas as instituições académicas da Polónia. Peço-vos que lhes transmitais a minha cordial saudação. Deus abençoe todos vós.

Deus vos recompense, Senhores, Deus vos recompense! Faço votos por que possais obter ex corde Ecclesiae o máximo e levá-lo a Cracóvia, a Lublim e a toda a Polónia. Louvado seja Jesus Cristo!





DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS CATÓLICOS ARMÉNIOS VINDOS A


ROMA EM PEREGRINAÇÃO JUBILAR


Quinta-feira, 14 de Setembro de 2000


1. "Alegra-te, ó Igreja santa, porque Cristo, o rei dos céus, te coroou hoje com a sua cruz e adornou os teus muros com o esplendor da sua glória".

A vossa liturgia canta estas palavras em numerosas circunstâncias, caros irmãos e irmãs do povo arménio, que viestes aqui para celebrar o vosso Jubileu. O Bispo de Roma dirige a todos vós a sua cordial saudação e abraça-vos paternalmente.

Troco um santo ósculo de fraternidade com Sua Beatitude Nerses Pedro XIX, Patriarca da Cilícia dos Arménios católicos e com os Bispos que o acompanham. Nesta feliz ocasião, formulo os meus melhores votos pelo desenvolvimento do Sínodo, que começará dentro de alguns dias nesta cidade de Roma. Saúdo os sacerdotes, religiosos, religiosas e todos os leigos que vieram para este encontro e a hodierna celebração.

"Cristo coroou-te hoje com a sua cruz". Vergonha suprema, suplício ignóbil, a cruz dos condenados tornou-se coroa de glória. Nós exaltamos e veneramos o que foi para todos o sinal execrável do abandono e da vergonha. Como é possível este paradoxo? O hino que cantareis no Ofício desta tarde explica-nos: "Deus, foste fixado sobre esta santa Cruz e sobre ela derramaste o Teu sangue precioso". A nossa salvação tira a sua origem da humilhação total de Cristo. "Quando for levantado da terra disse Ele Eu atrairei a Mim todos os homens" (Jn 12,32).

317 Da dor inexprimível do Amor nasce o poder que triunfa sobre a morte, e o Espírito, espalhado pelo crucificado sobre o mundo, restitui à árvore seca da humanidade as ricas folhagens do paraíso terrestre.

A humanidade fica estupefacta perante este mistério; só lhe resta ajoelhar-se e adorar o desígnio divino da nossa libertação.

2. Irmãos e Irmãs, começaram, há alguns meses, as celebrações dos mil e setecentos anos decorridos desde o baptismo do povo arménio. Foi por este gesto, realizado pelos vossos Pais, que as águas santas da Redenção suscitaram novos gérmens de vida e de prosperidade entre os espinhos e os cardos que a terra produzira como consequência do pecado dos primeiros pais. Este Jubileu da Igreja universal abre o vosso Jubileu, numa admirável continuidade de espírito e conteúdo teológico: da Cruz, do lado do Senhor crucificado saiu a água do vosso Baptismo. Que este aniversário seja ocasião de uma preciosa renovação, de uma esperança reencontrada, de uma profunda comunhão entre todos os que crêem em Cristo.

O povo arménio conhece bem a cruz; tem-na gravada no seu coração. Ela é o símbolo da sua identidade, das tragédias da sua história e da glória do recomeço depois de cada acontecimento adverso. Em todos os tempos, o sangue dos vossos mártires está unido ao do Crucificado.

Gerações inteiras de Arménios não hesitaram em oferecer as suas vidas para não renegar a sua fé que, como disse um dos vossos historiadores, vos pertence como a cor pertence à pele.

As cruzes de que está semeada a vossa terra são de pedra nua, como é nua a dor do homem; e ao mesmo tempo elegantes preces são aí gravadas, para mostrar que todo o universo é santificado pela Cruz, que a dor está resgatada. Esta tarde, com a Cruz abençoareis os quatro pontos cardeais, para lembrar que este pobre instrumento de suplício se tornou o julgamento do mundo, um símbolo cósmico da bênção de Deus, que tudo santifica e fecunda.

3. Possa esta bênção atingir as vossas regiões e levar-lhes a serenidade e a confiança! Rezo, antes de tudo, ao Senhor crucificado pelas vossas comunidades da Arménia: ali, os vossos irmãos e irmãs experimentam novas e graves pobrezas, provocando a tentação de novos êxodos para ir procurar noutro lado os meios de subsistência e garantir a segurança das famílias. O vosso povo pede pão e justiça, pede à política o que ela deve ser por vocação profunda: o serviço honesto e desinteressado pelo bem comum, a luta para que o mais pobre e o mais abandonado, apesar de tudo sempre revestido da insuprimível dignidade de filho de Deus, possa viver uma existência digna e humana. Não abandoneis os vossos irmãos que sofrem: hoje mais do que nunca, os Arménios que vivem por todo o mundo e, pelo seu duro trabalho, adquiriram uma segurança económica e social, se preocupem com os seus compatriotas, num comum esforço de renascimento.

O Papa quer levar hoje convosco a cruz dos que sofrem. Ele lembra-vos que, nas privações e nos sofrimentos de cada dia, o vosso olhar se deve levantar para a Cruz, de onde continua a vir a salvação. O Evangelho não é somente uma consolação, mas é também um encorajamento a levar até às últimas consequências os valores que dão à vida civil a sua dignidade, eliminando na raiz, no mais profundo do coração humano, a tentação da violência e da injustiça, da exploração dos pequenos e dos pobres por parte dos poderosos e ricos. É somente pondo Cristo Senhor no centro da vida, que a sociedade será justa e o egoísmo de um pequeno número deixará o lugar para o bem de todos.

Para além dos católicos, a minha lembrança e saudação vão para os filhos da Igreja arménia apostólica: estejam certos de que o Papa segue de Roma com solicitude os seus esforços para serem "o sal da terra e a luz do mundo", a fim de que o mundo creia e encontre a força para esperar e lutar. A Igreja católica quer sustentar este esforço, como se fosse seu, no amor que une todos nós em Cristo.

4. Caros amigos, sobre todos vós aqui presentes, sobre cada pessoa que vos é querida, sobre todo o povo arménio, invoco os benefícios do Senhor, em particular para os doentes, as pessoas idosas e cada indivíduo que sofre no corpo e na alma.

Hoje estarei espiritualmente convosco na vossa peregrinação de fé, que é uma dimensão fundamental do Jubileu. A peregrinação lembra-nos que o nosso ser está no caminho para a plenitude do reino, que nos será dado quando, com reconhecida admiração, virmos o Senhor dos séculos voltar na sua glória, trazendo sempre no Corpo as marcas da paixão: "per crucem ad gloriam".

318 Não vos esqueçais de rezar também por mim, para que o Senhor guie os meus passos nos caminhos da paz!

De todo o coração, concedo a cada um de vós a minha Bênção!





DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


AOS REPRESENTANTES PONTIFÍCIOS


VINDOS A ROMA PARA O JUBILEU DO ANO SANTO


Sexta-feira, 15 de Setembro de 2000


Caríssimos Irmãos no Episcopado

1. "A paz seja convosco!" (Jn 20,19). Acolho-vos com a saudação pascal de Cristo aos Apóstolos, que bem condiz com a vossa celebração jubilar deste dia. Com efeito, esta tende à reconciliação e à paz com Deus e com os irmãos. Isto vale não só para todos os fiéis, mas de modo particular para nós pastores, chamados a ser "modelo do rebanho" (1P 5,3).

Todos têm necessidade de paz. Contudo, de modo especial deve ser um "homem em paz" e um "homen de paz" aquele que, participando como vós na "sollicitudo omnium ecclesiarum" que é própria do Bispo de Roma, tem a missão de contribuir com toda a sua energia para o ministério de comunhão, que Cristo confiou a Pedro e aos seus sucessores.

Esta importante missão faz com que eu vos sinta particularmente próximos, mesmo quando vos encontrais nas vossas sedes, deslocadas nas várias partes do mundo. Devido a essa proximidade, que quotidianamente se alimenta e se substancia na oração, tenho a alegria de poder dirigir-vos hoje uma cordialíssima expressão de saudação, no contexto do Grande Jubileu. Desejaria depois reservar uma especial palavra de afecto a quantos dentre vós são mais idosos, por idade e serviço, e têm enfrentado com generosidade o "pondus diei et aestus" em sedes não raro difíceis pela situação sociopolítica ou pelas condições climáticas.

2. Com efeito, vós sois Representantes do Papa junto dos Governos nacionais ou das Instituições supranacionais, mas em primeiro lugar sois testemunhas do Seu ministério de unidade junto das Igrejas locais, a cujos Pastores assegurais a possibilidade de um contacto constante com a Sé Apostólica. Outra missão, que sob o impulso do Concílio Ecuménico Vaticano II tem crescido nestes anos, é o serviço à plena unidade de todos os cristãos que constitui o anseio do coração de Cristo e, por conseguinte, também o ardente desejo do Papa e do Colégio episcopal. Sem esquecer, além disso, o grande contributo que sois chamados a oferecer à busca e consolidação de uma harmoniosa relação com todos os que crêem em Deus, e de um diálogo sincero com os homens de boa vontade.

Neste serviço pondes-vos no caminho de muitas personalidades ilustres, algumas das quais brilharam por autêntica santidade de vida. E como não recordar, com íntima alegria, que ambos os Papas há pouco propostos como modelos de virtudes cristãs a toda a Igreja, os Beatos Pio IX e João XXIII foram, por assim dizer, vossos "colegas" no serviço diplomático da Santa Sé? Certamente os sentis próximos de vós de modo especial, e isto favorece-vos na comunhão espiritual com eles e no desejo de imitar os seus exemplos.

3. Sobretudo para cada um de vós pode ser um programa muito válido o lema do Papa João XXIII: Oboedientia et pax. Inspirar nele a própria disposição interior constitui, sem dúvida, um válido antídoto contra o desalento ou a tristeza que vos podem acometer quando uma iniciativa, longamente fomentada, não alcança os êxitos desejados, ou então um passo dado com as finalidades mais nobres é mal-entendido, ou mesmo quando emergem aspectos humanos menos gratos nas situações de vida ou na própria organização do vosso trabalho. O Senhor permite tantas coisas... e, às vezes, é-nos difícil reconhecer as tramas da graça com que são tecidas as nossas existências e as próprias vicissitudes da história.

Venha então em nosso socorro a palavra do apóstolo Paulo aos Romanos: "Deus concorre em tudo para o bem dos que O amam" (Rm 8,28). O segredo espiritual do Beato João XXIII consistia na sua capacidade de transformar em ocasião de bem, com a força interior da oração, todas as situações: o seu dia, as suas preocupações, as alegrias e as tristezas, o passar dos anos... Com efeito, quem lê o seu diário não pode deixar de ficar fascinado pela riqueza da sua vida espiritual, nutrida de constante diálogo com Deus em toda a circunstância, na fidelidade quotidiana ao dever também obscuro, monótono e pesado.

319 Este é um aspecto significativo da sua santidade, juntamente com o do seu respeito pelos Colaboradores, para com os quais cultivava sentimentos de afecto paterno e fraterno. Falo aqui de uma dimensão característica da vossa experiência nas Nunciaturas, onde um pequeno grupo de pessoas vive em contacto estreito e diário. Às vezes, colaborar pode ser difícil, também por causa da diferença de idade, nacionalidade, formação ou mentalidade. O Senhor vos conceda realizar uma boa comunidade de trabalho, em benefício e para a edificação não só de cada um, mas também do próprio serviço que vos é confiado.

4. Desejo aqui pôr em relevo o empenho do Núncio na Igreja que vive no País para o qual é enviado como Representante Pontifício. Trata-se de um serviço importante e delicado, a ser prestado na perspectiva eclesiológica da comunhão, tão realçada pelo Concílio Vaticano II (cf. Christus Dominus
CD 9 CIC, cân. CIC 364). Com efeito, sois chamados a prestar um serviço de comunhão. Um serviço que, por sua natureza, não se pode limitar a uma insensível mediação burocrática, mas deve ser uma autêntica presença pastoral. O Núncio não o esqueçais é também um Pastor, e deve fazer seu o espírito de Cristo "Bom Pastor"!

Se, por um lado, ele exprime esta sua "qualidade pastoral" como representante do Sucessor de Pedro, por outro, deve sentir-se fraternalmente próximo dos Pastores das Igrejas locais, compartilhando o anseio apostólico com a oração, o testemunho e aquelas formas de presença e de ministério, que resultem oportunas e úteis ao Povo de Deus, no respeito da responsabilidade própria de cada Bispo.

Vivido assim, caríssimos Núncios, o vosso ministério faz emergir claramente o necessário vínculo entre as dimensões, particular e universal, da Igreja. Ao ajudardes o Sucessor de Pedro a apascentar o rebanho de Cristo, ajudais as Igrejas particulares a crescer e a desenvolver-se. Nesse serviço, não raro enfrentais problemas, dificuldades e tensões. Agradeço-vos de coração o contributo preciosíssimo da vossa experiência, graças à qual sabeis unir a sensibilidade pelas Igrejas e as sociedades nas quais trabalhais, com a fidelidade às linhas inspiradoras da acção da Santa Sé em campo tanto eclesial como civil.

5. Na realidade, a possibilidade de fazer, na Igreja, uma experiência directa da diversidade legítima, embora no respeito pela unidade imperiosa, é um dom que certamente constitui para vós motivo de enriquecimento humano e espiritual, e de algum modo vos recompensa pelos sacrifícios enfrentados nas mudanças de clima, língua, mentalidade, cultura e condições de vida. Durante as minhas viagens apostólicas, tive ocasião de vos conhecer melhor, ao visitar-vos nos respectivos lugares de trabalho. Recordo-me de ter dito certa vez a um de vós, no momento de me despedir: "Para Vossa Excelência hoje é o dia da liberdade". Com aquela expressão jocosa, eu queria manifestar que tinha compreendido o que significam para um Núncio a preparação e o desenvolvimento de uma visita apostólica; era um modo para exprimir o meu apreço, que aqui reitero a cada um de vós.

Tenho grande consideração pelo vosso empenho em serdes intermediários entre a Santa Sé e os Episcopados locais, assim como por todo o trabalho de mediação que realizais no que se refere às instâncias políticas e sociais dos Países em que trabalhais ou na relação com os Organismos internacionais para os quais sois enviados. O vosso objectivo constante é promover a paz autêntica, que não existe se não estiver assente nos pilares da verdade, da justiça, da liberdade e da solidariedade (cf. Carta Enc. Pacem in terris, PT 49-55 Pacem in terris, 49-55 e 64). Este empenho, bem o sabeis, traduz-se de maneira concreta na luta contra a pobreza e na promoção de um desenvolvimento humano integral, porque só sobre estes pressupostos é possível fundar uma paz verdadeira e duradoura entre os povos da terra, no respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, que é imagem de Deus.

6. Na vossa acção podeis contar com o prestígio de uma diplomacia que tem uma história secular e se enriqueceu com a contribuição de homens insignes por equilíbrio, sabedoria e vivo sentido da Igreja. O seu exemplo continue a ser para cada um de vós como que paradigma, para o qual olhar a fim de haurir dele orientação e apoio.

Contudo, para além de qualquer nobre referência humana, é de Cristo e do seu Evangelho que vos vem a luz verdadeira. Os dotes de humana prudência, inteligência e sensibilidade devem conformar-se, em cada um de vós, com o espírito das Bem-aventuranças. Em certo sentido, a vossa diplomacia deve ser "a do Evangelho"! Estão aqui, nesta tensão espiritual, a vossa força e o vosso segredo. Por isso, a fé em Cristo deve ser a chama que ilumina e aquece cada um dos vossos dias.

Quisestes confirmar e fortalecer esta fé com a actual peregrinação jubilar. Quisestes realizá-la, em todo o caso, com não poucos sacrifícios. Ao exprimir-vos o meu reconhecimento também por este testemunho de fé e de comunhão, asseguro-vos a minha constante lembrança na oração. Hoje celebrei a Missa também por todos os Núncios.

Confio cada um de vós e o vosso trabalho à materna protecção da Virgem Santíssima e, ao pedir também a vós a caridade de uma recordação frequente, para mim e o meu ministério, sobretudo na celebração da Santa Missa, a cada um concedo com afecto a Bênção Apostólica, que de bom grado faço extensiva aos vossos Colaboradores e às pessoas que vos são queridas.




Discursos João Paulo II 2000 313