Discursos João Paulo II 2000 357

JUBILEU DAS FAMÍLIAS


ENCONTRO DO SANTO PADRE COM AS FAMÍLIAS


Praça São Pedro, 14 de outubro de 2000

1. É com grande alegria que vos dou as boas-vindas, caríssimas famílias aqui reunidas das mais diversificadas regiões do mundo! Saúdo também as famílias que, debaixo de todos os céus, se encontram agora unidas a nós mediante a rádio e a televisão, associando-se a este Jubileu das Famílias.

Agradeço ao Senhor Cardeal Alfonso López Trujillo, Presidente do Pontifício Conselho para a Família, as palavras que me dirigiu em nome de todos vós. Além disso, saúdo os demais Senhores Cardeais e Irmãos no Episcopado aqui presentes, assim como os sacerdotes, os religiosos e as religiosas que participam neste encontro festivo.

Recentemente, tive a alegria de ir como peregrino a Nazaré, o lugar onde o Verbo se fez carne. Nessa visita levei todos vós no meu coração, rezando com ardor por vós à Sagrada Família, sublime modelo de todas as famílias.

E é precisamente o clima espiritual da Casa de Nazaré que desejamos reviver nesta noite. O grande espaço que nos congrega, entre a Basílica e a colunata de Bernini, serve-nos de casa, uma grande casa ao ar livre. Aqui reunidos como uma verdadeira família, "um só coração e uma só alma" (cf. Act Ac 4,32), podemos intuir e fazer nosso o sabor doce e íntimo daquela casa humilde, onde Maria e José viviam entre oração e trabalho, e Jesus "lhes era submisso" (Lc 2,51), tomando gradualmente parte na vida comum.

2. Olhando para a Sagrada Família, casais cristãos, sois estimulados a interrogar-vos acerca das tarefas que Cristo vos confia, na vossa maravilhosa e comprometedora vocação.

358 Por isso, o tema do vosso Jubileu Os filhos: primavera da família e da sociedade pode oferecer-vos sugestões significativas. Não são precisamente as crianças que fazem uma espécie de "exame" contínuo aos pais? Não o fazem apenas com os seus frequentes "por quê?", mas com o seu próprio rosto, ora risonho, ora velado pela tristeza. Como que inscrito em todo o seu modo de ser há um interrogativo, que se exprime das maneiras mais diversas, por vezes mesmo através dos caprichos, e que poderíamos traduzir em perguntas como estas: mãe, pai, amais-me? Sou verdadeiramente um dom para vós? Aceitais-me como sou? Esforçais-vos por fazer sempre o meu bem genuíno?

Talvez estas perguntas se façam mais com os olhos que com as palavras, mas elas obrigam os pais à sua grande responsabilidade e, de certa forma, são-lhes o eco da voz de Deus.

3. Os filhos são "primavera": qual é o significado desta metáfora escolhida para o vosso Jubileu?
Ela leva-nos para aquele horizonte de vida, de cores, de luz e de cântico que é próprio da estação primaveril. Os filhos são tudo isto por natureza. Eles são a esperança que continua a florescer, um projecto que recomeça permanentemente, o porvir que se abre de forma incessante.

Representam o florescimento do amor conjugal, que neles se encontra e se consolida. Ao nascerem, trazem uma mensagem de vida que, em última análise, remete para o próprio Autor da vida. Necessitados de tudo como eles são, de maneira especial nas primeiras fases da existência, constituem naturalmente um apelo à solidariedade.

Não foi por acaso que Jesus convidou os discípulos a terem um coração de crianças (cf. Mc
Mc 10,13-16). Dilectas famílias, hoje quereis dar graças pelo dom dos filhos e, ao mesmo tempo, receber a mensagem que Deus vos transmite através da sua existência.

4. Infelizmente, como bem sabemos, a situação das crianças no mundo nem sempre é aquela que deveria ser. Em muitas regiões, e paradoxalmente nos países de maior bem-estar, ter filhos tornou-se uma opção decidida com grande perplexidade, muito além da prudência que é justamente necessária para uma procriação responsável. Dir-se-ia que às vezes os filhos são sentidos mais como ameaça que como dádiva.

Depois, o que dizer do outro triste cenário da infância ultrajada e explorada, para o qual chamei a atenção inclusivamente na Carta às Crianças?

Porém, nesta noite encontrais-vos aqui para dar testemunho da vossa convicção, fundamentada na confiança em Deus, de que é possível inverter esta tendência. Estais aqui reunidos para uma "festa da esperança", fazendo vosso o "realismo" concreto desta virtude cristã fundamental.

5. Com efeito, a situação das crianças constitui um desafio para a inteira sociedade, um desafio que interpela directamente as famílias. Ninguém mais que vós, estimados pais, pode constatar quanto é essencial para os filhos poderem contar convosco, com ambas as vossas figuras paterna e materna na complementaridade dos vossos dons. Não, não é um passo em frente na civilização secundar tendências que obscurecem esta verdade elementar e pretendem afirmar-se também a nível legal.

Não são porventura as crianças já demasiado penalizadas pelo flagelo do divórcio? Como é triste para uma criança ter de se resignar a dividir o seu amor entre pais em conflito! Muitos filhos ficarão psicologicamente marcados para sempre devido à provação a que a divisão dos pais os submeteram.

359 6. Diante de inúmeras famílias desfeitas, a Igreja não se sente chamada a expressar um juízo severo e desinteressado, mas antes a fazer penetrar a luz da palavra de Deus em tantos dramas humanos, acompanhada do testemunho da sua misericórdia. Este é o espírito com que a pastoral familiar procura enfrentar também as situações dos fiéis que divorciaram e voltaram a casar-se. Eles não são excluídos da comunidade; pelo contrário, são convidados a participar na sua vida, percorrendo um caminho de crescimento no espírito das exigências evangélicas. Sem deixar de lhes revelar a verdade acerca da desordem moral objectiva em que se encontram e das consequências que daí derivam para a prática sacramental, a Igreja pretende demonstrar-lhes toda a sua proximidade maternal.

Cônjuges cristãos, estai certos disto: o Sacramento do matrimónio garante-vos a graça necessária para perseverardes no amor recíproco, do qual os vossos filhos têm tanta necessidade quanto do pão.

Hoje sois chamados a interrogar-vos sobre esta profunda comunhão entre vós, enquanto pedis a abundância da misericórdia divina.

7. Ao mesmo tempo, não podeis evitar o interrogativo essencial sobre a vossa missão de educadores. Tendo dado a vida aos vossos filhos, estais comprometidos também em acompanhá-los nas orientações e opções de vida, da maneira apropriada à sua idade, garantindo-lhes todos os seus direitos.

No nosso tempo, o reconhecimento dos direitos da criança conheceu um progresso indubitável, mas ainda é motivo de aflição a negação prática destes direitos, como se manifesta em numerosos e terríveis atentados contra a sua dignidade. É preciso vigiar, a fim de que o bem da criança seja colocado sempre em primeiro lugar. Desde o momento em que se deseja ter um filho. A tendência a recorrer a práticas moralmente inaceitáveis na geração trai a absurda mentalidade de um "direito ao filho", que tomou o lugar do justo reconhecimento de um "direito do filho" a nascer e depois a crescer de maneira plenamente humana. Como é diversa e meritória, ao contrário, a prática da adopção! Um verdadeiro exercício de caridade, que visa o bem dos filhos antes das exigências dos pais.

8. Caríssimos, comprometamo-nos com todas as nossas forças, em defender o valor da família e o respeito da vida humana, desde o momento da concepção. Trata-se de valores que pertencem à "gramática" fundamental do diálogo e da convivência humana entre os povos. Formulo votos veementes por que tanto os governos e os parlamentos nacionais como as Organizações internacionais e, de modo particular, a Organização das Nações Unidas, não deixem que esta verdade se extravie. A todos os homens de boa vontade, que acreditam nestes valores, peço que unam eficazmente os próprios esforços, para que eles prevaleçam na prática da vida, nas orientações culturais e nos mass media, nas opções políticas e nas legislações dos povos.
9. A vós, queridas mães, que tendes dentro de vós um instinto incoercível pela defesa da vida, dirijo um sentido apelo: sede sempre fonte de vida, nunca de morte!

A vós, pais e mães, digo: fostes chamados para a excelsa missão de colaborar com o Criador na transmissão da vida (cf. Carta às Famílias
LF 8); não tenhais medo da vida! Proclamai juntos o valor da família e da vida, pois sem estes valores, não há um futuro digno do homem!

O maravilhoso espectáculo das vossas tochas acesas nesta Praça vos acompanhe por muito tempo, como um sinal d'Aquele que é a Luz e vos chama a iluminar com o vosso testemunho o caminho da humanidade pelas vias do novo milénio!






AOS PEREGRINOS DA POLÓNIA


VINDOS PARTICIPAR NO JUBILEU DAS FAMÍLIAS


Segunda-feira, 16 de Outubro de 2000



1. "Graça e paz vos sejam dadas da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo" 2 Cor 1, 2). Com estas palavras de São Paulo saúdo cordialmente todos os presentes na audiência de hoje, no Vaticano.

360 Caríssimos, estais juntos como peregrinos na Cidade Eterna para tomar parte no Jubileu das Famílias no âmbito do Grande Jubileu da Redenção divina. Alegro-me pela vossa presença, especialmente enquanto olho para os vossos filhos os mais jovens participantes deste encontro. Saúdo-vos a todos do fundo do coração, pessoas isoladas e famílias inteiras. Dirijo palavras de saudação primeiramente aos sacerdotes comprometidos na pastoral das famílias, ao Mons. Stanislaw Stefanek, Presidente do Pontifício Conselho para a Família e a todas as pessoas comprometidas nesta pastoral, na Polónia: sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos. Saúdo os membros da Associação das famílias católicas e os ouvintes da Rádio Maria, os membros da Associação dos Juristas Católicos e também os professores de Poznan aqui presentes, assim como os leitores do "Przewodnik Katolicki" da mesma cidade, os representantes do Instituto de Lomianki e os representantes da Ordem dos Cavaleiros de Malta, e aproveito o ensejo para lhes transmitir um particular obrigado pelo serviço de bons samaritanos prestado ao homem, pela sua generosa actividade caritativa também amplamente conhecida na Polónia. Dou as boas-vindas aos numerosos grupos paroquiais já enumerados e aos peregrinos que aqui chegaram individualmente.

2. Encontramo-nos hoje, como já anunciei, no âmbito das celebrações do Grande Jubileu do Ano 2000. Viestes a Roma para vos renovardes interiormente e consolidardes as vossas forças espirituais. Atravessastes a Porta Santa, símbolo da passagem do pecado à graça. Jesus diz de Si muito claramente: "Eu sou a porta" (
Jn 10,7). Isto quer dizer que Ele é o único e definitivo caminho que conduz ao Pai. Só n'Ele, no Filho de Deus, está a nossa salvação. Cristo fez-Se homem, sofreu a morte no madeiro da cruz e ressuscitou para mostrar ao homem a sua autêntica grandeza, restituir ao seu ser de homem a plena dignidade e o sentido da sua existência no mundo. Que valor deve ter cada homem aos olhos do Criador, se Ele deu "o Seu Filho unigénito" a fim de que o homem "não morra, mas tenha a vida eterna" (Jn 3,16). Uma profunda admiração nos invade frente a esta enorme dignidade do homem criado à imagem e semelhança de Deus.
Que grande valor deve ter perante os olhos do Criador cada vida humana, mesmo do nascituro que contudo já vive no seio da sua mãe.

3. Participais no Jubileu das Famílias que pode ser chamado a grande festa da Igreja em honra da família. Viestes aqui para dizer o vosso "sim" ao amor, a um amor nobre, casto, que dá a vida e é responsável. Viestes para mostrar que para vós a família e a vida que nela nasce, se desenvolve e encontra protecção são um valor fundamental.

Nesta circunstância quero exprimir o meu apreço a todos aqueles que se inserem na obra da edificação da "cultura da vida" e sentem uma grande responsabilidade diante de Deus, da própria consciência e da nação, defendem a vida humana, a dignidade do matrimónio e da família. A todos eles e a vós aqui presentes, digo: tende coragem! Esta é uma missão imensa, um grande mandato que vos foi confiado pela Providência. Agradeço-vos de todo o coração esta atitude e quanto estais a fazer. O próprio Cristo seja a vossa recompensa. Ele disse aos Apóstolos: "Já não vos chamo servos (...) Mas chamei-vos amigos, para fazerdes o que vos mandei" (cf. Jo Jn 15,15). Hoje, digo-vos o mesmo.

Faço votos para que cada família, todas as famílias da Polónia e do mundo descubram cada vez mais a grandeza e a santidade da sua própria vocação; que sejam guardas fiéis do "belo amor" e de toda a vida concebida, saibam defender o precioso património da fé nos nossos tempos e o transmitam às gerações vindouras.

4. Meus caros, agradeço-vos este encontro. Digo obrigado aos meus concidadãos na Pátria e no mundo inteiro pela oração que me acompanha durante o Pontificado. Sinto a sua força e os seus frutos. É para mim um dom precioso e um apoio espiritual. Agradeço-vos a afeição ao Papa e aos vossos pastores. Que isso frutifique com uma atitude cristã demonstrada na vida pessoal, familiar e social.

Confio todos os meus concidadãos na Polónia e no mundo à protecção da Mãe Santíssima e abençoo-os do fundo do coração.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


PARA A RAINHA DA INGLATERRA


Terça-feira, 17 de outubro de 2000




Majestade
Alteza Real

361 Ainda perdura a recordação do nosso primeiro encontro no Vaticano em 1980 e da sua amável hospitalidade em Londres dois anos mais tarde, e é-me grato saudá-la uma vez mais neste Palácio Apostólico, ao qual Vossa Majestade não é alheia. Os meus predecessores Papa Pio XII e Papa João XXIII foram os primeiros a recebê-la aqui, e eu faço o mesmo numa ocasião ainda mais especial, neste Ano jubilar em que todos os cristãos entoam cânticos de louvor ao Todo-Poderoso pela dádiva do Verbo que Se fez carne, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

A visita de Vossa Majestade traz imediatamente à mente a rica herança da cristandade britânica e todas as contribuições que a Grã-Bretanha ofereceu à edificação da Europa cristã e, na realidade, à difusão do cristianismo no mundo inteiro, desde que Santo Agostinho da Cantuária pregou o Evangelho na sua terra. Nesta longa história, as relações entre o Reino Unido e a Santa Sé nem sempre foram isentas de dissabores; longos anos de herança comum foram seguidos por tristes anos de separação (cf. Discurso na Catedral de Cantuária, 29 de Maio de 1982, n. 5). Porém, nos últimos anos floresceu entre nós uma cordialidade mais concorde com a harmonia dos primeiros tempos e genuinamente expressiva das nossas comuns raízes espirituais. Não se pode voltar atrás da meta ecuménica, que nos propusemos em obediência ao mandato do Senhor.

Contudo, não é apenas o passado que nos estimula a percorrer o caminho da compreensão sempre maior e, do ponto de vista religioso, da comunhão cada vez mais perfeita. Também o futuro exige de nós o sentido da meta comum. Penso em primeiro lugar na Europa, que se encontra num ponto de viragem na sua história, enquanto busca uma unidade capaz de excluir para sempre as formas de conflito que marcaram de modo tão acentuado o seu passado. Vossa Majestade e eu pessoalmente vivemos uma das guerras mais terríveis da Europa, e vemos com clarividência a necessidade de construir uma unidade europeia profunda e duradoura, solidamente radicada no autêntico génio humano e espiritual dos povos da Europa. Contudo, a unidade a que os Europeus aspiram não pode ser uma estrutura desprovida de conteúdo. Só se preservar e revigorar os ideais e as conquistas mais excelsos da sua herança política, jurisprudência, arte, moral e espiritualidade a Europa do próximo futuro realizará um esforço viável e digno.

Além disso, no alvorecer do terceiro milénio, o nosso olhar deve voltar-se para além das fronteiras da Europa, uma vez que o mundo conjuntamente se tem tornado cada vez mais interactivo e interdependente. A Comunidade das Nações britânicas e a Igreja católica são instituições muito diferentes entre si, mas ambas possuem uma provada experiência de universalidade e ambas conhecem a rica diversidade da única família humana.

O facto de se propor o bem comum como objectivo e cerne do pensamento e acção humanos torna-se mais importante do que nunca, numa época em que as disparidades são crescentes no modo de dividir os recursos do mundo. Não obstante vermos as forças da globalização a manterem a promessa de uma maior prosperidade e coesão, existe um fosso cada vez maior entre os ricos e os pobres, uma lacuna que corre o risco de se tornar mais estável e intratável, enquanto alguns beneficiam dos progressos da tecnologia e outros são deixados completamente fora. Este fenómeno preocupante tem muitas causas, mas o problema decerto não se resolverá enquanto as pessoas e os seus governantes não aceitarem a solidariedade e cooperação planetárias como imperativos éticos que impelem e mobilizam as consciências dos indivídios e das nações. Não posso deixar de expressar o meu apreço pelo recente esforço da Grã-Bretanha em tornar efectivo o perdão total da dívida que lhe é devida por parte de países pobres fortemente endividados. O novo milénio exorta-nos a todos a trabalhar com eficácia para alcançar um mundo não contaminado pela avareza, egoísmo e excessivo desejo de domínio, mas aberto e respeitador da dignidade humana, dos direitos inalienáveis e da igualdade fundamental de todos os membros da família humana.

Durante muitos anos e através de épocas de grandes mudanças, Vossa Majestade reinou com dignidade e sentido de dever que forjaram milhões de pessoas no mundo inteiro. O Omnipotente conceda a Vossa Majestade, a Sua Alteza Real e aos membros da Família real a luz e força infalíveis no meio dos desafios e das dificuldades da sua missão. Ele abençoe os cidadãos do Reino Unido com felicidade e paz; a Comunidade das Nações britânicas, com os benefícios de um elevado sentido de solidariedade e cooperação; e o povo cristão do seu reino, com uma vigorosa abundância das graças de Jesus Cristo, "o mesmo ontem, hoje e para toda a eternidade" (cf. Hb
He 13,8).





MENSAGEM DO SANTO PADRE


AO CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE


SÃO LUCAS




Ao venerado Irmão

D. ANTÓNIO MATTIAZZO

Arcebispo-Bispo de Pádua

1. Entre as glórias dessa Igreja, de grande significado é a particular relação que a une à memória do Evangelista Lucas, cujas relíquias segundo a tradição são conservadas na esplêndida Basílica de Santa Justina: tesouro precioso e dom verdadeiramente singular, ali trazido através de um caminho providencial. Com efeito, São Lucas segundo antigos testemunhos morreu na Beócia e foi sepultado em Tebas. Dali, como refere São Jerónimo (cf. De viris ill. VI, I), os seus ossos foram transladados para Constantinopla, na Basílica dos Santos Apóstolos. Depois, conforme as fontes que as pesquisas estão a explorar, foram transferidos para Pádua.

Uma ocasião propícia para reavivar a atenção e a veneração por esta "presença", que se enraíza na história cristã dessa Cidade, foi agora oferecida pelo reconhecimento do corpo do Santo Evangelista, assim como pelo Congresso Internacional a ele dedicado. Quis dar-se a este uma significativa inspiração ecuménica, ressaltada também pelo facto de que o Arcebispo ortodoxo de Tebas, Jerónimo, pediu um fragmento das relíquias, a depositar lá onde é ainda hoje venerado o primeiro sepulcro do Evangelista.

As celebrações que se realizam por ocasião do mencionado Congresso oferecem um novo estímulo, para que a dilecta Igreja que está em Pádua redescubra o verdadeiro tesouro que São Lucas nos deixou: o Evangelho e os Actos dos Apóstolos.

362 Ao alegrar-me pelo empenho despendido nessa direcção, desejo deter-me brevemente nalguns aspectos da mensagem de São Lucas, para que essa Comunidade possa haurir dela orientação e encorajamento para o seu caminho espiritual e pastoral.

2. Como ministro da Palavra de Deus (cf. Lc
Lc 1,2), Lucas introduz-nos no conhecimento da luz discreta e ao mesmo tempo penetrante que dela promana, iluminando a realidade e os acontecimentos da história. O tema da palavra de Deus, fio áureo que atravessa os dois escritos que compõem a obra de São Lucas, unifica também as duas épocas por ele contempladas, o tempo de Jesus e o da Igreja. Como que narrando a "história da palavra de Deus", o relato de Lucas acompanha a sua difusão, da Terra Santa até aos confins do mundo. O caminho proposto pelo terceiro Evangelho está profundamente marcado pela escuta desta palavra que, como semente, deve ser acolhida com bondade e prontidão de coração, superando os obstáculos que a impedem de criar raízes e produzir fruto (cf. Lc Lc 8,4-15).

Um aspecto importante que Lucas evidencia é o facto que a Palavra de Deus cresce e se afirma de maneira misteriosa, também através do sofrimento e num contexto de oposições e perseguições (cf. Act Ac 4,1-31 Ac 5,17-42 passim ). A palavra que São Lucas indica é chamada a fazer-se, para todas as gerações, um evento espiritual capaz de renovar a existência. A vida cristã, suscitada e sustentada pelo Espírito, é diálogo interpessoal que se funda precisamente na Palavra que o Deus vivo nos dirige, pedindo-nos que a acolhamos, sem reservas, na mente e no coração. Em síntese, trata-se de se tornar um discípulo disposto a escutar com sinceridade e disponibilidade o Senhor, a exemplo de Maria de Betânia, que "escolheu a melhor parte", porque "se sentou aos pés do Senhor para escutar a Sua palavra" (cf. Lc Lc 10,38-42).

Nesta perspectiva, desejo encorajar, na programação pastoral dessa dilecta Igreja, a proposta das "Semanas bíblicas", o apostolado bíblico e as peregrinações à Terra Santa, o lugar onde a Palavra se fez carne (cf. Jo Jn 1,14). Desejaria também estimular todos presbíteros, religiosos, religiosas e leigos a praticarem e promoverem a lectio divina, até fazerem com que a meditação da Sagrada Escritura se torne um elemento essencial da própria vida.

3. "Se alguém quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-Me" (Lc 9,23).

Para Lucas, ser cristão significa seguir Jesus no caminho que Ele percorre (19, 57; 10, 38; 13, 22; 14, 25). É Jesus mesmo que toma a iniciativa e chama a segui-Lo, e fá-lo de modo decisivo, inconfundível, mostrando assim a sua identidade completamente fora do comum, o seu mistério de Filho, que conhece o Pai e O revela (cf. Lc Lc 10,22). Na origem da decisão de seguir Jesus está a opção fundamental em favor da sua Pessoa. Se não se é fascinado pelo rosto de Cristo não se consegue segui-Lo com fidelidade e constância, também porque Jesus caminha por uma via impérvia, põe condições extremamente exigentes e se dirige rumo a um destino paradoxal, o da Cruz. Lucas sublinha que Jesus não ama compromissos e requer o empenho da pessoa inteira, um decisivo desprendimento de toda a nostalgia do passado, dos condicionamentos familiares, da posse dos bens materiais (cf. Lc Lc 9,57-62 Lc 14,26-33).

O homem será sempre tentado a atenuar estas exigências radicais e a adaptá-las às próprias debilidades, ou a desistir do caminho empreendido. Mas é precisamente sobre isto que se decide a autenticidade e a qualidade da vida da comunidade cristã. Uma Igreja que vive no compromisso seria como o sal que perde o sabor (cf. Lc Lc 14,34-35).

É preciso abandonar-se ao poder do Espírito, capaz de infundir luz e sobretudo amor a Cristo; é necessário abrir-se ao fascínio interior que Jesus exerce sobre os corações que aspiram à autenticidade, rejeitando as meias medidas. Isto é certamente difícil para o homem, mas torna-se possível com a graça de Deus (cf. Lc Lc 18,27). Por outro lado, se o seguimento de Cristo implica que se leve cada dia a Cruz, esta, por sua vez, é árvore de vida que conduz à ressurreição. Lucas, que sublinha as exigências radicais do seguimento de Cristo, é também o Evangelista que descreve a alegria daqueles que se tornam discípulos de Cristo (cf. Lc Lc 10,20 Lc 13,17 Lc 19,6 Lc 19,37 Ac 5,41 Ac 8,39 Ac 13,48).

4. É conhecida a importância que Lucas dá, nos seus escritos, à presença e à acção do Espírito, a partir da Anunciação, quando o Paráclito desce sobre Maria (cf. Lc Lc 1,35), até ao Pentecostes quando os Apóstolos, impelidos pelo dom do Espírito, recebem a força necessária para anunciar ao mundo inteiro a graça do Evangelho (cf. Act Ac 1,8 Ac 2,1-4). É o Espírito Santo que plasma a Igreja. São Lucas delineou nos traços da primeira comunidade cristã o modelo sobre o qual a Igreja de todos os tempos deve reflectir-se: é uma comunidade unida "num só coração e numa só alma", assídua na escuta da Palavra de Deus; uma comunidade que vive de oração, com alegria parte o Pão eucarístico, abre o coração às necessidades dos mais pobres até compartilhar com eles os bens materiais (cf. Act Ac 2,42-47 Ac 4,32-37). Toda a renovação eclesial deverá haurir nesta fonte inspiradora o segredo da própria autenticidade e vigor.

A partir da Igreja-Mãe de Jerusalém, o Espírito amplia os horizontes e impele os Apóstolos e as Testemunhas até atingirem Roma. No pano de fundo destas duas cidades desenvolve-se a história da Igreja primitiva, uma Igreja que cresce e se dilata, não obstante as oposições que a ameaçam a partir de fora e as crises que a partir de dentro lhe dificultam o caminho. Mas em todo este percurso, o que realmente importa a Lucas é apresentar a Igreja na essência do seu mistério: ele é constituído pela perene presença do Senhor Jesus que, agindo nela com a força do seu Espírito, lhe infunde consolação e coragem nas provações do caminho na história.

5. Segundo uma piedosa tradição, Lucas é considerado pintor da imagem de Maria, a Virgem Mãe. Mas a verdadeira imagem que Lucas traça da Mãe de Jesus é a que emerge das páginas da sua obra: em cenas que se tornaram familiares ao Povo de Deus, ele delineia uma imagem eloquente da Virgem. A Anunciação, a Visitação, a Natividade, a Apresentação no Templo, a vida na casa de Nazaré, a disputa com os doutores e a perda de Jesus e o Pentecostes ofereceram uma ampla matéria, ao longo dos séculos, ao incessante trabalho de pintores, escultores, poetas e músicos.

363 Oportunamente, portanto, durante o Congresso Internacional esteve prevista uma reflexão sobre o tema da arte, e ao mesmo tempo foi preparada uma exposição rica de obras apreciáveis.
Contudo, o mais importante a captar é que, através de quadros da vida mariana, Lucas nos introduz na interioridade de Maria, fazendo com que descubramos ao mesmo tempo a sua função singular na história da salvação.

Maria é aquela que pronuncia o "fiat", um sim pessoal e total à proposta de Deus, definindo-se "Escrava do Senhor" (
Lc 1,38). Esta atitude de total adesão a Deus e disponibilidade incondicional à sua Palavra constitui o modelo mais excelso da fé, a antecipação da Igreja como comunidade dos fiéis.

A vida de fé cresce e desenvolve-se em Maria na meditação sapiencial das palavras e dos acontecimentos da vida de Cristo (cf. Lc Lc 2,19 Lc Lc 2,51). Ela "medita no coração" para compreender o sentido profundo das palavras e dos factos, o assimilar e depois também o comunicar aos outros.
O Cântico do Magnificat (cf. Lc Lc 1,46-55) manifesta outro importante traço da "espiritualidade" de Maria: Ela encarna a figura do pobre, capaz de repor plenamente a sua confiança em Deus, que abate os poderosos dos tronos e exalta os humildes.

Lucas delineia-nos também a figura de Maria na Igreja dos primeiros tempos, mostrando-a presente no Cenáculo à espera do Espírito Santo: "E todos (os onze Apóstolos) unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, em companhia de algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e de Seus irmãos" (Ac 1,14).

O grupo reunido no Cenáculo constitui como que a célula germinal da Igreja. No seu interior Maria desempenha um dúplice papel: por um lado, intercede pelo nascimento da Igreja, por obra do Espírito Santo; por outro, comunica à Igreja nascente a sua experiência de Jesus.

A obra de Lucas propõe assim à Igreja que está em Pádua um eficaz estímulo a valorizar a "dimensão mariana" da vida cristã no caminho do seguimento de Cristo.

6. Outra dimensão essencial da vida cristã e da Igreja, sobre a qual a narração de Lucas projecta luz viva, é a da missão evangelizadora. Lucas indica o fundamento perene desta missão, isto é, a unicidade e a universalidade da salvação operada por Cristo (cf. Act Ac 4,12). O evento salvífico da morte-ressurreição de Cristo não conclui a história da salvação, mas indica o início de uma nova fase, caracterizada pela missão da Igreja, chamada a comunicar a todas as nações os frutos da salvação operada por Cristo. Por esta razão, Lucas faz seguir ao Evangelho, como consequência lógica, a história da missão. É o próprio Ressuscitado que dá aos Apóstolos o "mandato missionário": "Abriu-lhes, então, o entendimento para compreenderem as Escrituras e disse-lhes: "Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos ao terceiro dia, que havia de ser pregado, em Seu nome, o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. E eu vou mandar sobre vós O que Meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força lá do Alto"" (Lc 24,45-48).

A missão da Igreja começa no Pentecostes "de Jerusalém" para se estender "até aos confins da terra". Jerusalém não indica só um ponto geográfico. Pelo contrário, está a significar um ponto fulcral da história da salvação. A Igreja não parte de Jerusalém para a abandonar, mas para enxertar as nações pagãs na oliveira de Israel (cf. Rm Rm 11,17).

A tarefa da Igreja consiste em introduzir na história o fermento do Reino de Deus (cf. Lc Lc 13,20-21). Tarefa esta que exige empenhamento, descrita nos Actos dos Apóstolos como um itinerário cansativo e acidentado, mas confiado a "testemunhas" repletas de entusiasmo, audácia e alegria, disponíveis a sofrer e a dar a vida por Cristo. Esta energia interior é-lhes comunicada pela comunhão de vida com o Ressuscitado e pela força do Espírito que Ele dá.

364 Para a Igreja que está em Pádua, um grande recurso pode constituir o confronto contínuo com a mensagem do Evangelista, cujos restos mortais ali são conservados.

7. À luz desta visão de São Lucas, formulo votos por que essa Comunidade diocesana, em plena docilidade ao sopro do Espírito, saiba testemunhar com audácia criativa Jesus Cristo, quer no próprio território, quer, segundo a sua bela tradição, na cooperação missionária com as Igrejas da África, da América Latina e da Ásia.

Este empenho missionário encontre um ulterior impulso neste Ano jubilar, que celebra os dois mil anos do nascimento de Cristo e chama a Igreja a uma profunda renovação de vida. Precisamente o Evangelho de Lucas apresenta o discurso com que Jesus, na Sinagoga de Nazaré, proclama "o ano de graça do Senhor", anunciando a salvação como libertação, cura e boa nova aos pobres (cf. Lc
Lc 4,14-20). Sucessivamente, o próprio Evangelista apresentará a força purificadora do amor misericordioso do Salvador, em páginas tocantes como a da ovelha tresmalhada e do filho pródigo (cf. Lc cap. 15).

O nosso tempo tem mais necessidade do que nunca deste anúncio. Exprimo, pois, o meu ardente encorajamento a essa Comunidade, para que o empenho em prol da nova evangelização seja sempre mais forte e incisivo. Exorto também a prosseguir e a desenvolver as iniciativas ecuménicas, que foram iniciadas com algumas Igrejas ortodoxas em termos de colaboração no plano das obras de caridade, da cultura teológica, da pastoral. O Congresso Internacional sobre São Lucas represente uma etapa significativa no caminho dessa Igreja, ajudando-a a enraizar-se sempre mais no terreno da Palavra de Deus e a abrir-se com impulso renovado à comunhão e à missão.

É com estes votos que lhe concedo de coração, venerado Irmão, e a quantos são confiados aos seus cuidados pastorais, uma especial Bênção Apostólica.

Vaticano, 15 de Outubro de 2000.





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