AUDIÊNCIAS 2001

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 17 de outubro de 2001

Acção de graças pela salvação do povo

Caríssimos Irmãos e Irmãs:


1. O Salmo que foi proclamado é um cântico em honra de Sião, "a cidade do grande Soberano" (Ps 47,3), que nessa época era sede do templo do Senhor e lugar da sua presença entre a humanidade. A fé cristã já o aplica à "Jerusalém, lá do alto", que é "nossa mãe" (Ga 4,26).

A tonalidade litúrgica deste hino, a evocação de uma procissão de festa (cf. vv. 13-14), a visão pacífica de Jerusalém que reflecte a salvação divina, fazem do Salmo 47 uma oração para iniciar o dia e fazer dele um cântico de louvor, mesmo se no horizonte se condensam algumas nuvens.

Para compreender o sentido do Salmo, servem-nos de ajuda três aclamações colocadas no início, no centro e no final, que nos oferecem como que a chave espiritual da composição e nos introduzem no seu clima interior. Eis as três invocações: "Grande é o Senhor e digno de louvor, na cidade do nosso Deus" (v. 2); "Revivemos, ó Deus, as Vossas graças, no meio do Vosso templo" (v. 10); "Este é o Senhor, o nosso Deus pelos séculos sem fim; Ele é que nos guia" (v. 15).

2. Estas três aclamações, que exaltam o Senhor mas também "a cidade do nosso Deus" (v. 2), enquadram duas partes grandes do Salmo. A primeira é uma jubilosa celebração da cidade santa, a vitoriosa Sião, contra os assaltos dos inimigos, serena sob o manto da protecção divina (cf. vv. 3-8). Tem-se quase uma litania de definição desta cidade: é uma altura admirável que se ergue como um farol de luz, uma fonte de alegria para todos os povos da terra, o único verdadeiro "Olimpo" onde o céu e a terra se encontram. É para usar uma expressão do profeta Ezequiel a cidade-Emanuel, porque "Deus está ali" presente nela (cf. 48, 35). Mas em redor de Jerusalém estão a agrupar-se as tropas em cerco, como um símbolo do mal que atenta contra o esplendor da cidade de Deus. O confronto tem um êxito previsto e quase imediato.

3. De facto, os poderosos da terra, ao assaltar a cidade santa, provocaram também o seu Rei, o Senhor. O Salmista mostra como o orgulho de um exército poderoso se dissolve com a imagem sugestiva das dores de parto: "foram colhidos pelo terror, um terror como o da mulher em parto" (v. 7). A arrogância transforma-se em fragilidade e fraqueza, o poder em queda e derrota.

O mesmo conceito é expresso com outra imagem: o exército em marcha é comparado a uma frota naval invencível, sobre a qual cai um furacão causado por um terrível vento do oriente (cf. v. 8).

Por conseguinte, permanece uma certeza incontestável para os que estão sob a protecção divina: a última palavra não é confiada ao mal mas ao bem; Deus triunfa sobre as potências adversas, mesmo quando parecem ser grandiosas e invencíveis.

4. Então o fiel, celebra precisamente no templo o seu agradecimento ao Deus libertador. O seu é um hino ao amor misericordioso do Senhor, expresso com a palavra hebraica hésed, típica da teologia da aliança. Chegamos assim à segunda parte do Salmo (cf. vv. 10-14). Depois do grande cântico de louvor a Deus fiel, justo e salvador (cf. vv. 10-12), realiza-se uma espécie de procissão à volta do templo e da cidade santa (cf. vv. 13-14). Contam-se as torres, sinal da protecção certa de Deus, observam-se as fortalezas, expressão da estabilidade oferecida a Sião pelo seu Fundador. Os muros de Jerusalém falam e as suas pedras recordam os factos que devem ser transmitidos "às gerações futuras" (v. 14) através da narração que os pais farão aos seus filhos (cf. Sl Ps 77,7). Sião é o espaço de uma cadeia ininterrupta de acções salvíficas do Senhor, que são anunciadas na catequese e celebradas na liturgia, para que os crentes continuem a ter esperança na intervenção libertadora de Deus.

5. É maravilhosa na antífona conclusiva uma das mais nobres definições do Senhor como pastor do seu povo: "Ele é que nos guia" (v. 15). O Deus de Sião é o Deus do Êxodo, da liberdade, da proximidade ao seu povo escravo no Egipto e peregrino no deserto. Agora que Israel se estabeleceu na terra prometida, sabe que o Senhor não o abandona: Jerusalém é o sinal da sua proximidade, e o templo é o lugar da sua esperança.

Voltando a ler estas expressões, o cristão eleva-se à contemplação de Cristo, o templo de Deus novo e vivo (cf. Jo Jn 2 Jo Jn 21), e dirige-se para a Jerusalém celeste, que já não precisa de um templo e de uma luz exterior, porque "o Senhor, Deus Todo-Poderoso, é o seu Templo, assim como o Cordeiro... porque é iluminada pela glória de Deus e a sua luz é o Cordeiro" (Ap 21,22-23).

Santo Agostinho convida-nos a fazer de novo esta leitura "espiritual", convencido de que nos livros da Bíblia "não se encontra nada que se refira apenas à cidade terrena, mas tudo o que dela se refere, ou para ela se realiza, simboliza algo que por alegoria se pode também referir à Jerusalém celeste" (Cidade de Deus, XVII, 3, 2). Faz-lhe eco São Paulino de Nola, que precisamente ao comentar as palavras do nosso Salmo, exorta a rezar a fim de que "possamos ser como pedras vivas nas muralhas da Jerusalém celeste e livre" (Carta 28, 2 a Severo). E ao contemplar a robustez e solidez desta cidade, o mesmo Padre da Igreja prossegue: "De facto, todo aquele que habita nesta cidade revela-se como o Uno em três pessoas... Dela Cristo foi constituído não só fundamento, mas também torre e porta... Funda-se portanto sobre Ele a casa da nossa alma e sobre ele se eleva uma construção digna de uma base assim tão grande, e a porta de entrada para a sua cidade será para nós precisamente Aquele que nos orientará nos séculos e nos levará ao lugar das suas pastagens" (ibid.).

Apelo em prol da Nigéria


Depois desta primeira Audiência geral do 24º ano de Pontificado de João Paulo II, celebrada com orações e cânticos que ressoaram na Praça de São Pedro, o Sumo Pontífice retribuiu prontamente com íntima alegria, dirigindo no final este apelo em favor da paz na Nigéria, onde um vilento conflito entre muçulmanos e cristãos ceifou a vida de inúmeras vítimas inocentes:
Outro episódio de grave violência veio acrescentar-se à trágica situação mundial destes dias: mais de 200 mortos e centenas de feridos, vítimas dos conflitos entre muçulmanos e cristãos na Nigéria.
Quem está na origem destes actos injustificáveis deve ser responsável perante Deus.
Enquanto exprimo a nossa proximidade espiritual, também em nome de todos vós, ao Bispo de Kano, D. Patrick Francis Sheehan, e a quantos choram a perda dos seus entes queridos, rezo ao Senhor a fim de que ajude todos a responder à expectativa de Deus, que quer fazer da humanidade uma única família.

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs

Saúdo cordialmente os ouvintes de língua portuguesa, hoje bem representados por brasileiros, especialmente pelo Senhor Comandante e pelos Oficiais, Cadetes e Tripulação do Navio-Escola "Brasil".

Desejo a todos felicidades e que, crescendo na fé a na consciência da vocação cristã, honrem sempre a dignidade a que os elevou o Batismo: sois templos do Espírito Santo e novo Povo de Deus. E olhando para o grupo, onde prevalecem os jovens, digo-lhes: sede arautos de esperança! E pela cultivada nobreza da vossa escolha de vida, sede homens construtores de fraternidade, paz e solidariedade com todos, sem exceção, para um mundo e para um Brasil melhores! Com estes votos, vos abençôo assim como as vossas famílias.

Caríssimos peregrinos holandeses e belgas, o Rosario é um compêndio do Evangelho e uma escola de oração.

Faço votos para que a vossa peregrinação neste mês de Outubro, dedicado à Virgem Maria, vos ajude a redescobrir o valor desta oração simples e eficaz.

É de coração que vos concedo a Bênção apostólica.

Louvado seja Jesus Cristo!

Dirijo as cordiais boas-vindas aos peregrinos eslovacos, provenientes de Bratislava e dos seus arredores, de Michalovce e de Senica.

Caros peregrinos, durante os encontros com o Papa, vós entoais o cântico: "Abençoai, Deus, o Santo Padre, Vigário de Cristo!". Agradeço-vos as vossas orações e os sacrifícios, com que acompanhais o meu ministério de Pastor de toda a Igreja.

Com gratidão, concedo-vos a Bênção apostólica a vós e aos vossos entes queridos.
Louvado seja Jesus Cristo!

Saúdo de coração todos os grupos de peregrinos croatas aqui presentes, de maneira particular os fiéis da Missão Croata Católica de Moers-Repelen, na Alemanha. Sede bem-vindos!
Caríssimos, concedo-vos do íntimo do coração a Bênção apostólica a cada um de vós e às vossas famílias.

Louvados sejam Jesus e Maria!

Por fim, dirijo-me aos jovens, aos doentes e aos novos casais, recordando que hoje se celebra a memória litúrgica de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir em Roma no início do século II.
Pensando no seu exemplo luminoso, convido-vos a vós, queridos jovens, a ser corajosos discípulos de Cristo; exorto-vos a vós, dilectos doentes, a aceitar os sofrimentos com espírito de fé e de esperança cristã; e formulo-vos votos a todos vós, estimados novos casais, a fim de que tireis sempre da Eucaristia o amor divino que consagra a vossa união.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 24 de outubro de 2001

Senhor, tende piedade de mim




Caríssimos Irmãos e Irmãs:

1. Escutámos o Miserere, uma das orações mais célebres do Saltério, o Salmo penitencial mais intenso e repetido, o cântico do pecado e do perdão, a meditação mais profunda sobre a culpa e a graça. A Liturgia das Horas faz-nos repeti-lo nas Laudes de cada sexta-feira. Desde há muitos séculos numerosos corações de fiéis judeus e cristãos elevam aos céus como que um suspiro de arrependimento e de esperança dirigido a Deus misericordioso.

A tradição judaica colocou o Salmo nos lábios de David, convidado pelas palavras severas do profeta Natan a fazer penitência (cf. vv. 1-2; 2S 11,12), o qual lhe reprovava o adultério cometido com Betsabé e o homicídio de seu marido, Urias. Mas o Salmo enriquece-se nos séculos seguintes, com a oração de muitos outros pregadores, que retomam os temas do "coração novo" e do "Espírito" de Deus infundido no homem redimido, segundo o ensinamento dos profetas Jeremias e Ezequiel (cf. v. 12; Jr 31,31-34 Ez 11,19 Ez 36,24-28).

2. São dois os horizontes que o Salmo 50 delineia. Em primeiro lugar, está a região tenebrosa do pecado (cf. vv. 3-11), na qual se encontra o homem desde o início da sua existência: "Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-me no pecado" (v. 7). Mesmo se esta declaração não pode ser assumida como uma formulação explícita da doutrina do pecado original como foi delineada pela teologia cristã, não há dúvida de que ela lhe corresponde: de facto, exprime a dimensão profunda da inata debilidade moral do homem. O Salmo, nesta primeira fase, apresenta-se como uma análise do pecado, feita diante de Deus. São três as palavras hebraicas usadas para definir esta triste realidade, que provém da liberdade humana mal empregue.

3. A primeira palavra, hattá, significa literalmente "não atingir o alvo": o pecado é uma aberração que nos afasta de Deus, meta fundamental das nossas relações, e por conseguinte também do próximo.

A segunda palavra hebraica é "awôn, que remete para a imagem de "torcer", "curvar". Por conseguinte, o pecado é um desvio sinuoso do caminho recto; é a inversão, a deturpação, a deformação do bem e do mal, no sentido declarado por Isaías: "Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas" (Is 5,20).Precisamente por este motivo, na Bíblia, a conversão é indicada como um "voltar" (em hebraico shûb) ao caminho recto, corrigindo o percurso.

A terceira palavra que o salmista usa para falar do pecado é peshá. Ela exprime a rebelião do súbdito em relação ao soberano e, por conseguinte, é um desafio aberto dirigido a Deus e ao seu projecto para a história humana.

4. Mas se o homem confessa o seu pecado, a justiça salvífica de Deus está pronta para o purificar radicalmente. Desta forma passa-se para a segunda parte espiritual do Salmo, a luminosa da graça (cf. vv. 12-19). De facto, através da confissão das culpas abre-se para quem reza um horizonte de luz no qual Deus actua. O Senhor não age apenas negativamente, eliminando o pecado, mas regenera a humanidade pecadora através do seu Espírito vivificante: infunde no homem um "coração" novo e puro, ou seja, um conhecimento renovado, e abre-lhe a possibilidade de uma fé límpida e de um culto agradável a Deus.

Orígenes fala a este propósito de uma terapia divina, que o Senhor realiza através da sua palavra e mediante a obra regeneradora de Cristo: "Assim como Deus predispôs para o corpo o remédio das ervas terapêuticas misturadas com sabedoria, assim também preparou remédios para a alma com as palavras que infundiu, distribuindo-as nas divinas Escrituras... Deus também deu outra actividade médica, cujo arquiatra é o Salvador, o qual diz de si mesmo: "não são os sadios que precisam do médico, mas os doentes". Ele era o médico por excelência capaz de curar qualquer debilidade, qualquer enfermidade" (Homilias sobre os Salmos, Florença, 1991, PP 247-249).

5. A riqueza do Salmo 50 mereceria uma exegese cuidadosa de cada uma das suas partes. É o que faremos quando ele voltar a ressoar nas várias sextas-feiras das Laudes. O olhar de conjunto, que agora dirigimos a esta grande súpplica bíblica, já nos revela algumas componentes fundamentais de uma espiritualidade que deve reflectir-se na existência quotidiana dos fiéis. Em primeiro lugar, há um profundo sentido do pecado, entendido como uma escolha livre, conotada negativamente a nível moral e teologal: "Contra Vós apenas é que eu pequei, pratiquei o mal perante os Vossos olhos" (v. 6). Depois, verifica-se também no Salmo um profundo sentido da possibilidade de conversão: o pecador, sinceramente arrependido (cf. v. 5), apresenta-se em toda a sua miséria e despojamento a Deus, suplicando-lhe que não o afaste da sua presença (cf. v. 13).

Por fim, no Miserere, vê-se uma radicada convicção do perdão divino que "apaga, lava e purifica" o pecador (cf. vv. 3-4) e chega até a transformá-lo numa criatura nova que tem espírito, língua, lábios e coração transformados (cf. vv. 14-19). "Mesmo se os nossos pecados afirmava santa Faustina Kowalska fossem escuros como a noite, a misericórdia divina é mais forte do que a nossa miséria. É necessária uma só coisa: que o pecador abra pelo menos um pouco da porta do seu coração... o resto fá-lo-á Deus... Tudo se iniciou com a tua misericórdia e tudo terminará com a tua misericórdia" (M. Winowska, O ícone do Amor misericordioso. A mensagem da Irmã Faustina, Roma, 1981, pág. 271).

Saudações

Caríssimos irmãos e Irmãs!
Aos peregrinos de língua portuguesa saúdo afectuosamente e, como penhor de abundantes dons divinos, que sejam propiciadores de paz e de concórdia entre todos os homens e mulheres de boa vontade, concedo de bom grado a minha Bênção apostólica.

Saúdo os peregrinos lituanos!
No Salmo que escutámos hoje, o crente confessa a Deus os seus pecados. Compreendemos à luz da fé não só a geral debilidade humana, mas também a gravidade das decisões livres, quando o homem escolhe o mal. O Deus misericordioso fortaleça hoje os vossos corações no bem e a todos abençoe.
Louvado seja Jesus Cristo!

Queridos irmãos e irmãs da Croácia!
Os sacramentos instituídos por Cristo e pela Igreja celebrados na Liturgia dizem respeito às etapas e aos momentos principais da vida do homem, imbebendo-os com a graça divina. Eles manifestam a constante presença salvífica de Deus na existência humana e são a continuação da obra da Redenção que Cristo realiza na Igreja, com ela e por meio dela.
Saúdo de coração quantos trabalham na Caritas da Arquidiocese de Espálato-Makarska e os grupos de peregrinos provenientes de Espálato, Zagábria a Dubrovnik. A todos concedo a Bênção apostólica.
Louvados sejam Jesus e Maria!

Queridos peregrinos de língua francesa, recebo-vos com alegria. Faço votos para que possais abrir os vossos corações à misericórdia do Pai, que Cristo veio revelar, percorrendo o caminho da nossa humanidade! Saúdo-vos particularmente a vós, religiosas de Jesus e Maria, reunidas em Roma por ocasião do vosso Capítulo Geral. Que a vossa fidelidade a Cristo vos estimule a estardes próximas de todos os que hoje enfrentam todos os tipos de violência, a fim de edificardes com eles um mundo de paz segundo a vontade de Deus!
Concedo a todos, de coração, a Bênção apostólica.

Por fim, saúdo os jovens, os doentes e os novos casais. Hoje a liturgia recorda-nos o Bispo Santo António Maria Claret, que se dedicou com grande empenho à salvação das almas. O seu glorioso testemunho evangélico vos ampare a vós, queridos jovens, no empenho de fidelidade quotidiana a Cristo; vos encorage a vós, queridos doentes, a seguir sempre Jesus no caminho da prova e do sofrimento; e vos ajude a vós, queridos novos casais, a fazer da vossa família o lugar do encontro vivo com o amor de Deus e dos irmãos.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 31 de outubro de 2001

Todos os povos se convertam ao Senhor




Queridos irmãos e irmãs,

"Na verdade, vós sois um Deus escondido" (Is 45,15). Este versículo, que introduz o Cântico proposto para as Laudes de sexta-feira da primeira semana do Saltério, é tirado da meditação de Isaías sobre a grandeza de Deus, manifestada na criação e na história: um Deus que se revela, embora permaneça escondido na impenetrabilidade do seu mistério. Por definição, Ele é o "Deus absconditus". Nenhum pensamento o pode compreender. O homem só pode contemplar a sua presença no universo, como que seguindo os seus passos, prostrado diante dele na oração e no louvor.

O contexto histórico, a partir do qual nasce esta meditação, é o da surpreendente libertação que Deus ofereceu ao seu povo, no tempo do exílio babilónico. Quem é que teria pensado que, um dia, os exilados de Israel podiam voltar para a sua pátria? Olhando para o poder babilónico, eles só podiam desesperar. Todavia, eis o grande anúncio, a surpresa de Deus, que vibra nas palavras do profeta: como no tempo do Êxodo, Deus há-de intervir. E se então tinha derrotado a resistência do faraó com castigos tremendos, agora escolhe um rei, Ciro da Pérsia, para vencer o poder babilónico e restituir a liberdade a Israel.

2. "Vós sois um Deus escondido, o Deus de Israel, o Salvador" (Ibidem). Com estas palavras, o profeta convida a reconhecer que Deus age na história, mesmo quando não se manifesta na linha de vanguarda. Dir-se-ia que se encontra "nos bastidores". Ele é o criador misterioso e invisível que respeita a liberdade das suas criaturas mas, ao mesmo tempo, tem nas suas mãos o destino das vicissitudes do mundo. A certeza da acção providencial de Deus é fonte de esperança para o crente, que sabe que pode contar com a presença constante daquele "que formou a terra e a consolidou" (Ibid., v. 18).

Com efeito, o acto criativo não é um episódio que se perde na noite dos tempos, de maneira que o mundo, depois daquele início, se deva considerar como que abandonado em si mesmo. Deus tira constantemente do ser a criação que saiu das suas mãos. Reconhecê-lo é também confessar a sua unicidade: "Não fui Eu, o Senhor? Não há outro Deus fora de mim" (Ibid., v. 21). Por definição, Deus é o Único. Nada lhe pode ser comparado. Tudo lhe é subordinado. Daqui, também a rejeição da idolatria, em relação à qual o profeta anuncia palavras severas: "Nada disto compreendem os que trazem o seu ídolo de madeira e dirigem as suas súplicas a um deus incapaz de os salvar" (Ibid., 20). Como é que nos podemos pôr em adoração, diante de um produto realizado pelo homem?

3. À nossa sensibilidade contemporânea, esta polémica poderia parecer excessiva, como se visasse as imagens consideradas em si mesmas, sem compreender que lhes pode ser atribuído um valor simbólico, compatível com a adoração espiritual do único Deus. Sem dúvida, aqui entra em jogo a sábia pedagogia divina que, através de uma rígida disciplina de exclusão das imagens, salvaguardou Israel das contaminações politeístas. Partindo do rosto de Deus, que se manifestou na encarnação de Jesus Cristo, a Igreja reconheceu, durante o segundo Concílio de Niceia (a. 787), a possibilidade de recorrer às imagens sagradas, contanto que estas sejam compreendidas no seu valor essencial de relação.

Todavia, subsiste a importância desta admoestação profética em relação a todas as formas de idolatria, com frequência dissimuladas mais do que no uso impróprio das imagens, nas atitudes com que os homens e as coisas são considerados como valores absolutos e substitutos do próprio Deus.

4. Sob o ponto de vista da criação, o hino leva-nos para o terreno da história, onde Israel pôde experimentar muitas vezes o poder benéfico e misericordioso de Deus, a sua fidelidade e a sua providência. Em particular, na libertação do exílio manifestou-se uma vez mais o amor de Deus pelo seu povo, e isto aconteceu de maneira tão evidente e surpreendente, que o profeta chama os próprios "sobreviventes de entre as nações" a testemunhar. Convida-os a discutir, se podem:

"Congregai-vos, vinde, aproximai-vos todos juntos, sobreviventes de entre as nações" (Ibidem). A conclusão a que o profeta chega é de que a intervenção do Deus de Israel é inquestionável.
Então, manifesta-se uma magnífica perspectiva universalista. Deus proclama: "Convertei-vos a mim e sereis salvos, confins todos da terra, porque Eu sou Deus e não há outro" (Ibid., v. 22).

Assim, torna-se evidente que a predilecção com que Deus escolheu Israel como seu povo não significa um acto de exclusão mas, pelo contrário, um acto de amor de que toda a humanidade é destinada a beneficiar.

Desta forma delineia-se, já no Antigo Testamento, aquela concepção "sacramental" da história da salvação, que vê na eleição especial dos filhos de Abraão e, em seguida, dos discípulos de Cristo na Igreja, não um privilégio que "fecha" e "exclui", mas o sinal e o instrumento de um amor universal.

5. O convite à adoração e a oferta da salvação dizem respeito a todos os povos: "Todo o joelho se dobrará diante de mim, toda a língua jurará por mim" (Ibid., v. 23). Ler estas palavras numa perspectiva cristã significa ter no pensamento a revelação completa do Novo Testamento que, em Cristo, indica "um Nome que está acima de todo o nome" (Ph 2,9), de tal maneira que, "ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na Terra e nos Infernos, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai" (Ibid., vv. 10-11).

Através deste Cântico, as nossas Laudes matutinas adquirem proporções universais, dando voz também a quantos ainda não receberam a graça de conhecer Cristo. Trata-se de um louvor que se faz "missionário", levando-nos a percorrer todos os caminhos, anunciando que Deus se manifestou em Jesus como o Salvador do mundo.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, encontro-me convosco no final deste mês de Outubro que, como sabeis, é o mês das Missões. Deus quer a salvação de todos; por isso, as grandes coisas que o Senhor tem feito por cada um de vós, deveis proclamá-las a todos, apressando a hora da salvação de Deus na vida deles. Não tenhais medo! Eu vos abençoo como luz do mundo.

Dou os cumprimentos de boas-vindas a todos os peregrinos vindos de Espanha e da América Latina. Que a leitura e meditação deste Cântico do profeta Isaías vos ajude a andar por todos os caminhos, anunciando que Deus se manifestou em Jesus, como Salvador do mundo. Que Deus vos abençoe!

Uma cordial saudação aos peregrinos provenientes de Praga! Seja louvado Jesus Cristo!
Amanhã, na Solenidade de Todos os Santos, alegrar-nos-emos com todos entre os nossos queridos os que nos precederam na Eternidade. Eles já gozam da plena Bem-aventurança junto de Deus. A sua poderosa intercessão nos acompanhe também a nós na nossa peregrinação para a glória do Céu.
Abençoo-vos a todos, do coração!

Ao dirigir agora a minha cordial saudação aos peregrinos de língua italiana, desejo manisfestar um pensamento especial aos representates da Associação "Turris Eburnea", fundada em Turim pelo benemérito sacerdote Mons. Michele Peyron. Agrada-me a significativa actividade apostólica que a Associação desenvolve em favor da formação da juventude, especialmente nos problemas da afectividade e da preparação para o matrimónio, e faço votos para que tal testemunho dê abundantes frutos espirituais para benefício do Povo de Deus.

Dirijo, agora, a minha saudação aos jovens, aos doentes e aos novos casais.
As próximas celebrações da Solenidade de Todos os Santos e da Comemoração dos fiéis defuntos, pedem aos crentes que elevem o seu olhar para o céu, pensando nas últimas e definitivas realidades que nos esperam.

Caros jovens, procurai como objectivo primário a santidade de vida, para preparar um futuro repleto de bens.

Queridos doentes, o exemplo de virtudes dos Santos e a sua intercessão vos ajudem a enfrentar com coragem as provações da vida.

Estimados novos casais, o pensamento da Pátria celeste, à qual todos somos chamados, oriente a vossa família para a fidelidade a Cristo e para a plena e recíproca comunhão de amor.



                                                                           Novembro de 2001

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 7 de novembro de 2001

A alegria dos que entram no templo

1. A tradição de Israel impôs ao hino de louvor agora proclamado o título de "Salmo para a todáh", isto é, para a acção de graças no cântico litúrgico, e por isso adapta-se bem à entoação das Laudes matutinas. Nos poucos versículos deste alegre hino podem identificar-se três elementos significativos, de forma que tornam espiritualmente frutuoso o seu uso por parte da comunidade orante cristã.


2. Antes de tudo, encontra-se o apelo premente à oração, claramente descrita na sua dimensão litúrgica. É suficiente enumerar os verbos usados no imperativo que marcam o Salmo e são acompanhados por indicações de ordem cultual: "Aclamai..., servi ao Senhor com alegria, vinde à sua presença com cânticos de júbilo! Sabei que o Senhor é Deus... Entrai nos seus pórticos com acção de graças, entrai nos seus átrios com louvores, glorificai e bendizei o seu nome" (vv. 2-4). Uma série de convites não só para entrar na área sagrada do templo através dos seus pórticos e átrios (cf. Sl Ps 14,1 Ps 23,3 Ps 23,7-10), mas também a cantar hinos jubilosos a Deus.

É uma espécie de fio constante de louvor que nunca se interrompe, exprimindo-se numa contínua profissão de fé e de amor. Um louvor que se eleva da terra para Deus, e que ao mesmo tempo alimenta a alma do crente.

3. Desejaria reservar outra pequena observação ao início do cântico, onde o Salmista chama toda a terra a aclamar o Senhor (cf. v. 1). Sem dúvida, o Salmo dedicará depois toda a sua atenção ao povo eleito, mas o horizonte envolvido no louvor é universal, como acontece muitas vezes no Saltério, sobretudo nos chamados "hinos ao Senhor e Rei" (cf. Sl Ps 95-98). O mundo e a história não estão nas mãos do destino, da confusão, de uma necessidade cega. Pelo contrário, são governados por um Deus que é ao mesmo tempo misterioso, mas que também deseja que a humanidade viva, de modo estável, relações justas e autênticas. Ele "fixou o orbe, não vacilará, governa os povos com equidade... governará a terra com justiça, e os povos na Sua fidelidade" (Ps 95,10 Ps 95,13).

4. Por conseguinte, estamos todos nas mãos de Deus, Senhor e Rei, e todos o celebramos, confiantes de que Ele não nos deixará cair das Sua mãos de Criador e de Pai. A esta luz, pode apreciar-se melhor o terceiro elemento significativo do Salmo. No centro do louvor que o Salmista coloca nos nossos lábios, encontra-se de facto uma espécie de profissão de fé, expressa mediante uma série de atributos que definem a realidade íntima de Deus. Este credo fundamental contém as seguintes afirmações: o Senhor é Deus, o Senhor é o nosso criador, nós somos o seu povo, o Senhor é bom, o seu amor é eterno, a sua fidelidade não tem fim (cf. vv. 3-5).

5. Tem-se, em primeiro lugar, uma renovada confissão de fé no único Deus, como nos é pedido pelo primeiro mandamento do Decálogo; "Eu sou o Senhor, teu Deus... não terás outro Deus além de Mim" (Ex 20,2 Ex 20,3). E como se repete muitas vezes na Bíblia: "Reconhece, agora, e grava no teu coração, que só o Senhor é Deus e que não há outro" (Dt 4,39). Depois, é proclamada a fé em Deus criador, fonte do ser e da vida. Segue-se a afirmação, expressa através da chamada "fórmula da aliança", da certeza que Israel tem da eleição divina: "pertencemos-Lhe, somos o Seu povo e as ovelhas do Seu rebanho" (v. 3). É uma certeza que os fiéis do novo Povo de Deus fazem sua, na consciência de constituírem a grei que o Pastor supremo das almas conduz aos prados eternos do céu (cf. 1P 2,25).

6. Depois da proclamação do Deus uno, criador e fonte da aliança, o retrato do Senhor cantado pelo nosso Salmo continua com uma meditação de três qualidades divinas, muitas vezes exaltadas no Saltério: a bondade, o amor misericordioso (hésed), e a fidelidade. São as três virtudes que caracterizam a aliança de Deus com o seu povo; elas exprimem um vínculo que jamais será violado, dentro do fluxo das gerações e apesar do rio lamacento dos pecados, das rebeliões e das infidelidades humanas. Com confiança serena no amor divino que nunca virá a faltar, o povo de Deus encaminha-se na história com as suas tentações e debilidades quotidianas.

E esta confiança far-se-á cântico, ao qual por vezes as palavras já não bastam, como observa Santo Agostinho: "Quanto mais aumentar a caridade, tanto mais te darás conta do que dizias e não dizias. Com efeito, antes de saborear determinadas coisas, pensavas que podias utilizar palavras para indicar Deus; ao contrário, quando começaste a saboreá-lo, apercebeste-te de que não és capaz de explicar adequadamente aquilo que sentes. Mas se te aperceberes de que não sabes exprimir com as palavras o que sentes, deverás, por isso, permanecer calado e não louvar?... Não, certamente. Não serás tão ingrato. A Ele devemos a honra, o respeito, o maior louvor... Ouve o Salmo: "Terra inteira, louva o Senhor!". Compreenderás a alegria de toda a terra, se tu mesmo te alegras no Senhor" (Exposições sobre os Salmos III/1, Roma 1993, pág. 459).





JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 14 de novembro de 2001

Promessa de observar a lei de Deus




Queridos irmãos e irmãs

1. O que a liturgia de Laudes nos propõe no sábado da primeira semana é uma única estrofe tirada do Salmo 118, uma monumental oração de vinte e duas estrofes, tantas quantas são as letras do alfabeto hebraico. Cada estrofe se caracteriza por uma letra do alfabeto, com que começa cada um dos versículos; a ordem das estrofes segue a do alfabeto. A que proclamámos agora é a estrofe número dezanove, correspondente à letra qof.

Esta premissa, um pouco superficial, permite-nos compreender melhor o significado deste cântico em honra da Lei divina. Ele é semelhante a uma música oriental, cujas modulações sonoras parecem nunca mais ter fim e elevam-se ao céu numa repetição que envolve a mente e os sentidos, o espírito e o corpo daquele que reza.

2. Numa sequência que se desenvolve do 'alef ao tau, isto é, da primeira à última letra do alfabeto do A ao Z, diremos nós com o alfabeto italiano aquele que reza expande-se no louvor da Lei de Deus, que adopta como lâmpada para os seus passos no caminho, tantas vezes obscuro, da vida (cf. v 105).

Diz-se que o grande filósofo e cientista Blaise Pascal recitava diariamente este Salmo, que é o maior de todos, enquanto o teólogo Dietrich Bonhoeffer, assassinado pelos nazistas em 1945, o transformava numa oração viva e actual, escrevendo: "Indubitavelmente, o Salmo 118 é pesado pela sua extensão e monotonia, mas nós devemos avançar palavra por palavra, frase por frase, muito lenta e pacientemente. Descobriremos então que as aparentes repetições são, na relidade, aspectos novos de uma só e mesma realidade: o amor pela palavra de Deus. Como este amor não pode ter fim, também não o terão as palavras que o confessam. Elas podem acompanhar-nos ao longo de toda a nossa vida, e na sua simplicidade tornam-se oração da criança, do adulto e do idoso" (Rezar os Salmos com Cristo, Brescia, 1978³, p. 48).

3. O facto de repetir, além de ajudar a memória no canto coral, é ainda um modo de estimular a adesão interior e o abandono confiante nos braços de Deus, invocado e amado. Entre as repetições do Salmo 118, queremos assinalar uma muito significativa. Cada um dos 176 versículos de que é composto este louvor à Torah, isto é, à Lei e à Palavra divina, contém, pelo menos, uma das oito palavras com que se define a própria Torah: lei, palavra, testemunho, juízo, prescrição, decreto, preceito, ordem. Celebra-se assim a Revelação divina, que é manifestação do mistério de Deus, mas também guia moral para a existência do fiel.


AUDIÊNCIAS 2001